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Nesle programa Olavo de Carvalho relata o papel

da Igreja após a dissolução do império romano


e sua atuação na ordem administrativa e social.
Diferentemente do que muitos autores pregam
atualmenie: Olavo ressalta que a síntese lomisLa aponta
para a impossibilidade da harmonização entre fé e razão.
Olavo de Carvalho descreve o processo de ruptura
entre as culturas sacra e mundana, mostrando a
diferença do conceito de razão para Santo Tomás de
Aquino e aquilo que compreendemos como razáo hoje.
Neste programa conhecemos a descrição da estrutura de
realidade segundo Santo Tomás e sua crença de que a
abertura para a transcendência é condição básica para a
racionalidade humana. Segundo Olavo, “a abertura para
a transcendência é a alma humana. E ela não tem nada a
ver com religião. Eia é um pressuposto da razão humana
e um pressuposto da própria existência da religião".

“Olavo de Carvalho é o
mais im portante pensador
brasileiro hoje.”
Wagner Carelli

“Filósofo de grande erudição.”


Roberto Campos

“Um gigante.”
Bruno Tolentino

“Olavo de Carvalho se
destaca porque pensa,
reflete, e é de uma
honestidade intelectual
que chega a ser cruel.”
Carlos Heitor Cony

ISBN 0 5 -S 0 0 6 a -3 6 -4
“Louvo a coragem e lucidez
de suas idéias e a maneira
admirável com que as expõe.”
™R » 5 ■ S Oft 2 3 63 Herberto Sales

Esta publicação vem acompanhada de um DVD,


que não pode ser vendido separadamente.
Santo Tomás de Aquino
Aula 18

por Olavo de Carvalho

coleção

História
Essencial da
Filosofia
Santo Tomás de Aquino
Aula 18
por Olavo de Carvalho

Coleção História Essencial da Filosofia

Acompanha esta publicação um DVD,


que não pode ser vendido separadamente.

Impresso no Brasil, setembro de 2006


Copyright © 2006 by Olavo de Carvalho

Foto Olavo de Carvalho


Mário Castello

Editor
Edson Manoel de Oliveira Filho

Projeto Gráfico
Monique Schenkels e Dagmar Kizzolo

Diagramação
Dagui Design

Transcrição
Aiexander Gieg

Revisão
Tereza Maria Lourenço Pereira

Os direitos autorais dessa edição pertencem à

É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Utda,


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Santo Tomás de Aquino
Aula 18

por Olavo de Carvalho

coleção

História
Essencial da
Filosofia

2006
vlil'
Coleção História Essencial da Filosofia
Santo Tomás de Aquino - Aula 18
por Olavo de Carvalho

O período medieval encontra uma culminação precisamente na


obra de Santo Tomás de Aquino, na qual se trata de resolver um
conflito cu ja solução, embora tenha ocorrido na esfera teórica, acabou
sc revelando historicamente inútil. Isso quer dizer que a síntese
tomista - que se enuncia erroneamente como a articulação de fc e
razão, pois não c disso que se trata - procura evitar uma ruptura entre
a cultura sacra e a cultura mundana, a qual, no entanto, acontece
assim mesmo, nos séculos seguintes, como se nada tivesse sido feito.
É muito espantoso notarmos como é uma obra que consideramos
tão importante, corno a dc Santo Tomás de Aquino, pôde exercer nos
séculos seguintes uma influência tão pequena. Na verdade, só existe
um movimento tomista a partir do século XIX, quando aparece o
famoso neotomismo (que, se for pensar direito, é o único tomismo
que existe), tendo sua influência, nos séculos anteriores, ficado
restrita a pequeníssimos grupos de intelectuais, a maior parte deles já
sem muita capacidade de acompanhar o nível de abordagem que ele
estava dando. Portanto, o que se ve na filosofia de Santo Tomás é uma
grande oportunidade perdida.
O problema de cultura sacra e cultura profana - como se equaciona
a síntese, não como fé e razão, porque dentro da cultura profana
existem elementos de fé e dentro da cultura sacra existem elementos
científicos e racionais - era colocado não por uma questão dogmática,
mas por uma questão muito real, que era a própria função da Igreja na
civilização européia. A Igreja, após a dissolução do Império Romano,
assume temporariamente certas funções administrativas, tornando-se
em certos lugares o único fator de ordem social que existe, e isto a
vai sobrecarregando de uma serie de funções que não lhe pertenciam
originariamente.
E também preciso ver que, se pensarmos numa fórmula política
baseada no Evangelho, ela é bem difícil de se deduzir, pois o Evangelho
não dá a menor dica quanto a esse ponto. Ao estabelecer o “Dai a César
o que é dc César”, fica um pouco nebuloso saber exatamente onde é
que termina o reino de César e começa o reino de Deus. No entanto, o
fato é que, com o desmantelamento da antiga cultura imperial romana,
a Igreja cria uma nova síntese civilizacional, dá a toda a população
um novo sentido de vida completamente diferente do romano, e de
algum modo esse novo sentido dc vida tem que se estender a todos os
domínios da realidade, incluindo a chamada vida profana.
Na verdade, o conceito de “profano” é um pouco posterior, e é
justamente nesse período que começa a se delinear uma distinção entre
esses dois domínios. O problema com a chamada “cultura profana" é
que a própria influência da filosofia grega, que seria o protótipo do
conhecimento racional teoricamente independente da Revelação, vem
pelas mãos dos escolásticos - portanto, são os mesmos indivíduos que
estão promovendo a cultura religiosa c a chamada cultura profana.
Temos, então, por um lado, aqueles velhos problemas, que já
enunciei, sobre a articulação racional da doutrina cristã, ou seja, da
transformação do fato evangélico ou do mito evangélico (podemos
chamá-lo assim com a ressalva de que é um mito que aconteceu de
verdade) em doutrina, usando instrumentos que não haviam sido
criados para isso, qual seja, basicamente a lógica de Aristóteles; e o
outro problema, que é o das relações entre a Igreja e o governo civil.
Esses dois problemas acabam de algum modo se confundindo, isto é, a
relação entre Revelação e ciência forma um paralelo com a articulação
entre a Igreja e o poder mundano.

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Santo Tomás de Aquino percebe que é preciso encontrar alguma
nova fórmula que já não seja uma simples justaposição das duas coisas,
mas que crie uma espécie de um elo orgânico. E por isso que não se pode
equacionar essa síntese como fé e razão, como se fossem duas espécies
do mesmo gênero ou uma contraposição, ou mesmo uma harmonia,
porque de fato não é assim que ele a vê. Para ilustrar isto, a melhor
coisa é examinar sua obra Suma contra os gentios - a Suma teológica é
dirigida aos próprios estudiosos da religião católica, e a Suma contra os
gentios é basicamente uma discussão com os intelectuais muçulmanos.
Santo Tomás diz o seguinte: quando discutimos com cristãos, podemos
apelar à autoridade do Evangelho; quando discutimos com judeus,
podemos apelar à autoridade da Torah; mas quando discutimos com
muçulmanos, não temos uma base revelada comum, então precisamos
nos reportar à razão.
Acontece que essa palavra “razão”, nesse contexto, tinha um sentido
muito diferente do que entendemos hoje - ou seja, basicamente como a
capacidade de raciocínio lógico e Santo Tomás, no caso, queria dizer
muito mais que isso. Ao dialogar com os muçulmanos, ele contava com
0 fato de que eles tinham uma visão da estrutura da realidade mais ou
menos idêntica à dos cristãos, à dos gregos ou à dos romanos, e com
a palavra “razão” está se reportando de fato a uma certa estrutura de
percepção da realidade que é comum a todos, mas que já não é comum
à nossa sociedade. Então, quando lemos essa referência à razão, nós
freqüentemente a entendemos mal. Santo Tomás está se reportando, em
ultima análise, àquele mesmo esquema de seis pontas que já comentei
e que resumi no artigo “Para uma antropologia filosófica.”1 Quando
fala com os muçulmanos, sabe que eles estão de certo modo dentro do
mesmo mundo em que ele próprio está, cuja forma total é, em última
análise, definida pela pergunta que séculos depois será formulada por
Lelbniz, quando diz: “Por que existe o ser e não antes o nada?”.
1 Publicado em O Globo, em 19 jul. 2003. Disponível [on-line] ern
www.olavodecarvalho.orgftcmana/030719globo.htm. *7
Essa pergun La é fundamental, está presente em todas as civilizações,
é a chave de abóbada dc toda visão mais ou menos normal da existência,
isto é, saber que o conjunto do Universo manifestado, conhecido ou
cognoscível. se tomado como totalidade, é um ponto de interrogação,
e cuja explicação tem de estar de algum modo para alem dele. Hoje
essa pergunta se tornou tão incompreensível que, quando a colocamos
para uma mentalidade moderna, nos respondem: “Mas isto é fácil:
houve um big bang, havia um grãozinho de matéria do tamanho dc
uma cabeça de alfinete onde a lei da gravidade operava com lodo seu
impacto, então ocorreu, por um motivo qualquer, uma suspensão
momentânea c!a lei da gravidade e deu-se a expansão do Universo".
É difícil pôr na cabeça do sujeito que esse grãozinho de matéria não é
um nada, já é alguma coisa, já é Universo. Então digo: “Eu pergunto
qual c o fundamento, qual é a explicação, qual é a razão de ser do
Universo, e você me responde citando uma época em que o Universo
era pequenininho. Você está confundindo a expansão do Universo com
a sua criação". Sendo assim, a explicação cosmológica moderna não
é uma explicação do fundamento ou mesmo da origem do Universo, c
apenas uma narrativa da sua infância remota.

[Aluno: Hoje já têm físicos que esiãio avaliando que antes desse
big bang houve outros anteriores. \
Que tenha havido um bilhão de big bangs'. Todo big bang tem que
acontecei- a alguma coisa, então essa alguma coisa existia, não era um
nada. Tem uns que dizem: “Era um fluxo de energia que sc parecia
com o nada". Bom, parecia mas não era o nada. já era alguma coisa.
A pergunta é: “Por que existe o ser e não antes o nada?".

[Aluno: Mas, como o senhor disse muna aula passada, como é


que se definia o nada, uma vez que, caso se definisse esse nada, ele
já seria alguma coisa. O senhor colocou o nada como uma espécie de
matéria indiferenciada. ]
Não, confundir o nada com a matéria-prima, calma lá! A matéria
indiferenciada é alguma coisa, c matéria indiferenciada, e nós estamos
falando da total ausência de ser sob qualquer aspecto.

[Aluno: Ausência inclusive de potencialidade?]


No sentido material da coisa, sim.

[Aluno: E nem o caos corresponde a essa pergunta?\


Não, claro que não. pois c disso que estamos falando. Começou
assim? Mas por que começou?

[Aluno: Talvez a gente devesse questionar o conceito de “começou


Será que existe (...)?]
As pessoas não compreendem a pergunta “começou?”.

[Aluno: Tem que existir um “começou”? Por que tem que existir
um “começou”? (...) A gente éque está perguntando. A pergunta é que
está errada. ]
Este é o raciocínio positivista: “Não tem que ter começado”. A idéia
do tempo ilimitado diz que o tempo nunca começou. Aristóteles
pensava que o tempo era ilimitado, que ele nunca começou e nunca
terminaria, então a pergunta sobre a origem se transforma na pergunta
sobre o fundamento. Além disso, não é pelo fato de a linha de tempo
não ter um começo no próprio tempo que ela c infinita. Vamos supor
que você entenda o tempo como uma lei, uma ordem de sucessão.
Mas qual é o fundamento dessa lei? Por que é assim? Rn tão você não
precisa entender tempo no sentido temporal, você pode, por exemplo,
perguntar até mesmo sobre a origem do tempo no sentido de qual é o

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seu fundamento, de qual é aquele fator independente dc tempo que
fundamenta a existência de tempo.

| Aluno: A impressão que eu tenho não é tanto que eles não


entendem, mas sim que fogem deliberadamente da pergunta. Eu já tive
ocasião de expor a questão em detalhes para esse pessoal neocético,
aí, quando entendem qual é a pergunta, eles se saem negando a
lógica, dizendo, por exemplo: “Mas isso dai é um conceito de causa e
efeito, isso é um raciocínio hum ano...”.]
Você tem que responder: “Então o seu raciocínio é sobre-humano.
Você está se reportando a uma outra esfera de realidade, à realidade
divina, à qual você teve acesso, então me diga o que tem lá dentro, é
isso mesmo que eu estava perguntando. Se você conhece esse supra-
hurnano a ponto de condenar o meu raciocínio como humano, então
me conte alguma coisa a respeito, porque é exatamente isso que eu
estava perguntando”,

[Aluna: No caso dos historiadores, há o risco até de eles não


entenderem a questão. ]
A maior parte dos intelectuais modernos não entende a questão,
eles a entendem apenas em termos de evolução temporal quando se
pergunta pelo fundamento. Quando você fala “a origem do Cosmos”,
está querendo dizer “a origem de tudo o que existe”, e eles estão
querendo dizer “a origem dessa estrutura tal como a conhecemos agora”,
estão apenas contando a história desde uma etapa mais remota. Aí eu
digo: “Por mais que você remonte no tempo, a pergunta vai continuar
a mesma. Eu não estou perguntando por que chegou ao capítulo 45, e
você diz que chegou porque teve o 44. Eu estou perguntando por que
a história começou, por que teve o capítulo 1”.

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[Aluna: Sobre isso, não é porque eles entendem a pergunta como
física e não como metafísica? Não é só a física. ]
É uma maneira de dizer, mas há muitos metafísicos que também
não entendem isto, O problema é que eles não fazem a pergunta!

[Aluno: Mas quando cai, quando entra no supra-humano, as


palavras não são capazes de transmitir como é aquela experiência
individual que a gente...]
Mas como é individual se todo mundo tem? É o tal negócio: a resposta
ninguém tem, e a formulação da pergunta pode ser diferente para cada
cabeça, mas todo mundo tem, e é justamente dessa pergunta que estou
falando. Veja que Einstcin dizia que, se você tirasse essa pergunta da
sua cabeça, não conseguiria fazer ciência, porque é ela que articula
todo o edifício da nossa racionalidade.
É evidente que não é só essa pergunta, ela se multiplica em
outras - sobre a origem, sobre o fim; sobre a imanência, sobre a
transcendência; sobre a natureza e a sociedade é um conjunto de
perguntas, mas tudo está articulado nessa como chave de abóbada. Se
você tampou essa pergunta por sua dificuldade de resposta, então está
tampando uma dimensão da realidade. Porque o fato é que nós vivemos
num Universo que ele mesmo nos coloca essa pergunta, não tem como
evitá-la, exceto através dc um desligamento intencional da sua atenção,
assim: “Eu não quero pensar nisto”, “Eu não sei a resposta e a coisa
me incomoda, então eu paro de pensar nisto”. Mas essa incomodidade
é justamente a base dc todo conhecimento humano, e, se você apaga
essa pergunta fundamental, o conhecimento vai acabar sc esfarelando
apenas em informações dc detalhes sobre isto ou aquilo, perdendo
todo o sentido.
Quando Tomás de Aquino, na discussão com os muçulmanos, sabe
que, não podendo contar com a referência, com a autoridade comum de

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um texto sacro, pode contar com a autoridade comum da razão, o que
ele quer dizer é que eles têm uma estrutura de pensamento racional, e
numa estrutura de pensamento racional as coisas menos importantes
estão baseadas na mais importante. Então, cm última análise, todas
convergem para esse mesmo enigma, e a consciência da existência desse
enigma c que permite a abertura da alma àquilo que está para além do
Universo. Isso que está para além ninguém conhece, mas você pode
dizer que todo mundo ignora completamente? Não. A própria presença
da pergunta já é uma informação a respeito. Você sabe que existe o
fundamento desconhecido, e se esse fundamento fosse lotalmente
desconhecido, você nem sc perguntaria por ele. O mundo está cheio
de criaturas viveules que jamais fazem essa pergunta, Elas não têm
informação sobre a existência do fundamento desconhecido, portanto,
não fazem a pergunta,
É importante entender, então, que essa pergunta é uni dado da
realidade. Ora, se você a apaga, está tentando raciocinar sobre a sua
realidade como se fosse um bichinho, como se não tivesse essa dúvida,
então sai de dentro do campo da experiência real, que é um campo
aberto, que é um campo que termina numa interrogação, e entra num
outro campo fechado que está repleto da suas certezas, mas que é um
mundo inventado, cvidcntcmcntc, porque o mundo real em que nós
vivemos é urn enigma. Você sabe um monte de coisa, mas, quando
chega lá no fim, tem uma pergunta e não uma resposta. Se você tivesse
a resposta, podia fechá-la como uma proposição dentro de um sistema
de proposições, equacioná-la numa teoria científica e pronto, fechava o
Universo dentro de uma teoria. Mas essa teoria não existe.
Isso quer dizer que o conhecimento que temos desse fundamento
é um conhecimento dc atenção interrogativa, é um olhar para uma
direção onde tem o infinito em aberto. E da contemplação desse infinito
em aberto surgem, às vezes, algumas idéias, alguns símbolos, alguns

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mitos, algumas lendas, alguns ritos, etc., que é o conjunto do que nós
sabemos a esse respeito. Esse conjunto também tem uma estrutura
interrogativa. Por outro lado, se existe o fundamento de todo o ser
existente, é evidente que esse fundamento está colocado para esse ser
como o ativo está colocado para o passivo. Quer dizer, o princípio
íunda aquilo que ele cria. c não ao contrário. O fundamento de uma
coisa você sabe: qualquer que ele seja, se tem em si o fundamento do
que existe, do mundo manifestado, ele é ativo cm relação ao mundo
manifestado; e, se ele é ativo em relação ao mundo manifestado e nós
estamos dentro do mundo manifestado, estamos também à mercê da
ação desse fundamento. Portanto, é impossível que vocc não receba
nenhuma informação dele; talvez receba até ern excesso e. por isso
mesmo, não possa abarcar. O certo seria dizer que, na verdade, você
recebe mais informações vindas da infinitude supracósmica do que do
próprio Cosmos, então algo você sabe. embora ele não responda à sua
pergunta no sentido humano da palavra "resposta”.
Sempre houve, em todas as épocas e civilizações, pessoas abertas
para esse fator x, para esse fator ativo em que está a explicação não
somente do universo físico, mas da própria vida delas. Você vê que
na sociedade de hoje, que é uma sociedade bastante racionalizada
e administrada sob muitos aspectos, freqüentemente os indivíduos
vivem dentro de um horizonte de realidade no qual eles imaginam
que tudo está decidido e que, de certo modo, eles têm o controle da
situação na mão. Você sabe o que vai acontecer, o que vai fazer, quais
são os resultados, etc., e você de certo modo planeja suas ações tendo
em vista esse mundo no qual você pensa que vive. É claro que tudo
isto é ilusão! O que Santo Tomás de Aquino queria dizer quando falava
que os muçulmanos também eram racionais? Ele queria dizer que eles
sabiam que viviam num mundo em aberto, e que não só o Cosmos em
torno mas a vida deles também era decidida por esse fator x que estava

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para além de tudo. Note bem que isto não tem nada a ver com religião,
é experiência comum da humanidade, e era com isto que ele contava.
Veja que a própria possibilidade de conhecimento racional depende
disto, pois o conhecimento racional não passa de uma arquitetura de
conceitos e proposições que se faz a partir da experiência. Mas se o dado
fundamental da experiência estiver falseado, então a construção mental
fica separada da realidade, e nossas construções mentais só valem se cias
tiverem essa abertura para o infinito, portanto, se tiverem a consciência
de que qualquer conhecimento válido que se obtenha com relação a uma
área limitada da experiência está, em última análise, condicionado a algo
que vai para além da experiência. Tão logo você tomou a experiência
como autolimitada c autofundante, você saiu da realidade, fechou o
mundo e passou a viver na gaiola que você mesmo construiu.
A abertura para a transcendência é, então, a condição básica da
racionalidade humana, e é com isto mesmo que Santo Tomás dc Aquino
contava ao discutir com os muçulmanos. Isso quer dizer que a famosa
ruptura entre fé e razão, entre cultura sacra e cultura mundana, não
tinha chegado, nessa época, à gravidade com que nós a conhecemos
depois. A abolição da consciência desse fundamento é precisamente
a abolição da cultura sacra, então só tem cultura mundana. A cultura
mundana o que é? O total fechamento dentro dc um Universo
pretensamente conhecido. Curiosamente, esse processo de fechamento
numa concepção fechada do Universo acontecerá no mesmo momento
em que a imagem física do Universo se torna ilimitada, A expressão
“concepção de Universo” tem aqui dois sentidos: em primeiro lugar, é
a concepção da totalidade, e é a concepção do Cosmos físico.
Veja que na kladc Média havia mais ou menos a idéia dc um
Cosmos físico limitado: a Terra no centro - ou o Sol, tanto faz as
esferas planetárias cm volta, depois a esfera das estrelas fixas, a esfera
do éter, etc., as esferas angélicas, terminado em Deus. Isso significa

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que eles tinham a noção de um Universo finito, porque sabiam que
para além do Universo existia alguma coisa. Na hora em que se passa
da concepção finita do Cosmos físico a uma concepção infinita (um
processo bem documentado numa obra clássica de Alexandre Koyré,
Do mundo fechado ao universo infinito2), que se começa a conceber
o espaço como ilimitado, o que acontece? Esse espaço que é ilimitado
fisicamente passa a ser limitado conceptual mente, pois, para além, não
há nada, ele é o último limite da realidade. Isso quer dizer que se abre a
imagem física, mas se fecha a concepção filosófica que está alí incluída.
E como se você tivesse ampliado enormemente o espaço físico a fim de
que. para além dele, não existisse nada. É nessa hora que a pergunta
sobre o fundamento se torna impensável.
Essa imagem de ilimitação do Cosmos físico pode ser verdadeira
espacialmente e até graficamente, mas conceptualmente ela é um
erro, pois sabemos que, mesmo que haja um espaço infinito, espaço
é alguma coisa determinada e. sendo assim, não é fundamento de si
mesmo. A mesma pergunta que se faz com relação ao todo se faz com
relação ao espaço: “Por que há o espaço?”. Esse “por que”, se referido
a “tudo”, se tom a impensável. Então houve uma espécie de inversão
entre a concepção gráfica, ou cosmogrãfica, e a concepção cosmológica.
Cosmografia é uma coisa e cosmologia é outra. Cosmograficamente,
passaram a imaginar um Universo ilimitado, e cosmologicamenle esse
Universo ilimitado é limitado precisamente porque, para além, não
existe mais nada, ele é o fim.

[Aluno: Por assim dizer, o Universo não ê infinito, mas indefinido? (...)]
Essa é uma das maneiras, mas podemos até explicar de um modo
mais simples: o Universo físico é alguma coisa e não outra, e é
justamente a respeito dele que nós estamos perguntando o “porquê”,
Ele sempre será um “o quê”, e não um “porquê”; ele sempre será o
2 Alexandre Koyré, D o mundo fechado ao universo infinito. 3 .ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2001. ,
objeto da pergunta, e não a resposta. Não adianta você diluir a pergunta
ou. temporalmente, como faz a cosmologia mais recente, voltar lá ao
big bang, pois, antes do big bang, pode ter havido outra coisa, e outra,
e outra... É sobre isto mesmo que estou perguntando. Vocc pode recuar
e dizer: “O Universo era pequenininho...”. Vocc pode recuar até uma
época cm que ele era menor ainda, era apenas uma fração de átomo
de cabeça de agulha, mas ele já era alguma coisa. A minha pergunta
é: “Por que existe essa coisa?”. Ora, se a pergunta é “Por que exisle
uma coisa?”, não adianta responder com outra coisa menor, nem com
outra maior. Tanto faz comprimir tudo no big bang ou inflar o êspaço
desmesuradamente, você não respondeu à pergunta, apenas está
trocando dc objeto ou o vendo por um outro ângulo; está evitando a
pergunta pelo fundamento ou pelo porquê, desviando-a para um dos
aspectos da coisa considerada. Você pode fazer essa pergunta referindo-
a a si mesmo: “Por que existo?”. Ora, vocc não pode responder dizendo:
“Eu meço i,75m, peso 73kg, nasci em tal lugar...”. Não c assim que
você vai responder a essa pergunta, pois só está acrescentando mais
detalhes a respeito de você mesmo, e esses detalhes não responderão à
pergunta, porque ela não se refere a você, mas ao seu fundamento, ao
seu porquê, à sua razão de existir.
A busca dc uma razão de existir é o fundamento da possibilidade
da razão. Isso quer dizer que a pergunta fundamental da razão articula
todas as outras. Então, na época de Santo Tomás de Aquino, ele podia
contar com o fato de que qualquer pessoa culta, qualquer filósofo,
tinha consciência de viver dentro desse mesmo quadro existencial
dele, c era a isso que ele chamava “razão”. Nós vivemos dentro da
mesma estrutura de realidade em que vivem os muçulmanos, e eles a
conhecem tão bem quanto nós e são capazes dc, com essa experiência
de base, tirar as premissas válidas para o seu raciocínio. Mas se a
experiência básica da realidade já aboliu esse porquê último, você se

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Fechou dentro de uni Universo artificial inventado, então as premissas
são tiradas da imaginação e não da experiência da realidade. Isso pode
parecer até mais racional, porque um conjunto de experiências limitado
permite obter premissas mais Facilmente compreensíveis, e em vez de
você ter que partir de uma pergunta, vai partir de respostas. Isso lhe
dá uma sensação tranqüilizante, mas que é uma Falsa tranquilidade,
porque você Fica tranqüilo com relação a uni Universo que você mesmo
inventou, mas com relação ao Universo no qual existe, você continua
tão em dúvida quanto nós.

| Aluno: Seria correto dizer que esse problema surge da extrapolação


do esquecimento da existência da causa formal?]
Não, todos os demais problemas são derivados deste. Por exemplo, o
esquecimento da existência da causa Final, etc., isto já c uma deficiência
de raciocínio lógico que surge do esquecimento da pergunta. Ele não se
identifica com ela, é uma consequência, pois é evidente que a própria
estrutura da lógica de Aristóteles nasce dessa experiência básica.
Então, como em Heráclito, os homens acordados estão todos dentro
do mesmo mundo, e quando dormem eles vão cada um para o seu
mundo, o qual, aparentemente, pode ser até mais racional e mais bem
explicado do que o nosso, mas é inventado.
isso quer dizer que aquilo que está para além do Universo, que
c o seu fundamento, não pode ser conhecido pelos mesmos meios
pelos quais se conhece o que está dentro dele, e o que está dentro
deie é objeto dc experiência sensível, mas você faz sobre ele as devidas
abstrações, como dizia Aristóteles, c tira suas conclusões. E o que está
para lá? O que está para lá do Universo só pode ser conhecido de modo
muito parcial e defeituoso, só pode ser conhecido por uma abertura
permanente da alma, e é essa abertura que vai dar à alma humana a
estatura suficiente para lidar com outros problemas. Viver num inundo,

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num Universo, aberto para a transcendência, isso dá a estatura da alma
adulta, ao passo que viver num mundo fechado, isso cria um monte de
mitologias infantis.
A cultura sacra é, então, a cultura dos indivíduos que sc abriram e
algo captaram, por mais confuso que fosse. E não se deve esquecer que
o fundamento da realidade não pode scr menos ativo do que a própria
realidade. Portanto, se até nós temos a capacidade de transmitir algo,
por que o fundamento da realidade não pode transmitir alguma coisa
a respeito dele mesmo? Quando falamos “fundamento da realidade”,
fazemos isso através de uma sentença em cuja estrutura gramatical
esse termo se torna o objeto, como se ele fosse um objeto, porém c
claro que não é assim, pois é um objeto apenas gramaticalmente, posto
que, considerado em si mesmo, ele é o sujeito dos sujeitos.

[Aluna: O fundamento também é um ser, ou ele é não-ser? A pergunta


inicial é por que “o ser”e não “o nada ”, Ou ele pode ser entendido de
uma maneira que...?]
Se ele pode ser entendido como o nada, e nada faz, e nada cria,
e nada fundamenta, então, cm que medida o conceito de “ser” se
aplicaria a esse fundamento? Esse é um problema que Aristóteles já
discutia... É um ser, mas um ser no sentido eminente, Nós temos o ser
no sentido de que nós existimos, e o fundamento da existência tem
o ser no sentido de que ele não apenas existe, mas gera a existência,
cria existência, então é ser num sentido eminente. Isto leva alguns a
chamá-lo de “não-ser” ou de “supra-ser”, mas acho que isso complica,
porque se corre o risco de confundi-lo com o nada.

[Aluna: Mas não-ser significa só o que não é um ser (...)?]


Você quer dizer apenas que o conceito de “ser” é demasiado pobre
para ele, porque, com “ser”, nós queremos dizer apenas aquilo que tem

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os atributos da existência. Mas isto de que falo, além de ter o atributo
da existência, produz existência. Não é um não-scr. Você pode chamar
de supra-ser, mas não precisa.

| Aluno: É um ser ilimitado?]


Veja, a palavra “Deus”, em todas as línguas, designa algo que está
paia cima, então é a palavra adequada. É o que está para além, por
isso não há nenhum problema cm usar essa palavra, com a ressalva de
que nós não a estamos usando no sentido religioso, mas no sentido de
um dado de experiência. Ora, acontece que, se o homem está aberto
para essa dimensão, ele sabe que, apesar da série inumerável de causas
intermediárias que se interpõem entre a sua situação e o fundamento
remoto, em última análise é esse fundamento que está decidindo tudo,
pois os outros processos causais são apenas parcelas. Esse fundamento
é o que unifica todos os processos causais, então ele tem na sua mão a
origem c a condução de todos os processos. Como ]"á expliquei em outra
ocasião, há uma a diferença entre a característica fundamental e o que
nós chamamos de realidade concreta. Não existe nenhuma ciência que
estude realidade concreta, pois a ciência só estuda realidade abstrata, ou
seja, ela separa um certo domínio do conhecimento, um certo domínio
do ser, cujos elementos têm ligações essenciais uns com os outros e
esquece o resto. Tudo o que acontece concretamente, acontece não
apenas com as suas conexões essenciais, mas com a série infindável dos
acidentes necessários para que isso aconteça. Você diz, por exemplo:
“O gato caiu do telhado”. Bom, você pode explicar esse fato, sob certos
aspectos, pela lei da gravidade, mas isso não explica o que o gato foi
fazer no telhado, por que existem telhados, por que você possui um
gato... Há, então, uma série inumerável de acidentes que fizeram com
que o gato caísse do telhado. A totalidade dos acidentes que cercam
qualquer acontecimento, por mais mínimo que ele seja, é ilimitada.

19
[Aluno: É mais ou menos como a diferença entre ciência e
tecnologia: é a margem de erro. A ciência é uma teoria perfeita, mas
na prática ela tem um componente de margem de erro (■■.).]
Na tecnologia você tem que compensar, de algum modo, a margem
de erro, levando em conta uma acidentalidade cm aberto, e é por isso
que tecnologia às vezes depende de sorte ou de reza. A tecnologia
está aberta, e, na verdade, ela é m uito mais racional do que qualquer
ciência, se você pensar bem, porque está muito mais ligada à
realidade concreta.

[Aluno: Ela engloba o desconhecido.]


Ela engloba o desconhecido, claro. Está muito certa essa observação.
O que é uma técnica? É um sistema em que se juntam todos os
elementos necessários para a produção de um fim, e esses elementos
não precisam ter nenhuma conexão essencial entre sl. Por exemplo,
você quer fazer um automóvel e, para isso, vai precisar juntar materiais
totalmente heterogêneos: melai, borracha, plástico, petróleo e mais o
ser humano. Existe alguma ciência que possa estudar tudo isso ao
mesmo tempo? Não. Mas existe uma técnica de fabricar automóvel.
Isto significa que a técnica junta conhecimentos heterogêneos não
vinculados por conexões essenciais, mas vinculados tão-somente para
a produção de um fim. Então, a tecnologia é o máximo de domínio
da realidade que nós temos. Em qualquer tecnologia, você sabe que
vai existir sempre uma margem dc erro. porque não pode dominar o
conjunto dos processos causais, só uma parte, portanto, você produz
urn efeito limitado por meios limitados. Mas o enfoque científico é mais
limitado ainda, pois ele só abarca aquilo que tem conexão essencial.
Eu já dei o exemplo de um crime, o sujeito matou o outro na
esquina. Você pode dar uma explicação balística para o fato: um
projétil foi disparado com lai potência, a velocidade foi tal, o impacto

20
foi tanto, etc. A força de impacto da bala explica por que cia atingiu um
órgão vital? Se a bala chegar no seu dedo, o impacto é o mesmo que
se cia chegar na sua cabeça! Isto significa que a força de impacto da
bala é um processo, mas o processo anátomo-fisiológico da destruição
de um órgão vital é outro, não tem nada cm comum com o primeiro.
Existem leis comuns entre a balística e a fisiologia? Você pode deduzir
da fisiologia a balística, ou da balística a fisiologia? Não. Quando
há conexões essenciais, uma coisa pode ser deduzida da outra, mas,
quando não há, se diz que conexão é acidental. Não se pode saber,
então, pelas leis da balística, se aquilo vai atingir urn órgão vital e se
o sujeito vai morrer ou não. sendo preciso entrar com outra ordem dc
conhecimento, que é totalmente desligada desta.
Essa série dc conexões acidentais é ilimitada em qualquer
acontecimento e em qualquer fato da ordem real, por isso se entende
que todas as conexões causais que conhecemos são parciais e
abstratas, estão sempre colocadas dentro de um fundo de realidade
concreta, que é ilimitado. Mas a prova de que esse conjunto forma um
todo é justamente o fato de que as series acidentais convergem em
alguns pontos, e estão convergindo o tempo todo. É impossível, no fato
concreto, separar um acidente do outro, porque, em qualquer fato, se
falhar um acidente, ele não acontece, então, a convergência das séries
acidentais é a característica fundamental da realidade concreta.
Sendo assim, entendem os que só existe um conhecim ento da
realidade concreta: a abertura para a transcendência. Se você tem
abertura para a transcendência, tem a medida real de que está
dentro de um tecido de series causais essenciais e acidentais
absolutam ente incontrolável, do qual você só conhece um
pouquinho, e entende que sua própria existência e o fato mesmo
de você estar ali naquele m omento também dependem disto. Isto
significa que toda e qualquer ilusão de controle racional sobre

21
o tluxo dos acontecim entos acabou. Você sabe que a própria
existência da possibilidade de um controle parcial depende de que
o fundam ento da realidade esteja a seu favor, e apelar à palavra
“acaso” ou à palavra “necessidade” é absolutam ente fugir da
questão. Vocês entendem que nada disso pode ser explicado nem
pelo acaso nem por um a necessidade férrea, pois “necessidade” é
um conceito que só se aplica a séries causais com vínculo essencial.
O que é um a necessidade? É uma dedução lógica, então, dada
um a premissa, se segue necessariam ente a consequência, pois ela
se refere à mesma coisa e está colocada para essa coisa como a
propriedade está colocada para a essência.

[Aluno: Chove muito, dá enchente.]


isso mesmo, porque essa é uma propriedade da água: acumular-sc
nurn recipiente. Então, se nós estamos falando dc conexão concreta
entre uma série infinita de processos acidentais, é claro que o conceito
de necessidade não se aplica. Aplica-se o conceito de acaso? Também
não, porque o acaso faria as conexões acidentais também se conectarem
acidentalmente.

[Aluna: A não ser que você pergunte de onde provém essa


necessidade. Aí se aplica (...).]
Não, o conceito de necessidade não se aplica de jeito nenhum, só se
aplica às linhas que têm conexão essencial. Nenhum vínculo acidental
tem necessidade, e nós acabamos de ver que a realidade concreta
consiste na interconexão e na ligação inseparável de uma série infinita
de conexões acidentais que fazem que as coisas aconteçam exatamente
do jeito que aconteceram. O conceito de necessidade não se aplica, e
muito menos o conceito de acaso.

22
[Aluno: Mas o fato de ela ser acidental não quer dizer que não
existe algum tipo de vínculo (...) ?]
Existe um tipo de vínculo, mas a gente já sabe que não é
nem necessidade nem acaso. Não pode ser acaso e não pode ser
necessidade.

[Aluno: Por que não pode ser acaso?]


Não pode ser acaso porque o conjunto das conexões acidentais já é
ilimitado. Se esse conjunto fosse presidido pelo acaso, suas conexões
também seriam casuais, as possibilidades de combinações das séries
acidentais seriam absolutamentc ilimitadas e a possibilidade de que
qualquer coisa continuasse existindo por mais de uns poucos segundos
seria limitadíssima. Por exemplo, certos processos naturais, até sua
própria vida, eu já estou existindo aqui neste planeta faz 56 anos, e
isso quer dizer que o conjunto dos processos essenciais e acidentais
que me botaram aqui continua funcionando do mesmo jeito.

[Aluno: (...) O título do curso é “História Essencial da Filosofia”.


O senhor falou da tensão entre aquilo que se mantém, a continuidade,
e aquilo que (...).]
Claro, mas acontece que, se os fatores acidentais na História da
Filosofia diluíssem a sua essência, não haveria História da Filosofia.
O que eu estou querendo dizer é que, no meio de uma série infinita
de acidentes - inclusive o nascimento de novos filósofos, porque de
nenhuma filosofia se pode deduzir que em seguida vai nascer outro
filósofo de algum modo o conjunto desses acidentes continua
sustentando historicamente uma essência reconhecível. O número de
processos contínuos e reconhecíveis c, então, muito grande.
[Aluno: O nascimento de filósofo deve ser um acidente?]
E certamente um acidente! Não tem nenhum motivo para o sujeito
ser filósofo, aconteceu.

[Aluno: Se, por exemplo, você anda na rua, pega uma bala perdida,
morre e cai ali, não é um acaso isso?|
E um acaso que a bala perdida atinja você. Mas é também um acaso
que você morra quando ela lhe acerta no cérebro? Há aí uma conexão
essencial. Quer dizer que o sujeito atingido num órgão vital muito
provavelmente morrerá.

[Aluna. O fato de haver uma convergência entre fatores essenciais


e fatores acidentais mostra que necessidade como explicação e acaso
como explicação não funcionam. Funcionam como perguntas.]
Por quê? Porque nós estamos falando de uma conexão inseparável
entre processos essenciais c acidentais. Ora, o conceito de necessidade
só se aplica ao essencial, c o conceito de acaso só se aplica ao
acidental. Se estamos falando que realidade é a conexão inseparável
dessas duas coisas, então é evidente que não sc pode explicar nem
pela necessidade nem pelo acaso. A própria existência da pergunta
“necessidade e acaso” é sinal de perda do senso da realidade, pois você
cria os conceitos. Os conceitos lógicos de “necessidade” e “acaso” são
facilmente identificáveis.

[Aluna: O conceito de necessidade está ligado com o determinismo?


(■■■)]
Sim, c a mesma coisa, “necessidade” e “determinar” são a mesma
coisa, então existe um determinismo lógico. Dadas duas premissas, a
conclusão se segue necessariamente. Por exemplo, você pode conceber
um determinismo físico: dadas certas condições, certos fenômenos se

24
produzirão necessariamente. Mas seja em determinismo lógico, seja
em físico, seja em qualquer outro, ele sempre sc refere a conexões
essenciais: são necessários porque são essenciais, c são essenciais
porque são necessários. Acabamos cie ver que, para que qualquer
falo aconteça, por mínimo que seja, é necessário que suas conexões
essenciais se cruzem e se mesclem inseparavelmente com um número
ilimitado de condições acidentais. Isso significa que a união estreita e
inseparável de essência e acidente é a marca distintiva da dimensão que
nós chamamos realidade. Mas se necessidade é outro nome do essencial,
e acaso é outro nome do acidental, então é evidente que a conexão de dois
elementos não pode ser explicada unilateralmente por nenhum deles. A
não ser em condições ideais, em um mundo imaginado - daí você pode
imaginar um mundo que seja tolalmente acidental e o chama dc acaso,
c imaginar um mundo que seja tolalmente essencial e o chama ele
determinismo, mas é tudo invenção da sua cabeça.

| Aluno: E o mundo de Espinosa.]


Bom, Espinosa ainda reconhecia a existência dos acidentes, ele só
dizia que isso não interessava.

[Aluno: Não é melhor a gente viver no mundo das falsas premissas


(■■■)?}
Ah, claro que c, c muito mais confortável! É exatamente isso que
as pessoas estão fazendo. Você invenla um mundo irreal, baseado no
acaso ou na necessidade, no que queira, mas o fato c que vai continuar
vivendo e existindo no outro mundo, no mundo real no qual você não
presta atenção, então suas ações c suas palavras terão consequências
reais em relação às quais você permanecerá totalmente inocente. Isso
quer dizer que a ilusão de dominar o fluxo dos acontecimentos através
do fechamento em um esquema finito produz exatamente a impotência

25
de agir e de exercer até mesmo aquele controle mínimo ao qual nós
ternos direito. Só que, para exercer o controle mínimo, nós temos que
reconhecer a cota de abertura que está nas mãos do fundamento, e não
na nossa, isto a humanidade inteira fez, e também reconheceu que o
fundamento era ativo em relação ao fundamentado.
O fundamento não pode ser, portanto, totalmente desconhecido
por nós, porque tudo aquilo que conhecemos vem do próprio mundo
da experiência, que e o próprio mundo que o fundamento está
fundamentando. Nós não escapamos da ação desse fundamento nem
um único minuto, e nossa consciência e nossa inteligência também
não podem ignorá-lo completamenle, porque ele está agindo sobre elas
o tempo todo.
Os cálculos humanos normais são feitos, então, num esquema
probabilístico limitado com uma abertura para o fundamento, c c isso
que Santo Tomás quer dizer na hora que fala que os muçulmanos
também são racionais. Eles têm a mesma experiência da realidade,
e sua razão tira premissas da mesma estrutura de existência na qual
nós estamos. Isso quer dizer que aquelas premissas com as quais ele
discutia com os muçulmanos não servem para discutir com um filósofo
de hoje.

[Aluna: Mas serviria para discutir com alguém que não tivesse
mais religião (...)?]
Claro! Mas estou falando que isto não tem nada a ver com religião, é a
estruturada realidade. Religião já é uma disciplina de abertura da alma.
Abertura da alma todo mundo tem. Sc não ela existisse não poderia
existir religião. Quer dizer, a abertura da alma para o fundamento é a
estrutura humana fundamental. O ser humano é o bicho que tem essa
abertura, os outros não têm; os outros não sabem nada desse negócio,
todos eles vivem num Universo fechado. É a famosa teoria do umwelt,

26
o “mundo em torno”. Isso significa que, do conjunto dc dados que há
no exterior, cada espécie animal recebe uma parte muito limitada. E só
pegar as várias espécies animais e perguntar o seguinte: quando foi que
um urso polar tomou consciência, pela primeira vez, da existência de
uma girafa?

[Aluno: No zoológico.]
Quando alguém os juntou no zoológico. E quem os juntou no
zoológico, foi uma girafa ou um urso? Foi um ser humano. Isso quer
dizer que o scr humano informa a uns animais a existência de outros,
é o único bicho que pode fazer isso. Portanto, a noção de mundo, a
noção ecológica, dc que nós estamos todos no mesmo mundo, é só
o homem que tem, os bichos não, e por isso somente o homem tem
noção da abertura para o fundamento. Para um animal, talvez a coisa
mais próxima que ele tenha da transcendência sejamos nós. Quantas
vezes, vendo o olhar de adoração que um cachorro volta ao seu
dono, eu penso: “Ele pensa que eu sou Deus!”. É porque pareço uma
transcendência, sou um fator incompreensível, mas não totalmente
desconhecido, com o qual ele conta para alguma coisa. E ele sabe que
uma parte daquilo que lhe acontece vem de mim, mas não controla o
fluxo dos acontecimentos, então responde com adoração.
Isso significa que a abertura para a transcendência é o começo, e
a adoração é o segundo passo, c ficar maravilhado com aquilo. Essa
é a estrutura humana normal. O que isso tem a ver com religião?
Nada, porque a religião é apenas uma das maneiras de fazer isto,
ela aparece muito depois. Mais ainda: na medida em que se tem
uma religião c ela se cristaliza numa doutrina, pode também virar
um mundo inventado, pois fechou tudo numa explicação, então
não precisa mais de abertura para o infinito, porque já está tudo
no Código de Direilo Canônico. Você pega o Tratado Dogmático. o

27
Direito Canônico, pronto, fechou tutlo, então a religião também sc
torna uma forma de alienação da realidade.
Veja, Santo Tomás de Aquino não deixa de ter alguma culpa nisso,
porque fez uma doutrina tão bem feita que as pessoas às vezes falam:
“Nós não precisamos ter abertura para o infinito, porque nós temos as
obras de Santo Tomás, tudo está explicado lá”. E os caras esquecem que
Santo Tomás de Aquino, às vésperas de morrer, disse: “Olha. eu percebi
certas coisas perto das quais tudo que eu escrevi é nada. Aquilo já tem
uma referência à transcendência, mas cu descobri mais coisa lá em
cima que não dá mais para explicar”. Existe então na história humana
uma serie de tradições de pessoas que passaram a vida olhando para a
transcendência c sabem algo dela. Esse algo é dificílimo de fechar numa
doutrina no sentido científico. Por exemplo, uma doutrina, um dogma
religioso, pode se expressar de maneiras que não seriam admissíveis
numa teoria científica: “Creio em um só Deus, Pai onipotente...". O que
quer dizer “Pai”? É gerador. É só isso? Deus é pai no sentido carnal?
Não, então c outro sentido da palavra “Pai''. "E em Jesus Cristo, seu
único Pilho, Nosso Senhor... '. “Senhor”, em que sentido? Ele e nosso
proprietário? Você vê que são figuras de linguagem.

[Aluno: Para dizer o que você conseguiu dizer nesses últimos


quinze, vinte minutos. Uma figura tem tantos... \
É uma figura de linguagem que pode ser compreendida só por quem
tiver abertura para a transcendência c a atitude correta, senão não dá.
Não dá para você dizer: “Olha, o sentido dessa doutrina c esse assim”
e fechar numa teoria certa.

[Aluno: E como a arquitetura do templo, da igreja. Se você. souber


decodificar o significado (...). porque é daquela forma, pode até servir
de acesso a essa abertura f...J. ]

2S
Mas todas essas explicações ajudam ou atrapalham? As vezes
ajudam e às vezes atrapalham. O que interessa não c a explicação.
O sujeito está falando isso não é para você er .ender, é para olhar para
cima, para ter a abertura também. Então, se você nitra numa discussão
doutrinal, fecha a experiência básica. Tem que ter alguma discussão
doutrinal suficiente para você entender o mínimo necessário a fim
de saber para onde olhar. Mas com a discussão doutrinal acontece o
mesmo como dizia Buda: o sujeito aponta a Lua e diz “Olha, aquilo
la é a Lua”, daí o outro olha para o dedo e pensa que cie é a Lua. Isso
quer dizer que a expressão doutrinal, ou a expressão simbólica, ou a
expressão artística, todas essas expressões são um canal para propiciar
a abertura para a transcendência, mas também são meios de fechar,
pois se presta atenção nelas c não no que eslá para lá. A abertura
para a transcendência c a natureza humana, é a condição humana, é
a realidade da nossa experiência. Isso também significa que, sc você
fecha, está numa realidade inventada, foi para o mundo dos sonhos do
lleráclito, um mundinho no qual você tem algum controle, mas que
sõ existe na sua cabeça. Enquanto isso, você pensa que está no seu
mundo, mas nós que estamos aqui de fora sabemos que você está no
nosso, c que você, agindo lá no seu mundinho, está de fato agindo aqui
no nosso e desencadeando efeitos sobre nós dos quais você não tem a
mais mínima notícia.
No tempo de Santo Tomás ainda era possível fazer uma discussão
inter-religiosa não baseada em autoridade religiosa, em dogmas
religiosos, porque se contava que, entre culturas enormemente
diferentes, a estrutura da realidade era a mesma. Hoje em dia nós
estamos mais separados. Digamos, cu estou mais separado da cabeça
do Leandro Konder do que Santo Tomás de Aquino estava separado
de um muçulmano no tempo dele, porque eu vivo num mundo e ele
vive no outro.

29
[Aluna: A Suma contra os gentios pode ser separada do restante
da obra de Santo Tomás, no sentido de que o restante constitui o
esforço de (...)?]
Não, é tudo a mesma coisa. O fato é que a relação que Santo Tomás
estabelece entre cultura mundana e cultura sacra é a relação que estou
estabelecendo entre conhecimento por experiência humana e abertura
para a transcendência. Tudo que você conhece vem da experiência,
mas só vale se colocado dentro de um quadro dc referência infinito
c aberto marcado pela transcendência, e se você tiver, para com essa
transcendência, a atitude correta, adequada, do ser humano, Essa
atitude é, primeiro, de abertura; segundo, de confiança, senão você vai
ficar aterrorizado e vai emburrecer; e de devida reverência e adoração
que isso merece. Se você não tem isso, não é gente. Sc você o faz por via
dessa ou daquela religião, se o faz por via religiosa ou por outra, tanto
faz, pois todas essas vias às vezes ajudam e às vezes atrapalham.
Era isso que Einstein queria dizer: que, se você esquecesse a
pergunta pelo ser, não podia fazer ciência, porque sua ciência ia se
referir ao Universo inventado. Isso c grave. Então, quando hoje a gente
vê qualquer manual dizendo que a obra dc Santo Tomás de Aquino
visou articular razão e fé, ou equilibrar razão e fé, ou harmonizar, isso
está totalmente errado. É impossível harmonizar uma coisa com a
outra, porque a diferença dc plano e brutal. Ora, a atitude de abertura,
confiança e adoração se chama fé, c isso que é a fé. Já expliquei que a
palavra “fé" não quer dizer acreditar numa doutrina. Acreditar numa
doutrina é um ato puramente voluntário, e está ainda dentro do seu
horizonte de experiência.

[Aluno: Seria acreditar na transcendência (...)?]


Não, fé não é acreditar. Fé é abertura, é confiança e é adoração.
[Aluno: A palavra inglesa tem raiz em love, não é? To believe...
li em holandês também. Então tem muito mais a ver com amor do
que com outra coisa. \
Claro, com amor, com confiança, etc. Porque por aí você fica
Iranqüilo e percebe algo dali, pelo menos o necessário para sua própria
vida. Mas se você fecha, não percebe nada, e automaticamente tudo
aquilo que sai de dentro do estreito horizonte de referência terá que
ser explicado ou pela necessidade ou pelo acaso, ou por qualquer outra
coisa mágica que você inventar, e não pela estrutura da realidade.

[Aluno: Quando o senhor fala em abertura, quer dizer aceitação


daquilo que se manifesta?]
Não, abertura quer dizer abertura, quer dizer que não dá para
fechar. O que quer que aconteça, o controle não está na minha mão. o
conhecimento cio conjunto das conexões não está na minha mão, mas
depende do fundamento. E o fundamento age sobre mim e, qualquer
que ele seja, tem razão do que acontece e terá sempre razão, em
última análise.

[Aluno: Então não é uma abertura em sentido psicológico.]


É abertura em sentido psicológico, sim, mas é mais do que isso.
É em sentido existencial, espiritual, é vivencial, é você sempre contar
com isto. É isto que a Bíblia quer dizer com ‘Abraão caminhava diante
de Deus”. O que é isso? É que, em tudo que ele fazia, ele sabia que
aquilo estava presente o tempo todo, ou seja, ele não fazia abstração
do fundamento. Claro, nós podemos fazer, pois o nosso cérebro não
agüenta se colocar o tempo todo nesse nível, que exige uma tensão
de consciência muito forte. Às vezes esquecemos e lidamos apenas
com aquela parte operacional que está ao nosso alcance, mas mesmo
quando estamos fazendo isso temos que saber que existe o “para lá".

31
[Aluno: Você pode até se revoltar contra isso, mas ao se revoltar
você já reconhece que existe. Porque acho que não pode negar., não
pode negar que existe.]

[Aluno: Se você se revolta, é porque você está aceitando ]


Olha, ou não acredito em nada desse negócio de revolta. É o seguinte:
o sujeito primeiro fecha, quer dizer, ele não está aberto para aquilo,
não sabe que aquiio existe, raciocina como se não existisse, e desde
esse horizonte fechado, que ele mesmo traçou, percebe que acontecem
coisas que vêm de fora e contrariam sua vontade ou sua razão, daí ele
ficar revoltado com isso. Ele eslá revoltado com ele mesmo! Revolta
contra Deus? Faz-me rir! Ninguém se revolta contra Deus, Você se
revolta contra um negócio que você inventou, A dimensão chamada
“Deus” não pode ser contatada por meio da revolta, pois a revolta já
pressupõe o fechamento, e se tem fechamento não tem contato, ou
só tem contato inconsciente. Ele está lhe contatando, mas você não.
então você continua sujeito a tudo aquilo que provém do fundamento,
mas não sabe. Enião, ao lado daquele horizonte que você mesmo
traçou, você traça outros fatores a que chama de “acaso”, de “o mal”,
dc qualquer coisa que seja, c fica revoltado contra isso. Pode até
chamar de “Deus”. Mas isso é problema seu, é sempre um problema de
fechamento na subjetividade, é uma recusa da estrutura da realidade.

[Aluna: O que se chama então “cultura sacra” seria exata mente


uma sociedade onde essa dimensão é reconhecida, é conhecida por
todos ou pela maioria, compartilhada por prática, enfim. E porque é
cultura sacra. Isso é individual ou é coletivo?]
Bom, aí eu não sei. Para que exista coletivamente, ela primeiro
precisa existir na cabeça de pelo menos um. Santo Tomás de Aquino,
por exemplo, como é que ele articulava isto? Ele sabia que toda
a dimensão da cultura mundana, a cultura obtida pela experiência,
acessível ao ser humano, tinha sua chave de abóbada na abertura
para a transcendência - então, de certo modo, a transcendência era
o limite da cultura mundana, ela subia até um certo ponto e depois
precisava abrir para que o próprio fundamento da sua racionalidade
fosse assegurado. Não sc trata, portanto, dc razão e fé como espécies
do mesmo gênero. A fé é a base da razão, sem fé não tem razão alguma,
só sc tem os procedimentos racionais, como, por exemplo, gramática,
lógica, matemática, etc., separados uns dos outros, inarticulados,
usados como fetiche. Então, não se tem que harmonizar razão e fé,
pois a fé é o fundamento da razão.
E claro que existe um quantum de razão com o qual você nasce,
só que esse quantum consiste apenas dc operações parciais que
em si mesmas não significam nada, e que só servem para tratar dc
coisa muito pequena. Você vai um pouco acima daquilo e o negócio
já sc desarticula. Isso significa que a integridade da razão supõe a
integridade da alma, a inlegridadc da psique. A integridade da psique
não é uma integridade de um todo fechado, mas exatamente de um
lodo aberto, aquele todo que está continuamente sendo preenchido. E
por isso que a Bíblia vai chamar a alma humana de “vaso”. Vaso é algo
que é preenchido de fora, não se enche de água a si mesmo,
Quando falam que faziam aquele debate de fé e ciência, eu digo:
“Você não tem ciência alguma, não sabe o que é ciência, está fora da
realidade. Você inventou um esqueminha seu...”. É claro que o idiota
leni sempre um idiota maior que o admira, então se inventa um negócio
que c uma burrice, mas c uma burrice complicada, e sempre haverá
pessoas que prestem atenção naquilo e entrem dentro como se fosse a
transcendência: “Bom, cu não sei a explicação, mas Karl Marx sabe”.
Esse é um processo hipnótico apenas, o que faz que você vá tratar os
filósofos como sc fossem deuses mesmo.
Bucla também dizia que, no fim cios tempos, os homens se tratariam
uns aos outros como se fossem deuses, c assim seriam deuses uns para
os outros. Mas isso já está acontecendo na nossa cara! O sujeito, por
exemplo, passa a vida inteira estudando marxismo, e as perguntas
que ele faz não têm respostas, mas cie acredita que elas estão iá no
marxismo, ele é que não percebeu ainda. Daí ele faz uma revisão da
teoria, modifica-a, ou seja, ele mesmo está inventando o marxismo e
está atribuindo o mérito a Karl Marx. Já se afastou infinitamente da
teoria do Marx, continua inventando outras, mas acredita que tudo
aquilo estava lá dentro.

jAluno: Isso se encaixa na definição que Rosenstock dá de Deus:


“aquilo que nos faz falar". Se você fala a partir de Marx, ou qualquer
coisa do gênero, ele é o seu deus. J
Ah, certamente! Mas, note bem, fazer-nos falar é um atributo de
Deus, entre infinitos outros.

[Aluno: Assim como a doutrina religiosa, a obra de arte sagrada,


qualquer arte sacra, também serve para (...).]
Também serve! Todo e qualquer elem ento de abertura que
você dê para o sujeito, eic pode usar para se fechar, é evidente.
Porque essa c a base de todo erro, a idolatria. Deus, só tem um
eterno, infinito e imutável, ponto final. E sem nome. Só tem esse
Deus. Q ualquer outra coisa que você ponha no lugar, você já está
começando a confundir.

[Aluno: Você fala “Só tem esse Deus". Que é “esse”?]


E o fundamento de tudo que existe. E como é que você faz para
conhccê-lo? Você tem que estar aberto para o que está além de toda
experiência possível. De fato, é só isso, mas você usa tudo aquilo que

.14
homens anteriores a você perceberam, o que pode lhe ajudar e lhe
inspirar para chegar lá, mas também pode atrapalhar.

[Aluna: Você falou em entrar numa catedra' gótica.]


Claro, qualquer templo, como qualquer objeto de arte sacra, é
também objeto de idolatria. Mas você não precisa se preocupar muito
com isto, porque a abertura para a transcendência é da natureza
humana, ou seja, o fechamento é quando o sujeito está muito louco.
Você não precisa se preocupar. (...) Santo Tomás acreditava que os
muçulmanos tinham essa abertura tanto quanto ele,

[Aluno: Não ocorria que eles pudessem não ter essa abertura?]
Não, nem ocorreu. E, se ele fosse discutir com os papuas da Nova
Guiné, ele ia estar igual. Mas se cie entrasse hoje numa universidade,
eu não sei... ‘‘Agora eu vou ter que transmitir a esses indivíduos, eu
não posso raciocinar dentro dessa experiência comum porque eles não
a têm. Eu primeiro preciso fazer que eles se abram para a experiência
para depois poder conversar com eles.” Écomo um homem conversando
sobre os problemas da sua vida adulta com um garoto de três anos.
Não é um problema de raciocínio nem de cultura, na verdade é um
problema de experiência humana.

(Aluna: Se ele tivesse conhecido os indígenas da América, ele


também (...).]
Certamente, mas isto é a humanidade inteira. O que acontece
na cultura moderna é um negócio muito esquisito, é uma produção
de idolatrias absolutamente incomparável com tudo que possa ter
acontecido em outra época.

|Aluno: Não é um tipo de discurso poético (...)?]

35
lúi não sei. Quando você fala dessas coisas, há pessoas que
entendem e outras que não entendem, É porque elas querem entender,
e não se trata de entender, mas de ter a experiência. É um dado de
experiência, não c uma idéia, uma doutrina. Você não pode transmitir
um dado de experiência, só pode transmitir símbolos dela. Então, se
tem a experiência, no discurso poético, o que ele faz? Ele é um símbolo
de experiência. Uma pessoa entende por um símbolo, outra entende
por uma explicação doutrinal, outra entende de um terceiro jeito, c
outra entende só se você encher a cara dela de porrada... É como a
história zcn-budista em que o sujeito pergunta: “Mestre, qual é o
sentido da vida?”. Ele pega e mete a cabeça dele numa tina d’água.
O cara se afogando, ele diz: “Já entendeu?”. “Não!”
Esse método também pode funcionar com umas pessoas, e com
outras não. A gente está se referindo à realidade, à experiência, à vida
real, portanto, não é algo transmissível de uma pessoa para a outra.
Para eu lhe transmitir vida real, eu precisaria criá-lo, precisaria ser
Deus. Em princípio, todos os seres humanos vivem dentro da mesma
esfera de experiência e têm acesso a isso. Mas, e se o sujeito esqueceu,
ou se o mundo de idéias dele é tão atraente que ele não consegue sair
de dentro daquilo? O que quer que você diga, ele vai reinterpretar nos
termos da sua doutrina, da sua teoria, ele acha que é teoria também.
Então, o apelo à experiência só vale com pessoas normais.

fAluno: Essa abertura, digamos assim, vivenciada honestamente,


implicaria salvação?]
Como é que eu vou saber? Sei lá.

| Aluno: Foi muito bom ouvir isso. \


O que determina a salvação da alma, a imortalidade... Bom, você
entende facilmente que imortalidade é uma maneira de dizer algo que

36
você pegou dessa transcendência, então, “imortalidade" é um símbolo,
precisa ser decodificado. O que sc quer dizer exatamente com isso?
Você tem uma série de acontecimentos na ordem histórica que lhe
assinalam elementos dessa abertura, elementos do fundamento, que
aparecem na sua frente dc algum modo, c todos cies incompreensíveis
no sentido de que não são abarcáveis. Até a experiência comum e
corrente humana tem elementos inabarcávcis. Por exemplo, você pode
explicar uma pessoa? Não, só pode explicar algo dessa pessoa, um
hábito, uma idéia, uma aparência, uma característica, mas ela inteira
não dá para explicar. E se não dá para explicar nem uma pessoa, como
c que sc vai explicar o fundamento? Ora, o que você fala de unia pessoa
é compreensível para oulra que ou a conheça ou seja pelo menos capaz
dc imaginar, porque tem a mesma experiência.
Um sujeito que fala do fundamento é a mesma coisa: se você
tem a experiência, sabe do que cie está falando; se não tem, não
sabe. As vezes pode acontecer de o indivíduo se fechar tanto no seu
pensamento - seja o pensamento individual, seja o do seu grupo, um
ideal coletivo - que ele não concebe mais a experiência fora daquilo. E
ele continua vivendo dentro do mundo real, aí é só na porrada mesmo.
Às vezes a vida dá uma porrada, começam a acontecer coisas que
escapam tanto do seu controle, da sua teoria, que daí você se abre c
diz: “Meu Deus!". E eu digo: “Ah! Começou a entender!”.

[Aluno: É a história de que, se não vem pelo amor, vem pela dor. ]
Vem de um jeito ou do outro. Quanto você precisa dc experiência
para abrir, para quebrar esse “ovo lógico" no qual você sc meteu?
Sc você tem muitas pessoas que confirmam seu discurso, sua teoria,
fica difícil sair, porque você mal acabou de perceber algo e já vem outro
que lhe ajuda a fechar dc novo.

37
[Aluna: É ir muito longe para avistar a si mesmo. Foi isso que
aconteceu com a Igreja Católica? Às vezes esse processo que você diz
começou logo após a queda do Império Romano, eu não sei se isso já
estava...]
O que eu sei é que a síntese tomlsta é maravilhosa, resolve um
monte cie problemas em teorias, dá uma receita. Mas a receita não cura
ninguém, é preciso tomar o remédio, e o fato é que ninguém o tomou.

[Aluna: Acho que você equacionou isso mais uma vez muito bem.
Quer dizer; as respostas de Santo Tomás são problemas em Aristóteles,
ele reflete aquilo.]
Eu não entendi onde você está querendo chegar.

[Aluna: Os problemas de Aristóteles que a Escolástica


respondeu... ]
Mas essa c uma oulra coisa. Os problemas de Aristóteles são uma parte
do negócio. Eu estou falando da estrutura geral da obra de Santo Tomás.
Vamos dizer que é como se fosse uma montanha cujo topo, na verdade,
é seu fundamento. Então você tem a montanha dos conhecimentos
humanos, e ela está toda pendurada em cima. A montanha não está
assentada embaixo, está pendurada em cima, e esse “em cima” é
justamente a dimensão da fé. Não tem nada a ver.

[Aluna: É (...) análogo, mas ê um outro processa.]


Tem a ver, mas é um detalhe, é um outro departamento. O que
cu quis trazer aqui é o espírito da obra de Santo Tomás, não
propriamente seu conteúdo. O conteúdo é inesgotável, pois só o índice
das suas obras tinha dezessete volumes, e ele morreu com 48 anos.
E o espírito da coisa é este, não é harmonizar razão e fé! A própria
expressão não tem o menor sentido. Existe uma certa razão natural

38
que opera autonomamente até um certo ponto, depois não vai, pois
seu fundamento é o mesmo fundamento da própria natureza. Então,
assim como a natureza não pode funcionar autonomamente fora do
seu fundamento, a razão humana também não pode.

[Aluno: E ele considera a natureza como a Palavra de Deus, não é?\


Sem dúvida, as duas coisas são a Palavra de Deus. Vai aparecer sob
a forma de Palavra de Deus, sob a forma da natureza, e sob a forma
da Encarnação - a tripla forma. De certo modo, a dica, o sinal está cm
toda parte, não teni como você escapar dele. Mas por que a pessoas
não percebem? Elas não percebem porque querem escapar. E querem
escapar por quê? Porque a abertura dá medo. Quando o sujeito diz:
“A religião é um tranqüilizante para tirar você do medo”, respondo:
“Você não sabe o que é medo, idiota”! “Timor Domini Principium
Sapientice'', o temor de Deus é o princípio da sabedoria.
O que é o temor de Deus? É você ver o tamanho e entender que
está num estado de submissão integral, querendo ou não. O que quer
que aconteça depende desse fundamento. E lá que está a chave de
tudo, é lá, e não ao meu alcance, e não na natureza visível, e não cm
nenhum fator conhecido. Todos os fatores conhecidos são apenas nexos
parciais, que, por sua vez, tem que ser articulados. Então o medo é o
começo de tudo. O medo, o temor de Deus. O que c o temor de Deus?
É você compreender, é Ler um relance dessa abertura, que no início
vai lhe deixar completamente desorientado, pois tudo aquilo que você
pensava que estava sob seu controle já não estava de maneira alguma.

[Aluno: Nem da consequência de ter tido essa abertura. A abertura


gera o medo. ]
Claro, a abertura gera o medo. O primeiro sintoma é o medo,
evidentemente.

39
[Aluna: O ser humano compreender que ele não pode manipular.
Ele pode invocar, ele pode aturar, o que ele não pode é manipular. \
Ele não manipula nada. Então, o pouco de controle que tem sobre
o fluxo dos acontecimentos depende de ele estar articulado com essa
raiz. É o que diz o Cristo: ‘‘Sem mim nada podeis fazer’. Nem pode
não fazer nada.

[Aluno: (...) o símbolo disso é o fogo, nâo é?)


Você tem inúmeros símbolos disso. Tem uma coisa que sempre me
ocorria, Quando eu morava cm Ubatuba. eu tinha um vizinho chamado
Nelson, completamente louco, que gostava de nadar numa praia onde
ninguém nadava, porque tinha ondas de cinqüenta metros. Era lá
mesmo que ele ia, e eu ia só para vc-lo. Eu falava que náo ia entrar
naquele negócio, mas ele entrava no meio d’água, sumia, daqui a pouco
aparecia numa onda que o jogava por quinze metros. E ele ali numa
boa, com uma confiança tremenda, É uma espécie de inocência que ele
tinha. Isto é abertura para o infinito, é um ato de confiança cm Deus.

[Aluno: É o que dizem, que Deus protege as crianças, j


“Mas, se não vos tornardes como as criancinhas, não entrareis
no Reino do Céu.” Essa é uma situação na qual toda a esperteza é
ingenuidade, e toda ingenuidade é esperteza. Ele diz: “Por isso que
Deus ocultará isso aos sábios e revelará aos pequenos”. Quem é o
pequeno? É aquele que sabe que é pequeno, c sabe que a coisa não está
na mão dele. Essa é a estrutura da realidade. Quem escapa disto - e,
mais ainda, escapa por escrito - está muito doido, e a gente náo tem
que prestar atenção nessas coisas, é tudo bobagem. Essa c a articulação
que Santo Tomás estabelece.

[Aluna: Isso (...) em pleno acordo com o projeto socrático, náo é?\

40
Perfeitamente. Santo Tomás percebeu que a unidade da consciência
humana não está nela. É exatamente como cm Santo Agostinho: “Eu sei
que eu sou, mas não sei o que cu sou, e muito menos sei por que eu sou.
Então, dentro dc mim existe um fundamento quem me é desconhecido,
mas que mc c mais íntimo do que eu mesmo”. A mesma coisa que estou
dizendo com relação ao Universo, Agostinho fala com relação à sua
própria alma. Esse processo se dá conforme a orientação de cada qual:
se você é um espírito aristotélico, então você vai olhar para o Universo
e vai descobrir isso ali; sc você é um espírito platônico, vai para o lado
psíquico, investiga sua própria alma e vai descobrir lá a mesma coisa,
porque não tem escapatória. Esse conceito da alma aberta, por incrível
que pareça, é um conceito do Henri Bergson. Embora Bergson seja um
filósofo menor, sob certos aspectos, traz um conceito importantíssimo
para vocc entender todo o mundo moderno. O mundo moderno c a
construção de intelectuais de alma fechada.

[Aluno: Fetichisla.]
É o fetichismo da natureza, é o feüchismo da História, é o fctichismo
do sexo, é o fetichismo dc qualquer coisa! E todos eles, exatamente por
causa disso, terão uma pretensão desmedida de controlar, de orientar
certos fluxos de acontecimentos que não estão na mão deles cie maneira
alguma, não estão na mão da humanidade. E por isso que tudo o que
eles fazem sempre dá outro resultado. Por quê? Porque existe uma
lógica interna no sistema deles, e existe a lógica do mundo real, então
eles agem dentro do sistema, mas ao mesmo tempo estão dentro de
um outro plano dc realidade que eles desconhecem, e aqui as coisas
também têm efeitos. Por exemplo, o Dr. Freud. Uma vez um sujeito lhe
disse: “Você não está querendo curar seus pacientes, está querendo
curar a humanidade inteira”. E ele respondeu: “É exatamente isto”.
Por que o sujeito queria curar a humanidade inteira? Porque não

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conseguia curar a ele mesmo. É como diz o Néison Rodrigues nessa
Irase imortal: “O íracasso subiu-lhe à cabeça”. É isso mesmo, o sujeito
fracassa numa coisa, daí cria uma megalomania.
Note bem, quando a gente diz isso, não quer dizer que um cara
como Freud, ou Marx, ou Hegel, esteja psiquicamente doente. Ele está
espiritualmente doente; psiquicamente, pode estar ate bem. Mas o
camarada pode estar psiquicamente doente e ser espiritualmente são,
Eu dou um exemplo. Van Gogh é um sujeito completamente louco,
mas seu mundo espiritual c o mesmo onde nós estamos: tem abertura,
tem transcendência, está tudo lá. Ele está vendo as coisas como elas
são, embora psiquicamente ele não funcionasse. E tern oulros sujeitos
que são aparentemente normais do ponto dc vista psíquico, mas que
espiritualmente são malucos, porque pensam que são Deus. Hegel
é um exemplo disso. Como não estão psiquicamente doentes, são
pessoas muito inteligentes e muito capacitadas, muitas coisas que eles
descrevem são realidade mesmo.
O Dr. Freud tem um famoso caso de paranóia, o Dr. Schreber, que
era um juiz de Direito. O sujeito tinha uma paranóia monumental,
c ele descobre que aquilo tudo é causado por um conflito sexual
idiota. Bom, mas e o caso do Dr. Freud? É a mesma coisa, ele não c
capaz dc reconhecer que seu problema é um problema idiota como
o de todo mundo, então tem que curar a humanidade, Quando ele
vai ver, diz: “Olha, eu lenho um problema assim.,.”. Você vê que São
Paulo Apóstolo, no auge da sua carreira, diz: "Eu tenho esse espinho
na carne que nunca me sai. Eu não resolvo nem o meu problema,
o máximo que posso fazer é de vez em quando passar para vocês
umas coisas que Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou e olhe lá, mas
eu mesmo não faço o bem que quero, faço o mal que não quero. Isso
quer dizer que arcar comigo mesmo é uma tarefa que está acima da
minha capacidade”. Compara isso com o Dr. Freud, que queria curar a

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humanidade! São Paulo Apóstolo dizia: “Eu não posso curar ninguém,
meu filho, nem a mim mesmo! Eu estou aqui todo estropiado, todo
cheio de problemas. O que eu posso fazer é ensinar a abertura para
vocês ouvirem Nosso Senhor Jesus Cristo c ponto final”. Isso já é
bom demais, ele não precisa curar nossos problemas, nós vamos morrer
com eles.

[Aluno: Lutem também, não foi? Acho que Iadero também teve,
provavelmente pelo processo com todo o movimento religioso, quase
uma questão religiosa, ele não conseguia encontrar a resposta dentro
da Igreja. (...)]
Eu não conheço o caso de Lntero, estou estudando agora, sobretudo
sua psicologia. Eu já ouvi mil teorias - um diz isso, outro diz aquilo -
mas eu não sei, então fico quieto até segunda ordem. Mas, em certos
casos, como Ereud, Marx, o caso é manifestamente esse: são pessoas
que nâo arcam com seu problema, não se aguentam, não aguentam,
então eles criam uma outra noção idealizada em cima.

[Aluno: Tem uma frase que fala: “Não vemos o mundo como ele é,
mas como nós somos”.]
Mas isto é o subjetivismo. Claro, você nâo está no mundo de todos,
no mundo de que o Hcráclilo fala, está no seu mundo, então o mundo
aparece à sua imagem e semelhança. Mas esse mundo não serve, porque
foi você quem inventou. Quando você sai daí e vem para o mundo real,
primeiro, ele é um mundo em aberto; segundo, tem um fundamento
que decide c que só pode ser conhecido mediante a abertura e a
adoração; terceiro, você não vai resolver nenhum dos seus problemas,
provavelmente vai morrer com todos os defeitos com que nasceu, como
todos nós. Pensando bem, isso não tem a menor importância, porque
só uma coisa é necessária. Nós, no mundo moderno, criamos até uma

43
noção de normalidade. Quando estou falando da noção do que é o ser
humano normal, estou querendo dizer o ser humano cspiritualmente
normal, pois psiquicamente anormal lodos nós somos um pouco, e
fisicamente, também, nenhum dc nós é grande coisa, então só interessa a
normalidade espiritual, o resto não interessa. Mas nós chegamos a criar
uma noção de normalidade física e psíquica monstruosa, então queremos
que as pessoas vistam essa camisa de força, e quando não a vestem nós
achamos que são inferiores. Dizemos: “O sujeito não pode ter neuroses,
não pode ter isso, não pode ter aquilo...”. Espera aí, como não?

[Aluno: Para dar um exemplo que talvez trate de um outro aspecto


desse fechamento, (...) não tem controle sobre nada, depende do
fundamento, e mesmo a humanidade inteira não teria o controle...
Isso me. lembrou um dos pontos da teoria da ideologia do Marx, em
que ele diz que ninguém quer (...) ver a realidade como ela é, mas a
vê distorcida de acordo com seu interesse, etc., e que a única classe
que veria a realidade...]
A realidade como ela é, isso c o proletariado. B como é que
aconteceu que o primeiro sujeito que disse isso não era um proletário?
É um milagre!

[Aluno: (...). A minha pergunta final é o seguinte (...).]


Mesmo que fosse assim, o problema continuaria, e ainda leríamos
um problema. Quer dizer, depois que o proletariado perceber tudo
e criar o seu maravilhoso mundo socialista, nós teremos que ainda
responder a esse enorme enigma da Providência. Mas, escuta, por que
esses proletários do fim dos tempos foram pessoas tão privilegiadas
que tiveram tudo o que as gerações anteriores não tiveram? Que raio
de justiça c essa que privilegia as últimas gerações à custa dc ferrar
todos os outros? Você ainda teria esse pequeno problema, não ê? (...)

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Será a maior injustiça de todos os tempos, porque condenaremos todos
os nossos antepassados. Pelo talo dc você ler nascido depois, você é
um privilegiado!

|Aluno: (...) Marx confunde interesses da humanidade com a


realidade (...).]
Veja, a coisa básica de Karl Marx é ele ignorar sua própria condição
de classe após ter dito q ue a condição de classe determina a consciência.
Qual c a sua classe social, e como é que se operou essa maravilhosa
transição de um burguês para o ponto de vista proletário? Essa é a
primeira coisa que cie teria a obrigação de explicar, assim como o
Dr. Freud teria que explicar outra. Sc a consciência de todos nós é
um tecido dc falsidades construída em cima de paixões inconscientes,
como é que você conseguiu sair disto? Como foi o primeiro, se todo
mundo foi ludibriado pelo inconsciente até hoje? Freud estuda toda
a História da humanidade. Moisés foi uma vítima do inconsciente,
Leonardo da Vinci foi uma vítima do inconsciente, todo mundo foi
enganado pelo inconsciente, o primeiro que acordou foi ele. Então, já
que sua teoria conhece a origem da consciência dentro da inconsciência,
tem que nos explicar por que foi o primeiro a sair. Mas se você não
diz isso, significa que não está entendendo sua própria história, e, se
não está entendendo sua própria história, como é que vai explicar a
minha? Na verdade, você está tentando explicar a minha porque não é
suficientemente inteligente para perceber que não entende nem a sua,
porque eu percebo que não entendo a minha.

[Aluno: (...) Lacan também (...) diz que a gente só consegue falar
de si mesmo. Mas, então, como é que ele estava falando...]
É isso que a gente tem que responder: “Olha, você o disse, você só
falou de você mesmo, então eu não estou interessado no seu mundinho.

45
Você está falando de você mesmo? Muito bem, então eu vou falar de
mim, porque você não me interessa”.

| Aluno: Mas ele pretende falar dos outros quando ele diz isso, que
todo mundo só pode falar de si mesmo.]
Pois c. Mas se cie só fala de si mesmo c. ao mesmo tempo, está
falando de todo mundo, o que ele está fazendo? Está fazendo com
que todos nós sejamos peças do psiquismo dele. sejamos elementos
do jogo interno dele. Mas se você pode fazer isso comigo, por que
eu não posso fazer isso com você? É como o homem adormecido de
Heráclito, que imagina que todo mundo é personagem do seu sonho.
Esse tema '‘a vida é sonho” é um dos temas permanentes da literatura,
e é um estado de patologia espiritual gravíssimo, é a recusa de perceber
que todos estamos no mesmo mundo. Sonho!? Seu psiquismo mal dá
conta dc você, nem você cabe dentro do seu psiquismo. Para caber
dentro do seu psiquismo, seria preciso que você soubesse tudo a seu
respeito, e você não sabe. Você não pode inventar nem sequer você
mesmo, quanto mais a mim! Mas aquele que imagina que cada um
está fechado dentro da sua subjetividade, o que ele está fazendo é isso.
Quer dizer que você acha que não apenas eu sou uma invenção da
sua subjetividade, mas você também. Mas. se você se inventou e, mais
ainda, inventou a mim, deve nos conhecer formidavelmente! Então
diga o meu passado, por exemplo, conte a minha história, ou explique
o funcionamento do seu organismo. Você não consegue, isto é prova de
que você não se inventou.
Este é o reconhecimento de Santo Agostinho: “Eu sei que eu sou,
mas eu não sei o que eu sou”. E esses caras dizem: “Eu sei o que eu
sou, eu sei por que eu sou e sei ate por que você é. E tudo isto está
na minha imaginação”. Isso é absolutamente monstruoso, é doença
espiritual, não tem nada a ver com doença psíquica, pois uma pessoa

46
psiquicamente normal pode pensar essas bobagens e um sujeito
cornpletamcnte louco pode ter uma visão espiritualmentc correta das
coisas. Sc você pensa em São Francisco de Assis, eu duvido que São
Francisco fosse um cara muito normal psiquicamente, mas a realidade
espiritual dele cra (otalmentc saudável. Se você pega Hegel, cie é um
cara psiquicamente equilibrado, só que o inundo espiritual dele é
completamente louco. Hoje nós damos tanta atenção à saúde psíquica,
até consideramos que as neuroses dos outros depõem contra cies,
no entanto, não damos a menor atenção à saúde espiritual, e nesse
setor podemos ficar tão loucos quanto o desejemos, c ainda seremos
aplaudidos c ganharemos o Prêmio Nobel com isso.

[Aluna: Quem sabe o que interessa é o Viktor Frankl. não é?]


Mas como é que ele aprendeu? Foi na porrada, não foi? Você acha
que controla alguma coisa? Está bom, então vamos colocá-lo dentro
de um trem, jogá-lo em Auschwitz, daí você vai ver. “De fato, eu não
controlo nada mesmo. E, pior, esses caras aí que pensam que estão
me controlando, também não controlam, porque eles todos vão morrer
em seguida." Viktor Frankl ja tinha essa abertura antes, aquilo serviu
simplesmente para tornar claras coisas que ele já sabia.

[Aluna: Foi um teste empírico. [


Veja que, quando Frankl decide ficar na Alemanha, ele tinha uma
oferta de emprego nos Estados Unidos. Ele decide ficar porque não
podia levar os pais, e sabia que a situação ia piorar, daí ficou naquela
dúvida: “Eu vou para os Estados Unidos, deixo aqui meu pai c minha
mãe que estão velhinhos, precisando de mim? O que cu faço?”. Nesse
dia, cai uma bomba e arrebenta uma Igreja, ele encontra uma pedra
e está o mandamento: “Honrai pai e mãe”. Daí ele diz: “Essa aí c a
solução, Deus falou comigo”. Então Frankl decide ficar e, com isso,

47
acontece de ele ir para o campo de concentração, acontece de ter
toda a visão da Eogoterapia, c isso decidiu seu destino, por um meio
aparentemente paradoxal. Mas veja que, em toda a sua vida, cie sempre
tem essa coisa de se deixar conduzir: “Deus sabe o que faz. Ele sabe c
eu não sei". Então vamos seguir as dicas, os mandamentos, de maneira
que a gente possa entender a cada momento. Você pode errar também,
claro. E você vê que Erankl não faz esforço para ir descobrindo aquelas
coisas que ele descobre, pois elas vão aparecendo dc certo modo na
mão dele.
Sc você quer saber como é uma vida aberta, está aí, é a do Viktor
Erankl. 1lá muilas vidas assim. É só você deixar que as coisas começam
a acontecer, evidentemente. A religião pode ajudar, mas, note bem,
embora o Frankl fosse um sujeito religioso, d e não era formalmente
religioso. Tem uma vida voltada para o Espírito, mas não uma vida
religiosa. Há muilas vidas religiosas que não são voltadas para o
Espírito de maneira alguma, são voltadas para fatores administrativos,
para a revolução social e outras bobagens.
Essa articulação que Santo Tomás estabelece é, então, uma síntese
que logo em seguida é totalmente abandonada e esquecida. Em parte,
é abandonada em razão da própria estrutura interna do pensamento
escolástico, que é lodo voltado para a formulação dc uma doutrina
fundamentada logicamente em todos os seus pontos e que, como
eu provavelmente já mencionei, tem nessa própria técnica um certo
demento alienante. Eu mencionei o caso dc Santo Alberto, que, nas
palavras finais da Suma, diz: “Tudo isso que eu disse não sou eu que
penso, é a escola pcripatética”. Não que isso fosse desonestidade, mas,
na medida em que não tem o envolvimento próprio necessário, essa
é uma estrutura de pensamento que, de certo modo, se não estiver
travada num comprometimento espiritual e religioso sério, favorece a
alienação, evidentemente.

48
Veja que as fases ele muita alienação da filosofia coincidem com
as fases de grande melhoramento técnico. Estamos no século XX, e
apareceram pelo menos duas grandes revoluções técnicas cm filosofia:
a fcnoinenologia e a lógica matemática. No século XIX, aparece o
rnélodo experimental. Tudo isso, por um lado, ajuda c, por outro
lado, atrapalha, e o fator decisivo é sempre este: tem a abertura para a
transcendência ou não tem. Isso é da natureza humana, c não tem nada
a ver com religião, é um pressuposto da ra2ão humana, um pressuposto
da própria existência dc religião. Não é impossível o sujeito pegar o
Evangelho inteiro, o Antigo Testamento inteiro, e fechar aquilo tudo
dentro de uma doutrina de sua própria invenção, ü que faz o padre
Guticrre/., da Teologia da Libertação? Paz exatamente isso. Ele lê o
Evangelho o dia inteiro, e a especialidade dele é não entender nada, c
ler c trocar por outra coisa, por outra coisa que está ao alcance da mente
dele e que lhe parece bastante racional, lógico e muito bem explicado.

|Aluno: (...) aquele artigo sobre São Francisco e. Che Guevara.


É tirar (...) o conteúdo espiritual para daí...]
Claro, você esvaziou o conteúdo espiritual, que é demasiado
incompreensível para você. Veja que a diferença do Che Guevara
para São Francisco dc Assis é a diferença do zero para o infinito.
O Che Guevara é nada, é apenas um camarada criado pela mídia. Eie,
cru si mesmo, não é nada. É um cara que, a única coisa que fez, foi
matar os outros, e sempre dar errado em tudo. EIc fracassou como
médico, depois fracassou como banqueiro, fracassou como ministro da
Fazenda, fracassou como revolucionário, e o pessoal todo achando que
o sujeito é lindo e maravilhoso. E um caso em que a figura externa é
enormemente maior do que a realidade dele mesmo. Mas se você pega
uma figura como São Francisco... Bom, existe uma figura midiática,
que aparece no filme do Zeffirclli, mas. quando você vai conhecer algo

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da vida de São Francisco, vê que tudo isto é bobagem perto do que ele
era mesmo. Fie é tão grande, tão grande, que Iodas as imagens que
você tem dele fracassam. É exatamente o contrário. Essa é uma vida
que está marcada pela presença do mistério divino, e você não vai
entender aquilo facilmente. Você vai ficar maravilhado, pois são sinais
dc Deus, então aquilo inclina nâo a uma explicação, mas à adoração,
Isso não pode ser explicado, porque c uma realidade, c a realidade
não se explica, a realidade é soberana. A gente explica processos c
encaixes da realidade onde ela não se mostra por si, mas aquilo que
se mostra dc Deus já é mais do que nós podemos explicar, c mais do
que precisa explicar.
Essa síntese tomista é o ponto culminante da Idade Média e, dc certo
modo, é o seu fim, porque não vai passar disso, não vai chegar a algo
mais perfeito. O que se vê pelos séculos seguintes é que, imediatamente,
surgem dois processos de ruptura. O primeiro processo acontece na
Itália, com o surgimento da idéia do poder político terrestre separado
de qualquer fundamento espiritual, que aparece com Maquíavel: é a
concepção naturalística do poder. A segunda ruptura será a Reforma
protestante. Por aí se vê que o que Tomás dc Aquino falou ficou rnais
ou menos o dito por não dito, o que é até compreensível, pois é algo
dc uma riqueza tal que, de fato, só com Leão XIII, no século XIX, as
pessoas começam a acordar para o que disse Santo Tomás de Aquino.
Mas esse renascimento tomista não acabou até hoje, ainda tem muita
coisa que tirar de lá dc dentro.

50
Leituras sugeridas

CÜPLF.STÍ )N, K C. Medieval Philosophy; an Introduction. New York: Dover, 2001.

DRMPF, Alois, l.a amcepción dei mundo en la Edad Mediu. Madri: Credos, 1958.

FAUKO, Curndio. Tomismo e pensiero moderno. Roma: Università Lateranense, 1969.

GILSON, F.lienne. La philosophie au Moyen-Âge. 2.ecL rev. c airni. Paris: Payot, 1988.

______ . The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. TVad. L. K. Shook, Notre Dame:
University of Noire Dame Press, 1994.

LIBERA, Alain de. Pensar na idade Média. IVad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1999.

ROUSSELOT, Pierre. Liniellecltialisme de Saint Thomas. Paris: Beauchesnc. 1924.

SEUTILLANGF.S, A.-D. Saint Thomas d'Aquin. Paris: Alcan. 1922, 2 v,

WULF, Maurice de. Philosophy and Civilization in the Middle Ages. New York: Dover, 1953.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Lívro, SP. Brasil)

Carvalho, Olavo de
História essencial da filosofia /
por Olavo de Carvalho - São Paulo: Ê Realizações. 2006
(Coleção história essencial da filosofia)

Inclui um DVD.
Conteúdo: aula 11: Tomás de Aquino e Duns Scolt -
aula 12 : Filosofia islâmica-
aula 13: Filosofia cristã - aula: 14: Idéia versus realidade-
aula: 15: A escolástica - aula: 16: Xavier Zubiri e a escolástica -
aula: 17: Escolástica II : retorno da articulação do conhecimento -
aula: 18: Santo Tomás de Aquino,

I , Filosofia - Estudo e ensino 2. Filosofia -


História 1. Titulo. II, Série.

06-7026 CDD-I09*l.

índices para catálogo sistemático:


l. Filosofia: História 109

ISBN 10 DÍGITOS: 85-88062-36-4


ISBN 13 DÍGITOS: 978-85-88062-36-8

Este livro é a transcrição da aula que


foi gravada no dia 10/10/2003 na
É Realizações em São Paulo - SP Brasil.

Impresso pela SermografLCT para a


É Realizações, cm setembro de 2006.
Os tipos usados são da família Dutcli
O papel ê Chamqis Bulk 90 g/trT para
o miolo e supremo 250 g/ni2 para a capa.
c o le ç ã o

História
Essencial da
Filosofia
Aula 1:
História das Histórias
da Filosofia
Aula 2:
O Projeto Socrático
Aula 5:
Sócrates e Platão
Aula 4:
Aristóteles
Aula 5:
Pré-Socráticos
Aula 6:
Período Helenistieo 1
Aula 7:
Período Helenistieo Í1
Aula 8:
Advento do Cristianismo
Aula 9:
Filosofia Patrística e
Escolástica
Aula 10:
Santo Agostinho
Aula 11:
Sáo Tomás de Aquino e
Duns Scoil
Aula 12:
Filosofia Islâmica
Aula 13:
Filosofia Cristã
Aula 14:
idéia Tfersus Realidade
Aula 15:
A Escolástica
Aula lffc
Xavier Zubiri e a Escolástica
Aula 17:
Escolástica U
Aula 18:
Santo Tomás de Aquino

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