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Inforgeo, Julho 2007, 139-143

QUALIFICAÇÃO DAS PERIFERIAS

Álvaro Domingues

«… a quase totalidade das designações ral urbano), acerca da dicotomia capital/«pro-


usuais não está já adaptada à realidade de que víncia» (de facto, uma herança velha de um
elas supostamente dariam conta. “Periferia”? país macrocéfalo e dominado por estruturas
O que é que ainda significa este conceito se o autoritárias de poder), ou acerca dos centros
tecido construído coincide com a maior parte metropolitanos e das suas periferias suburba-
do território? (…) Deveríamos voltar ao pro- nas. Numa tal variedade de escalas e de senti-
blema do “distanciamento justo” na descrição, dos, no contexto do excessivo cartesianismo
se for verdade que a solução deve derivar de que caracteriza essas dicotomias, e tendo em
uma terminologia adequada, isto é, de uma ter- conta a forte controvérsia que está contida
minologia livre de vocábulos conotadores» nessas expressões e geografias mentais, já não
se sabe muito bem que coisa possa ser o peri-
André CORBOZ, «La description: entre ferismo como coisa objectivada e consensual.
lecture et écriture» (2000) in Le Territoire Em rigor, quase tudo pode ser periferia de
comme palimpseste et autres essais, Ed. qualquer coisa, em tempos e geografias dis-
L’Imprimeur, Paris, 2001 tintas, lugar ou condição. Centro, por opo-
sição, pode ser o mesmo. A questão é que
Periferia é um conceito bastante vago e difí- «centro» para além de lugar ou forma, é
cil de precisar. Geometricamente, a periferia também um significado de organização – de
mede-se pelo grau de afastamento ao centro. onde tudo diverge e para onde tudo converge –
Pela negativa, periferia será então um «afasta- uma espécie de axis mundi que antropologica-
mento» do «centro» ou dos «centros». Como mente pode tomar sentidos, representações e
conceito definido pela negativa, a ideia de peri- rituais diversos. Periferia seria o contrário de
feria carrega em si um sentido estigmatiza- centro e por isso, desorganização ou caos – em
dor, sinónimo de rejeição, de marginalidade, todas as cosmogonias, o caos é um estado
no limite, de exclusão. primordial, indeterminado, onde não estariam
Geograficamente, a periferia pode ser desig- separadas as coisas do mundo ordenado pelos
nável com indicadores de posição, de relação, deuses.
de dependência, assumindo também sentidos Em vez de «periferia» tomada como sujeito
recorrentes na linguagem comum. Independen- ou de periférico(a) tomado como adjectivo
temente dos temas, em Portugal são comuns as polissémico («centralidade periférica» é um
referências acerca de uma periferia regional oximoro recorrente que baralha atributos e
extensa (o interior rural, por oposição ao lito- mistura negações),

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Oximoro, figura de construção que consiste em reunir num mesmo grupo sintá(c)tico dois termos de
sentido contrário (obscura claridade; o nada que é tudo; amor é fogo que arde sem se ver...), pro-
vém do grego 'oksómoron, ou', que quer dizer «engenhosa aliança de palavras contraditórias».
cf. http://ciberduvidas.sapo.pt/php/resposta.php?id=13569

cabe questionar, de facto, (?) o que é que real- bui e que vão mudando. Uma espécie de encan-
mente se pretende designar quando se usam tamento negativo, por oposição a fetiches posi-
essas expressões (?), deixando de pensar que tivos ou deslumbramentos que abundam no
todos entendem o mesmo ou, pior, pensando léxico urbanístico de hoje (p.e. velocidade, ino-
que tudo cabe num leque alargado de situações vação, criatividade, master plan, etc.). Nos EUA,
onde mais ou menos todos se revêm no mesmo. o subúrbio tomou, curiosamente, significados
É aqui que retomo a afirmação acima de André positivos associados ao «sonho americano»,
Corboz para parar e «guardar distâncias», para por oposição ao gueto, habitualmente posicio-
que as palavras não se desprendam da reali- nado nas áreas centrais decadentes, pobres e
dade que pretendem designar. mais ou menos marginais.
Deixando para outros outras periferias, gos- Hoje, o significado da periferia urbana
taria de me focar nas periferias ditas urbanas. perde-se ainda mais no mosaico da urbaniza-
É aqui que a Geografia Urbana mais intensa- ção extensiva. Quando o território passa efec-
mente usa a adjectivação «periferia» (urbana) ou tivamente a ser organizado por sistemas de
simplesmente «periferia». Esta aparece como fluxos, redes e relações (que associam escalas
uma denominação corrente misturada com a urbanas e elementos muito distintos), e não
ideia de subúrbio para denominar os espaços apenas por critérios de contiguidade-proximi-
da «explosão» da cidade na Europa urbana pós- dade física, as posições «centrais» e, por opo-
-industrialização. O caminho-de-ferro anulou sição, as «periféricas», baralham-se nos seus
muitos atritos territoriais, permitindo a expan- atributos sociais, morfológicos, funcionais,
são do (sub)urbio operário e, definitivamente, simbólicos (e agora, cada vez mais, ambien-
opondo a cidade dos lugares (a cidade antiga tais). A condição periférica (socialmente assim
carregada de símbolos e vivências), à cidade definida) pode estar num «centro» (disso
das relações, da descontinuidade e das (inter)- falam os especialistas da regeneração urbana
dependências assimétricas; ou seja, a cidade dos bairros pobres dos centros ditos históri-
deixa de ser coisa designável por uma forma cos), e a distinção social pode residir num con-
contida em certos limites. domínio da «periferia» (os «subúrbios doura-
O subúrbio (e os suburbanos) originaram dos» de que nos falam os sociólogos franceses,
uma longuíssima produção científica e ideoló- por oposição aos «subúrbios vermelhos» da
gica (da sociologia ao urbanismo, da política periferia operária da metrópole fordista).
à economia, da fotografia, da literatura, ao Alain Bourdin (La Métropole des Indivi-
cinema). Como muitas vezes ocorre, as pala- dus, Ed L’Aube, Paris, 2005), é bastante elo-
vras e os conceitos descolaram da realidade quente a respeito da confusão dos conceitos
mutante daquilo que supostamente designam. que abunda na produção da especialidade, e
Subúrbio transformou-se uma palavra fetiche que está resumida naquilo que diz ser o debate
que designa, para lá dos significantes, signifi- simplificador que mobiliza um conjunto de
cados e revelações que entretanto se lhes atri- estereótipos conhecidos:

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i) associa-se a cidade-centro ao centro midade física ou relacional. A cidade esti-
urbano tradicional, à «cidade», a verdadeira lhaçada é quase sempre um imaginário feito
(Françoise Choay já nos tinha alertado de somatórios (a tal metrópole dos indiví-
para a mudança da «cidade ao urbano», não duos) a que faltaria o cimento mínimo da
por simples expansão/dilatação de um arte- esfera pública, como se tal fosse possível.
facto conhecido, mas por mudança da pró- Por aqui se nota uma inquietação que bara-
pria «condição urbana», i.e., aquilo que lha os significados e as formas construídas
François Ascher veio mais tarde a designar do urbano e que atende sobretudo à neces-
por metapolis); sidade de se manifestar/verbalizar algo que
ii) a cidade é o «cenário» da dimensão tenha que ver com a crise do social e do
pública ou colectiva e associa-se ao peão, colectivo nas sociedades contemporâneas
ao espaço e equipamentos públicos, ao onde o Estado perde terreno a favor dos
transporte colectivo, às práticas de sociabi- mecanismos avassaladores da globalização
lidade, às noções de durabilidade/ susten- (a mesma sociedade que o citado D. Inne-
tabilidade, às de identidade/ referenciação rarity denomina de «centrífuga»… como o
(face à anomia e aos «não-lugares»), ao cos- urbano, contrariamente à cidade centrípeta
mopolitismo social e cultural, à inovação, à que é sempre uma imagem da cidade-estado).
convivialidade, em suma, à urbanidade (ver
Daniel Inneraity, sobre a confusão entre Em resumo, como adianta A. Bourdin:
espaço público/esfera pública, no sentido «definitivamente, o principal defeito destas aná-
de Habermas, e «espaço público» tal como lises é talvez o de tentar organizar uma oposi-
é concebido na urbanística; cf. El Nuevo ção simples e geograficamente legível entre
Espacio Público, Ed. Espasa, Madrid, 2006); centro e periferia (tal como) as teorias da cen-
iii) por oposição, a «ville etalée» ou a «ville tralidade (incluindo os Lugares Centrais de W.
émergente», é suposto ser a predominância Christaller), foram durante muito tempo asso-
do privado, do automóvel individual, da ciadas, à relação cidade-campo (…), à referên-
poluição, da não durabilidade, do desperdí- cia a uma métrica comum e à ideia de continui-
cio e do gasto de solo, do fechamento e da dade/contiguidade espacial» (2005: 195).
individuação, da rotina, do encravamento Saindo dos esquemas duais centro/perife-
neo-comunitário (a secessão urbana e as ria que pareciam ser claros para os artefactos
gated communities, ou a banlieu e as tribos metropolitanos convencionais, o tema da peri-
urbanas), do isolamento social (!). Este feria passa rapidamente a designar os territó-
esquematismo esconde a diversidade dos rios extensos da urbanização difusa (uma espé-
banlieus pavillonaires, dos grands ensem- cie de «outro», de grande «exterior» do lugar/
bles, das suas morfologias e modos de fun- cidade correspondente aos estereótipos referi-
cionamento social. As novas centralida- dos atrás), reconhecida como policêntrica
des/polaridades da «periferia» são julgadas (entenda-se, pontuada por centros/polaridades
como monofuncionais, desencantadas, novas e velhas).
alienadas/consumistas, sem história, sem Para uns, esses territórios constituem a
capacidade narrativa e simbólica… sem se negação da ideia de cidade (enquanto forma e
referirem os materiais diversos do «fazer modelo de sociedade e de organização social,
centro» (acessibilidade, função/ direccio- de cidade como arquitectura, para outros) ou
nalidade, produção simbólica/ referencia- mesmo a sua perversão; para outros, um
ção); sem se discutirem as diferenças entre híbrido cidade/campo (e, mesmo assim, admi-
aglomeração/ conexão/ interacção e proxi- tindo que uns vêem aí o melhor da cidade e do

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campo como na mitologia da Cidade Jardim, e O urbanismo sempre lamentou perdas e dis-
outros, o pior); ainda para outros, onde me funções, desde a Cidade Jardim à cidade da
incluo, um «transgénico» que assimila proprie- Carta de Atenas e aí não reside novidade
dades do rural e do urbano «profundos», mas nenhuma; sempre no urbanismo se construí-
que, sobretudo e para além desses dois refe- ram utopias futuras e retrospectivas (hoje há
rentes opostos, corresponde de facto a «outra muitas, também, que situam o «bom e velho»
coisa» que não cabe nos modelos simplifica- urbano ou rural num tempo passado e numa
dos de uma oposição rural/urbano que já se geografia incerta).
perdeu por excessiva mudança do urbano e do A questão é que nos deixamos facilmente
rural de onde pretensamente partiram. Ora, se encantar com o poder mágico dos enuncia-
essa dicotomia já não faz sentido, também não dos «articulados» e «integrados» que tudo
o fará usarmos modelos e utopias que já se querem acertar e compatibilizar numa socie-
produziram para esses dois mundos (e que são dade e num território em constante e acele-
muitas!). Usar recursos metafóricos como o rada mudança a que falta o poder regulador
transgénico (tirado da biologia, que sempre do Estado na sua versão social-democrata.
produziu metáforas férteis para denominar a Regula-se uma coisa por critérios ambientais
cidade-corpo ou a cidade-ecossistema), ou o (e, mesmo esses, variam consoante se trate de
hipertexto (tirado da linguística e da ciberné- eólicas ou de defesa da biodiversidade, p.e.);
tica para denominar certas estruturas produto- regula-se outra por um misto de eficiência e
ras de sentido e de racionalidade de organização equidade; aprecia-se uma boa solução num
textual; metáfora usada por A. Corboz, aqui país/economia/sociedade que a pode imple-
citado), pode ser útil para ultrapassar velhos e mentar, esquecendo-se que algures se resolve
sólidos obstáculos epistemológicos com que o mesmo com os mesmos, de outra maneira,
nos debatemos. com o chamado dumping social e ambiental;
Dito isto, pode-se agora adiantar o enun- troca-se a crise política da democracia formal
ciado posto no início do texto «a qualificação pelos caminhos tortuosos da participação
das periferais» (o plural sempre ajuda mas não como retórica apaziguadora – incluindo o que
basta). É necessário saber, antes do mais, o que se esconde como puro nimbismo ou como pla-
é que exactamente se pretende qualificar e neamento por decibéis onde pode quem mais
como. Diria, para atalhar caminho, que o pla- usa os recursos dos media, incluindo eles pró-
neamento urbano sempre tratou de pensar e prios. Enfim, procura-se tapar todas as brechas
projectar parâmetros de qualidade e de funcio- de um Estado que rebenta pela incapacidade
nalidade (alguns estéticos, também) pensados em se impor democraticamente à ditadura da
segundo desígnios dominantes e fortemente globalização e das suas regras (ou falta delas)
consensuais (contrariamente às utopias que e que entra em deriva institucional e crescente
sempre trataram de outra coisa diferente do dificuldade em articular políticas sectoriais
«tempo comum»). e, mais ainda, territorializadas (o splintering
Hoje, o desígnio mais difundido é o da urbanism de que fala Stephen Graham; Splin-
«sustentabilidade», uma espécie de mistura tering Urbanism, Routledge, London, 2001).
bastante problemática de coesão social, compe- Outras atitudes pragmáticas (demasiado, às
titividade económica e durabilidade ambiental; vezes) resolvem todo o excesso ou disfunção
como se não bastasse, tudo para hoje e para as de regulação do território (o que para outros,
gerações vindouras. Penso, realisticamente, que é falta ou mera ficção legalista em todas
tal desígnio é antes de tudo uma espécie de as matérias, da energia aos transportes, do
fuga ou de luto mal feito pela perda disso tudo. ambiente à logística; da escala local à regio-

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nal ou nacional), numa simples declaração de zada, tratamento/reciclagem de resíduos sóli-
Potencial Interesse Nacional (PIN) que, afinal, dos e líquidos, controlo de emissões para a
acaba por descredibilizar aquilo que são atmosfera, etc.); passado o gasto público em
normas básicas para o comum dos cidadãos. infraestruturação e equipamentos e serviços
Outros tratarão de encontrar, como sempre, os colectivos (factura assumida em grande parte
bodes expiatórios que sempre dão a ilusão de por fundos da UE), o desafio é o da boa gestão
que existe uma norma e que, por isso, haverá dessa infraestrutura e dos serviços que ela
sempre justificações perversas para o que ela organiza (água, esgoto, ensino, saúde, activi-
se desvia (a especulação, por exemplo, os inte- dade cultural, etc.); passada a conjuntura de
resses, os jogos de poder, as influências, etc.). disponibilidade de dinheiros públicos, é neces-
Digo, para finalizar, que construí uma expe- sário comprometer mais os privados no finan-
riência de terreno que vai com 25 anos de tra- ciamento do colectivo; vencido o desafio da
balho em Guimarães. Para uns, Guimarães é o qualificação da cidade histórica, é necessário
modelo exemplar das políticas para a cidade orientar as prioridades para a outra, sobretudo
histórica; para outros, todas as disfunções que ao longo das estruturas axiais que aglomera-
são atribuídas à urbanização e à industrializa- ram população, actividades e emprego nas
ção dispersas e onde cabem todas as nostalgias margens de estradas nacionais; encontrando
e traumas da perda do rural e do urbano «pro- soluções para a despoluição das linhas de
fundos». O município é o mesmo. A qualidade água, abrem-se possibilidades e recursos para
da cidade histórica de que falo não se fez nem qualificar ambiental e paisagisticamente vár-
contra nem a favor da não histórica. zeas e veigas; construída a rede viária arterial,
Hoje tratamos de fazer uma leitura do ter- é necessário prever a procura de áreas de loca-
ritório não pela forma mas pela adequação da lização empresarial para junto dos nós das vias
infraestrutura à construção e às cargas urbanas. rápidas; face à falência da primeira geração de
Contidas as frentes de urbanização de baixa indústrias nas margens dos rios, é necessário
densidade, respeitando as classificações legais regular usos compatíveis com critérios ambien-
das reservas agrícola e ecológica (ainda não tais; depois da construção dos equipamentos
houve PIN…), o desafio que temos pela frente de proximidade (ensino, saúde, assistência
é o de regular a qualidade da baixa densidade, social, etc.) é necessário consertar ou concer-
entendendo por isso que o remédio nem sempre tar redes de gestão, etc., etc.
é a densificação ou a concentração (seria desas- Qualificar é tudo isso, não interessa se peri-
troso em toda a extensão do disperso). A «infra- feria ou não, tendo a consciência que, mais do
estrutura mínima» (estradas, redes de energia que os grandes gestos e documentos regulado-
e telecomunicações, água e esgoto, etc.) que res altissonantes (sempre estratégicos…) tudo
organizou a urbanização intensa que se produ- isto se faz muito com a gestão do dia a dia, com
ziu desde finais do séc. XIX, é hoje o suporte escolhas e prioridades e não o tudo de uma vez
da grande parte da ocupação do solo. A exten- para todo o território. Qualificar é obra aberta
são (e a fragmentação) dos campos são hoje o e que constantemente se faz com dados novos
lugar perdido por uma agricultura que se redu- e com contextos e escalas territoriais muito dis-
ziu ao mínimo em termos de expressão econó- tintas, pensando e actuando, agindo segundo
mica (ficou o solo) e que já não mantém a «jar- práticas que são tecnicamente informadas mas
dinagem» da paisagem. são, sobretudo, da política e das suas artes, e do
Mais que no desenho, é fundamental pensar que isso significa de permanente negociação e
nas «cargas urbanas» e na forma como se pode de comunicação e mobilização para causas
diminuir a «pegada» ambiental (energia utili- justas, ou pelo menos, tidas como tal.

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