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Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder

Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008

Experiências plurais em categorias singulares: Problematizando a materialização das


travestilidades

Larissa Maués Pelúcio Silva, pós-doutoranda junto ao Núcleo de Estudos de Gênero - PAGU,
(UNICAMP), André Luiz Zanão Tosta, graduando em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas - IFCH, (UNICAMP)
Travestilidade; gênero; identidade
ST 61 – Sexualidades, corporalidade e transgêneros: narrativas fora da ordem

A calorosa discussão que culminou na alteração do termo GLBT para LGBT durante a 1ª
Conferência Nacional realizada este ano (2008) no Brasil é apenas mais uma evidência da centralidade
que as questões de identidade detêm na política contemporânea. As categorias que a compõem (a saber:
gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e transgêneros) são velhas conhecidas dos movimentos políticos
que partiram de classificações generalizantes e englobantes como “minorias sexuais” para um
paradigma político internacional de nomear os sujeitos aos quais almeja representar1. Segundo
reportagem vinculada no site voltado exclusivamente para este público, o Mix Brasil2, o consenso sobre
a mudança na ordem das letras não existiria nem mesmo entre as lésbicas, sendo que travestis e
transexuais reivindicaram que (caso utiliza-se o critério de categoria com maior exclusão) fossem elas a
iniciarem a sigla que designa a comunidade. Definir qual das categorias identitárias irá encabeçar-la, ou
mesmo quais as categorias que a irão compor, é apenas a última das batalhas de uma “guerra de
classificações”3 mais antiga, oriunda de um modelo político que não demonstra (pelo menos até o
momento) sinais de cansaço.
Contudo, não pretendemos discordar da importância de nomear (ou melhor: categorizar)
sujeitos, uma vez que é através destas categorias de reconhecimento que os seres humanos se tornam
viáveis, inteligíveis dentro de relações sociais. É pela adoção, reconhecimento ou imputação de uma
identidade coletiva que nos tornamos aptos a socializar, carregar signos e significados que balizam
nossas relações em um complexo de incentivos e constrangimentos socialmente construídos. Em outras
palavras, a experiência de se viver a e na identidade nos molda enquanto indivíduos e nos revela
enquanto seres sociais.
A análise tanto política quanto acadêmica baseada na identidade tem estas características e
facilidades, confere humanidade e inteligibilidade aos portadores das identidades por ela abordada, mas
também pode tornar-se uma sutil armadilha. Décadas de discussão a cerca do caráter construído e
2
“artificial” das identidades, os dilemas entre abordagens essencializantes e construtivistas4, culminaram
em um paradigma, pelo menos nas ciências sociais, que nega qualquer “naturalidade” nas expressões
identitárias. A feminilidade (assim como a masculinidade, a raça, a nacionalidade e um sem número de
categorias) antes compreendida como expressão de uma essência interna, universal, a-histórica e
“natural” passa a ser problematizada, relativizada, compreendida a luz de contextos sociais, culturais e
de poder específicos e historicamente datados. Atualmente é quase impensável afirmar uma essência
para gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis, e os discursos que permeiam tanto a academia
quanto a política os rechaçam com veemência5.
As experiências concretas são quem constituem os sujeitos, e não os sujeitos que detém
experiências, esta prerrogativa teórica de Joan W. Scott (1998) abre portas para problematizar as
identidades fixas uma vez que a experiência identitária não é uma posse consciente dos sujeitos que ela
nomeia, mas sim um dentre tantos aspectos (identitários ou não) que os formulam enquanto tais. Insistir
ao extremo em políticas identitárias ao centrar-se em categorias estanques e promover uma “guerra de
classificações” corre o risco de incorrer em categorias hiper-reais6, carregadas de descrições e
prescrições genéricas e vazias de significado para os indivíduos concretos que nelas se apóiam para
conferir legitimidade a suas existências.
Entender a experiência identitária das travestis neste contexto de perigo de cristalização de
identidades requer mais que pluralizar categorias, mas compreender uma certa fluidez na construção de
gêneros, corpos, práticas e subjetividades destas pessoas. É comprometer-se não com a categoria a ser
analisada, tomada como ponto de partida, mas com sua constituição e significação em contextos
específicos e pessoas concretas. Em outras palavras, não basta referir-se a um certo escopo de
“travestilidades”, mas sim compreender que as próprias travestilidades são experiências que se dão em
um largo de configurações possíveis na negociação entre as travestis e as normas sociais e de gênero
que tentam normalizá-las.
Dentro destas possibilidades de negociações e configurações fica quase impossível
categorizar, em poucas palavras, o que viria a ser uma travesti. Negociar símbolos, práticas e estéticas
socialmente vinculados ao feminino em corpos pretensamente masculinos, um comprometimento com
esta feminilidade sem, no entanto, existir a pretensão de outorgar-se mulher, talvez seja um bom ponto
inicial para tecer nossas considerações7. Resultando em diferentes configurações, estas negociações não
são puramente idiossincráticas, são organizadas pelas normas sociais e de gênero que permeiam e
regulam os contextos sociais onde as travestis se inserem mas também por uma série de práticas, gostos
e tecnologias de gênero legitimamente relacionadas ao projeto travesti. 8
3
Esta materialização de um feminino que não se reconhece como “mulher” e muito menos
como “homem”. Nesta apropriação de performances de gênero instituídas socialmente não ocorre,
contudo, sem atrito com as normas que regem corpos e subjetividades conferindo a estes gêneros
inteligíveis. Judith Butler (2003) descreve os gêneros inteligíveis como as configurações entre sexo,
gênero, desejo e prática sexual coerentes dentro de uma matriz que se organiza baseada em uma norma
heterossexual. Dentro desta lógica as configurações pênis-masculinidade-homem-penetração (em uma
mulher) e vagina-feminilidade-mulher-ser penetrada (por um homem) seriam as únicas possibilidades
legítimas, os corpos e subjetividades que encontram reconhecimento e materializam-se, restando aos
demais uma materialização não reconhecida, uma imaterialidade que parece duvidar de sua
humanidade. A materialidade que a travesti adquire através das negociações entre elementos
culturalmente reconhecidos enquanto masculinos e femininos é sempre questionada como um engodo,
uma aberração, uma artificialidade que não deveria existir. Por outro lado, quando temos em mente que
toda a materialização de gênero é uma construção “artificial” que se baseia na apropriação e reiteração
de performances, gostos e normas instituídas, anteriores aos sujeitos que delas se apropriam. Que o
gênero em si existe apenas nestas negociações e repetições que lhe conferem substância sem lograr o
fim desta, teremos como resultado que as travestilidades são apenas tão legítimas como quais quer
outras configurações e apropriações de gênero, mas também são tão dinâmicas, fluídas e polimorfas.
“Hormonizadas”9 ou não, com seus longos e bem tratados cabelos naturais ou apliques
sintéticos, toda “quebrada na plástica”10 ou sem as doses generosas de silicone líquido em seus corpos
as travestis não são facilmente encapsuladas pelos discursos que almejam representá-las. Não apenas
seus corpos são fluídos, produtos vivos de um projeto que busca a perfeição de um feminino
glamoroso, como são heterogêneos indo das atuais “ninfetinhas” que povoam as áreas de prostituição
de rua atualmente existentes em praticamente todos os grandes centros urbanos brasileiros, passando
pelas “divas”, “tops” e “européias”, até chegar na “travecão” com suas curvas exageradas ligadas ao
insucesso e ao ultrapassado11.
Os elementos que organizam o projeto travesti são numerosos e complexos. Inicialmente a
travesti deve almejar construir em seu corpo uma certa feminilidade12, esta feminilidade, no entanto,
tem o obstáculo de ser materializada em um corpo que não é reconhecido socialmente como feminino.
Dentro de uma lógica que prega o dimorfismo radical dos corpos sexuados13 conferindo-lhes gêneros
inteligíveis a genitália é o ponto nodal de onde extravasa toda uma “verdade” sobre o gênero14. Uma
feminilidade dotada de um pênis é um paradoxo dentro deste raciocínio. Mas ser uma travesti é mais
que marcar no corpo a mudança desta “verdade”, o corpo é apenas o veiculo pelo qual será construída
toda uma subjetividade também marcada pelas negociações entre o feminino e o masculino. Os gestos,
4
as cores, o andar, são apenas elementos que revelam vontades, dúvidas e crenças; sucessivas camadas
de silicone, certezas, hormônios e valores que explicitam que o projeto travesti é uma conformação e
uma negociação corporal e moral15. A materialização da travesti deve então se apropriar de elementos
que escapam à genitália, elementos que serão constantemente vigiados, modificados, julgados pelos
olhos e ações dos demais indivíduos que com ela interage e por ela mesma. Nestes julgamentos e
vigílias temos a conformação de uma certa perspectiva do que vem a ser o feminino (ou, pelo menos, o
feminino na travesti), conformação esta nunca encerrada e sempre aberta a diálogos e negociações.
Atrelar esta materialização do feminino em corpos dotados de pênis à ingestão de hormônios,
as modificações corporais com silicone líquido e a prostituição são apenas idéias primárias que dizem
muito (ou muito pouco) sobre a experiência travesti. Se a travestilidade não é uma experiência que
pertence ao sujeito, mas vivenciar tal experiência é o que a conforma enquanto travesti tais negociações
e apropriações serão tão contingentes e específicas dentro de contextos concretos quanto à própria
travestilidade. Torna-se então inconclusiva a busca por delimitar e descrever a totalidade das
travestilidades e muito mais instigante inverter a análise: com quais interlocutores as travestis
negociam os discursos que as descrevem? Como se dão tais negociações em contextos onde as relações
de poder parecem sempre pesar desfavoráveis a elas? Quais os elementos masculinos e femininos que
elas mobilizam em suas materializações corpóreas e morais?
Tendo tais questões em mente podemos compreender até que ponto os discursos que
descrevem as travestis são significativos para elas, ou mesmo qual o poder descritivo que o termo
travesti ainda mantém. Diante da proposta de adoção da categoria “transgênero”, utilizada nos
movimentos políticos norte-americanos para descrever os indivíduos que vivem experiências de
identidade de gênero no trânsito em relação a dicotomia masculino/feminino, houveram debates
calorosos sobre a importação de um conceito que pouco revela dentro do contexto político brasileiro.
Esta tentativa de renomear sujeitos encontra paralelos entre as próprias travestis que passam a se valer
em algumas circunstâncias do termo “transex”. Uma vez que no contexto brasileiro o universo travesti
é muitas vezes, dentro do imaginário popular, associado a marginalidade, a patologia e a criminalidade
a categoria transex invocaria uma certa “neutralidade” frente a estas questões. Enquanto a categoria
“transgênero” é importada dos movimentos políticos internacionais que se tornaram modelos a serem
seguidos no Brasil16, o “transex” enquanto categoria válida de nomeação começa a ser incorporado via
internet e na experiência internacional que vem se constituindo como uma das marcas das
travestilidades contemporâneas17. Quando as dinâmicas que envolvem as autoclassificações chocam-se
com as categorias fixas cunhadas para designar sujeitos políticos todo um sistema discursivo é
5
descortinado, e é precisamente este momento que visualizamos atualmente, quando experiências
plurais ainda estão sendo encapsuladas por categorias singulares.

Referências bibliográficas

BENEDETTI, M. R. Toda feita – o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

BENTO, B. A Reinvenção do corpo – Sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro:


Garamond, 2006.

BUTLER, J. “Cuerpos que Importan” – sobre os límites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos
Aires / Barcelona / México: Editora Paidós, 2002.

BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora


Civilização Brasileira, 2003.

FACCHINI, R. Sopa de Letrinhas? – movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos


anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

KULICK, D. Travesti – prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2008.

MARIANO, A. S. O sujeito do feminismo e o pós-estruturalismo. Revista Estudos Feministas.


Florianópolis, v. 13, n. 3, 2005.

MICHEL, F. História da Sexualidade I - a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

MOORE, H. Understanding sex and gende. Londres: Editora Routledge, 1997.

PELÚCIO, L. Nos nervos, na carne, na pele: uma etnografia sobre prostituição travesti e o modelo
preventivo de AIDS. São Carlos: UFSCar, 2007.

PELÚCIO, L. Toda Quebrada na Plástica – Corporalidade e construção do gênero entre travestis


paulistas, in Campos – Revista de Antropologia Social, Vol. 6, nº 1 e 2, 2005.

http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/campos/issue/view/424. Acessado em 28/06/2008.

SCOTT, J. W. A Invisibilidade da Experiência. Projeto História. São Paulo, fevereiro de 1998, pp. 297-
325.

SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 13, n. 1, 2005 .


http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-26X2005000100002&lng=pt&nrm=iso.
Acessado em 30/06/2008.

SILVA, H. R. S. Travesti: a invenção do feminino. Rio de Janeiro: Relume-Dumara, 1993.


1
Para uma discussão mais aprofundada sobre a história do movimento político homossexual no Brasil e as negociações a
cerca de categorias identitárias ver Regina Facchini (2005).
6

2
http://mixbrasil.uol.com.br/mp/upload/noticia/11_101_67223.shtml. Acessado em 23/06/2008.
3
Id. 1
4
Ver Joan W. Scott (2005).
5
Ver Silvana A. Mariano (2005); Henrieta Moore (1997); Joan W. Scott (2005; 1998).
6
Ver Regina Facchini (2005), mais precisamente o capitulo Considerações Finais p.273 – p.282.
7
Ver Don Kulick (2008) e Larissa Pelúcio (2007).
8
Sobre as negociações entre as normas sociais e de gênero e as construções de corpos e subjetividades ver Judith Butler
(2002; 2003). Para considerações a cerca do “projeto travesti” ver Pelúcio (2005) e Benedetti (2005).
9
“Hormonizada” significa, entre as travestis, afirmar-se como alguém que está se submetendo ao processo de feminização
por meio da ingestão de hormônios femininos, geralmente pílulas ou injeções anticoncepcionais ministradas em
combinações. Nas falas colhidas por Marcos Benedetti (2005), o hormônio aparece como fundamental para a construção da
travestilidade, pois é essa substância que, ao misturar-se ao sangue, instaura “uma nova condição no corpo: a condição de
travesti”.
10
Id. 9
11
Id. 7
12
Ver Don Kulick (2008); Marcos Benedetti (2005); Helio Silva (1993).
13
Ver Berenice Bento (2006);
14
Sobre a questão do “gênero verdadeiro” e a centralidade da genitália para defini-lo ver Michel Foucault (1988).
15
Ver Larissa Pelúcio (2007).
16
Id. 1
17
Id. 15

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