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30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO
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CIDADÃ
DEBATES EM
SUA HOMENAGEM
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CONSTITUIÇÃO
ANOS DA
CIDADÃ
DEBATES EM
SUA HOMENAGEM
30
CONSTITUIÇÃO
ANOS DA
CIDADÃ
DEBATES EM
SUA HOMENAGEM
Belo Horizonte
2018
2018 - Instituto para o Desenvolvimento Democrático
Capa e Diagramação: Toque Digital
Impressão: Toque Digital
ISBN: 978-85-67134-09-3
CDD 341.2
APRESENTAÇÃO
....................................................................................................................... 7
8
Aléxia Duarte apresenta um panorama histórico-constitucional comparativo
do tratamento dado à religião na primeira constituição do Brasil, a Constituição do
Império de 1824, que instituiu a Religião Católica como a religião oficial do Brasil, e da
Constituição da República Federativa de 1988.
Deivide Júlio Ribeiro parte de uma análise empírica de duas ações que compõem
o controle de constitucionalidade concentrado brasileiro para expor os limites jurispru-
denciais impostos na aplicação da Técnica de Interpretação.
Rafael Guimarães, por sua vez, expõe o dilema entre a independência federativa
na elaboração de normas de auto-organização e a obediência ao princípio da simetria
no afastamento ou evocação nas Leis Orgânicas Municipais do quórum instituído no
artigo 47 da Constituição.
Suellen Moura e Marja Mangili desenvolvem uma análise crítica da restrição do
alcance do foro por prerrogativa de função que sofreu alteração em virtude da Emenda
Constitucional 35/2001 e questionam nova interpretação dada pelo Poder Judiciário
decorrente do julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal 937, do Rio de Janeiro.
10
O TRATAMENTO DADO À RELIGIÃO
NA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL: UMA
ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA
DO IMPÉRIO DO BRASIL DE 1824 E DA
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988
Aléxia Duarte Torres1
RESUMO
Dado o contexto hodierno e a celebração dos 30 anos da Constituição
da República Federativa do Brasil, a investigação do tratamento dado à
religião nos textos constitucionais de 1824 e 1988, a partir de documentos
e discursos históricos, é de extrema importância. Investigar as relações
da religião com o Estado se faz relevante a fim de entender as mudanças
estruturais na sociedade brasileira que afetam profundamente a configuração
do secularismo brasileiro e as formas como as religiões se relacionam com
a vida pública. O objetivo desse artigo, portanto, é mapear as interações
entre Direito e Religião no âmbito constitucional, especificamente na análise
dos dispositivos da primeira Constituição Brasileira, e em seguida, o da
Constituição de 1988, com apontamentos críticos e indicação das diferenças
e/ou semelhanças.
1 Aléxia Duarte Torres é mestranda em Direito pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) na linha Teoria Constitucional, Direitos Humanos e Instituições
Democráticas. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
Atualmente pesquisa acerca da liberdade de expressão, liberdade religiosa e discurso do ódio. Bolsista
CNPQ. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2574816656505318
Torres, Aléxia Duarte. O tratamento dado à religião na história constitucional uma análise da constituição política do império do Brasil
de 1824 e da Constituição da República de 1988. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO,
Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p.
11-26. Disponível em: https://doi.org/10.32445/97885671340931
Introdução
Conforme nos explica Bernardo Gonçalves2, o Brasil colônia passou por diversas
formas de organização até chegar a sua independência. Variou de sistema de feitorias
até a proclamação da Independência em 07 de setembro de 1822, com o início da era
do Estado do Brasil imperial, que culminou com a Constituição de 1824.
3 KUHNEN, Alceu. A Formação da Igreja no Brasil, sob o signo da colonização e do Padroado Português,
de 1500 a 1550. Dissertatio ad Doctoratum, Pontificia Universitas Gregoriana. Roma, 2001. Pág. 120-121
O projeto de Constituição redigido por Antônio Carlos, em 1823, havia sido mais
drástico. Em seu artigo 15, determinava que as outras religiões, além da cristã, seriam
apenas toleradas e a sua profissão inibiria o exercício dos direitos políticos6.
6 PORTO, Walter Costa. Católicos e acatólicos: o voto no Império. Brasília. Ano 41. Nº 162. Abril/Junho de
2004, p. 394.
7 Art. 103. 0 Imperador antes do ser acclamado prestará nas mãos do Presidente do Senado, reunidas as
duas Camaras, o seguinte Juramento–Juro manter a Religião Catholica Apostolica Romana, a integridade,
e indivisibilidade do Imperio; observar, e fazer observar a Constituição Politica da Nação Brazileira, e mais
Leis do Imperio, e prover ao bem geral do Brazil, quanto em mim couber.
8 Art. 106.0 Herdeiro presumptivo, em completando quatorze annos de idade, prestará nas mãos do
Presidente do Senado, reunidas as duas Camaras, o seguinte Juramento–Juro manter a Religião
Catholica Apostolica Romana, observar a Constituição Politica da Nação Brazileira, e ser obediente ás
Leis, e ao Imperador.
9 Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se: III.
Os que não professarem a Religião do Estado
10 Art. 14I. Os Conselheiros de Estado, antes de tomarem posse, prestarão juramento nas mãos do
Imperador de manter a Religião Catholica Apostolica Romana; observar a Constituição, e às Leis; ser fieis
ao Imperador; aconselhal-o segundo suas consciencias, attendendo sómente ao bem da Nação.
11 MAGALHÃES JUNIOR, R. O império em chinelos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957, p. 265.
Essa lei ordinária, que alterou o processo eleitoral, também dispensou as cerimô-
nias religiosas e a leitura das leis e regulamentos, que deviam preceder aos trabalhos
eleitorais (art. 15 § 2º), além de estabelecer que o governo, na Corte, e os Presidentes,
nas províncias, designassem, com a precisa antecedência, os edifícios em que se
12 MARQUÊS DE SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno. Direito Público Brasileiro e Análise da
Constituição do Império. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 82-83.
13 BARBOSA, Rui. Obras Completas: Trabalhos Políticos. V. II, 1872-1874, Tomo II. Rio de Janeiro: Fundação
Casa de Rui Barbosa, 1987, p. 92.
Essa restrição foi necessária uma vez que as eleições aconteciam, com deter-
minada frequência, nas próprias instalações da igreja, seguidas de missas solenes e
celebrações religiosas. Não é difícil de prever, todavia, os incidentes e tumultos que
as emoções dos pleitos causavam.
14 LEÃO, Michele de. Lei Saraiva (1881): se o analfabetismo é um problema, exclui-se o problema.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Aedos n.11. Vol 4. Set 2012, p. 608. Disponível em: < https://
seer.ufrgs.br/aedos/article/view/30737/20890> Acesso em: 17 out. 2018.
16 O Decreto foi repristinado na nova ordem constitucional por meio do Decreto nº 4.496/2002.
Esclarecia que a liberdade de culto abrangia não só os indivíduos nos atos indivi-
duais, mas também as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados;
cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem coletivamente, segundo
o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder público18.
Também instituiu o caráter secular dos cemitérios, que seriam administrados pela
autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos
ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendessem a moral publica e as leis.
Após um período extenso sob o regime militar, entre 1987 e 1988, o Congresso
Nacional se dedicou a redigir a nova Constituição Federal do Brasil. A Carta foi elaborada
e debatida durante 20 meses por 559 parlamentares (72 senadores e 487 deputados
federais) que integraram a Assembleia Nacional Constituinte, eleitos em 1986.
19 GUIMARÃES, Ulysses. In: Ata da 3ª Sessão da Assembleia Nacional Constituinte. 03 fev 1987. P. 03.
Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/003anc04fev1987.pdf#page=>
Assim também, afirmou que no vestíbulo da Bíblia está decretado que Deus criou a
terra para que nela o homem trabalhasse e não a saqueasse e violentasse, ameaçando
a qualidade da vida, que deve ter no Estatuto Cívico Supremo seu guardião21. A ata da
Assembleia relata que houve palmas nesse momento.
Por fim, encerrou seu discurso ao dizer que “a voz do povo é a voz de Deus e com
Deus e com o povo venceremos”. Disse ainda que o nome político da Pátria seria uma
Constituição que perpetuaria a unidade de sua Geografia, com a substância de sua
História, a esperança de seu futuro e que exorcizaria a maldição da injustiça social.
Ao final, recebeu palmas prolongadas.
22 BRASIL, Diário da Assembleia Nacional Constituinte. Projeto de Resolução nº 1 de 1987. 04 fev 1987.
Ano XLII – nº 003. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/003anc04fev1987.
pdf#page=3>. Acesso em 17 out 2018.
23 O texto atual conta com duzentos e cinquenta artigos no texto permanente e noventa e sete artigos
atualmente no ADCT.
24 BRASIL, Senado Federal. 05 de outubro de 1988: um dia histórico. Disponível em: < http://www.senado.
gov.br/noticias/especiais/constituicao25anos/um-dia-historico.htm>
Para ficar mais claro, notemos de forma mais simplificada que o texto apresenta
quatro vedações: a) a de estabelecer cultos religiosos ou igrejas, b) a de subvencionar
cultos religiosos ou igrejas, c) a de embaraçar o funcionamento dos cultos religiosos
ou igrejas e d) a de manter com os cultos religiosos, igrejas ou seus representantes
relações de dependência ou aliança.
O Estado laico aberto brasileiro é simpático com a religiosidade, pois esta objeta o
bem comum da sociedade política e o aprimoramento do ser humano, mesmo objetivo
do Estado, porém na via secular. Apenas aquela determinada religião que não tem
como escopo objetivo o bem comum do ser humano que não deve ser protegida pela
laicidade brasileira, já que atenta contra os próprios princípios da República.
26 VIEIRA, Thiago. A Imunidade Tributária como Garante da Liberdade Religiosa no Brasil. 2018; Monografia
final apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Estado Constitucional
e Liberdade Religiosa pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Universidade de Coimbra e University
of Oxford – Regent’s Park College. Disponível em: http://www.vradvogados.adv.br/2018/01/01/a-
imunidade-tributaria-religiosa-como-garante-da-liberdade-religiosa-no-brasil-the-religious-tax-immunity-
as-a-guarantor-of-religious-freedom-in-brazil/> Acesso em 17 out 2018.
Com base nos escritos do referido Preâmbulo, todas as Constituições dos Estados
Brasileiros repetiram a palavra Deus nas suas cartas, exceto o Estado do Acre, que
decidiu excluir a frase toda, “sob a proteção de Deus”, e por isso foi motivo de ADI 2076,
considerada improcedente28.
José Afonso da Silva nos lembra de que a liberdade de religião engloba, na verdade,
três tipos distintos, porém intrinsecamente relacionados de liberdades: a liberdade de
crença; a liberdade de culto; e a liberdade de organização religiosa31.
30 STF, RMS 26071, Relator: Min. Carlos Britto, Primeira Turma, DJe-018, 31-01-2008.
31 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 5 ed. rev. e ampl. de acordo com a nova
Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 223.
No que tange à liberdade do culto, afirma que a religião não é apenas sentimento
sagrado puro. Não se realiza na simples contemplação do ente sagrado, não é simples
adoração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica
básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias, manifesta-
ções, reuniões, fidelidades aos hábitos, às tradições, na forma indicada pela religião
escolhida.
Alguns autores, como Soriano (1990, p.84)32 defendem que a liberdade religiosa
é o princípio jurídico fundamental que regula as relações entre o Estado e a Igreja
em consonância com o direito fundamental dos indivíduos e dos grupos a sustentar,
defender e propagar suas crenças religiosas, sendo o restante dos princípios, direitos e
liberdades, em matéria religiosa, apenas coadjuvantes e solidários do princípio básico
da liberdade religiosa.
Considerações Finais
Por todo o exposto, dada a análise feita ao primeiro texto constitucional do Brasil,
ainda na época do império e o texto atual, é possível verificar que no suceder das leis e
dos regimes de governo, os dispositivos constitucionais que asseguravam a separação
entre a Igreja e o Estado no Brasil não retrocederam.
Na verdade, busca-se entender cada vez mais o papel das religiões no espaço
público, que em nome do pluralismo, tem apresentado um ativismo extraordinário nos
espaços públicos, provocando as cortes, manifestando-se nas ruas e ocupando diversos
espaços nas agendas governamentais e na esfera legislativa.
Referências
BARBOSA, Rui. Obras Completas, Trabalhos Políticos. V. II, 1872-1874, Tomo II. Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1987.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva,
2009
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito
(o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira;
SARMENTO, Daniel. A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e
Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília:
Senado Federal.
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil. Brasília: Senado
Federal
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993.
RESUMO
O presente trabalho tem como objeto de estudo a teoria das emendas
constitucionais inconstitucionais no Brasil, a partir das origens do reco-
nhecimento da competência do Supremo Tribunal Federal para verificar a
compatibilidade da obra do poder constituinte derivado de reforma com a
constituição no julgamento do habeas corpus 18.178, ainda em 1926. Tendo
em vista que o poder de reforma da constituição é produto do constituciona-
lismo moderno e da distinção entre poder constituinte e poder constituído,
sustenta-se que a supremacia e a rigidez constitucional são fundamentos
para o poder de reforma da constituição. Dessa maneira, procura-se recuperar
o primeiro caso em que o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro
reconheceu sua competência para a prática. O tema se mostra relevante
no atual cenário brasileiro marcado por uma pretensão de proeminência
institucional do Judiciário e pela considerável quantidade de emendas nesses
30 anos de vigência da Constituição de 1988. No Direito Constitucional
Comparado, tem-se sustentado que o controle de constitucionalidade de
emendas constitucionais por parte de Cortes Constitucionais e Supremas
1 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrando em Direito pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Linha de Pesquisa: História, Poder e
Liberdade. Bolsista pela CAPES. E-mail: almir_megali@hotmail.com.
NETO, Almir Megali. Emendas constitucionais inconstitucionais a origem do controle jurisdicional de constitucionalidade das emendas
constitucionais no Brasil. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte,
Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 27-56. Disponível em:
https://doi.org/10.32445/97885671340932
Cortes ao redor do mundo se tornou uma prática comum às diversas demo-
cracias constitucionais, principalmente no pós Segunda Guerra Mundial,
constituindo uma agenda de pesquisa em expansão no plano internacional.
INTRODUÇÃO
A doutrina das emendas constitucionais inconstitucionais confere aos tribunais
a tarefa de apreciar a compatibilidade da obra do poder constituinte derivado de
reforma2 com a ordem constitucional estabelecida. Em caso de incompatibilidade de
ordem formal ou material entre uma emenda constitucional e a constituição3 vigente,
advoga-se a possibilidade de declaração da inconstitucionalidade da emenda consti-
tucional. A doutrina das emendas constitucionais inconstitucionais até pouco tempo
atrás era vista como uma curiosidade de alguns sistemas constitucionais isolados.4
Contudo, importantes estudos têm se desenvolvido neste campo, despertando a
atenção de pesquisadores ao redor do globo e construindo uma importante agenda
de pesquisa no âmbito do Direito Constitucional Comparado. Mais recentemente,
chega-se a sustentar que o controle jurisdicional de constitucionalidade das emendas
constitucionais constitui uma tendência constitucional comum entre diversas ordens
constitucionais, constituindo aquilo que Yaniv Roznai denomina de um caso de sucesso
de migração de ideias constitucionais.5 Sendo assim, sustenta-se que, da origem de
seus fundamentos políticos nas experiências constitucionais francesa e norte-ameri-
cana, para sua fundamentação teórica na Alemanha a ideia migrou para democracias
constitucionais ao redor do globo.
2 Considera-se o poder de reforma como gênero que abarca diferentes meios de alteração da constituição, a
saber, os processos de emenda e de revisão constitucional. Referida classificação é, inclusive, a adotada
pela Constituição brasileira de 1988. A doutrina constitucional diferencia as alterações constitucionais
mais amplas das menos amplas, chamando as primeiras de revisão e as últimas de emenda. Referidas
modalidades de alteração da constituição são consideradas mecanismos de mudança formal, pois seus
procedimentos encontram previsão expressa no texto constitucional.
3 Um esclarecimento quanto à utilização do termo constituição se faz necessário. Quando o termo for
empregado de modo genérico, sem particularizar de qual constituição se está a falar, utilizar-se-á o termo
com a letra “c” minúscula. Quando se fizer referência a uma constituição específica de algum país o
termo será escrito com a letra “c” maíuscula.
4 COLÓN-RÍOS, Joel. Introduction: The forms and limits of constitutional amendments. In. International
Journal of Constitutional Law, Vol. 13, nº 03, 1 July 2015, p. 567–574.
Não custa lembrar que a EC n. 95/2016 foi bastante criticada desde o momento
a partir do qual o Congresso Nacional iniciou as deliberações em torno da proposta
que lhe fora encaminhada pelo Executivo. Durante o período de votação da medida,
diversos setores da sociedade civil se posicionaram contrariamente à promulgação
da emenda.7 Nesse período, assistiu-se, inclusive, à ocupação de diversas instituições
de ensino no país como forma de protesto à aprovação da medida.8 A medida também
6 Cf.: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade 939. Relator Ministro
Sydney Sanches. Julgamento em: 15/12/1993. DJ 05/01/1994. Neste caso, o STF declarou, pela primeira
vez em sua história, a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional.
7 Segundo pesquisa realizada pelo Instituto DataFolha, às vésperas do segundo turno de votação
da proposta pelo Senado Federal, apenas 24% da população brasileira era favorável às mudanças
promovidas pela EC n. 95/2016. A pesquisa está inteiramente disponível em: <http://media.folha.uol.
com.br/datafolha/2016/12/12/b4dd8e8b801d33432a731ad9443c69ba6a741a9a.pdf>. Acesso em
20/05/2018>.
8 De acordo com o balanço divulgado pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), 1.197
instituições de ensino foram ocupadas em todo o país como forma de protesto às reformas promovidas
O objetivo deste trabalho, portanto, será o de contribuir para esse debate a partir
do resgate do primeiro caso em que o STF reconheceu sua competência para apreciar
a constitucionalidade de uma emenda constitucional, e que hoje é reconhecida como
a doutrina das emendas constitucionais inconstitucionais. Para tanto, proceder-se-á
ao estudo do caso do habeas corpus n. 18.178, julgado pelo pretório excelso em 1926.
Antes, porém, acredita-se ser preciso apresentar as discussões que têm sido
desenvolvidas no âmbito dos estudos daqueles que se dedicam às emendas consti-
tucionais, naquilo que, aqui se denomina de revisão bibliográfica do estado da arte
dos estudos sobre a doutrina das emendas constitucionais inconstitucionais. A partir
de então, propõe-se a retomada das discussões em torno da imprescindibilidade dos
dispositivos constitucionais que regulamentam o procedimento de alteração da própria
constituição, no seio do constitucionalismo moderno, para demonstrar como o poder de
reforma da constituição pode ser considerado produto do constitucionalismo moderno
e da distinção entre poder constituinte e poder constituído, a partir dos conceitos de
supremacia e rigidez constitucional.
9 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade de. Breves considerações iniciais sobre a PEC n. 241 (“Novo
Regime Fiscal”): o estado de exceção econômico e a subversão da Constituição democrática de 1988.
Empório do Direito, 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/breves-consideracoes-
iniciais-sobre-a-pec-n-241-novo-regime-fiscal-o-estado-de-excecao-economico-e-a-subversao-da-
constituicao-democratica-de-1988-por-marcelo-andrade-cattoni-de-oliveira>. Acesso em 20/05/2018.
10 Para tanto, confiram-se, respectivamente: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de segurança
34.448. Relator Ministro Luís Roberto Barroso; e BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de
inconstitucionalidade 5.643. Relatora Ministra Rosa Weber. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação
direta de inconstitucionalidade 5.658. Relatora Ministra Rosa Weber. BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Ação direta de inconstitucionalidade 5.715. Relatora Ministra Rosa Weber. BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Ação declaratória de inconstitucionalidade 5.734. Relatora Ministra Rosa Weber.
11 HALMAI, op. cit., p. 101. Para tanto, cf. art. 121 da Constituição da Província da Carolina de 01 de março
de 1669. Disponível em: <http://avalon.law.yale.edu/17th_century/nc05.asp>. Acesso em: 30/06/2018.
12 ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom. Does the constitutional amendment rule matter at all? Amendment
cultures and the challenges of measuring amendment difficulty. In. International Journal of Constitutional
Law, Vol. 13, Issue 3, 1 July 2015, p. 689.
Essa fórmula foi apontada como uma das principais contribuições norte-americanas
para a ciência política.16 Não obstante isso, no debate constitucional norte-americano,
há quem sustente a irrelevância dos procedimentos formais de reforma da constituição.
O argumento é no sentido de que, naquele país, a maior parte das alterações à cons-
tituição se dá por vias informais, pois, desde 1787, a Constituição daquele país foi
emendada apenas 27 vezes. David Strauss sustenta que “as emendas constitucionais
não têm sido um meio importante de mudar a ordem constitucional” norte-americana.
Segundo este autor, naquele país, as “emendas constitucionais têm sido questões
periféricas no processo de transformação do regime constitucional”.17 O argumento
é de que grande parte das alterações do sentido da Constituição norte-americana se
dá pela via da interpretação de suas disposições pela Suprema Corte. Não obstante
13 ROZNAI, Yaniv. Unconstitutional constitutional amendments: a study of the nature and limits of
constitutional amendment powers. Tese (Doutorado em Direito) – Department of Law of the London
School of Economics. Londres, 2014, p. 28.
14 HORTA, Raul Machado. Permanência e mudança na constituição. In. Revista de Informação Legislativa,
vol. 29, n. 115, jul./set. 1992, p. 05-06.
15 ROYO, Javier Perez. Curso de derecho constitucional. 7. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000, p. 179.
16 SCHEIPS, Paul J. Significance and adoption of article V of the constitution. In. Notre Dame Law Review,
Vol. 26, p. 48, 1950.
17 STRAUSS, David A. The irrelevance of constitutional amendments. In. Harvard Law Review, Vol. 144,
2001, p. 1457-1505.
19 ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom; MELTON, James. The Endurance of National Constitutions. Cambridge:
University Press, 2009, p. 89.
20 LUTZ, Donald S. Toward a Theory of Constitutional Amendment. In. The American Political Science
Review, Vol. 88, n. 02, 1996, p. 246.
22 COUTO, Claudio Gonçalves; ARANTES, Rogério Bastos. Constituição, governo e democracia no Brasil. In.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 21, n. 61, 2006, p. 41.
23 SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos
de trabalho. 2. ed. Fórum: Belo Horizonte, 2016, p. 283.
Richard Albert, por sua vez, propõe a criação de um novo conceito no âmbito dos
estudos sobre as emendas constitucionais, a saber, a noção de desmembramento cons-
titucional. Albert observa que, cada vez mais, tem se tornado comum a promulgação de
emendas constitucionais que fazem mais do que reparar ou aprimorar alguma dispo-
sição constitucional à luz das novas demandas surgidas no seio da sociedade. Para
ele, haveria casos em que as emendas constitucionais estariam extrapolando os limites
estabelecidos, pelo poder constituinte originário, para alteração da constituição, uma
vez que, por meio do processo formal de reforma da constituição, determinados atores
políticos estariam, na verdade, rompendo com a ordem constitucional estabelecida.25
24 LANDAU, David. Abusive constitutionalism. In. University of California Davis Law Review, 2013, p. 189-
260.
25 ALBERT, Richard. Constitutional Amendment and Dismemberment. In. Yale Law Journal, Vol. 43, n. 01,
2018, p. 01-84.
26 LANDAU, David; DIXON, Rosalind. Constraining Constitutional Change. In. Wake Forest Law Review,
Forthcoming; FSU College of Law, Public Law Research Paper No. 758, p. 08. Para os autores, as
limitações procedimentais ao poder de reforma da consituição se referem aos limites circunstanciais,
temporais e ao quórum exigido para que uma emenda possa ser válida. As limitações substanciais, por
sua vez, são aquelas que excluem determinadas matérias do âmbito do poder de reforma da constituição,
independentemente do procedimento adotado para realizar a alteração.
29 ALBERT, Richard. Constitutional Amendment and Dismemberment. In. Yale Law Journal, Vol. 43, n. 01,
2018, p. 15.
31 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. 2. ed. belo Horizonte: Initia Via, 2014,
p. 90.
Como aponta Roznai, a “distinção entre poder constituinte e poder constituído foi
construída pelo grande teórico da teoria do poder constituinte, Emmanuel Sieyès”.33
De acordo com o referido autor, “esses dois poderes existem em planos diferentes: o
poder constituído existe apenas no Estado, inseparável de uma ordem constitucional
preestabelecida, enquanto o poder constituinte está situado fora do Estado e existe sem
ele”.34 Em outras palavras, o poder constituinte “é o poder extraordinário de estabelecer
a ordem constitucional de uma nação. É a expressão imediata da nação e, portanto,
seu representante. O poder constituído é o poder criado pela constituição, um poder
ordinário que a nação concede através do direito”.35
32 Ibid., p. 90.
34 Ibid., p. 664.
35 Ibid., p. 664.
36 Ibid., p. 665.
37 MCILWAIN, Charles Howard. Constitutionalism: ancient and modern. Ithaca: Cornell University Press,
1947, p. 21.
38 Ibid., p. 21.
39 Cf. BAYLIN, Bernard. As origens ideológicas da revolução americana. Trad. Cleide Rapucci. Bauru:
Edusc, 2003; e PAIXÃO, Cristiano. História constitucional inglesa e norte-americana: do surgimento à
estabilização da forma constitucional. Brasília: Editora Universidade de Brasília: Finatec, 2011.
40 PAINE, Thomas, apud, HOLMES, Stephen. Constitutions and Constitutionalism. In. The Oxford Handbook
of Comparative Constitutional Law. ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András (Orgs.). Oxford University Press,
2012, p. 192.
41 GRIFFIN, Stephen M. Constituent power and constitutional change in american constitutionalism. In.
LOUGHLIN, Martin; WALKER, Neil (Orgs.). The Paradox of Constitutionalism. Oxford University Press
2007, p. 49.
42 Ibid., p. 49.
43 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. 2. ed. belo Horizonte: Initia Via, 2014,
p. 112.
45 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 7. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015, p.
37.
50 A associação feita por Jon Elster entre um povo que restringe suas próprias deliberações futuras por
meio de uma constituição e o mito de Ulisses ilustre bem essa situação. De acordo com a mitologia
grega, Ulisses, ciente das dificuldades que enfrentaria ao passar próximo ao largo da ilha das sereias
teria ordenado aos seus marinheiros a tamparem seus próprios ouvidos com cera e a amarrarem os
braços dele, Ulisses, ao mastro do navio. O herói mitológico temia os encantos dos cantos das sereias
que sempre descontrolavam os navegantes que passavam pela região, levando-os ao naufrágio. Sendo
assim, Ulisses reconheceu a possibilidade de suas paixões colocarem em risco sua tripulação em um
provável momento de fraqueza que eles enfrentariam futuramente, razão pela qual delas se protegeu.
O mesmo se passaria com o povo que, temendo a degradação de seus princípios mais fundamentais,
adotaria mecanismos para dificultar futuras alterações constitucionais. Cf: ELSTER, Jon. Ulisses and the
sirens: studies in rationality and irrationality. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
51 MARBURY, William L. The limitations upon the amending power. In. Harvard Law Review, Vol. 33, n. 02,
1919, p. 225.
52 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. 2. ed. belo Horizonte: Initia Via, 2014,
p. 107.
53 Ibid., p. 107.
54 LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law. Oxford University Press, 2010. p. 280-281.
55 ROZNAI, Yaniv. Unconstitutional constitutional amendments: a study of the nature and limits of
constitutional amendment powers. Tese (Doutorado em Direito) – Department of Law of the London
School of Economics. Londres, 2014, p. 10.
56 Ibid. p. 10-11.
57 Ibid. p. 10-11.
A questão giraria em torno de saber até que ponto uma geração poderia submeter
as outras aos seus desígnios, considerando que “a permanência da Constituição é a
ideia inspiradora do constitucionalismo moderno”.60 Nesse sentido, como as gerações
futuras deveriam se comportar frente à exigência de preservação do texto constitu-
cional requerida pelo constitucionalismo moderno? Thomas Jefferson, por exemplo,
sustentava que “os mortos não deveriam governar os vivos”.61 Paine também sustentava
posicionamento semelhante ao afirmar que “a vaidade e a presunção de governar para
além do túmulo é a mais ridícula e insolente das tiranias”.62 Edmund Burke dizia que
“um Estado sem os meios de mudança é um Estado sem os meios de sua própria
conservação”.63
58 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Belo Horizonte: Líder, 2003, p. 267-
276.
59 HOLMES, Stephen. El precompromiso y la paradoja de la democracia. In. ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune.
Constitucionalismo y democracia. Trad. Monica Utrilla de Neira. México: Fondo de Cultura Económica,
1999, p. 240.
61 JEFFERSON, Thomas, apud, KLEIN, Claude; SAJÓ, András. Constitution-Making: Process and Substance.
In. The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law. ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András (Orgs.).
Oxford University Press, 2012, p. 394.
62 PAINE, Thomas, apud, BARROSO, LUÍS ROBERTO. Curso de direito constitucional contemporâneo. 7. ed.
Saraiva: São Paulo, 2015.
63 BURKE, Edmund, apud, MURPHY, Walter F. Merlin’s Memory: The past and future imperfect of the once
and future polity. In. Responding to Imperfection: The Theory and Practice of Constitutional Amendment.
LEVINSON, Sandford (Org.). Princeton: Princeton University Press, 1995, p. 168.
Roznai apresenta quatro razões pelas quais se deveria optar pela possibilidade
de alteração dos textos constitucionais à luz das novas demandas exigidas pela
sociedade. Em primeiro lugar, constituições imutáveis se tornariam irrelevantes e
incapazes de lidar com a complexidade das relações sociais adquirida com o passar
dos tempos, pois, segundo o autor, os valores intersubjetivamente compartilhados
pela sociedade poderiam se alterar. Em segundo lugar, o procedimento de reforma de
uma constituição seria o melhor meio para alterar eventuais imperfeições contidas no
texto originário, tendo em vista a falibilidade do saber humano. Em terceiro lugar, seria
uma forma de assegurar ao povo a possibilidade de aprimorar ou corrigir os termos
de uma constituição sem precisar recorrer ao poder constituinte originário evitando,
dessa maneira, a instabilidade advinda com uma eventual ruptura jurídico-política.
65 ROZNAI, Yaniv. Unconstitutional constitutional amendments: a study of the nature and limits of
constitutional amendment powers. Tese (Doutorado em Direito) – Department of Law of the London
School of Economics. Londres, 2014, p. 22.
66 VEGA, Pedro de. La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente. Madrid: Tecnos,
1988, p. 83-87.
67 ROZNAI, Yaniv. Unconstitutional constitutional amendments: a study of the nature and limits of
constitutional amendment powers. Tese (Doutorado em Direito) – Department of Law of the London
School of Economics. Londres, 2014, p. 11-12.
68 Trata-se do art. 178 da Constituição de 1824 que dispunha sobre a possibilidade de alteração, por um
procedimento mais gravoso, apenas para aquelas normas tidas como materialmente constitucionais,
nomeadamente, os dispositivos sobre os limites e atribuições dos poderes públicos e os direitos políticos
e individuais do cidadão.
69 BRANDÃO, Rodrigo; SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao artigo 60. In. CANOTILHO, José Joaquim
Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. (Orgs.). Comentários à
Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2.375.
70 RIBEIRO, Marly Martinez. Revisão constitucional de 1926. In. Revista de Ciência Política, Vol. 1, nº 4, Dez.
1967, p. 67.
72 Ibid., p. 72.
[...] não é necessário entrar nesse terreno considerado, até hoje, sagrado
por este Egrégio Tribunal, não obstante opiniões valiosas, notadamente
de Ruy Barbosa–nem tampouco precisamos repetir as arguições
irrespondíveis feitas por membros dos mais competentes do Parlamento
Nacional, e que demonstraram à saciedade a inconstitucionalidade
da reforma, já pela sua decretação durante o estado de Sítio, já pela
intervenção acintosa, manifesta do Presidente da República, quer na sua
elaboração, quer mesmo na sua iniciativa. Temos em mãos argumentos
de ordem puramente legal, que dizem com a interpretação lógica, e
gramatical do texto da nossa Constituição e que só por si dispensam o
auxílio da interpretação histórica, ou mesmo o recurso ao espírito e a
intenção dos legisladores.73
73 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 18.178. Relator Ministro Hermenegildo de Barros.
Julgamento em: 01/10/1926, p. 05.
74 Ibid., p. 06.
Egrégio Tribunal. Ou tal dispositivo não tem a amplitude que parecer ter,
pela significação literal do texto, e neste caso, permanecemos na mesma
situação, continuando-se a compreender o recurso judicial somente
quando o Governo se excede nas medidas expressamente autorizadas
pelo art. 80 nº 2 da Constituição–ou então–fica abolido inteiramente o
recurso judicial e o Governo pode usar e abusar da violência e arbítrio
sob pretexto do estado de sítio e neste caso, o Supremo Tribunal
Federal sofre uma diminuição na sua competência que equivale à sua
própria supressão. [...] o art. 80 nº 2 da Constituição Federal, limita as
medidas que podem ser tomadas pelo Governo durante o estado de sítio
à detenção e ao desterro–e não é lícito negar ao Poder Judiciário sua
intervenção quando o Governo se excede nessas medidas – sob pena
de tornar letra morta e inexistente a limitação constitucional. O princípio
geral não pode ser revogado porque importa em alteração fundamental
do próprio regime da Constituição. Demais, seria transformar em ditadura
75 Ibid., p. 09.
Ora, o que se vem alegar neste momento é que a lei que acaba de ser
sancionada pelo Congresso, modificando, alterando a Constituição
Federal, vem ferir de frente, a letra e o espírito da Constituição de 24
de Fevereiro.77
76 Ibid., p. 09.
77 Ibid., p. 03.
78 No mérito, o habeas corpus 18.178 levanta questões relevantes, tais como, (i) a possibilidade do controle
de constitucionalidade da decretação do estado de sítio; (ii) a fixação de limites à discricionariedade do
Chefe do Poder Executivo na decretação do estado de sítio; e (iii) o princípio da humanidade da pena.
Contudo, por extrapolarem o recorte feito por este trabalho, tais questões não serão apreciadas aqui.
[...]
Fora de sua função constitucional, das lindes que lhe delimitam o uso,
essa arma, idônea para auxiliar o restabelecimento da normalidade da
vida interna do país, que é o primeiro dever do Estado, transforma-se
em providência criminosa, converte-se em instrumento de opressão
selvagem, numa manifestação franca da tirania, que o regime republicano
repele em absoluto.
Pois bem, dessa maneira, o STF entendeu que seria competente para apreciar se
a medida imposta aos pacientes estaria abrangida pelos limites estabelecidos pelo
art. 80, § 2º, da Constituição de 1891. Ao assim proceder, destacou o Tribunal que o
ato coator questionado pela impetração estaria de acordo com os limites do referido
dispositivo constitucional, razão pela qual sua intervenção no caso violaria a separação
dos poderes.
Nesse sentido, pelo menos em tese, seriam admitidas pelo texto constitucional
então vigente, as propostas de reforma da Constituição em situações atípicas ou de
crise, tais como durante o estado de sítio. Além disso, como não havia disposição
constitucional no sentido de impedir a aprovação de reformas que visassem subtrair
competências dos poderes constituídos e direitos e garantias fundamentais dos indi-
víduos, poder-se-ia cogitar de emendas constitucionais com esse teor. Talvez, por tais
razões, o impetrante se absteve de questionar a constitucionalidade da reforma cons-
titucional com base em referidas questões, limitando-se a arguir a incompatibilidade
do procedimento adotado pelo Congresso Nacional com o previsto pela Constituição.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo de caso da primeira oportunidade na qual o STF reconheceu sua compe-
tência para apreciar a constitucionalidade de propostas de emendas à constituição é
uma parte importante da história constitucional brasileira, pois revela a inauguração de
uma tradição daquilo que hoje se denomina de doutrina das emendas constitucionais
inconstitucionais. Desde a Primeira República, o órgão de cúpula do Poder Judiciário
brasileiro vem se reconhecendo competente para tal mister, antecipando uma prática
que, como visto, se tornou comum apenas a partir da segunda metade do século no
âmbito do Direito Constitucional Comparado. O caso do habeas corpus 18.178, permite
analisar criticamente as relações existentes entre Direito e Política, a partir deste tipo
de controle de constitucionalidade que tem por objeto a obra do poder constituinte
derivado reformador.
Foi possível constatar, ainda, por meio da impetração realizada pelo então advo-
gado Themistocles Cavalcanti, os indícios dos fundamentos que embasam a doutrina
das emendas constitucionais inconstitucionais em solo pátrio. A base desse controle
reside na compreensão de que a supremacia da constituição exige a observância
de seus preceitos por todos os poderes constituídos, inclusive, nos processos de
alteração do próprio texto constitucional, como se passa com as emendas constitu-
cionais, por força da rigidez constitucional. A questão, portanto, diz respeito ao papel
político-institucional que deve ser realizado pelo STF enquanto guardião precípuo do
texto constitucional. Nesse sentido, a verificação da constitucionalidade da reforma
constitucional no caso do habeas corpus 18.178, revela, em última instância, o dever do
STF de atuar como guardião da soberania constituinte em face de possíveis abusos que
possam ser cometidos pelo Executivo e pelo Legislativo no exercício de suas funções.
80 Ibid. p. 91.
81 Ibid. p. 91
Resumo
No presente trabalho os Direitos Humanos serão observados sob uma
perspectiva ampla que vai desde o seu histórico a partir de uma perspectiva
clássica, passando pela sua etapa de conversão em direito positivo, pela
sua generalização e internacionalização. A partir daí o ensaio também nos
remonta à construção do sistema de proteção internacional dos direitos
humanos, bem como ao atual debate sobre o universalismo, relativismo
cultural e multiculturalismo. Por último, é abordada a questão da integridade
transnacional dos direitos humanos.
3 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013.
4 BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004,
p. 9.
5 Cf. MARTÍNEZ, Gregorio Peces-Barba (ed.). Derecho Positivo de los Derechos Humanos. Madrid: Editora
Debate, 1987.
6 COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3ª ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2003, p. 58.
7 COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3ª ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2003.
3. Etapa de Generalização
O processo de reconhecimento dos direitos de liberdade foi especialmente
intensificado com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela
Assembleia Nacional em agosto de 1789 como decorrência da Revolução Francesa. A
mencionada Declaração firmava “o direito de um povo decidir seu próprio destino”9, nos
sentidos de autodeterminação, autonomia e capacidade de se auto legislar.10 Dessa
maneira, iniciava-se o processo de mudança da titularidade do poder político para o
indivíduo, enquanto parte do povo. Fundamental salientar que a ideia de soberania
popular mencionada se deu nas bases da igualdade, haja vista que o artigo 1º da
Declaração diz respeito à condição natural dos indivíduos, a saber, “os homens nascem
livres e iguais em direitos”, frisando, adicionalmente, que “as distinções sociais só
podem fundamentar-se na utilidade comum.”.
8 BOUVIER, Antoine A. O Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional Humanitário.
In: BOUVIER, Antoine A. O Direito Internacional Humanitário e Direito dos Conflitos Armados.
Williamsburg: Instituto para Treinamento em Operações de Paz, 2011.
9 KANT apud BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004, p. 40.
10 KANT apud BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004, p. 40
4. Etapa de Internacionalização
Interessante notar que as mencionadas etapas de conversão em direito positivo e
de generalização ocorreram sob a égide do Estado, sendo que cabia exclusivamente à
legislação doméstica estabelecer um sistema protetivo para os direitos então concla-
mados.11 Assim, conforme salienta Flávia Piovesan12, o “Direito Humanitário, a Liga
das Nações e a Organização Internacional do Trabalho situam-se como os primeiros
marcos de internacionalização dos direitos humanos.”.
11 Certo é que breve análise política-jurídica do período pode explicar o porquê de tal exclusividade
doméstica: com o Direito Internacional ainda incipiente, não havia espaço político para que o
enaltecimento da noção de interesses coletivos – a própria noção de sociedade internacional, portanto
– fosse suficiente à relativização da até então mais absoluta norma internacional; o princípio da não
intervenção, consubstanciado pela noção de soberania.
12 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 188.
13 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 189.
15 Conforme menciona Thomas Burgenthaul, embora o Pacto da Liga das Nações não contivesse provisões
gerais regulamentando a questão dos direitos humanos, ele continha duas provisões, estabelecidas em
seus artigos 22 e 23, que conclamavam ao desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Cf. BUERGENTHAL, Thomas; SHELTON, Dinah L.; STEWART, David P. International Human Rights in a
Nutshell. 4ª ed. St. Paul: West Publishing Co., 1988,1995.
É nessa lógica que se afirma, a teor do que leciona Piovesan19, que “se a Segunda
Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar
sua reconstrução”. Salienta-se que essa reconstrução dos direitos humanos se deu
nos termos da percepção da necessidade de fortalecimento das regras internacionais
e da criação de uma Organização Internacional mais participativa – na visão de alguns,
mesmo de cunho intervencionista – haja vista os “horrores gerados pela omissão
injustificada da comunidade internacional em não intervir nos assuntos domésticos de
um Estado.”.20Ademais, percebia-se também a insuficiência dos sistemas de proteção
16 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 189.
17 GODINHO, Fabiana de Oliveira. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos. Belo Horizonte: Del Rey,
2006.
18 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 191.
19 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 192.
20 SUDRE, Fréderic. Droit International et européen des droits de l’homme. 2a ed. Paris: Presses Universitaires
de France, 1995, p. 13 apud RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem
Internacional. 2a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 44.
No iter desse projeto normativo embasado por uma nova concepção do Direito
Internacional, a Carta da Organização das Nações Unidas relativizou a soberania dos
Estados ao estabelecer exceções ao princípio da não intervenção, ficando enfim supe-
rada, portanto, a noção de que o tratamento concebido a indivíduos é uma questão
restrita à jurisdição doméstica. As possibilidades de intervenção internacional em prol
dos direitos humanos outorgadas às Nações Unidas por seu instrumento originário são
21 HAAS, Michael. International Human Rights: a Comprehensive Introduction. Nova York: Routledge, 2008.
22 Inclusive, a importância dada à proteção dos Direitos Humanos pela Carta das Nações Unidas pode
ser observada ainda em seu preâmbulo: “Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as
gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos
indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor
do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes
e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes
de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso
social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla [...]”. Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS. Carta da Organização das Nações Unidas. São Francisco:1945.
Ainda que a Carta das Nações Unidas tenha representado um fundamental passo
em direção à proteção internacional dos direitos das gentes, principalmente no que
tange ao reconhecimento da necessidade de proteção normativa fundamentada sobre
os pilares da universalidade, este dispositivo apresenta disposições sobre o assunto de
forma um tanto quanto genérica26. Ora, parece certo que esse era o próprio propósito
da Carta, na medida em que representava o início do desenvolvimento do sistema
internacional de proteção aos direitos humanos, dispondo-se, portanto, tão somente
à proposição normativa da questão para que fosse trabalhada ao longo do tempo no
próprio seio das Nações Unidas.
23 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013.
24 O direito internacional dos direitos humanos pode ser definido como o conjunto de normas que
estabelece os direitos que os seres humanos possuem para o desenvolvimento de sua personalidade e
estabelecem mecanismos para a proteção de tais direitos. Cf. MELLO, Celso D. Albuquerque. Curso de
Direito Internacional Público. 14a ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.
25 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 200.
26 “Embora a Carta das Nações Unidas seja enfática em determinar a importância de defender, promover
e respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais [...], ela não define o conteúdo dessas
expressões, deixando-as em aberto. Daí o desafio de desvendar o alcance e significado da expressão
“direitos humanos e liberdades fundamentais”, não definida pela Carta.”. Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos
Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 201.
27 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 201.
28 ALVES, José A.L. A arquitetura Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: FTD, 1997.
29 Essa seria uma “interpretação autorizada da expressão ‘direitos humanos’ constante da Carta das
Nações Unidas”. Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a
ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 208.
• O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos foi adotado pela XXI Sessão
da Assembleia-Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, sendo
que se apresentava como um instrumento para aplicação imediata. Esse tratado
apresentava, originalmente, um mecanismo de denúncia facultativo estatal30,
o qual foi ampliado por seu Protocolo Adicional, ficando o Comitê de Diretores
Humanos autorizado a também receber denúncias ou petições de indivíduos,
desde que esgotadas as instâncias domésticas31.
31 Nos termos do art. 1o do Protocolo Adicional de 1976: “Os Estados Partes no Pacto que se tornem
partes no presente Protocolo reconhecem que o Comité tem competência para receber e examinar
comunicações provenientes de particulares sujeitos à sua jurisdição que aleguem ser vítimas de uma
violação, por esses Estados Partes, de qualquer dos direitos enunciados no Pacto. O Comité não
recebe nenhuma comunicação respeitante a um Estado Parte no Pacto que não seja parte no presente
Protocolo.”.
32 Vide o art. 2o(1) do Pacto: “Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas,
tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos
planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar,
progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no
presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.”.
33 A Alemanha apresentou petição junto à Corte Internacional de Justiça alegando que a Itália – e a Grécia,
que fora admitida como parte interveniente – teria descumprido obrigações internacionais por intermédio
da atuação de suas cortes domésticas, as quais teriam falhado em respeitar a imunidade jurisdicional que
a Alemanha goza perante o Direito Internacional. Incidentalmente, a questão era se Estados poderiam ser
julgados em Cortes domésticas de outros Estados em casos de graves violações de direitos humanos. A
Corte Internacional de Justiça entendeu que a imunidade jurisdicional dos Estados não era passível de
relativização no caso em questão, sendo que o Juiz brasileiro Cançado Trindade proferiu voto dissidente.
35 FREITAS, Jeane Silva de; MACEDO, Sibelle Silva. Sistemas Regionais de Proteção aos Direitos Humanos:
Relevância da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos. Conjuntura Austral, Porto Alegre, vol. 4,
no. 18, jun/jul 2013. Disponível em: < https://seer.ufrgs.br/ConjunturaAustral/article/view/34685/25973>.
Acesso em 23.10.2018.
36 CARMO NETO, Manoel. O Papel dos Sistemas Regionais na Proteção dos Direitos Fundamentais. Revista
Mestrado em Direito, Osasco, ano 8, no. 01, 2008, pp. 309-326. Disponível em: < http://132.248.9.34/
hevila/Revistamestradoemdireito/2008/vol8/no1/16.pdf>. Acesso em 23.10.2018.
37 Ao apontar as vantagens dos sistemas regionais, Rhona K. M. Smith destaca que, “na medida em que
um número menor de Estados está envolvido, o consenso político se torna mais facilitado, com relação
aos textos convencionais e quanto aos mecanismos de monitoramento. Muitas regiões são ainda
relativamente homogêneas, relativamente à cultura, à língua e às tradições, o que oferece vantagens”. Cf.
SMITH, Rhona K. M. Textbook on International Human Rights. Oxford: Oxford University Press, 2007, p.
84, tradução livre.
6.1. Introdução
O sistema internacional de proteção aos direitos humanos antes mencionado tem
como pressuposto que certos direitos são tão caros e tão fundamentais à sociedade
internacional que devem ser por ela protegidos e garantidos em todo o globo. Conforme
visto anteriormente, essa noção coaduna com um processo histórico, fomentado
pela internacionalização dos direitos humanos e ainda constantemente aprofundado,
sobretudo via Tratados e ações afirmativas de diversas Organizações Internacionais,
notadamente a Organização das Nações Unidas.
Nesse sentido, o universalismo entende que para que possa ser assegurada a
existência digna, os direitos humanos constituem um conjunto mínimo de direitos que
deve ser garantido a todos os indivíduos, sem quaisquer distinções de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião, nacionalidade, cultura ou sociedade. Defesa essa corrente que
“os direitos humanos são, portanto, direitos ‘universais’ no sentido de que eles são
universalmente assegurados a todos os seres humanos.”.38
Essa concepção parece ser a mais aplicada pela sociedade internacional, o que
é evidenciado em diversos dispositivos normativos, como a Declaração de Direitos
Humanos de 1948 e pela atuação de diversas Organizações Internacionais. Inclusive,
nesse sentido, vale mencionar que mais recentemente, já na década de 1990 e nos
anos 2000, fortaleceu-se a noção de que a sociedade internacional é responsável pela
proteção desses direitos, em razão de diversos importantes acontecimentos, como
a realização de intervenções humanitárias39, o início do funcionamento do Tribunal
38 DONNELLY, Jack. The Relative Universality of Human Rights. Human Rights Quarterly, v. 29, n. 2, mai.
2007, pp. 281-306, p. 283, tradução livre do original: “Human rights are thus “universal” rights in the sense
that they are held “universally” by all human beings.”.
39 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Saraiva,
2013.
Dessa maneira, para o relativismo cultural, “cada cultura possui seu próprio discurso
acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias
culturais e históricas de cada sociedade.”.42 Ora, o fato da história da humanidade ser
formada por uma pluralidade de culturas implicaria na necessidade de reconhecimento
de cada uma delas como competentes para produção e implementação de seus próprios
valores e impediria, por conseguinte, a formação de um sistema moral universal.
Para o universalismo, essa concepção falha para com a proteção dos direitos
humanos, uma vez que ofereceria legitimação argumentativa para graves e generali-
zadas violações de direitos humanos. Isto é, o relativismo justificaria “graves casos de
violações dos direitos humanos que, com base no sofisticado argumento do relativismo
40 Notadamente: crimes de Guerra, crimes contra a humanidade, crime de genocídio e crime de agressão.
41 RENTEL, Alison Dundes. International Human Rights: Universalism versus Relativism. Nova Orleans: Quid
Pro Books, 2013.
42 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 211.
43 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 213.
44 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Desafios e Conquistas do Direito Internacional dos Direitos
Humanos no início do século XXI. Curso de Direito Internacional, OEA, Rio de Janeiro, ago. 2006, p. 418.
Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/407-490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.
def.pdf. Acesso em 13.01.2017.
Na realidade, pode-se afirmar que existem, por um lado, “diversos graus de univer-
salismos, a depender do alcance do ‘mínimo ético irredutível’.”46, assim como existem
diversas correntes do relativismo47. Dessa maneira, o universalismo e o relativismo
cultural anteriormente apresentados seriam tipos ideais, representando os extremos de
um continuum, no qual haveria, ainda, outros dois principais graus: os universalismos
e relativismos fortes e fracos.48
45 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 45.
46 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 45
47 DONNELLY, Jack. Universal Human Rights in Theory and Practice. 2a ed. Ithaca: Cornell University Press,
2003.
48 DONNELLY, Jack. Cultural Relativism and Universal Human Rights. Human Rights Quarterly, 1984, 6(4),
pp. 400-419. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/762182?seq=1#page_scan_tab_contents>.
Acesso em 13.01.2017.
49 DONNELLY, Jack. Cultural Relativism and Universal Human Rights. Human Rights Quarterly, 1984, 6(4),
pp. 400-419. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/762182?seq=1#page_scan_tab_contents>.
Acesso em 13.01.2017
Cultura como
potencial
importante Cultura como
Irrelevância da
fonte de principal fonte
cultura para a Defende a
Universalidade validação de validação,
validação de possibilidade
moral e de regras e servindo a
direitos e de de existência
fundamental direitos. Há universalidade
regras morais, de um “mínimo
clara, com uma fraca dos direitos Cultura como
que são presu- ético
limitado grau presunção de humanos única fonte de
midos como irredutível”,
de variações universalidade, como validade de
universal- valorizando a
culturais no mas a elemento de regras ou de
mente válidos, heterogenei-
modo e na relatividade verificação direitos.
por dizerem dade cultural
interpretação das culturas dos potenciais
respeito à que marca a
dos direitos serve como excessos do
existência história da
humanos. elemento de relativismo
digna dos humanidade.
verificação cultural
indivíduos.
dos potenciais radical.
excessos do
universalismo.
À luz dessa concepção, o autor defende que “enquanto forem concebidos como
direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo
globalizado”, o que torna opostas a proteção aos direitos humanos e a legitimidade
local. Para que isso não aconteça, o autor propõe que os direitos humanos sejam conce-
bidos como multiculturais, uma vez que o multiculturalismo seria elemento necessário
ao estabelecimento de uma relação equilibrada e harmônica entre a competência global
e a legitimidade local.
Para que se possa conceber os direitos humanos como multiculturais e para que
se possa estabelecer um diálogo intercultural sobre a dignidade da pessoa humana,
Boaventura de Souza Santos estabelece algumas premissas. A primeira premissa é a
superação do debate entre universalismo e relativismo cultural. Para o autor, todas as
culturas são relativas e todas aspiram a valores universais, mas tanto o universalismo
como o relativismo seriam incorretos enquanto atitudes filosóficas. Assim, o embate
acima mencionado seria intrinsecamente falso. A dois, seria necessário se ter em
mente que não obstante todas as culturas tenham concepções acerca da dignidade
da pessoa humana, nem todas a concebem em termos de direitos humanos. A terceira
premissa diz respeito à percepção de que as concepções de dignidade humana de
todas as culturas são incompletas e problemáticas. De fato, “a incompletude provém
50 Segundo o autor, “o pluralismo etnocultural é uma premissa ancestral da história da humanidade. Por
mais que recuemos no tempo, encontraremos sempre populações que se deslocam, grupos que se
misturam, territórios que foram anexos, conquistados ou cedidos, trocas comerciais que se mantiveram e
se intensificaram, processos de integração política que foram levados a cabo, fronteiras alteradas. Todos
esses fenômenos contribuem para o aumento da diversidade etnocultural e tendem a atenuar o princípio
da nacionalidade (…).” Cf. SAVIDAN, Patrick. O Multiculturalismo. Parede (Portugal): Publicações Europa-
América, 2010, p. 13.
51 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 14.
52 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 22.
53 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 22.
54 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 23.
55 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 23.
56 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 23.
57 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 30,
58 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 30,
59 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 30.
60 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 22.
61 Cf. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
Para o autor, essa integridade não pode ser apenas nacional, devendo assumir,
em complementaridade, um caráter transnacional, uma vez que, em muitos casos, a
“resposta certa” poderia ser extraída da experiência de outrem.
62 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 265.
63 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 265-266.
64 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 266.
65 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 269.
66 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 269-270.
67 Cf. WALDRON, Jeremy. Partly laws common to all mankind: foreign law in American courts. New Haven
(EUA): Yale University Press, 2012.
68 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 271.
De forma menos exigente, Freire opta por não defender uma harmonização global
e regional entre direitos humanos constitucionais. Na realidade, embora adote a noção
de “coerência mundial” de Waldron, admite o que chama de “margem de apreciação
comparativa”, pela qual os tribunais, ao apreciarem casos de direitos humanos, “devem
levar a sério, entre outras questões, as características das sociedades e os aspectos
situacionais dos casos concretos”.72
69 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 271.
70 WALDRON, Jeremy. Partly laws common to all mankind: foreign law in American courts. New Haven
(EUA): Yale University Press, 2012, p. 102.
71 WALDRON, Jeremy. Partly laws common to all mankind: foreign law in American courts. New Haven
(EUA): Yale University Press, 2012
72 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 273.
Referências
ALVES, José A.L. A arquitetura Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: FTD,
1997.
BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004.
Resumo
O presente trabalho desenvolve a tese da existência de um projeto
constituinte de abertura e pluralização do debate republicano sobre direito
tributário e direito financeiro. Todavia, as instituições têm caminhado na
contramão de tal perspectiva, e não é difícil perceber que, nos trinta anos da
Constituição, a tributação é mais do que nunca objeto de decisões tomadas
no epicentro de um governo disfarçado de técnico. São elementos desse
quadro: os reflexos na iniciativa legislativa em matéria tributária, a profusão
de leis autorizativas e delegantes, a concessão de benefícios fiscais e
regimes especiais de tributação via meros regulamentos, entre outros.
Feito o diagnóstico, quer-se defender, à luz da lição do professor alemão
Paul Kirchhof, que a desparlamentarização da democracia tributária implica
transgressão à lógica fundacional do sistema tributário, em violação ao
princípio constitucional da publicidade material.
1 Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Consultor em Direito
Tributário na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Professor Universitário e da Pós-graduação em
Direito Tributário das Faculdades Milton Campos. Advogado. E-mail: bermmoreira@gmail.com.
2 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Consultor Legislativo na Assembleia
Legislativa de Minas Gerais. Professor voluntário do Departamento de Direito Público da Universidade
Federal de Minas Gerais. Advogado. E-mail: rafael@dillypatrus.com.br.
MOREIRA, Bernardo Motta; PATRUS, Rafael Dilly. A Constituição de 1988 e a desparlamentarização da democracia tributária.
In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.). 30
anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 85-118. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340934
Introdução
A Constituição de 1988 lança luz especial sobre a edificação do sistema tributário.
Passadas três décadas de sua promulgação, o projeto constituinte de democratização
do processo decisório ainda convive com entraves estruturais de proporções gigan-
tescas. A existência de um plano de abertura e pluralização do debate republicano sobre
direito tributário e direito financeiro decorre não apenas da máxima geral plasmada
no caput e no parágrafo único do art. 1º da Constituição, mas também – e principal-
mente – do rol atribuições atribuídas ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo, dos
princípios que orientam o Sistema Tributário Nacional e as finanças públicas e da
lógica fundacional que embasa as limitações constitucionais ao poder de tributar.
Todavia, as instituições têm caminhado na contramão de tal perspectiva, e não é difícil
perceber que, nos trinta anos da Constituição, a tributação é mais do que nunca objeto
de decisões tomadas no epicentro de um governo disfarçado de técnico.
Diante de tal realidade, é possível pensar o direito tributário à luz das exigências
de legitimidade democrática instituídas pela Constituição de 1988? O que significa a
redução do papel desempenhado pelo Parlamento no processo de formação da decisão
tributária? Qual é o verdadeiro impacto da governamentalização do poder decisório
em matéria tributária para a higidez e a sustentabilidade do projeto constituinte de
democracia no Brasil?
3 Nesse sentido: BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. A “governamentalização” do poder de decisão tributário.
In: SCHOUERI, Luís Eduardo (coord.). Direito tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. V. 1. São
Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 419.
4 “A participação do Executivo no processo legislativo ocorre de dois modos: (i) ou o Executivo intervém
em uma das fases do procedimento de elaboração da lei, ou (ii) exerce, ele mesmo, a função de elaborar
a lei (no sentido formal e material da expressão).” (CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do
Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1993, p. 93).
5 Vicente Ráo tece diversas críticas à atuação do Poder Executivo “excedendo os limites naturais e
institucionais de suas atribuições” e à legislação governamental, que se traduziria em leis de plenos
poderes, leis delegadas, leis-quadros ou de princípios, decisões normativas de órgãos jurisdicionais,
decretos e regulamentos usurpadores de poderes legislativos”. (RÁO, Vicente. As delegações legislativas
no parlamentarismo e no presidencialismo. São Paulo: Max Limonad, 1966, p. 13).
6 Ferreira Filho considera que a inadequação do processo legislativo clássico resulta do irrealismo da
representação e da incapacidade de um órgão coletivo, de caráter não-técnico, para o desempenho de
uma atividade já per se técnica – como o é o estabelecimento da lei –, ainda mais em matéria ou campos
de caráter também técnico (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 4ª ed. São
Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 269).
7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Legislação governamental. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva.
(coord.). As vertentes do direito constitucional contemporâneo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002,
p. 64.
8 O próprio conceito de lei foi alterado na sociedade complexa atual, conforme assinala Clève: “O conceito
de lei, como aquele comando normativo estatal proveniente do Legislativo e dotado das características
de generalidade (abstração e impessoalidade) e permanência não se adapta mais aos tempos do Estado
Providência e da sociedade técnica. O Estado hoje, não apenas arbitra os conflitos de interesse que
porventura se manifestam no seio da sociedade. Comanda a direção da economia e impõe políticas
sociais que acabam por conformar a vida de relação. Nesse passo, as leis nem sempre podem ser
permanentes. Devem atender às características conjunturais, sempre mutáveis, da sociedade técnica.”
(CLÈVE, Clèmerson Merlin. op. cit., 1993, p. 53).
A dominação exercida pela referida classe técnica, que passa a impor sua vontade
no campo político, vai de encontro ao projeto básico de democracia constitucional,
obstando a efetiva participação dos detentores do poder. A desparlamentarização do
poder de decisão em matéria tributária implica não só a despolitização da relação
contribuinte-fisco, mas também a neutralização da possibilidade de interferência social,
já que os cidadãos se tornam reféns do caráter técnico das proposições.10
O direito tributário é ramo que lida com o valor liberdade, eis que conforma os
limites de atuação do Estado, visando impedir ou minimizar abusos perpetrados
contra a esfera jurídica do particular. Nessa conjuntura, a seara tributária é regida
por um profundo conflito de interesses privados, que muitas vezes se chocam com as
motivações públicas sobre o direito de propriedade.11 A preponderância do Executivo
na produção das leis e na decisão dos rumos da tributação se torna uma questão de
altíssima relevância, na medida em que o próprio governo é o posterior sujeito ativo
da obrigação tributária por ele criada, meramente homologada no interior das casas
legislativas.
11 É sempre bom recordar a assertiva de Murphy e Nagel: “Qual é o fundamento moral do direito do cidadão
de reter aquilo que ganhou? Num país onde a maior parte da economia está nas mãos da iniciativa
privada e o governo é democrático, será no domínio da política tributária que se travará o embate entre
essas diversas concepções. Como cada um de nós é, por um lado, um indivíduo particular que participa
da economia de mercado, e, por outro, um cidadão que participa – ou pelo menos pode participar – do
processo das decisões governamentais através da política, temos que estabelecer um meio-termo entre
nossas convicções de justiça social e legitimidade política e nossas motivações mais pessoais para
formar uma concepção estável de o que queremos que o governo faça. Quando nos posicionamos contra
ou a favor de uma redução nos impostos, não pensamos somente nos efeitos dessa redução sobre
a renda que teremos à disposição, mas também em suas consequências sociais e econômicas mais
amplas. O tema se complica ainda mais pelo fato de que o sistema tributário não deve ser decidido por
forças que se encontram fora da sociedade, mas, de algum modo, pelas forças que a compõem, sendo,
portanto, resultante política de discordâncias inevitavelmente profundas.” (MURPHY, Liam; NAGEL,
Thomas. O mito da propriedade: os impostos e a justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 129).
Não obstante isso, o predomínio do Poder Executivo na elaboração das leis tribu-
tárias é uma realidade incontestável. Isso impõe uma enorme distorção no desenho
constitucional. A norma que, para preservar a segurança jurídica e a metodologia da
especificação conceitual, não poderia comportar margem discricionária em favor da
Administração Fiscal, operando tendencialmente17 com o fechamento por conceitos,18
acaba sofrendo alterações substanciais: leis delegantes e/ou autorizativas tornam-se
comuns; surgem figuras legais “convalidando” atos administrativos retroativamente;
proliferam tipos no seio das normas de tributação; em não raras ocasiões, dispositivos
da lei fiquem sujeitos a vigorar “nos termos do regulamento”. Em resumo, o regra-
mento tributário que, por sua natureza, deveria ser incompleto e incompletável19 acaba
16 COHEN, Sarah Amarante de Mendonça. O Princípio da legalidade no direito tributário: uma releitura
interpretativa. In: BREYNER, Frederico Menezes (org.). Segurança jurídica e proteção da confiança no
direito tributário: homenagem à Professora Misabel Derzi. Belo Horizonte: Initia Via, 2014, pp. 207-208.
17 Mesmo que no direito tributário haja uma tendência pelo modo de pensar por conceitos, prevalecendo o
uso de estruturas rígidas e conformações fechadas (o impropriamente chamado “tipo fechado”), o ramo
não está imune à interferência dos tipos, com propriedades graduáveis e contornos fluidos. Na esteira
dos ensinamentos de Misabel Derzi, ainda que tendencialmente conceitual, o direito tributário convive
com resíduos tipológicos. É dizer, a utilização de tipos nas normas tributárias serve, por exemplo, para
estabelecer presunções que visam a obter praticidade, entendida como economicidade e simplificação
na aplicação da lei em massa (DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007).
18 “O procedimento interpretativo que melhor realiza os objetivos sistêmicos que os atores foram
incumbidos de promover e realizar no Direito Tributário brasileiro é o método da interpretação estrita, da
reserva absoluta de lei e da adoção do tipo em sentido impróprio, ou seja, dos conceitos classificatórios
fechados, na medida em que atende ao objetivo traçado pelo planejador do sistema, quando concebeu
o Direito Tributário como um direito cuja matéria de fundo é de um alto grau de contenciosidade. O
planejador, por consequência, não atribuiu ao intérprete do Direito Tributário um alto grau de confiança e,
por lógica, não lhe outorgou a tarefa de interpretar o Direito Tributário criativamente, sob pena de ofensa
à moldura geral do sistema.” (COHEN, Sarah Amarante de Mendonça. op. cit., 2014, p. 208).
19 Misabel Derzi leciona o seguinte: “(...) não temos dúvida em afirmar que o sistema jurídico é incompleto
no seu conjunto (não importa que estejamos nos referindo ao Direito Civil, Comercial ou Tributário). O
real e o contingente impulsionam as operações internas do sistema, suas irritações e perturbações. Tal
fenômeno explica as mutações sistêmicas e a relevância das técnicas de estabilização das expectativas.
(...) Embora todo o sistema jurídico seja incompleto e aberto à cognição, o Direito Privado tende à
completude em sua aplicação concreta, exceção feita àquelas áreas em que a segurança dita restrições
à mobilidade da expansão analógica, como nos direitos reais, nos direitos creditórios, sucessórios,
etc. (...) [O] Direito Tributário está iluminado por valores e princípios como segurança jurídica (e seus
desdobramentos no Estado de Direito), que impedem a completabilidade de suas normas, como se dá
no Direito dos contratos. Ao contrário, as normas tributárias são incompletas (em relação à realidade) e
incompletáveis por meio do uso da analogia ou da extensão criativa” (DERZI, Misabel Abreu Machado.
O planejamento tributário e o buraco do real: contraste entre a complementabilidade do direito civil e a
vedação da completude no direito tributário. In: FERREIRA, Eduardo Paz; TORRES, Heleno Taveira; PALMA,
Clotilde Celorico (org.) Estudos em homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier. Coimbra: Almedina,
2013, pp. 403-409).
20 Nessa direção: BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Princípio constitucional da eficiência administrativa.
Belo Horizonte: Fórum, 2012, pp. 260-261.
21 Nas palavras de Batista Júnior, “a rigidez do modelo burocrático conduziu a AP, em especial em países
mais pobres, a um emaranhado infindável de normas, e desenvolveu uma cultura administrativa de
rigoroso e cego apego às regras formais. Este apego formal acabou por fazer dominar a cultura do
“não”, do receio pela quebra de qualquer regra regulamentar, ou mesmo dos procedimentos cravados
em portarias, circulares e resoluções, que nessa profusão de normas, na verdade, poucos conhecem.”
(BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. op. cit., 2012, p. 281). Ainda com base nas lições do professor, “a lei
não deve necessariamente dar todos os contornos da solução para o caso concreto; não deve tentar
determinar, genericamente, o interesse social concreto a prevalecer em cada situação singular” (BATISTA
JÚNIOR, Onofre Alves. op. cit., 2012, p. 280).
22 ROCHA, Sergio André. A tributação na sociedade de risco. Revista Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 12,
n. 1, 2006, p. 219.
23 Em janeiro de 2008, para ajustar o orçamento com a perda de aproximadamente R$ 40 bilhões que
eram arrecadados com a cobrança da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, entre
outras medidas, o governo federal aumentou a alíquota do IOF em 0,38% (a mesma alíquota da extinta
contribuição) incidente sobre as operações de crédito, câmbio para a exportação e operações de seguro
(Decreto nº 6.339, de 3 de janeiro de 2008). O então ministro da Fazenda, Guido Mantega, afirmou que
tais medida serviam para compensar a perda da CPMF, que parou de ser cobrada no primeiro dia do ano
de 2008.
24 Não são raros os projetos de lei de iniciativa parlamentar que visam a conceder meras autorizações para
a atuação do Poder Executivo, como forma de burlar as regras constitucionais de iniciativa privativa
do chefe do Poder Executivo no processo legislativo. Um parlamentar não pode, por exemplo, propor
a criação de algum órgão no Poder Executivo; em assim sendo, ele instaura o processo legislativo
“autorizando” que o Poder Executivo o faça. A medida claramente viola a regra de iniciativa privativa e
o princípio corolário, a separação dos poderes. Estranho é que por vezes o próprio Executivo apresenta
projetos de lei para que o Legislativo o autorize a disciplinar algo. Alguns casos são meros equívocos
de técnica legislativa; em outros, a outorga de poder ao Executivo não se compatibiliza com o princípio
da legalidade.
25 Tratando sobre os projetos de lei autorizativos de iniciativa parlamentar, Márcio Silva Fernandes,
consultor legislativo da Câmara dos Deputados, considera-os injurídicos, na medida em que não veiculam
norma a ser cumprida por outrem, mas mera faculdade (para cujo exercício é dada autorização não
solicitada por quem de direito), que pode ou não ser exercida por quem a recebe (FERNANDES, Márcio
Silva. Inconstitucionalidade de projetos de lei autorizativos. Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados.
Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. Nov/2007. Disponível em: <http://bd.camara.gov.
br/bd/bitstream/handle/bdcamara/1375/incons-titucionalidade_projetos_fernandes.pdf?sequence=4>.
Acesso em: 24/07/2018).
26 Vejamos os exemplos a seguir. Âmbito municipal: a Lei do Município de São Miguel do Oeste, do Estado
de Santa Catarina, nº 7.228, de 14 de dezembro de 2015, que decorreu de projeto de lei de iniciativa
do Poder Executivo, estabelece, em seu art. 1º, que “fica o Chefe do Poder Executivo Municipal (...)
autorizado a conceder à empresa A R PNEUS LTDA EPP (...) o seguinte incentivo fiscal: I – isenção da
Taxa de Licença para Execução de Obras e Loteamentos – TLEOL, que tenha como fato gerador o projeto
de engenharia para edificação da ampliação da planta industrial; II – isenção do ISS, que tenha como
fato gerador a edificação da ampliação da planta industrial a ser edificada, até 0 limite de R$ 20.000,00
(vinte mil reais). Âmbito estadual: a Lei do Estado de Minas Gerais nº 15.956, de 2005, que decorreu
do Projeto de Lei nº 1.991/2004, de autoria do governador do Estado, autorizou, por exemplo, que o
Poder Executivo reduza “para até 12% (doze por cento) a carga tributária nas operações promovidas por
estabelecimento signatário de protocolo firmado com o Estado que promova exclusivamente operação de
saída contratada no âmbito do comércio eletrônico ou do telemarketing” (§ 32 do art. 12 da Lei nº 6.763,
de 1975). Vale notar que, na própria Mensagem nº 313, de 2004, que encaminhou o projeto para a ALMG,
já constava a exposição de motivos do Secretário de Fazenda encaminhando “minuta de anteprojeto
de lei contendo proposta de alteração de dispositivo da Lei nº 6.763, de 26 de dezembro de 1975, que
consolida a legislação tributária do Estado de Minas Gerais, com o objetivo de autorizar o Poder Executivo
a reduzir a carga tributária incidente nas operações internas com os produtos classificados nas posições
7113 (artefatos de joalheria e suas partes, de metais preciosos ou de metais folheados ou chapeados
de metais preciosos), 7114 (artefatos de ourivesaria e suas partes, de metais preciosos ou de metais
folheados ou chapeados de metais preciosos) e 7116 (obras de pérolas naturais ou cultivadas, de pedras
preciosas ou semipreciosas, de pedras sintéticas ou reconstituídas) da Nomenclatura Brasileira de
Mercadorias/Sistema Harmonizado – NBM/SH, nos termos, condições e limites a serem estabelecidos
em regulamento”.
(iv) O próprio Código Tributário Nacional admite, por exemplo, que ato do Poder
Executivo atualize o valor de tributo, não considerando majoração a mera atualização do
valor monetário da respectiva base de cálculo (art. 97, § 2º). Se a norma faz sentido para
a correção da base de cálculo de impostos que incidem sobre o patrimônio, é fortemente
questionável a possibilidade de alterações dos valores das taxas pelo Poder Executivo,
à justificativa de que o custo da respectiva atividade estatal teria aumentado. É certo
que, a partir do julgamento do Recurso Extraordinário nº 343.446, o STF passou a admitir
delegações legislativas.29 Todavia, ficou definido que não cabem delegações puras para
27 A exigência constitucional de lei específica é garantia do contribuinte que objetiva “coibir o uso desses
institutos de desoneração tributária como moeda de barganha para obtenção de vantagem pessoal pela
autoridade pública, pois a fixação pelo mesmo Poder instituidor do tributo, de requisitos objetivos para
a concessão do benefício tende a mitigar arbítrio do Chefe do Poder Executivo, garantindo que qualquer
pessoa física ou jurídica enquadrada nas hipóteses legalmente previstas usufrua da benesse tributária”
(GRECO, Marco Aurélio. Comentário ao art. 150, § 6º. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.;
SARLET, Ingo W.; STRECK, Lênio L (coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/
Almedina, 2013, pp. 1.666-1.667).
28 O entendimento pela impossibilidade de se lançar mão de outra fonte de direito que não a lei em tema
de exonerações fiscais é o adotado pelo STF (cf., por exemplo, a decisão na ADI 1.296, de relatoria do
Ministro Celso de Mello).
29 Marciano Seabra de Godoi também identifica o caráter inovador do julgado do STF e vislumbra o
impacto da flexibilização da legalidade em outras matérias, como a delegação para o decreto municipal
estabelecer a planta genérica de valores para fins de lançamento do IPTU, tradicionalmente inadmitida
pelo STF. Confiram-se as conclusões de Godoi: “A comparação que o Ministro Velloso faz em seu voto
(RE 343.446) entre a delegação legislativa da contribuição do salário-educação (art. 1º do Decreto-lei
14.522/75) e a delegação legislativa da contribuição do SAT (art. 22, § 3º da Lei 8.212/91) deve ser
vista com ressalva. A primeira norma está no bojo da legislação de uma figura não tributária que se
submetia à lógica da Constituição de 1967/69, ao passo que a segunda está no bojo da legislação de
uma figura tributária (contribuição de seguridade social) que se submete por inteiro à legalidade tributária
estrita contida no art. 150, I, da Constituição de 1988. Parece-nos assim que o Plenário do STF inovou
no julgamento do RE 343.446, pois decidiu ser válida, mesmo perante a legalidade tributária estrita do
art. 150, I da Constituição de 1988, uma norma que delega a decretos do Executivo a aferição de dados
e parâmetros necessários para possibilitar a aplicação in concreto da norma de incidência tributária. A
linha jurisprudencial que o STF parece ter inaugurado no julgamento do RE 343.446 pode inclusive levar
a Corte a rever seu posicionamento sobre a impossibilidade de aprovação, por decreto do Executivo, da
Planta Genérica de Valores para fins de lançamento do IPTU (vide RE 87.763, Pleno, e 96.825, 2ª Turma).”
(GODOI, Marciano Seabra de. Questões atuais do direito tributário na jurisprudência do STF. São Paulo:
Dialética, 2006, p. 22).
30 Mais uma vez, é de se notar a iniciativa do Poder Executivo, pois a mencionada lei decorre de conversão da
Medida Provisória nº 1.725, de 29 de outubro de 1998, que já previa a delegação legislativa originalmente.
31 Carlos Maximiliano explica o problema: “O ideal do direito, como de toda ciência, é a certeza, embora relativa;
pois bem, a forma autêntica de exegese oferece um grave inconveniente – a sua constitucionalidade posta
em dúvida por escritores de grande prestígio. Ela positivamente arranha o princípio de Montesquieu; ao
Congresso incumbe fazer leis; ao aplicador (Executivo e Judiciário), interpretá-las. A exegese autêntica
transforma o legislador em juiz; aquele toma conhecimento de casos concretos e procura resolvê-los
por meio de uma disposição geral. Amplifica-se, deste modo, a autoridade da legislatura, num regime
de freios e contrapesos; releva-se desamor pelo dogma da divisão dos poderes, pedra angular das
instituições vigentes.” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro:
Forense, 1999, pp. 93-94).
(vii) A norma do art. 116, parágrafo único, do CTN é duramente criticada pela
doutrina, tendo em vista o entendimento de ser inconstitucional a adoção de cláusula
geral antielisiva – aquela que, embora sem prática de ato ilícito pelo contribuinte,
autoriza a Administração Tributária a estender a incidência da norma legal a fato/ato
estranho ao gerador e praticado com vistas à economia de imposto. Essa cláusula
geral acarreta necessariamente a complementação do direito por meio de aplicação
analógica, deslocando a competência legislativa para o Poder Executivo.
32 Carrazza entende que a lei interpretativa exercida pelo Poder Legislativo é inconstitucional e se trata
de “‘desvio de poder’ no exercício da função legislativa” (CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito
constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 339).
33 A Lei Complementar nº 118, de 2005, demonstra esse intento. Por meio da Mensagem nº 152, de 29
de julho de 2003, o então Ministro da Fazenda submeteu ao Presidente da República projeto de lei
complementar com o objetivo de modificar “o Código Tributário Nacional, tornando-o permeável às
inovações que possivelmente constarão da nova legislação falimentar”. Registrou o Ministro que “o que
consta do projeto de lei complementar ora apresentado já foi objeto de discussões preliminares com
algumas das forças políticas presentes no Congresso Nacional. Há mais: incorpora proposições que
já estão em discussão no seio do Congresso Nacional”. Finalmente, informa que a proposição “veicula
normas interpretativas que eliminam dúvidas acerca do alcance de dispositivos do Código Tributário
Nacional, com evidentes benefícios para o contribuinte e para a Fazenda Pública federal, estadual e
municipal, mormente no que toca à segurança jurídica”. O projeto, protocolado sob o nº 73/2003,
contemplou então proposta de “interpretação” de três dispositivos do CTN que versam sobre temas
polêmicos, sendo que alguns deles eram aplicados pelos tribunais de forma amplamente favorável
ao contribuinte. Como se sabe, acabou vingando a alínea “b” no texto final da LC nº 118/2005, o que
recebeu inúmeras críticas doutrinárias e foi rechaçado pelo Poder Judiciário. Como o projeto de autoria
do Executivo foi apresentado em 30 de julho de 2003, após o Projeto de Lei nº 72/2002, de autoria
do deputado Antônio Carlos Magalhães Neto, ele acabou sendo anexado à proposição de autoria
parlamentar – que, de fato, tinha dispositivos legais análogos. Por isso, à primeira vista foi um projeto
de iniciativa parlamentar que deu origem à LC nº 118/2003. Todavia, ficou muito evidente que o governo
federal atuou no sentido de aprovar uma regra supostamente interpretativa do CTN em seu favor, isto é,
nos interesses da Fazenda Pública e em detrimento da interpretação que prevalecia no âmbito do Poder
Judiciário.
34 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p.
476.
Com relação ao último tópico, é importante trazer à tona o tema da recepção dos
convênios do Conselho Nacional de Política Fazendária, que autorizam a concessão de
benefícios fiscais do imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços,
pelos Poderes Executivos estaduais, sem a participação dos Legislativos. A situação
demonstra de forma cabal como se tornou absurdamente complexo o relativo ao prin-
cipal imposto do país. A concessão dos benefícios de ICMS foi devidamente planejada
pelo constituinte de 1988 de forma a evitar a disputa entre os Estados-membros. Na
contramão desse plano, o que se tem verificado é uma famigerada “guerra fiscal” – um
dos principais fatores responsáveis pela destruição da federação.36
No que tange à ratificação dos convênios do Confaz por cada Estado, a Lei
Complementar nº 24, de 1975, dispõe em seu art. 4º que “(...) o Poder Executivo de cada
Unidade da Federação publicará decreto ratificando ou não os convênios celebrados,
considerando-se ratificação tácita dos convênios a falta de manifestação no prazo
assinalado”. Ricardo Lobo Torres pontua que a Lei Complementar nº 87, de 1996,
atual norma geral do ICMS, deveria ter compatibilizado o regime dos convênios com
35 Na visão de Misabel Derzi, a complexidade do sistema tributário tem fontes múltiplas. Entre elas: o abuso
desencadeado por pressões corporativas, que criam miríades de regimes especiais e excepcionais de
tributação, escondidos sob o manto da justiça e da inclusão social; a democracia participativa e plural
facilita a intervenção legítima ou ilegítima de sindicatos, organismos profissionais, econômicos, internos
e internacionais no processo legislativo; nesse cenário assim projetado, a descrença e o ceticismo
em relação a valores e princípios até então inquestionáveis levam muitos países a experimentar
simplificações e tentativas de aumento de base dos impostos, que arranham aqueles mesmos valores
e princípios (DERZI, Misabel Abreu Machado. Pós-modernismo e tributos: complexidade, descrença e
corporativismo. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo: nº 100, jan. 2004, p. 72).
36 O art. 155, § 2º, XII, “g” da Constituição dispõe que cabe à lei complementar regular a forma como,
mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais relativos
ao ICMS serão concedidos e revogados. A lei complementar relativa à disciplina da matéria é a Lei
Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975. Nela está disposto que benefícios fiscais relativos ao
ICMS devem estar previstos em instrumento formalizado por todas as unidades da Federação. Trata-se
dos convênios celebrados no âmbito do Confaz, órgão colegiado que congrega os Estados e o Distrito
Federal. Essa lei foi recepcionada pelo art. 34, § 8º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
motivo pelo qual, atualmente, quaisquer isenções, incentivos e benefícios fiscais relativos ao ICMS
dependem da celebração de convênios pelos Estados no âmbito do Confaz.
37 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 342.
Por isso mesmo, a ideia de uma democracia tributária precisa estar intimamente
ligada à noção de legalidade. A descrição empreendida no tópico antecedente é eluci-
dativa da distorção conceitual que hoje permeia o sistema tributário brasileiro. Se o
poder decisório em matéria tributária está encerrado nos castelos do governo, sem
abertura ao debate que emerge da sociedade, a exação tributária nasce carecedora de
38 KIRCHHOF, Paul. Deutschland im Schuldensog: der Weg vom Bürgen zurück zum Bürgen. München: C. H.
Beck, 2012.
40 “Não se aceita a noção de que o tributo é ato de soberania do Estado. Antes, como advertiu Pontes de
Miranda, o princípio a priori é de que o povo se tributa a si mesmo, juiz supremo, através da representação
das suas vantagens e conveniências em pagar as despesas propostas pelo Executivo.” (BALEEIRO,
Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 8. ed. atualizada por Misabel de Abreu
Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010, pp. 85-86). Na mesma linha, Sacha Calmon Navarro Coêlho
pontua o seguinte: “A legalidade da tributação, dizia Pontes de Miranda, significa o povo se tributando
a si próprio. Traduz-se como o povo autorizando a tributação através dos seus representantes eleitos
para fazer leis, ficando o príncipe, o chefe do Poder Executivo – que cobra os tributos –, a depender
do Parlamento.” (COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O princípio da legalidade: o objeto da tutela. In:
PIRES, Adilson R.; TÔRRES, Heleno T. (org.). Princípios de direito financeiro e tributário: estudos em
homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 630). Cf. também:
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Malheiros, 2001; MACHADO, Hugo de Brito.
Princípio da legalidade tributária na Constituição de 1988. Revista de Direito Tributário. São Paulo, n. 45,
1988, pp. 175-187.
41 KIRCHHOF, Paul. Entparlamentarisierung der Demokratie? In: KAISER, André; ZITTEL, Thomas.
Demokratietheorie und Demokratieentwicklung: Festschrift für Peter Graf Kielmansegg. Wiesbaden: VS
Verlag für Sozialwissenschaften, 1997, pp. 359-376. No mesmo sentido: KIRCHHOF, Paul. Das Gesetz
der Hydra: gebt den Bürgern ihren Staat zurück! München: Knaur TB, 2008; KIRCHHOF, Paul. Recht lässt
hoffen. München: C. H. Beck, 2013.
42 “Desde o seu início, a democracia representativa acreditou que conseguiria garantir uma tributação
criteriosa e igualitária somente por meio de procedimentos legislativos. Pressupunha-se que, quando
No entanto, só seria dado ao povo escolher se, por outro lado, o universo tributário
fosse claro o suficiente para se fazer minimamente cognoscível por todos. É sabido
que o direito tributário, em especial o brasileiro, é um conjunto confuso e desordenado
de normas, descolado da vivência da sociedade e impassível de compreensão pelos
contribuintes. Os exemplos explorados no tópico anterior denotam não só o caráter
centralizado e fechado do processo de tomada de decisão no campo tributário, mas
também a roupagem excessivamente técnica de que se reveste a burocracia governa-
mental. Nas práticas institucionais, é precisamente o fundamento da técnica – dominada
por poucos, muito distante do “chão de fábrica” que caracteriza o Parlamento43 – que
alimenta o enclausuramento do processo decisório tributário.
os próprios contribuintes decidem sobre a carga tributária, por meio de seus representantes, estaria
suficientemente garantido que as pessoas não seriam tributadas de forma desmedida, e eventuais
privilégios fiscais seriam imediatamente abandonados. Esse ideal democrático ressoa ocasionalmente
também no Estado fiscal constitucionalizado, com a tese de que as liberdades fundamentais não
possuem eficácia de proteção em face do legislador tributário. Ou, ainda, que elas garantem uma
margem de conformação que coloca os direitos dos contribuintes nas mãos do legislador, onde serão
respeitados. Com o passar do tempo, despedimo-nos deste otimismo democrático. Ainda vivenciamos
a realidade de que os eleitores não encaram os representantes eleitos como garantidores de uma carga
tributária reduzida, mas sim como mentores de prestações estatais adicionais e, por conseguinte,
aumento dos tributos. Até mesmo uma demanda tão geral e elementar quanto a garantia do mínimo
existencial por meio do imposto de renda, que permite a todos aqueles que obtêm renda a manutenção
e o financiamento de suas necessidades pessoais, e que torna desnecessária a ajuda social estatal, não
foi assegurada pelo Parlamento, tendo que ser garantida por meio de decisão do Tribunal Constitucional”.
(KIRCHHOF, Paul. Tributação no Estado Constitucional. Trad. Pedro Adamy. São Paulo: Quartier Latin,
2016, p. 17).
43 KIRCHHOF, Paul. op. cit., 1997, p. 368. Ver também: PÜNDER, Herman. More government with the people:
the crisis of representative democracy and options for reform in Germany. German Law Journal, 16, n.
713, 2015, pp. 91-92.
44 KIRCHHOF, Paul. Der sanfte Verlust der Freiheit: für ein neues Steuerrecht – klar, verständlich, gerecht.
München: Carl Hanser Verlag, 2004, pp. 76-98.
45 HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtsstaates. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1992, p. 168, tradução nossa.
46 HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1992, pp. 166-237; Die Einbeziehung des Anderen: Studien zur politischen
Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1996, pp. 293-308.
48 A crise do Estado Social traduz um tema central para a teoria política contemporânea. Isso porque,
a despeito da aparência inicial, o colapso do paradigma não pode ser adequadamente reduzido à
percepção, na década de 1970, do crescimento desenfreado do endividamento dos setores públicos
em diversas economias ocidentais. Não se pode resumir a falência do modelo à tomada pública de
consciência a respeito do déficit fiscal gerado pela hipertrofia da estrutura administrativa e a sobrecarga
das frentes de atuação estatal, sobretudo em seguida às crises do petróleo. O problema fundamental do
paradigma social é o da incapacidade de assimilar as diferenças e gerar inclusão. Pode-se afirmar, por
conseguinte, que tanto no paradigma do Estado Liberal quando no do Estado Social, “perdeu-se de vista a
coesão interna entre autonomia privada e autonomia pública” (HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1996, p. 302,
tradução nossa).
49 Segundo Habermas, “no círculo que envolvia o poder entendido instrumentalmente e o direito
instrumentalizado, abriu-se uma brecha carente de legitimação (...). Pois as condições de constituição
desse complexo evolucionário envolvendo o direito e a política, que tornara possível a passagem para
sociedades organizadas em forma de Estado, foram feridas na medida em que o poder político não
podia mais legitimar-se por intermédio de uma tradição sagrada ou um direito legítimo intrinsicamente.
A razão deveria substituir a fonte sagrada do direito, (...). O conceito de autonomia política adotado pela
Teoria do Discurso abre uma perspectiva diferente. Esse conceito explica o motivo de a produção de um
direito legítimo exigir a mobilização das liberdades comunicativas dos cidadãos.” (op. cit., 1992, p. 182,
tradução nossa)
Eis o ponto crucial: a deliberação que toma corpo nos fóruns políticos formais,
ordenada e procedimentalizada, só tem verdadeiramente lugar na democracia se
partir, no seu nascedouro, de um processo antecedente, informal e desordenado de
identificação e elaboração de problemas politicamente relevantes. A dimensão formal
da política deliberativa é, sem sombra de dúvida, essencial para o embasamento das
escolhas que se fazem com relação à questão selecionada e à solução concebida;
todavia, o espaço político oficial não é capaz de formular por si próprio uma leitura
suficientemente democrática das realidades que pretende enfrentar. A espontaneidade
da esfera pública é o atributo que alimenta e garante a discursividade da decisão
política. Em outros termos, o caráter espontâneo e, de certa forma, anárquico do
processo comunicativo que se forma nos espaços discursivos periféricos constitui
condição de possibilidade da vontade coletiva.51
51 HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1992, pp. 415-434. Habermas dá à esfera pública informal, periférica e
desordenada o nome de “público fraco”, em razão de se tratar de espaço comunicativo sem poder de
decisão. Entretanto, a referida denominação não pode ser encarada como sinal de que o autor qualifica
tais instâncias como efetivamente dotadas de fraqueza, no sentido mediano da palavra. Sobre essas
expressões, ver também: FRASER, Nancy. Rethinking the public sphere: a contribution to the critique of
actually existing democracy. In: CALHOUN, Craig (org.). Habermas and the public sphere. Cambridge/
MA: MIT Press, 1993.
55 “Por isso, na abrangência de questões de relevância política, deixa-se ao cargo do sistema político a
elaboração especializada. A esfera pública consiste sobretudo em uma estrutura comunicacional do
agir orientado pelo entendimento, que tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, e não
exatamente com as funções ou conteúdos da comunicação rotineira.” (HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1992,
p. 437, tradução nossa).
56 HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1996, pp. 237-276. Habermas explica, em acréscimo, que “a sociedade
civil compõe-se de movimentos, organizações e associações, os quais captam os ecos dos problemas
sociais que ressoam nas esferas privadas, condensando-os e inserindo-os, em seguida, na esfera pública
política. O núcleo da sociedade civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os discursos
Naquilo que toca à tributação, é vital que o sistema garanta as condições básicas
para a inserção do contribuinte em um ambiente de compreensão mínima das normas
e de participação, mesmo indireta,57 na seleção das necessidades sociais, políticas e
econômicas prioritárias.
A lei tributária deve ser simples, clara e objetiva, expressando com transparência
e de forma direta os elementos da obrigação tributária. O texto legal deve propiciar aos
contribuintes que cumpram o dever de pagar o débito tributário com responsabilidade
e consciência.58 Isso depende, evidentemente, do estabelecimento de um referencial
macro que sirva de suporte para o regramento da tributação; é de enorme relevância,
nesse contexto, que o ordenamento tributário esteja basilarmente ancorado no princípio
da igualdade, de modo a garantir um substrato positivo de confiança no sistema. A
instituição recorrente de exceções e privilégios fiscais, sobretudo com base em razões
que não sejam intuitiva e claramente reconhecidas como republicanas, transmite ao
57 Um problema largamente tratado pela literatura em ciências sociais, em especial no campo da ciência
política, é o do desinteresse dos cidadãos com relação à vida política. O presente trabalho não aborda
nem enfrenta tal questão, mas parte do pressuposto de que a realização das condições básicas de vida
digna (a efetivação de alguma autonomia privada) implica o fortalecimento da capacidade de influência
dos espaços comunicativos periféricos no processo de tomada das decisões políticas. Isso significa
que, mesmo em um contexto no qual os cidadãos optem por não participar ativamente da vida pública,
seu potencial participativo, isto é, sua condição, garantida pelo sistema, de atuar politicamente, caso
desejem fazê-lo, resulta por si só em elemento decisivo na seleção dos problemas, na priorização das
abordagens e na formulação das soluções. Cuida-se do que se convencionou chamar de “participação
indireta”.
58 “(...) o direito tributário precisa ser simplificado para que o cidadão possa compreender a imposição e
tê-la como justa, para que possa planejar a longo prazo, para que, enfim, possa entregar a sua declaração
e pagar seus débitos tributários de forma responsável, informada e consciente.” (KIRCHHOF, Paul. op. cit.,
2016, p. 121).
59 “O contribuinte precisa ter a certeza de que paga seus tributos por ter sido bem-sucedido no mercado
econômico, já que sua capacidade contributiva foi incrementada pelas condições socioeconômicas
colocadas à disposição pelo Estado. Em um sistema tributário com muitas exceções, privilégios e
finalidades extrafiscais, o contribuinte tem a péssima sensação de que precisa pagar seus tributos
apenas porque ele e seu grupo não foram agraciados com isenções ou benefícios fiscais suficientes.
Assim, o contribuinte exige igualdade na isenção, não igualdade na imposição. O combate a essa
falha no desenvolvimento da imposição tributária é a atual tarefa do direito constitucional, qual seja,
instituir e garantir a tributação igualitária e moderada para todos os cidadãos, devendo ser definida
exclusivamente pela capacidade contributiva individual. O texto legal deve determinar o fundamento da
imposição de forma clara e compreensível, possibilitando ao contribuinte deduzir diretamente do texto
suas obrigações e seus débitos fiscais. Naqueles tributos que exigem uma declaração do contribuinte,
a lei deve garantir que se possa reconhecer as obrigações pela simples leitura dos dispositivos legais.
Assim, na sua declaração de rendimentos para o imposto de renda, o contribuinte pode afirmar a exatidão
e correção das informações, somente sendo por elas responsável – inclusive na esfera penal – se a lei
do imposto de renda definir as obrigações de forma clara, de modo que o obrigado – mesmo leigo e sem
conhecimentos prévios – as entenda e as possa cumprir.” (KIRCHHOF, Paul. op. cit., 2016, pp. 121-122).
62 KIRCHHOF, Paul. op. cit., 1997, p. 368; op. cit., 2004, pp. 110-118.
Considerações finais
Só a estrita obediência aos postulados que fundam a comunidade política de
cidadãos livres e iguais pode legitimar o exercício do poder em nome do povo. O
engrandecimento do Poder Executivo e o papel relevante que ele tem desempenhado
– uma exigência do próprio Estado de desiderato social – não podem significar uma
transferência integral ao governo da prerrogativa de decidir sobre os rumos da socie-
dade sem a correspondente discussão pública. Em especial no que diz respeito à
matéria tributária, que trata da regulação de aspectos fundantes do Estado, o Executivo
deve observar limites e respeitar o sistema de freios e contrapesos, sob pena de colocar
em risco a própria democracia. Toda governabilidade só é democraticamente possível
conforme os ditames da Constituição.
63 “Não há dúvida de que o Congresso pode tentar preparar-se melhor para tornar-se capaz de negociar
com o Executivo as questões sofisticadas de suas demandas e políticas. Uma das possibilidades de
alcançar este objetivo seria a elevação do nível técnico de seus membros. Mas isto (...) não seria
uma solução, pois, ao agir desta forma, o Congresso estaria abdicando de uma parte considerável de
sua representatividade. (...) outra alternativa seria a manutenção de sua representatividade, não com
a imposição de restrições de competência técnica para os seus membros, mas através da criação de
órgão de consultoria parlamentar recrutados abertamente da sociedade, que lhe permitiriam elevar o
nível das negociações com o Executivo. Teoricamente, isto faria com o que o Congresso, ao mesmo
tempo, se tornasse mais ‘racional’ e pudesse considerar as demandas da sociedade. Esta combinação
entre a representatividade e um alto nível de competência técnica na avaliação dos projetos fortaleceria
o Congresso. Em última análise, isto significaria a criação da chama ‘contratecnocracia’, capaz de
alimentar o Congresso com argumentos de barganha com o Executivo” (MONTORO, André Franco. Os
Partidos Políticos. O Cerceamento do Congresso. Parlamento e Desenvolvimento. In: MENDES, Cândido
(org.). O Legislativo e a tecnocracia. Rio de Janeiro: Imago, 1974, pp. 214-215).
64 A reação deve necessariamente partir do espaço legislativo, na medida em que, como acertadamente
aponta Aulis Aarnio, diante do quadro atual, em que, ao mesmo tempo, até os corpos políticos, como o
governo e o Parlamento, têm cedido parcela de seu poder em favor da administração tecnoburocrática,
cabendo aos agentes politicamente responsáveis atuar dentro dos limites impostos pelos experts, as
decisões desenhadas pelos especialistas só podem ser controladas pelos especialistas (cf. AARNIO,
Aulis. Lo racional como razonable: un tratado sobre la justificación jurídica. Trad. Ernesto Garzón Valdés.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 38).
66 SOARES, Fabiana de Menezes; GELAPE, Lucas de Oliveira. Consultoria legislativa da ALMG: o amicus curiae
do processo legislativo? In: SANTOS, Manoel Leonardo; ANASTASIA, Fátima. Política e desenvolvimento
institucional no Legislativo de Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2016, pp. 381-413.
67 “Vários países criaram regras, que visam à melhoria da redação e da técnica legislativa do Direito
Tributário, entre eles a Itália, a Holanda e a Inglaterra, o último tendente a reescrever suas leis. Não
obstante, o aperfeiçoamento da norma tributária não se restringe à clareza e simplificação. Constantes
avaliações são necessárias, para introduzir mais adequação à realidade e à carga tributária, mais justiça
e mais modernização. Em busca desse aperfeiçoamento, dentro de um ambiente econômico e político em
mutação contínua, cada vez mais célere, as reformas tributárias têm sido frequentes em todos os países.
Em regra não se fazem mais grandes e definitivas reformas do sistema tributário, porém contínuas e
pequenas mudanças.” (DERZI, Misabel de Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da
confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar.
São Paulo: Noeses, 2009, p. 465).
69 REINHOLD, Zippelius. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 501.
70 Luigi Zingales, professor da Escola de Negócios da Universidade de Chicado Booth, observa que, se
a regulação “for complexa demais, as pessoas não podem compreendê-la e, dessa forma, não podem
participar devidamente na democracia”. Dessa forma, “simplificar as leis é essencial para a construção
de um capitalismo para o povo”. Segundo o autor, “regras simples permitem uma melhor comparação
entre mercados realistas e regulação realista”. Por isso, sustenta que “a simplicidade traz ainda um
benefício adicional. Além de reduzir as distorções e os custos do lobby, simplificar a legislação também
facilita que o público se envolva no monitoramento, reduzindo a captura”. Assim, “um dos muitos
benefícios das regras simples é o fato de elas facilitarem a accountability. É difícil policiar o cumprimento
de normas complicadas mesmo na melhor das circunstâncias, algo que se torna impossível quando esse
enforcement fica sob a responsabilidade de agências capturadas.” (ZINGALES, Luigi. Um capitalismo
para o povo: reencontrando a chave da prosperidade americana. SP: BeT Comunicação, 2015, pp. 181-
183).
Referências
AARNIO, Aulis. Lo racional como razonable: un tratado sobre la justificación jurídica.
Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Malheiros, 2001.
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 8. ed. atualizada
por Misabel de Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. A “governamentalização” do poder de decisão
tributário. In: SCHOUERI, Luís Eduardo (coord.). Direito tributário: homenagem a
Alcides Jorge Costa. V. 1. São Paulo: Quartier Latin, 2003.
BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Princípio constitucional da eficiência administrativa.
Belo Horizonte: Fórum, 2012.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad.
Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Legislação governamental. In: MARTINS, Ives
Gandra da Silva. (coord.). As vertentes do direito constitucional contemporâneo. Rio
de Janeiro: América Jurídica, 2002.
RESUMO
O presente capítulo tem como objetivo analisar os limites jurispruden-
ciais impostos para a aplicação da Técnica de Interpretação Conforme a
Constituição, no controle de Constitucionalidade das leis, ao longo destes
30 anos desde a promulgação. Esses critérios são: não contrariar o sentido
inequívoco da lei, bem como não contrariar o sentido pretendido pelo legis-
lador. Para isso, toma como recorte empírico duas ações de mesma natureza
(ADPF) do controle de constitucionalidade concentrado, as quais foram
aplicadas a mencionada técnica, onde o Supremo Tribunal Federal chegou
em resultados distintos, mesmo se valendo dos mesmos critérios. Para
testar a coerência argumentativa dos dois julgados toma-se como referen-
ciais teóricos o giro-linguístico e a teoria da integridade de Ronald Dworkin,
para só assim chegar a uma conclusão se estes limites jurisprudências,
estabelecidos anteriormente à Constituição de 1988, aplicados à Técnica de
Interpretação Conforme, permitem uma leitura democraticamente adequada
da Constituição.
Por derradeiro, na quarta etapa, após toda essa análise, apresenta-se as consi-
derações finais desta reflexão a respeito se a Técnica de Interpretação Conforme a
Constituição, presa ao sentido literal do texto normativo e à vontade do legislador,
é capaz oferecer respostas jurídicas democraticamente adequadas à Constituição.
2 NETTO, Menelick de Carvalho. A constituição da Europa. In. Crises e desafios da constituição, Org.: José
Adércio Leite Sampaio. Belo Horizonte: Del Rey. 2004.
3 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris. 1998.
4 Alguns juristas entendem que a Técnica de Interpretação conforme a Constituição não pode contrariar
a vontade pretendida pelo legislador na elaboração normativa. Nessa linha encontra-se o Ministro do
Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que aduz que a vontade do legislador não pode ser substituída
pela vontade do Juiz. MENDES. Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva. 2008.
Ocorre que, atribuir o sentido de uma norma aos pensamentos e intenções de seu
possível criador, assim como buscar a vontade da lei sem considerar o contexto no
qual ela está inserida, incorre-se no provável erro de desconsiderar as especificidades
e pluralidade do tempo do intérprete. Em outras palavras aplicar esses critérios de
forma isolada é neutralizar o horizonte hermenêutico daquele que realiza e aplica a
interpretação.
2 OS CASOS
aplicação desse princípio sofre, porém, restrições, uma vez que, ao declarar a inconstitucionalidade de
uma lei em tese, o STF — em suas funções de Corte Constitucional — atua como legislador negativo,
mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída
pelo Poder Legislativo. Por isso, se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a
Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode
aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, em criação de
norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo. [...] No caso, não se pode aplicar a interpretação
conforme a Constituição por não se coadunar essa com a finalidade inequivocamente colimada
pelo legislador, expressa literalmente no dispositivo em causa. BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Representação nº 1417/DF. Representante: Procurador Geral da República. Representado: Presidente
da República. Relator Ministro Moreira Alves. Brasília/DF: Disponível em:.http://www.stf.jus.br/portal/.
Acesso em: 20 jun. 2018.
Importante frisar que não é objetivo deste capítulo esmiuçar análise o mérito das
decisões analisadas6. Primeiro, porque existem excelentes trabalhos que o fazem;
segundo, porque o recorte metodológico exigido por esta obra não permite tecer
tamanho esforço. Sendo assim, a análise dos dois julgados se restringe a demonstrar
que as limitações impostas para a aplicação da mencionada técnica não se sustentam
nos argumentos levantados pelos ministros, indo de encontro aos pressupostos
firmados pela Corte em sua jurisprudência. Dessa forma, passa-se para a análise das
mencionadas decisões.
6 Para uma análise mais detalhada a respeito da ADPF nº 153/DF ver: MEYER, Emílio Peluso Neder.
Responsabilização por graves violações de direitos humanos na ditadura de 1964-1985: a necessária
superação da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 153/DF pelo Direito Internacional dos
Direitos Humanos. Tese. Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais. 2012.
Nesta direção, num dos primeiros argumentos para julgar improcedente o pedido
da ação, o Ministro Eros Grau afirmou que nem mesmo para reparar iniquidades o
Supremo Tribunal Federal poderia rever decisões do Legislativo. Dessa forma, se
houvesse algo a ser modificado na Lei da Anistia deveria ser realizado pelo legislador
e não pelo Judiciário.9 Verifica-se, assim, a preocupação da Corte, por meio do Relator
da ação, com a deferência ao legislador. Essa preocupação visa justamente impedir
que o Poder Judiciário venha agir como legislador positivo, usurpando competência
que não lhe fora atribuída.
Importante trazer para discussão que ao alegar que “nem mesmo para reparar
flagrantes iniquidades o Supremo pode avançar sobre a competência constitucional
do Poder Legislativo [...]”10, o ministro coloca em xeque a própria função da Corte,
que é a de reforçar as condições normativas da democracia e descumprir um dever
institucional estabelecido pela Constituição, adotando uma postura de autocontenção
contrária a outros julgados dessa Corte. Para argumentar nesse sentido, Grau parte do
pressuposto de que a Lei da Anistia foi fruto de um “acordo político”,11 o qual se tornou
texto normativo e que, por tal razão, o único órgão com competência para revê-lo seria
o Poder Legislativo.
8 MEYER, op.cit., p. 76
9 [...] No Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra
redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas.
Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a reescrever leis de anistia [...] Nem mesmo
para reparar flagrantes iniquidades o Supremo pode avançar sobre a competência constitucional do
Poder Legislativo. [...] Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem,
haverá ou não de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário. [...]. BRASIL, 2011, p. 58.
11 No que diz respeito a esse possível acordo político para conceder uma anistia de mão dupla, tanto para
apoiadores quanto opositores do regime militar, o professor Emílio assevera que “É complicado falar
em um acordo político justamente pelo fato de não mais haver oposição política efetiva. [...] o General
Geisel, com base no AI-5, baixa o ‘pacote de abril’: governadores e um terço dos senadores eleitos
indiretamente por colégios eleitorais formados por vereadores em sua maioria da ARENA, imunidade das
Polícias Militares ao controle jurisdicional civil, criação de mais um instrumento de controle concentrado
de constitucionalidade no STF — sob provocação unipessoal do Procurador-Geral da República (nomeado
pelo Presidente da República, frise-se) — e a aprovação de uma nova Lei de Segurança Nacional em 1979.
Diante de todo este contexto, como esta sociedade negociaria algo na anistia por ela buscada?”. MEYER,
op.cit., p. 104.
12 Ibid., p. 92.
13 Nesse sentido ver também: FERNANDES, Bernardo Gonçalves Alfredo. Breve abordagem crítica sobre a
questão dos Tratados Internacionais frente à Constituição e sobre a recepção da Lei de Anistia em nosso
ordenamento: uma análise reflexiva sobre decisões do Supremo Tribunal Federal permeadas pelo self
restraint ou pelo ativismo. In: Revista da Procuradoria-Geral do Município de Juiz de Fora – RPGMJF,
no.1: 25-35. Belo Horizonte: Fórum. 2011.
Ocorre que o artigo 226, §3º, da Constituição, que serviu de paradigma interpre-
tativo para o supramencionado dispositivo, prescreve que “Para efeito da proteção
do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”15.
Da análise dos dois dispositivos é possível perceber que a norma comum estabe-
lecida em ambos é: a união estável entre homem e mulher é reconhecida como entidade
familiar. Nesse sentido, partindo da impossibilidade de contrariar o sentido literal do
texto normativo para a aplicação da técnica, indaga-se: como seria possível obter nessa
decisão resultado diverso se ambos os artigos possuem o mesmo núcleo normativo?
O segundo critério que deve ser atendido para aplicação da interpretação conforme
a Constituição consiste em não contrariar o sentido pretendido pelo legislador. Para
verificar qual era a “vontade do Constituinte” ao editar o artigo 226, §3º, da Constituição,
dada a impossibilidade de reconstrução psíquica e histórica de maneira perfeita, faz
se necessário recorrer a documentos que permitem fazer uma reconstrução mais
aproximada da realidade à época. Para isso, valer-nos-emos dos Anais da Constituinte
de 1987/1988.
14 BRASIL. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:<http://www.
planal to.gov.br/ccivil_03/leis/L9868.htm.>. Acesso em: 16 jul. 2018.
Como visto, nos debates que precederam a edição do artigo 226, §3º, da
Constituição, a “vontade do Constituinte” era que apenas a união estável entre homem
e mulher fosse reconhecida como entidade familiar.
Partindo dessa análise, é possível crer que o Supremo Tribunal Federal ao aplicar a
técnica de Interpretação Conforme a Constituição, respeitando os limites estabelecidos
por sua jurisprudência, julgaria improcedente os pedidos da ADPF nº 132, mas não
foi o que aconteceu.
Um dos movimentos filosóficos que teve grande importância para o direito, sem
sombra de dúvidas, foi o giro hermenêutico-pragmático, sobretudo porque, a partir desse
momento, a linguagem passa a ser vista como aquilo que possibilita a compreensão
do ser no mundo, substituindo a relação sujeito/objeto por uma relação pautada na
intersubjetividade sujeito/objeto/sujeito. Nessa perspectiva, a linguagem passa a ser
elemento de mediação das interações sociais18.
18 FERNANDES, Bernardo Gonçalves Alfredo; PEDRON, Flávio Quinaud. Poder judiciário e(m) crise: reflexões
de teoria da Constituição e teoria geral do processo sobre o acesso à Justiça e as recentes reformas do
poder judiciário à luz de: Ronald Dworkin, Klaus Günther e Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
2008.
Segundo Gadamer, aquele que se propõe a interpretar algo deve ter em mente a
possibilidade de aprender com esse algo. De acordo com autor, esse processo se inicia
por meio de opiniões prévias em relação a esse objeto a ser interpretado, de forma
Nesse sentido, uma vez que o círculo hermenêutico viabiliza a fusão de horizontes,
permitindo a reconstrução de um sentido à situação presente do intérprete, é preciso
levar em conta, nesse momento, que o círculo se aperfeiçoa levando à compreensão.
Denominando esse momento de concepção prévia da perfeição, o filósofo vai dizer que
determinado objeto a ser interpretado somente se torna passível de compreensão se
se parte do pressuposto de que ele possui uma unidade de sentido perfeita. Quando
isso não ocorrer, existirá sempre a necessidade de o círculo se movimentar para que
possa buscá-la.26
24 Ibid. p. 445.
25 [...] na compreensão, sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido à situação
atual do intérprete. Nesse sentido, nos vemos obrigados a dar um passo mais além da hermenêutica
romântica, considerando como processo unitário não somente a compreensão e interpretação, mas
também a aplicação Ibid. p. 446.
26 Ibid. p.389-390.
Dworkin concebe o direito como um conceito interpretativo que deve ser analisado
de forma construtiva, o que implica dizer que ele deve ser concebido como a melhor
justificativa possível das práticas jurídicas.28
Ao aplicar a sua teoria à jurisdição, Dworkin cria a metáfora de um juiz com poderes
sobre-humanos para demonstrar qual a postura hermenêutica se espera de um juiz
real. A esse magistrado ideal, Dworkin denomina de juiz Hércules. Portanto, Hércules
tem a responsabilidade política de interpretar a história institucional, com seus erros
e acertos, de modo a reconstruí-la para proferir decisões que justifiquem as práticas
da comunidade na qual está inserido.29
Bem, se assim o é, por que ainda se busca o sentido da norma a partir da vontade
dos legisladores ou professando fidelidade ao sentido literal do texto normativo? Como
já demonstrado, o texto é o ponto de partida de extrema relevância para aquele que se
propõe a interpretá-lo. Entretanto, tentar lhe dar sentido a qualquer custo incorre-se
em se perder a ligação do sentido encontrado e a coerência buscada. Dessa forma,
ainda que o intérprete se mantenha fiel ao texto, a interpretação não se exaure. Vale
lembrar que limitar a interpretação constitucional à vontade do legislador e ao sentido
literal do texto normativo é abrir mão da integridade e toda coerência que ela exige.
Para resolver essa questão, Dworkin afirma que a Constituição é criada a partir de
princípios morais abstratos que embasam os critérios de correção que justificam um
direito. Para demonstrar a necessidade de se interpretar o texto de maneira construtiva,
ao invés de se apegar apenas a critérios semânticos orientadores, o autor elucida o
exemplo a seguir: determinado aeroporto, por meio de normas internas de segurança,
29 O direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em
que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual,
os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles
fizeram [...] em uma história geral digna de consta aqui, uma história que traz consigo uma afirmação
complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente
atraentes para oferecer um futuro honrado. DWORKIN, op. cit. p. 274
Diante deste caso, resta a indagação: uma vez que a lata de gás lacrimogênio não
consta expressamente da lista de proibição exibida pelo aeroporto, os funcionários do
aeroporto teriam autoridade para acrescentar esta arma à lista?
Ser fiel ao texto constitucional, nos moldes da teoria da integridade, não se resume
apenas a respeitar os limites semânticos formais, mas sim verificar qual o sentido que
ele possui no momento que o intérprete se propõe a efetivá-lo.
Se, por um lado, a fidelidade ao texto normativo, por si só, não é capaz de oferecer
um sentido coerente com as práticas contemporâneas do intérprete, porque então não
se valer da vontade do legislador e suas expectativas a respeito de como os dispositivos
normativos por eles criados seriam aplicados? Essa linha teórica que acredita que a
Constituição deve ser interpretada de acordo com a vontade dos pais fundadores, ou
Constituintes, é denominada de originalismo.
Imagine que você é proprietário de uma grande empresa que tem uma
vaga em um de seus departamentos. Você chama sua gerente e lhe
diz: “Por favor, preencha a vaga para mim com o melhor candidato que
se apresentar”. Aliás, você acrescenta, sem insinuar nada com uma
31 DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da constituição norte americana. Trad. Marcelo
Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes. 2006.
Não satisfeito, o senhor Brown ingressou com uma ação que teve seu desfecho
em 1954, na Suprema Corte, cujo Presidente à época era Earl Warren. Por unanimidade,
a Corte norte-americana decidiu que a política do “separados, mas iguais” feria a
Décima Quarta Emenda da Constituição, pois a segregação racial nas escolas pública
A partir desse caso, Dworkin chama a atenção para o equívoco que a vontade
do legislador pode causar no momento de aplicação. O autor lembra que os congres-
sistas que propuseram a Décima Quarta emenda não entendiam que a segregação era
inconstitucional, pois o próprio redator do projeto que precedeu a Emenda afirmou para
o Congresso que “os direitos civis não significam que todas as crianças tenham que
frequentar a mesma escola”. Dworkin também lembra que esse “mesmo Congresso deu
continuidade à segregação racial nas escolas do Distrito de Colúmbia, que na época
era administrado pelo Congresso Nacional.”33
CONSIDERAÇÕES FINAIS
35 Ibid., p. 169.
Não se está aqui dizendo que a utilização destes critérios seja errada, muito pelo
contrário. O que se chama atenção é para o fato de que, dada a complexidade da socie-
dade, eles, por si só, não são capazes de minimizar estes equívocos. Isso porque, como
demonstrado acima, ainda que se seja fiel ao texto constitucional, a sua interpretação
não se exaure apenas neste. Nesse sentido, ser fiel ao texto constitucional, não se
restringe a respeitar apenas os limites semânticos formais, mas também analisar qual
o sentido que ele possui no momento que o interprete se propõe a fazê-lo.
Uma jurisdição que leve os direitos fundamentais a sério deve-se amparar em uma
leitura constitucional democraticamente adequada, que toma como ponto de partida
tanto o texto quanto as práticas constitucionais do passado, mas sem abdicar-se do
contexto no qual a compreensão do texto normativo se insere, de modo a tornar o
direito tão íntegro quanto possível.
Referências
BRASIL. Lei 6883 de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências.
Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9868.htm.>. Acesso em:
16 jul. 2018.
BRASIL. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9868.htm.>. Acesso em: 16 jul. 2018.
BRASIL. Anais da Assembleia Constituinte. Disponível em:< https://www.senado.
leg.br/ publicacoes/anais/asp/CT_Abertura.asp>. Acesso em: 18 jul. 2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Representação nº 1417/DF. Representante:
Procurador Geral da República. Representado: Presidente da República. Relator
Ministro Moreira Alves. Brasília/DF: Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/.
Zrocesso/verProcessoAndamento.asp?numero=1417&classe=Rp&codigoClas-
se=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acesso em: 20 jun. 2018.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 5 de outubro
de 1988. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Constituicao.htm>. Acess o em: 20 jun. 2018.
BRASIL. Lei 9868 de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento
da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade
Resumo
A Lei Federal de Agrotóxico é datada de 1989, tendo sido sancionada
um ano após a promulgação da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, e têm sido examinados, sobretudo em 2018, projetos de
leis para sua alteração. Tendo em conta que a economia do Brasil possui
no agronegócio um de seus pilares, e que o desenvolvimento econômico
deve ser perseguido para o crescimento do país de modo que os danos
ambientais sejam minimizados, busca-se avaliar a pertinência e necessi-
dade de eventual alteração à Lei de Agrotóxico de 1989. Para atingir tal
propósito, tem-se como base os termos expostos, em especial, no capítulo
VI da Constituição Federal, que disciplina o direito fundamental ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado. Para tanto, é empregada a técnica
de levantamento bibliográfico, em especial por meio de fontes primárias de
informação, como livros, artigos científicos, teses e dissertações, e também
o método de pesquisa indutiva. Chegou-se à conclusão de que alteração na
INTRODUÇÃO
Agrotóxico é um tema cuja pertinência percorre o viés social, econômico e
ambiental, em especial pela característica econômica que o Brasil apresenta, tendo
como um de seus alicerces o agronegócio.
3 UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS. Report of the Special Rapporteur on the right to food. Office of
the High Commissioner for Human Rights. Disponível em: <http://ap.ohchr.org/documents/dpage_e.
aspx?si=A/HRC/34/48>. Acesso em: 18 out. 2017.
4 SILVA, Célia Maria Maganhotto de Souza; FAY, Elisabeth Francisconi. Agrotóxico & Ambiente. Embrapa
Informações Tecnologia, Brasilia, 2004, p. 18.
5 CORTEZ, Glauco. Pesquisadora da USP monta mapa da contaminação por agrotóxico no Brasil. Disponível
em: <http://cartacampinas.com.br/2016/07/pesquisadora-da-usp-monta-mapa-da-contaminacao-por-
agrotoxico-no-brasil/>. Acesso em: 24 set. 2017.
6 JORNAL O GLOBO. Projeto de lei quer mudar legislação dos agrotóxicos no Brasil. Publicado em
20/06/2018. Disponível em: < https://g1.globo.com/natureza/noticia/projeto-de-lei-quer-mudar-
legislacao-dos-agrotoxicos-no-brasil-entenda.ghtml>. Acesso em: 02 ago. 2018.
AGROTÓXICO 143
sem deixar de lado o desenvolvimento econômico.7 Isso demostra que o Brasil, país
promissor no agronegócio, tinha nele seu precursor da defesa do meio ambiente e da
saúde humana, sem acometer o desenvolvimento econômico do país.
7 MORAES, Maurecir Guimarães de. O pensamento ambiental em José Bonifácio de Andrada e Silva.
VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.16, n.2, p. 129-142, maio/ago. 2014.
9 ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História. História Geral e História do Brasil. 7. ed.
São Paulo: Editora Ática, 1997, p. 324.
Assim como o PNDA é considerado uma referência histórica para o tema, é rele-
vante ponderar que, também em 1975, foi editado o Decreto-lei nº 1.413, com o objetivo
de proteger o meio ambiente do Brasil, sendo considerado o primeiro diploma brasileiro
sobre a proteção ambiental, consoante Vladimir Passos de Freitas.12 Ainda, o art. 1º do
referido Decreto discorre que “as indústrias instaladas ou a se instalarem em território
nacional são obrigadas a promover as medidas necessárias a prevenir ou corrigir os
inconvenientes e prejuízos da poluição e da contaminação do meio ambiente”.13
10 BULL, David; HATHAWAY, David. Pragas e Venenos: Agrotóxicos no Brasil e no terceiro mundo. Petrópolis:
Editora Vozes, 1986, p, 153.
11 PELAEZ, Victor Manoel; SILVA, Letícia Rodrigues da; GUIMARÃES, Thiago André; DAL RI, Fabiano;
TEODOROVICZ, Thomaz. A (des)coordenação de políticas para a indústria de agrotóxicos no Brasil.
Revista Brasileira de Inovação, Campinas (SP), 14, n. esp., p. 153-178, julho 2015, p. 160.
12 FREITAS, Vladimir Passos de. A constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 3. ed. atual.
ampl., rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 21.
AGROTÓXICO 145
O Rio Grande do Sul, com sua característica promissora para o agronegócio, foi o
estado pioneiro a tornar obrigatório o receituário agrônomo em 1977, tendo em vista
que o Decreto nº 24.114 de 1934, que disciplinava o agrotóxico, não tratava sobre
a necessidade de receituário. Por esse razão, o Conselho Regional de Engenharia e
Agronomia do Rio Grande do Sul aprovou, em 1977, o Ato nº 2 como um mecanismo de
restringir o uso de agrotóxicos organoclorados e aqueles altamente tóxicos apenas para
casos sem alternativa menos agressiva de acordo com os conhecimentos científicos
de um engenheiro agrônomo.14
Não obstante o fato de que a atenção do Brasil estivesse, nesta época, focada
no fomento do crescimento da agricultura, o jornal O Estado de São Paulo publicou
sua primeira reportagem nacional sobre agrotóxicos em 29 de janeiro de 1978, no qual
a crise ambiental concebida por Ulrich Beck era referenciada sob a perspectiva dos
efeitos dos agrotóxicos na saúde humana e no meio ambiente. Assim, a manchete da
primeira reportagem brasileira foi intitulada “Os agrotóxicos e a crise ambiental”, e
Adilson Paschoal argumenta que “os efeitos colaterais dos produtos químicos usados
no controle de pragas analisados neste artigo mostra que a utilização maciça desses
produtos leva a um grande desequilíbrio da natureza colocando em perigo a vida dos
animais úteis e do próprio homem”.15
15 O ESTADO DE SÃO PAULO. Os agrotóxicos e a crise ambiental. Adilson D. Paschoal. Páginas da edição
de 29 de janeiro de 1978, p. 203.
17 ANDRADE, Manoel Jorge Fajardo Villela de Andrade. Economia do Meio Ambiente: Análise da Legislação
de Brasileira sobre Agrotóxicos. Dissertação. Escola de Pós-graduação em Economia. Fundação Getúlio
Vargas. 1995. 110f, p. 20. P. 36
18 Reportagem “Ecologista contra Jost”, publicada no jornal O Estado de São Paulo, página 15 da edição de
17 de abril de 1984, referendava que “Em telegrama enviado ontem ao presidente da República com cópia
para a Secretaria Especial do Meio Ambiente, e à presidência do Senado e da Câmara de Deputados, o
engenheiro agrônomo, José Lutzenberger e as entidades de preservação do meio ambiente do Rio Grande
do Sul repudiaram as recentes declarações do ministro Nestor Jost, da Agricultura, feitas na capital da
República Federal da Alemanha, na semana passada, e favorável à utilização, no Brasil, de pesticidas cuja
utilização é proibida na Alemanha.”. O Estado de São Paulo. Páginas da edição de 17 de abril de 1984.
Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19840417-33473-nac-0015-999-15-not/busca/
Lutzenberger>. Acesso em: 07 mai. 2018.
19 FRANCO, Caroline da Rocha; PELAEZ, Victor. Antecedentes da Lei Federal de Agrotóxicos (7.802/1989): o
protagonismo. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 41, p. 40-56, agosto 2017, p. 44.
AGROTÓXICO 147
agrotóxicos e outros biocidas, ficam condicionados ao prévio cadastramento perante
a Secretaria de Agricultura e Secretaria do Interior e adota outras providências”.20
Sobre as leis estaduais do Rio Grande do Sul e do Paraná, Paulo Affonso Leme
Machado publicou uma reportagem intitulada “Agrotóxicos e Federalismo” no jornal O
Estado de São Paulo, em 21 de outubro de 1984, para se pronunciar no sentido de que:
No que tange à Lei Federal de Agrotóxico de 1989, segundo Paulo Affonso Leme
Machado, que participou da preparação da Lei, “a legislação brasileira de 1989 previu
diversos procedimentos de prevenção e de responsabilização dos agentes e das
empresas que atuam na área de agrotóxicos, chegando a haver inovações, em 2000,
sobre embalagens e sua disposição”.22
21 O ESTADO DE SÃO PAULO. Agrotóxico e Federalismo. Publicado por Paulo Affonso Leme Machado.
Páginas 48 da edição de 21 de outubro de 1984. Disponível em: < http://acervo.estadao.com.br/
pagina/#!/19841021-33632-nac-0048-999-48-not/busca/AFFONSO+LEME+MACHADO>. Acesso em: 07
mai. 2018.
22 VILLALOBOS, Jorge Ulises Guerra; FAZOLLI, Silvio Alexandre (org). Agrotóxicos: um enfoque
multidisciplinar. Prefácio Paulo Affonso Leme Machado. Maringá: Eduem, 2017, p.7.
Segundo Guido Fernando Silva Soares, “para o Brasil, o meio ambiente, que até
então tinha sido um assunto incômodo e passageiro em suas relações com o resto do
mundo, passaria para o domínio das regras constitucionais, e, portanto, impor-se-ia
como tema avassalador e preponderante na diplomacia nacional”.25
23 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 19. Rio de Janeiro: Atlas 2017, p. 45.
24 CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 21.
25 SOARES, Guido Fernando Silva. A proteção internacional do meio ambiente. São Paulo: Manole, 2003, p
184.
AGROTÓXICO 149
em que a dignidade é guindada à condição de princípio estruturante e fundamento
do Estado Democrático de Direito, é o Estado que passa a servir como instrumento
para a garantia e promoção da dignidade das pessoas individual e coletivamente
consideradas”.26
Enfim, Paulo Affonso Leme Machado sustenta que a Constituição Federal não
se omitiu ao prever a obrigatoriedade do Poder Público de controlar os agrotóxicos,
tendo sido abrangente ao não mencionar expressamente o termo ‘agrotóxico’, mas
“substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”
(art. 225, §1º, V, da CF).29
26 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel Francisco. Curso de direito
constitucional. 5. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 257.
27 YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. A proteção do meio ambiente e dos direitos fundamentais
correlatos no sistema constitucional brasileiro. In. YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato, AHMED,
Flávio, CAVALCA, Renata Falson. Temas fundamentais de Direito Difuso e Coletivos: Desafios e
Perspectivas. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 2.
28 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 24. ed., rev., ampl. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2016, p. 154.
29 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 70.
AGROTÓXICO 151
Apresenta-se uma reflexão sobre a Lei de Agrotóxico no que tange ao registro do
produto químico. Segundo a doutrina, umas das lacunas existente na lei encontra-se
no prazo de concessão do registro, pois “o registro de um agrotóxico é ad eternum,
pois não existe o procedimento de atualização do registro definido por período, como
ocorre no caso de medicamentos, em que a cada cinco anos a concessão é revisada
para manutenção ou revogação da autorização”.30
30 CARNEIRO, Fernando Ferreira; AUGUSTO, Lia Giraldo da Silva; RIGOTTO, Raquel Maria; FRIEDRICH, Karen;
BÚRIGO, André Campos (Org.) Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde.
Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 108.
31 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 22. ed., rev., ampl. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2014, p. 725.
32 FERREIRA, Maria Leonor Paes Cavalcanti. A regulação do uso dos agrotóxicos no Brasil: Uma proposta
para um direito de sustentabilidade/ Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira; Orientador, Professor Doutor
José Rubens Morato Leite; Co-orientador Professor Doutor Patryck de Araújo Ayala. – Florianópolis, SC,
2013, p. 212.
33 FERREIRA, Heline Sivini; FERREIRA, Maria Leonor Paes Cavalcanti. Registro e importação de agrotóxicos:
não seria dever do Poder Público controlar as atividades que envolvem substâncias capazes de causar
danos à vida, à qualidade de vida e ao meio ambiente? In: LEITE, José Rubens Morato (coordenador).
Dano ambiental na sociedade de risco. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 209.
Sem dúvida, essas duas lacunas são as principais da Lei de Agrotóxico, sem exaurir
a temática, respeitando a delimitação deste trabalho. No entanto, faz-se necessário
mencionar que “as tecnologias usadas durante o processo de desenvolvimento econô-
mico são os verdadeiros determinantes da qualidade ambiental”, em outras palavras, a
tecnologia pode ser empregada como um aliado no propósito de “propiciar a utilização
de processos e técnicas apropriadas para o crescimento sustentável”.35
Ocorre que a mudança legislativa nem sempre é a única ou melhor solução a ser
adotada. Outrossim, não se pode deixar de considerar que o próprio procedimento
de regulamentação poderá estar eivado por interesses distintos da garantia ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, CF).
34 LEITE, José Rubens Morato; FERREIRA, Heline Sivini; FERREIRA, Maria Leonor Paes Cavalcanti. op. cit., p.
209.
36 DE MIRANDA, Ana Clara Cavalcanti; VERÍSSIMO, Amanda Miranda; CEOLIN, Alessandra Carla. Agricultura
De Precisão: Um Mapeamento Da Base Da Scielo. Revista Eletrônica de Gestão Organizacional. 129, Jan.
2, 2017. Disponível em: <http://eds.b.ebscohost.com/eds/detail/detail?vid=8&sid=f78971ba-c29d-468b-
be88-9717c9e93daf%40sessionmgr103&bdata=Jmxhbmc9cHQtYnImc2l0ZT1lZHMtbGl2ZQ%3d%3d#AN
=127279889&db=edb>. Acesso em: 12 mai. 2018.
37 DEMETERCO NETO, Antenor Figueiredo; STRUECKER, Fernando Almeida. Teoria da Captura. In:
DOMINGUES, Victor Hugo; KLEIN, Vinícius; DOMINGUES, Marcia Carla Pereira. Análise Econômica do
Direito: justiça e desenvolvimento. 1ª ed. Curitiba: CRV, 2016, p. 28.
AGROTÓXICO 153
corruptivo do regulador, no âmbito das agências regulatórias. George Stigler38, teórico
do tema, afirma que a regulação pode ser prejudicial, na medida em que o regulador é
parcial e pode optar por conceder benefícios aos agentes privados.
Esses e tantos outros exemplos colocam em evidência que, por melhor intencio-
nada que seja a inserção de uma regulação no ordenamento, não é possível prever
de antemão a integralidade das consequências dela advindas. Nesse passo, a norma
pode vir a atender o objetivo traçado. Mas também pode não ser eficaz ou até mesmo
impactar de modo negativo no propósito inicialmente almejado.
Sem dúvida, há aspectos legais que carecem de ajustes na Lei Federal de 1989.No
entanto, o meio ambiente cultural pode ser uma das opções a serem aprimoradas como
uma alternativa neste momento, a fim de que interesses correlatos às garantias dos
direitos fundamentais adentrem nos projetos de lei sobre o Agrotóxico. Como exemplo
do significativo papel do meio ambiente cultural, podem ser citadas as políticas públicas
direcionadas à conscientização do uso adequado de agrotóxicos.
38 DEMETERCO NETO, Antenor Figueiredo; STRUECKER, Fernando Almeida. Teoria da Captura. In:
DOMINGUES, Victor Hugo; KLEIN, Vinícius; DOMINGUES, Marcia Carla Pereira. Análise Econômica do
Direito: justiça e desenvolvimento. 1ª ed. Curitiba: CRV, 2016, p. 28.
39 SHIKIDA, Claudio. Efeito Peltzman. In: DOMINGUES, Victor Hugo; KLEIN, Vinícius; DOMINGUES, Marcia
Carla Pereira. Análise Econômica do Direito: justiça e desenvolvimento. 1ª ed. Curitiba: CRV, 2016, p. 36.
40 SHIKIDA, Claudio. Efeito Peltzman. In: DOMINGUES, Victor Hugo; KLEIN, Vinícius; DOMINGUES, Marcia
Carla Pereira. Análise Econômica do Direito: justiça e desenvolvimento. 1ª ed. Curitiba: CRV, 2016, p. 36.
41 BOHNER, Tanny Oliveira Lima; ARAÚJO, Luiz Ernani Bonesso; NISHJIMA, Toshio. O impacto ambiental do
uso de agrotóxicos no meio ambiente e na saúde dos trabalhadores rurais. Revista Eletrônica do Curso
de Direito da Universidade Federal de Santa Maria. v. 8, 2013, p. 329-341.
AGROTÓXICO 155
Se existem problemas, eles serão realmente resolvidos por uma nova
lei? A dependência excessiva dos agrotóxicos em nossos sistemas
agrícolas também não é problema a ser necessariamente enfrentado?
Há questões estruturais a serem debatidas, que ultrapassam os limites
dos dispositivos formais de uma lei.42
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando as informações apresentadas, passa-se a tecer algumas conside-
rações, sem a intenção de esgotar o tema, mas que são pertinentes à fase histórica
em que a Lei de Agrotóxico se encontra e à celebração pelos 30 anos da Constituição
Federal de 1988.
42 VALOR ECONÔMICO. A pressão por uma nova lei dos agrotóxicos. Publicado por Fabio Feldman e Suely
Araújo, em 18/07/2018. Disponível em: <https://www.valor.com.br/opiniao/5666555/pressao-por-uma-
nova-lei-dos-agrotoxicos>. Acesso em: 03 ago. 2018.
43 FREITAS, Vladimir Passos de. A desejada e complexa conciliação entre desenvolvimento econômico e
proteção do meio ambiente no Brasil. Revista Direito Ambiental e Sociedade, v. 4, n. 1, p. 235-263, 2014,
p. 244.
Por fim, merecem destaque as medidas existentes nos diferentes níveis da fede-
ração, implementadas por meio de políticas públicas, que constituem alternativa eficaz
na busca pela minimização dos efeitos negativos pelo uso desenfreado de agrotóxico.
Em outros termos, é possível que a questão seja ajustada em nível estadual, como de
fato já vem ocorrendo, o que permitiria considerar as particularidades regionais e os
aspectos inerentes ao meio ambiente cultural da sociedade, sem que fosse necessária
a edição de uma nova norma pela União, a quem cabe regulamentar aspectos gerais
do tema.
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Resumo
Diante de um contexto de expansão da jurisdição constitucional nos
últimos 30 anos, sob a égide da Constituição de 1988, o presente artigo tem
o propósito de analisar se a Proposta de Emenda à Constituição nº 33/11
poderia aperfeiçoar a legitimidade democrática do sistema constitucional
brasileiro, conciliando a proteção efetiva de direitos fundamentais com o
exercício democrático do poder, ao desassociar o controle de constitucio-
nalidade da supremacia judicial.
Introdução
O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro é eminentemente judicial
e repressivo de cunho misto, ao combinar o controle por via incidental e difuso, de
1 Esse artigo é uma reprodução, com adaptações, das reflexões presentes na segunda parte do capítulo
4 da dissertação de mestrado do autor: PAULINO, Lucas Azevedo. Jurisdição Constitucional sem
Supremacia Judicial: a reconciliação entre a proteção de direitos fundamentais e a legitimidade
democrática. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais. UFMG: Belo Horizonte, 2016.
2 Lucas Azevedo Paulino é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012).
Especialista em Direito Constitucional pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (2013). Mestre
(2016) e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais (desde 2017). Visiting Scholar na Universidade de Harvard (2018).
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 161-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
matriz norte-americana, que vem desde a origem da República3, com o controle por via
principal e concentrado, de matriz austríaca (adotado, em regra, no sistema continental
europeu), que foi introduzido pela Emenda Constitucional nº 16/654.
4 A Emenda Constitucional nº 16 de 1965 à Constituição de 1946 (já vigente o regime militar) instituiu a
então denominada ação genérica de inconstitucionalidade, pela qual o Supremo Tribunal Federal passava
a ter a competência de declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato federal, por meio de representação
que lhe fosse encaminhada pelo Procurador-Geral da República. Apesar ser esse o marco histórico da
introdução do controle abstrato e concentrado pelo STF, a Constituição de 1934 já previa uma modalidade
específica de ação de controle concentrado: a representação interventiva, cabível na hipótese de os
Estados violarem os denominados princípios constitucionais sensíveis (BARROSO, 2011b, p. 85-86).
5 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos
de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 175
6 BUSTAMANTE, Thomas; PATRUS, Rafael Dilly. Do Governo dos Cenáculos ao Governo do Povo: A
Jurisdição Constitucional nos Vinte e Cinco Anos da Constituição da República. In.: CLÈVE, Clemerson
Marlin; FREIRE, Alexandre (coord.). Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. Editora Revista
dos Tribunais: São Paulo, p. 791-816, 2014, p. 795.
7 BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011.
10 VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Rev. Direito GV, vol. 4, nº. 2, São Paulo: July/Dec, 2008.
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 163-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
a supremacia judicial em sentindo formal da corte na estrutura geral do ordenamento
jurídico-constitucional brasileiro. O sistema constitucional brasileiro enquadra-se no
paradigma de constitucionalismo jurídico tradicional, uma vez que a última palavra é
alocada formalmente no Judiciário, especialmente no que diz respeito às matérias
protegidas por cláusulas pétreas. No entanto, é importante ressaltar que o quórum para
aprovação de emendas constitucionais não é tão rígido comparativamente, exige-se
três quintos dos membros da Câmara e do Senado em dois turnos, e essa relativa
facilidade para o exercício do poder de reforma constitucional já ensejou a promulgação
de 99 emendas constitucionais no decorrer dos 30 anos de vigência da Constituição
de 198811. Há alguns precedentes, inclusive, de emendas que superaram interpretação
fixada pelo Supremo Tribunal Federal12.
11 Nos Estados Unidos exige-se a aprovação da emenda constitucional por dois terços dos membros da
Câmara e do Senado e aprovação de três quartos dos estados.
É dentro desse contexto que, nos últimos anos, surgiram propostas de reformu-
lação radical do sistema de controle de constitucionalidade, que impactam na dinâmica
de como se compreende a separação de poderes no ordenamento constitucional
brasileiro, com o objetivo de fortalecer a esfera legislativa na decisão sobre questões
constitucionais, tais como a Proposta de Emenda à Constituição 3/1115 e a Proposta
de Emenda à Constituição nº 33/11 (PEC 33/11) apresentada pelo Deputado Nazareno
Fonteles, com a subscrição de outros 219 deputados, a qual será o foco da análise no
presente artigo, para tentar compreender se esta PEC poderia democratizar o controle de
constitucionalidade e assegurar simultaneamente a proteção de direitos fundamentais.
13 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; NUNES, Dierle. Controle
de Constitucionalidade é judicial, não político. Revista Consultor Jurídico, 2013. Disponível em <http://
www.conjur.com.br/2013-abr-30/sistema-controle-constitucionalidade-judicial-nao-politico>. Acesso em
19/05/2015.
15 A PEC 3/2011, também de autoria do Deputado Nazareno Fonteles, pretendia modificar o sistema de
controle de constitucionalidade, ao propor a alteração do inciso V do artigo 49 da Constituição para
permitir que o Congresso Nacional possa sustar atos normativos de “outros poderes” que exorbitem
do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. Isto é, tem o objetivo de incluir o Poder
Judiciário, além do Poder Executivo, na possibilidade de que o Congresso suste as decisões judiciais,
permitindo um controle legislativo sobre o Judiciário, para preservar sua competência normativa. Não é
objeto do presente trabalho a análise detida dessa proposta, mas a PEC 3/11 configura mais um exemplo
de proposta tentando fortalecer o papel do Legislativo na decisão de questões constitucionais.
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 165-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
Segundo o autor da proposição, ela se justificaria, entre outras razões, pelo excesso
de ativismo judicial por parte dos membros do Poder Judiciário, tendo em vista que,
de acordo com ele, as decisões tomadas com base nessa interpretação proativa, que
vão além do necessário para o caso concreto, careceriam de legitimidade democrática.
A preocupação do autor, presente na justificação da PEC 33, seria o fato de que “em
prejuízo da democracia, a hipertrofia do Poder Judiciário vem deslocando boa parte
do debate de questões relevantes do Legislativo para o Judiciário. (...) Estamos, de
fato, diante de um risco para legitimidade democrática em nosso país”16. Os objetivos
centrais dessa proposta seriam, para o seu autor, resgatar o valor da representação
política, da soberania popular, da dignidade da lei aprovada pelos representantes
legítimos do povo, além de reestabelecer o equilíbrio entre os poderes, fomentando
o diálogo interinstitucional entre eles e valorizando o Poder Legislativo. O filósofo do
direito Jeremy Waldron serve como referência teórica na justificação da PEC, sendo
citado expressamente por suas críticas ao controle judicial de constitucionalidade
em sua versão mais forte. Ademais, o controle de constitucionalidade canadense é
mencionado como uma alternativa de jurisdição constitucional na qual o Judiciário
não tem o monopólio da última palavra.
Após a PEC 33/11 ser admitida pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania
(CCJC), em abril de 2013, houve imediata reação da opinião pública, sobretudo a da
comunidade jurídica, sendo que muitos a consideraram flagrantemente inconstitucional
por ferir a separação dos poderes. Apesar dessa proposição não ter ido adiante ao ser
arquivada com o início da nova legislatura em 2015, e não ter voltado à tramitação17,
ela engendrou debates relevantes sobre o controle de constitucionalidade brasileiro e
reascendeu a tensão entre constitucionalismo e democracia, inerente a todas demo-
cracias que adotam alguma forma de controle judicial de constitucionalidade.
Em face de tal quadro, torna-se importante analisar detidamente cada uma das
sugestões de alterações contidas na PEC 33/11, assim como verificar se tal proposição
consistiria em um novo arranjo de separação de poderes adequado para consubstan-
ciar simultaneamente, e de forma mais adequada, os ideais de proteção a direitos
16 O inteiro teor da PEC 33 e da sua justificação encontram-se disponíveis no site da Câmara dos Deputados
e podem ser acessadas no seguinte endereço eletrônico: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
prop_mostrarintegra?codteor=876817&filename=Tramitacao-PEC+33%2F2011 >. Acesso em 10/06/2016.
17 O art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados determina que “finda a legislatura, arquivar-
se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e
ainda se encontrem em tramitação (...)”.
18 Constituição de 1988, “Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros
do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo
do Poder Público”.
19 PEC 33/11. “Artigo 1º. O art. 97 da Constituição Federal de 1988 passará a vigorar com a seguinte
redação: “Art. 97 Somente pelo voto de quatro quintos de seus membros ou dos membros do respectivo
órgão especial poderão os tribunais declarar inconstitucionalidade de lei ou do ato normativo do poder
público.”.
20 WALDRON, Jeremy. Five to Four: Why do Bare Majorities Rule on Courts. NYU School of Law, Public Law
Research Paper No. 12-72, 2013.
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 167-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
Sobre a insuficiência de superioridade epistêmica, Waldron aponta que o resultado
de uma maioria apertada seria mais o reconhecimento da existência do desacordo
moral também no Judiciário do que uma confiança na objetividade da verdade21. Diante
dessas críticas, não se afigura descabida, nem atentatória à separação dos poderes, a
proposta da alteração de um quórum de maioria absoluta para uma maioria qualificada.
21 Idem
22 MENDES, Conrado Hubner. Constitutional Courts and Deliberative Democracy. Oxford University Press,
2013. p. 167-8
24 BUSTAMANTE, Thomas. The Ongoing Search for Legitimacy: Can a ‘Pragmatic yet Principled’
Deliberative Model Justify the Authority of Constitutional Courts? The Modern Law Review, Vol.78(2),
pp. 372-393, 2015.
25 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. O Supremo não é oráculo: conversas acadêmicas com Jane Reis. Os
Constitucionalistas, 2013. Disponível em http://www.osconstitucionalistas.com.br/jane-reis-o-supremo-
nao-e-oraculo. Acesso em 07/06/2013.
30 FERNANDES, Bernardo. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. Salvador: Editora Juspodvim, 2013.
31 Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois
terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que,
a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do
Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal,
bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º A súmula terá
por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja
controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave
insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do
que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada
por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3º Do ato administrativo ou
decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao
Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão
judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme
o caso.
33 STRECK, L. L. Súmulas, Vaguezas e Ambiguidades: necessitamos de uma “Teoria Geral dos Precedentes”?.
Direitos Fundamentais & Justiça, v. 5, p. 162-185, 2008. p. 164-165
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 171-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
vinculantes, o Supremo Tribunal Federal é onde está situada essa coincidência entre
o órgão criador das disposições normativas e o responsável pela sua concretização,
na medida em que é “o responsável pela criação dos textos sumulares e, ao mesmo
tempo, tem a competência constitucional (§ 3º do art. 103-A) de julgar as reclamações
decorrentes de atos administrativos ou jurisdicionais que estiverem em “desacordo”
com a súmula por ele editada”34. Nessa analogia entre súmulas vinculantes e medidas
provisórias, a diferença principal é que em relação às medidas provisórias há a exigência
expressa de que o Congresso Nacional delibere, aprove ou rejeite a medida, para
convertê-la ou não em lei; já no que concerne às súmulas, não existe essa previsão
formal de deliberação do órgão legislativo, em que pese este não seja vinculado pelos
efeitos da súmula, podendo legislar em contrário.
34 Idem, p. 165
35 PEC 33/11. “O art. 103-A da Constituição Federal de 1988 passará a vigorar com a seguinte redação:
Art. 103-A O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de quatro
quintos de seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, propor súmula [...]”
36 PEC 33/11. “[...]§ 1º A súmula deverá guardar estrita identidade com as decisões precedentes, não
podendo exceder às situações que deram ensejo à sua criação [...]”
37 PEC 33/11. [...] “§4º O Congresso Nacional terá prazo de noventa dias, para deliberar, em sessão conjunta,
por maioria absoluta, sobre o efeito vinculante da súmula, contados a partir do recebimento do processo,
formado pelo enunciado e pelas decisões precedentes. §5º A não deliberação do Congresso Nacional
sobre o efeito vinculante da súmula no prazo estabelecido no §4º implicará sua aprovação tácita. [...]”
No que tange à alteração do quórum para a decisão sobre uma súmula vinculante
para quatro quintos dos membros do Supremo, os mesmos argumentos da análise no
tópico anterior se aplicam neste. É legítima a mudança para um quórum qualificado e
o próprio constituinte derivado reconheceu a importância dessa maioria substantiva
na EC 45/2004 ao instituir o quórum de dois terços dos membros para a sua decisão.
Todavia, o quórum de quatro quintos pode levar a obstrução deliberativa na corte bem
como a inviabilidade do exercício dessa competência, não sendo o mais adequado em
uma perspectiva de política constitucional.
42 PEC 33/11. “Art. 102. [...] § 2º-A As decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade que declarem a inconstitucionalidade material de
emendas à Constituição Federal não produzem imediato efeito vinculante e eficácia contra todos, e serão
encaminhadas à apreciação do Congresso Nacional que, manifestando-se contrariamente à decisão
judicial, deverá submeter a controvérsia à consulta popular. § 2º-B A manifestação do Congresso Nacional
sobre a decisão judicial a que se refere o §2º-A deverá ocorrer em sessão conjunta, por três quintos de
seus membros, no prazo de noventa dias, ao fim do qual, se não concluída a votação, prevalecerá a
decisão do Supremo Tribunal Federal, com efeito vinculante e eficácia contra todos. §2º-C É vedada, em
qualquer hipótese, a suspensão da eficácia de Emenda à Constituição por medida cautelar pelo Supremo
Tribunal Federal”.
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 175-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
dos Motivos da PEC 33/11, não ocorreria nenhuma supressão do poder do Judiciário
de controle de constitucionalidade de emendas, e sim a valorização do papel do Poder
Legislativo nesse processo. Além disso, para ele, incentiva-se o diálogo interinstitu-
cional e cria-se um mecanismo de controle democrático contra eventuais exorbitâncias
do Poder Judiciário.
Sem embargo, como já demonstrado acima, tal dispositivo da PEC 33/11 recebeu
manifestações contrárias à sua constitucionalidade no próprio Congresso Nacional por
considerá-lo ofensiva à cláusula pétrea de separação dos poderes expressa no art. 60,
§4º, da Constituição de 1988 por: 1) intrometer-se indevidamente em atividade típica do
Poder Judiciário; 2) interferir na competência de guardião constitucional do Supremo
Tribunal Federal definida pelo constituinte originário; 3) enfraquecer a atribuição de
protetor dos direitos fundamentais Supremo Tribunal Federal em sua função; 4) afetar a
racionalidade no debate democrático; 5) estabelecer o controle político pelo Congresso
do controle judicial de constitucionalidade, o que seria uma reminiscência autoritária
do Estado Novo43.
Nessa mesma tônica, alguns juristas criticaram essa proposta de forma veemente.
Jane Reis Pereira44 apontou que essa mudança comprometeria o papel contramajo-
ritário do Supremo Tribunal Federal, vulnerando o entrincheiramento de direitos, ao
sujeitar as decisões fundamentais presentes na Constituição às maiorias ocasionais,
o que representaria uma ruptura com o pacto constitucional originário. Para Marcelo
Cattoni, Alexandre Bahia e Dierle Nune45s, essa modificação seria inconstitucional,
tendo em vista que “não se pode restringir por meio de controle político, majoritário,
decisões em matéria constitucional do Supremo Tribunal Federal”. De acordo com
eles, a natureza do controle de constitucionalidade brasileiro é judicial e não poderia
ser política. Ademais, segundo eles, caberia à jurisdição constitucional assegurar o
devido processo legislativo, compreendendo, para isso, os direitos fundamentais como
condição de possibilidade democrática, de sorte que a proteção desses direitos poderia
ser enfraquecida com o controle proposto pela PEC 33/11.
43 Essas manifestações contrárias se deram nos próprios pareceres dos deputados vencidos na Comissão
de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
46 SILVA, Virgílio Afonso da. Professor da USP fala sobre a PEC 33 e embate de poderes. Revista Consultor
Jurídico, 2013b. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2013-jun-13/virgilio-afonso-silva-professor-
usp-comenta-pec-33-embate-poderes>. Acesso em 22/06/2016.
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 177-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
A tese que prepondera na doutrina e na jurisprudência brasileira é de que as
denominadas cláusulas pétreas seriam juridicamente vinculantes, cuja violação não
pode ser afastada do conhecimento dos tribunais47. Os limites materiais ao poder de
reforma seriam, dessa maneira, juridicamente sindicáveis tanto por meio do controle
de constitucionalidade abstrato como do concentrado, pois, caso contrário, tais normas
seriam compreendidas como limites meramente políticos, carecedores de força jurídica.
Constatando-se a incompatibilidade entre a emenda constitucional e a cláusula pétrea,
constituiria dever do Judiciário declarar a inconstitucionalidade da emenda. Conforme
explicam Ingo Sarlet e Rodrigo Brandão48, as justificativas desse poder se baseiam:
I) na superioridade do poder constituinte originário – por ser a expressão máxima
da soberania popular, cuja natureza é política e ilimitada – em detrimento do poder
constituinte derivado, por ser um poder constituído de natureza jurídica e limitada; II) na
impossibilidade da emenda constitucional, com o pretexto de modificar a Constituição,
destruir o seu núcleo de identidade; III) na importância de se conservar os elementos
constitucionais essenciais de maiorias transitórias. Percebe-se que a justificativa do
controle de constitucionalidade de emendas retoma alguns argumentos clássicos do
constitucionalismo jurídico, tais como a tese pioneira de Marshall de que seria uma
decorrência lógica do sistema constitucional a autoridade de um tribunal judicial para
invalidar atos incompatíveis com a Constituição, haja vista sua supremacia, bem como a
ideia de se assegurar os pré-compromissos constitucionais contra maiorias ocasionais
ou contra a tirania da maioria.
48 SARLET, Ingo W.; BRANDÃO, Rodrigo. Comentário ao art. 60. In: CANOTILHO, J. J. GOMES; MENDES,
Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lênio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:
Saraiva/Almedina, 2013. p. 1130
49 MOREIRA, Ana Luísa de Navarro. We (Believe or Distrust) the People: O controle de constitucionalidade
das Emendas à Constituição e o problema da autoridade. Dissertação de Mestrado do Programa de
Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. UFMG: Belo Horizonte,
2014. p. 64
51 O primeiro precedente, sob a vigência da Constituição de 1988, no qual o Supremo Tribunal Federal
admitiu o controle judicial de emendas constitucionais foi na ADI 829/DF (Rel. Min. Moreira Alves,
Julg. 14.4.1993, DJ 16.09.), que declarou a constitucionalidade da EC n. 02/1992, que antecipou a
data do plebiscito sobre a forma e o sistema de governo, disposto no art. 2º do ADCT. Nela, o Ministro
Moreira Alves afirmou: “não há dúvida de que, em face do nosso sistema constitucional, é esta Corte
competente para, em controle difuso ou concentrado, examinar a constitucionalidade, ou não, de emenda
constitucional – como sucede no caso – impugnada por violadora de cláusulas pétreas explícitas ou
implícitas”.
52 Ana Luísa Moreira (2014, p. 64) elenca uma lista de casos que exemplificam a atuação do Supremo
Tribunal Federal no controle de constitucionalidade de emendas: “Na ADI nº 2.135-4/DF, o Supremo
declarou a inconstitucionalidade formal da aprovação da Emenda nº 19/98 da reforma administrativa; na
ADI nº 1946-5, julgou parcialmente procedente para atribuir à Emenda Constitucional nº 20/98, da reforma
da Previdência Social, interpretação conforme a Constituição; nos autos da ADI nº 3.128-7/DF e da ADI nº
3.105-8/DF, declarou inconstitucional parte da Emenda Constitucional nº 41/03, que ao alterar as regras
de seguridade social, impôs base de cálculo diferenciadas aos servidores e pensionistas da União, de
um lado, e dos Estados, Distrito Federal e Municípios, de outro; na ADI 3.685-8/DF, conferiu interpretação
conforme à Constituição para que as regras constitucionais da coligação partidária para as eleições que
foram alteradas pela Emenda Constitucional nº 52/06 somente fossem aplicadas após decorrido um
ano da data de sua vigência (e não, portanto, às eleições marcadas poucos meses após a publicação da
Emenda). Caso ainda mais recente foi a ADI de n. 2.356/DF, cujo objeto foi a inconstitucionalidade de
dispositivos normativos da Emenda Constitucional de n. 30/2000, sobre liquidação de precatórios”.
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 179-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
Com efeito, nesse mesmo caso, outro voto que se destacou foi o do ministro Paulo
Brossard, que, apesar de acompanhar a maioria no sentido de reputar inconstitucional
a emenda impugnada, chamou a atenção para a necessidade de haver prudência na
interpretação das chamadas cláusulas pétreas, pois existe uma grande diferença entre
o significado de abolição e alteração (a Constituição proíbe emendas tendentes a
abolir, não as de mudar os limites materiais elencados no art. 60, §4º), e ressaltando
que as normas jurídicas devem ter flexibilidade para acompanhar as mudanças que
acontecem, de forma superveniente, na sociedade e no plano institucional, conforme
se observa no seguinte trecho:
Esse alerta é importante porque nele está presente um cuidado com o contexto
de mudanças inerentes à democracia. Como salientam Cláudio de Souza Neto e Daniel
Sarmento53, se a dificuldade contramajoritária já se apresenta como uma preocupação
subjacente ao exercício de controle judicial de constitucionalidade da legislação,
ela seria ainda mais intensa quando esse controle é efetuado contra as reformas
constitucionais, na medida em que o quórum é muito mais elevado e o processo bem
mais rígido para se obter uma mudança constitucional, demandando a articulação
de uma ampla maioria para aprovar cada medida. Nesse ponto, torna-se importante
evidenciar que a Suprema Corte americana não reconhece a sua competência para
controlar a constitucionalidade de emendas, por entender que se trata de questão
política o processo de mudança constitucional54. Por sua vez, o Tribunal Constitucional
alemão, embora admita sua competência para fiscalizar a constitucionalidade de
reformas constitucionais, nunca exerceu tal atribuição, pois concebe que “os limites
materiais ao poder de reforma representam apenas uma proibição de revolução ou
Caso contrário, um regime constitucional que aloca a palavra final sobre o poder
de reforma constitucional para a autoridade judicial pode acarretar no enfraquecimento
do ideal de soberania popular, conforme apontado pelo filósofo Jeremy Waldron sobre
os perigos ideia de supremacia judicial: a) pelo deslocamento do autogoverno do povo
para a autoridade judicial, b) pela soberania judicial na hegemonia sobre a definição
56 MOREIRA, 2014, p. 66
57 Idem, p. 175
59 WALDRON, Jeremy. Judicial review and Judicial Supremacy. NYU School of Law, Public Law Research
Paper, No. 14-57. 2014.
62 HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON; James. O Federalista. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2003. p.
317-321
66 Idem
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 183-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
33/11. Com as propostas de modificações presentes nela, o Poder Judiciário continua
exercendo sua atividade típica definida, de forma expressa, pela Constituição: o controle
de constitucionalidade das leis e atos normativos com a possibilidade de invalidação.
Não somente, mas inclusive a possibilidade decorrente de verificar a compatibilidade
de emendas constitucionais, só que agora com a existência expressa de um controle
democrático – um freio e contrapeso – realizado pelo Poder Legislativo. Não se afigura
uma inferência lógica que a instituição de um controle democrático na competência de
fiscalização judicial de emendas implica a supressão, a interferência ou a intromissão
indevida na independência e na autonomia do Poder Judiciário.
Não existe, desse modo, uma relação ontológica entre a sindicabilidade judicial
de emendas constitucionais e a democracia constitucional. O arranjo de separação de
poderes de uma democracia constitucional não exige que o Judiciário exerça, como
atividade típica, o controle judicial das reformas constitucionais, não sendo obviamente
ilegítimas, nem inconstitucionais, as mudanças aventadas pela PEC 33/11. Conforme
afirma Virgílio da Silva, decidir quem deve ter a última palavra sobre a Constituição
não é algo que decorre da própria Carta – o Poder Judiciário, o Poder Legislativo ou
Depreende-se, com isso, que a PEC 33/11 pode, ao contrário, responder ao desafio
do constitucionalismo brasileiro, de reconciliar a necessidade de uma corte constitu-
cional, capaz de fomentar um debate pautado em argumentos de princípios, com o
imperativo de democratizar o direito constitucional e de introduzir mecanismos mais
ativos de participação do Poder Legislativo para contribuir na decisão final sobre os
direitos fundamentais. 69
70 GARDBAUM, Stephen. The New Commonwealth Model of Constitutionalism: Theory and Practice.
Cambridge: Cambridge Univ. Press. 2013.
71 Idem
73 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito: tradução Jeferson Luiz Camargo. 3 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2014
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 187-194. Disponível em: https://doi.
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coautores no processo de argumentação, deliberação e de decisão sobre o conteúdo
constitucional 74.
74 BALKIN, Jack. Constitutional Redemption: Political Faith in an Unjust World. Cambridge: Harvard
University Press, 2011. p. 10. Conforme Jack Balkin (2011, p. 89) explica, a ideia de interpretação
protestante, desenvolvida por Sanford Levinson (1989), se contrapõe a interpretação católica, fazendo
um paralelo com as religiões católica e as protestantes. Enquanto para os católicos a única interpretação
legítima da Bíblia é a realizada pelas autoridades da Igreja; para os protestantes, desde a Reforma
iniciada por Martin Lutero, cada fiel teria o poder de interpretar o texto sagrado a seu modo, conforme
a sua consciência. Da mesma maneira, na interpretação constitucional, o “constitucionalismo católico”
entende que deveria haver uma autoridade central para a interpretação constitucional, ao passo que
o “constitucionalismo protestante” concebe que a autoridade poderia ser múltipla: estar presente nos
demais poderes políticos, nos movimentos sociais e, inclusive, nos cidadãos individualmente.
75 GARGARELLA, Roberto. Scopes and Limits of Dialogic Constitucionalism. IN: BUSTAMANTE, Thomas;
FERNANDES, Bernado. Democratizing Constitutional Law: Perspectives on Legal Theory and the
Legitimacy of Constitutionalism. Heidelberg: Springer, 119-146, 2016. p. 138
76 Idem. p. 139-141
77 Idem, p. 142. Roberto Gargarella: “We the people” still remain outside of the Constitution, fundamentally
incapable of managing and controlling our own public affairs”
Considerações finais
No Brasil, com a expansão da autoridade e do protagonismo do Poder Judiciário
nos 30 anos da Constituição de 1988, deslocando-se para o centro do arranjo político
para debater questões públicas relevantes, muitas vezes em detrimento dos demais
poderes políticos, fenômenos como o ativismo judicial e a judicialização da política
passaram a ser motivo de preocupação e a promover reflexões e críticas sobre os
limites democráticos da intervenção judicial. Em face dessa conjuntura, a PEC 33/11
tem como motivação o receio com a hipertrofia do Judiciário e como finalidade as
necessidades de valorizar o Poder Legislativo, de reestabelecer o equilíbrio entre os
poderes e de incentivar os diálogos interinstitucionais.
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194 NOME DO AUTOR
A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO
COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO
E O APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO
DO DIREITO AO SILÊNCIO: UM PEQUENO
AVANÇO EM MEIO AO RETROCESSO
Ludmila Corrêa Dutra1
Caroline Mesquita Antunes2
Resumo
O direito o silêncio, que é uma das vertentes do princípio nemo tenetur se
detegere, encontra-se consagrado, de forma superficial, no artigo 5º, LXIII, da
CR/88, no artigo 186, caput e parágrafo único, do Código de Processo Penal,
além de tratados internacionais de direitos humanos que foram ratificados
pelo Brasil. Apesar das diversas discussões a respeito da abrangência de sua
aplicação na prática judiciária brasileira, referido direito ainda não encontrou
sua expressão máxima, haja vista os resquícios inquisitóriais arraigados
no processo penal pátrio, o aumento da criminalidade e o punitivismo
1 Doutoranda e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
Especialista em Direito Processual pelo IEC Puc Minas. Advogada e Professora de Direito Penal e
Processo Penal. E-mail: ludmilacd@hotmail.com
2 Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Professora de
Direto Penal e Constitucional. E-mail: carolmesquita2@hotmail.com
3 DINOUART, Abade. A arte de calar (1771). Trad. Luis Filipe Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 12.
DUTRA, Ludmila Corrêa; ANTUNES, Caroline Mesquita. A proibição da condução coercitiva para interrogatório e o aprimoramento
da aplicação do direito ao silêncio um pequeno avanço em meio ao retrocesso. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo
Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo
Horizonte: IDDE, 2018. p. 195-214. Disponível em: https://doi.org/10.32445/97885671340939
emergencial presentes no Direito e na sociedade brasileira atual. Contudo,
recentimente o Supremo Tribunal Federal caminhou no sentido de aumentar
a dimensão do direito ao silêncio no Brasil, ao proibir a condução coercitiva
de imputados para participarem de interrogatório, seja policial ou judicial,
o que representa um avanço frente ao retrocesso de alguns procedimentos
penais atuais.
Introdução
O interrogatório do imputado é um procedimento que se reveste de relativa
complexidade no direito brasileiro, haja vista a possibilidade de muitas das regras
nele aplicadas serem inobservadas e a forma com que é conduzido pelas autoridades,
seja policial ou judicial, ferir direitos e garantias fundamentais, constitucionalmente
asseguradas ao acusado.
Em síntese, a máxima nemo tenetur se detegere pode ser definida como o direito
conferido a pessoa de não produzir provas que lhe possam ser desfavoráveis e acarretar
em sua incriminação, assim, esta não pode sofrer qualquer prejuízo diante de sua
recusa ou omissão em colaborar com as autoridades na investigação ou na instrução
de um processo criminal do qual é ré.
O princípio possui ampla dimensão e, embora sua vertente mais conhecida seja o
direito ao silêncio, abrange também o direito de não confessar, de não colaborar com
a investigação ou instrução criminal, de não declarar contra si, direito de declarar o
inverídico, desde que não haja prejuízos para terceiros, direito de não apresentar provas
prejudiciais, direito de não produzir ou não contribuir ativamente para a produção de
provas contra si, direito de não ceder o corpo, seja total ou parcialmente, para produção
probatória, a inexistência do dever de dizer a verdade, entre outros que se adéquem
ao sentido expresso em seu conceito, que de acordo com Carlos Henrique Borlido
Haddad, abarca
7 Ninguém pode ser compelido a depor contra si mesmo, pois ninguém é obrigado à auto-incriminar-se.
8 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. O interrogatório no processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000,
p.136.
9 Art. 14, § 3 Durante o processo, toda a pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade,
às seguintes garantias mínimas: g) A não ser obrigada a prestar declarações contra si própria nem a
confessar-se culpada
10 Art. 8, § 2 Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não
for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade,
às seguintes garantias mínimas: g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-
se culpada.
Cabe ressaltar que esta é uma garantia que vai além da figura daquele que é alvo
de uma imputação criminal, pois é destinada a qualquer pessoa que se encontre em
uma situação em que haja pretensão do Estado em apurar fatos. Para que o nemo
tenetur se detegere seja aplicado deve haver uma relação entre autoridade e indivíduo,
assim, o princípio não se restringe apenas ao interrogatório, policial ou judicial, ou ao
processo como um todo, mas é cabível em toda a persecução penal e em qualquer
outra instância não penal ou situação cotidiana que justifique o seu uso. Nesse sentido,
é válido citar Manuel da Costa Andrade, que diz:
11 ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Ed., 2012,
p. 131-132.
12 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. O interrogatório no processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000,
p.25.
13 TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 357.
14 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, vol. 2, Campinas: Bookseller, 1997, p.
297.
Há, ainda, o artigo 260, do Código de Processo Penal, que possibilita a condução
coercitiva do acusado para interrogatório, já que sua inocorrência é causa de nulidade,
conforme artigo 564, III, e, do mesmo diploma legal, o que representa flagrante violação
do conteúdo do direito ao silêncio, um dos motivos que fizeram com que, recentemente
o regramento fosse objeto de revisão pelo Supremo Tribunal Federal, que, por meio
da ADPF 444, decidiu proibir a condução coercitiva do imputado para interrogatório.
15 TRISTÃO, Adalto Dias. O interrogatório como meio de defesa. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2009, p.
81.
16 DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Inatividade no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2004, p. 192-193.
17 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo tenetur
se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 238.
18 NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 163.
19 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo tenetur
se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 189.
20 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo tenetur
se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 84.
Aury Lopes Jr.21 pontua que diante da imersão nesse problema há uma dificuldade
em fazer o esforço do afastamento, do estranhamento, em relação ao ritual judiciário22
brasileiro, principalmente na esfera criminal, em que se tem um processo penal primitivo
e inquisitório.
É fomentado por esse anseio por punição e pela substituição do Direito pela moral
que se tem visto as garantias constitucionais serem relativizadas. O jurista Lênio Luís
Streck há muito tem apontado a celeuma dos representantes da justiça: delegados
21 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007.
22 “Ritual judiciário” na perspectiva de Antoine Garapon, na obra Bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário,
publicado pela editora Piaget.
24 Conforme declarou o Ministro Luís Roberto Barroso no Habeas Corpus nº 152752:“Criamos um país
de ricos delinquentes, um sistema judicial que não funciona e faz as pessoas acreditarem que o crime
compensa”
Streck alerta para o retrocesso dos dias atuais em que aplicar a Constituição da
República virou um ato subversivo e revolucionário. Cumprir as garantias e princípios
constitucionais como constam na Constituição da República virou algo perigoso, já
que os juízes só são bem avaliados se atuarem enviesados pela punição.
26 Comitê internacional de Direitos Humanos da ONU aprecia denúncia sobre abuso de poder na Operação
Lavajato. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2017/11/10/comites-internacionais-vao-
analisar-abusos-da-lava-jato-entenda-o-que-pode-acontecer/>. Acesso em: 18 ago. 2018.
A Ordem dos Advogados do Brasil ressaltou a dualidade dos efeitos trazidos pela
condução coercitiva, pois possui repercussão sobre a liberdade do indivíduo, ainda que
de forma passageira, configurando uma forma de coação. Nesse sentido, Ingo Sarlet
inclui a condução coercitiva de testemunhas–e por óbvio, permite-se concluir, também
dos investigados–entre as hipóteses de restrições legais ao direito fundamental de
liberdade de locomoção.27
27 SARLET. Ingo, MARINONI, Luiz Guilherme, MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2ª Edição.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
29 ROSA, Alexandre Moraes da; AGUIAR, Michele. Qual o regime da condução coercitiva no processo penal
do espetáculo?. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/qual-o-regime-da-conducao-
coercitiva-no-processo-penal-do-espetaculo>. Acesso em 17 de ago. de 2018.
30 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007
31 DELMANTO JR, Roberto. Inatividade no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004, p. 192-193.
No voto do ministro Marco Aurélio por sua vez vê-se a ponderação a respeito
do art. 260 do CPP, que segundo o jurista no que prevê expressamente a condução
coercitiva, não foi, nessa parte, recepcionado pela CF/88. O ministro alertou sobre o
perigo do punitivismo antecipado, uma vez que a medida expõe a honra de qualquer
cidadão investigado em prática criminosa, alcançando profundamente a sua dignidade
e por isso dever se tratada com maior rigor, sob pena de prejuízo à segurança jurídica.
O relator Gilmar Mendes por sua vez enfatizou que a decisão não tem o condão
de desconstituir interrogatórios realizados até o julgamento, mesmo que o interrogado
tenha sido coercitivamente conduzido para o ato. Isto porque estaria se reconhecendo
a inadequação do tratamento dado ao imputado, e não do interrogatório em si.
Considerações finais
Diante de todo o expoxto, conclui-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal se
mostrou correta, pois apontou no sentido de aumentar a dimensão do direito ao silêncio
no Brasil, ao deixar a conveniência do acusado e de seu defensor o comparecimento ao
interrogatório, seja policial ou judicial, o que representa um avanço frente ao retrocesso
de alguns procedimentos penais da atualidade.
Referências
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verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=395&processo=395. Acesso em 16 de agosto
de 2018.
ADPF 444, STF. Disponível em < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.
asp?incidente=5149497>. Acesso em 16 de agosto de 2018.
ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre proibições de prova em processo penal. Coimbra:
Coimbra Ed., 2012.
BARROSO, Luiz Antônio. Habeas Corpus nº 152752. Disponível em: <http://www.
stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=152752&classe=H-
C&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em 17 de agosto de 2018.
CASARA, Rubens R.R. A espetacularização do processo penal. Disponível em: <http://
www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/
bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/122.12.PDF>. Acesso em 17
de ago. de 2018.
DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Inatividade no Processo Penal Brasileiro, São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2004.
DINOUART, Abade. A arte de calar (1771). Trad. Luis Filipe Ribeiro. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
GARAPON, Antoine. Bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Ed. Piaget.
Ano 2000.
HADDAD, Carlos Henrique Borlido. O interrogatório no processo penal. Belo
Horizonte: Del Rey, 2000.
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Disponível
em <http://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil/
relatorio_2016_junho.pdf>. Acesso em 17 de agosto de 2018.
LOPES JR, Aury. Não percebemos o quanto nosso processo penal é primitivo e
inquisitório. Diponível em <https://www.conjur.com.br/2018-mar-16/limite-penal-
-processo-penal-brasileiro-primitivo-inquisitorio>. Acesso em 16 de ago. de 2018.
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, vol. 2, Campinas:
Bookseller, 1997.
Resumo
Como regra geral, o art. 47 da Constituição Federal definiu o quórum de
maioria de votos, presentes a maioria absoluta de seus membros, para deli-
beração no Congresso Nacional. A ideia é simples: dinamizar o processo
legislativo e elevar apenas o quórum para questões de suma importância.
Todavia, tal regra constitucional vem sendo, ultimamente, afastada ou
evocada quando se tem em vista sua repercussão nas Leis Orgânicas
Municipais, na medida em que, em muitas delas, é comum o quórum de dois
terços ou três quintos para tratar de temas específicos, sem correspondência
constitucional. O dilema entre a independência federativa na elaboração de
normas de auto-organização e a obediência ao princípio da simetria induz ao
questionamento da (in) constitucionalidade desse tipo de quórum em face
da Constituição Federal, revelando entendimentos cambiantes.
Introdução
“Quorum vos unum esse volemus” – “dos quais queremos que vós sejais um”.
Assim eram recebidos os novos membros na assembleia das centúrias romanas:
reunidos, representando uma parte, deixavam de ser parte para compor e se orientar
como um todo. Quorum, palavra do latim, genitivo masculino plural do pronome rela-
tivo qui, quae, quod, que se traduz “dos quais”, especialmente invoca uma questão
1 Graduado em Direito (UFMG) e Filosofia (PUC-MG), como mestrado em Filosofia (UFOP) e em Direito
Constitucional (UFMG).
OLIVEIRA, Rafael Guimarães Abras. O quórum constitucional e seu reflexo no processo legislativo municipal. In: PEREIRA, Rodolfo
Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã:
debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 215-234. Disponível em: https://doi.org/10.32445/978856713409311
central na organização social: a proporção quantitativa necessária para se dizer capaz
de formar, reformar ou estabelecer uma unidade.
Mas, por que o método majoritário seria o mais adequado para, diante de opiniões
múltiplas e dissonantes, apontar o caminho a ser percorrido? Quando uma fração se
torna suficiente para, não apenas refletir a preferência da maioria, mas tornar algo válido
para toda a sociedade? E, não menos importante, haveria um limite ou uma fração
numérica capaz de referenciar o que seria um quantum legitimamente posto e o que
configuraria um abuso da necessidade da maioria, como se percebe na exigência de
quóruns de 2/3 (dois terços), 3/5 (três quintos) ou 4/5 (quatro quintos)?
2 CRETELLA JR, José. Comentários à Constituição de 1988. Vol. 5–arts. 38 a 91 -, Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1991, p 2.755.
a) o quórum de dois terços para votação da lei orgânica (art. 29, caput e art. 32,
caput) e para instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da
República e os Ministros de Estado (art. 51, I);
c) o quórum da maioria absoluta, para vetos (art. 66, §4º), leis complementares
(art. 69), abertura de créditos suplementares ou especiais (art. 167, III), aprovação e
exoneração do Procurador Geral da República (art. 52, XI c/c art. 128), perda de mandato
4 BUSTAMANTE, Thomas. On the Difficulty to Ground the Authority of Constitutional Courts: Can Strong
Judicial Review be Morally Justified? IN: BUSTAMANTE, Thomas; FERNANDES, Bernardo. Democratizing
Constitutional Law: Perspectives on Legal Theory and the Legitimacy of Constitutionalism. Heidelberg:
Springer, p.-29-69, 2016.
5 WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. New York: Oxford University Press, 1999, p. 1.
6 PAULINO, Lucas Azevedo. Jurisdição Constitucional sem supremacia judicial: entre a legitimidade
democrática e a proteção de direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 63.
7 Embora incontestavelmente aceita-se o poder derivado decorrente conferido pelo poder originário
constituinte aos Estados-membros, quando o tema toca sobre a existência do poder constituinte
derivado decorrente do Distrito Federal, e, sobretudo, dos Municípios, há extensa controvérsia doutrinária
e jurisprudencial. No entanto, não se questiona aqui os limites do poder derivado decorrente e sim
presume-se que a simetria prescreve determinados paradigmas a serem obrigatoriamente obedecidos
por todos os entes federados.
8 HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 333.
11 Art 10–A União não intervirá nos Estados, salvo para: VII–assegurar a observância dos seguintes
princípios: a) forma republicana representativa; b) temporariedade dos mandatos eletivos, limitada a
duração destes à dos mandatos federais correspondentes; c) proibição de reeleição de Governadores e
de Prefeitos para o período!mediato; d) independência e harmonia dos Poderes; e) garantias do Poder
Judiciário; f) autonomia municipal; g) prestação de contas da Administração.
ete.
Que o Município, ente federado com poder organizatório, deve obedecer aos limites
e princípios da Constituição da República e os da Constituição do seu próprio Estado;
que, embora seja autônomo, “autonomia não significa apropriação de liberdade ilimitada
no e para dispor normativa e organizacionalmente sobre os poderes municipais”12; que
é necessária a observância do princípio da simetria, sendo a Constituição da República
a única legitimada a estabelecer o quantum necessário para efetivar a soberania
popular; que absorção desses preceitos constitucionais pelas constituições estaduais
e leis orgânicas é compulsória, sendo normas de reprodução obrigatória e atuando
12 CASTRO, JOSÉ NILO DE. Direito Municipal Positivo. 7.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 146.
Todavia, para uns, o quórum sendo matéria afeita ao processo legislativo, com a
Constituição de 1988 não constitui mais princípio constitucional ou norma de preorde-
nação de observância obrigatória por parte dos Estados-Membros e dos Municípios.
Segundo os defensores dessa posição, a CF/88 eliminou a excessiva centralização do
ordenamento constitucional anterior, de forma que a autonomia dos entes federativos
seria uma autonomia controlada – cada qual teria, dentro de limites razoáveis, mas
não previamente fixados, a liberdade na instituição de sua organização administrativa
e, consequentemente, no processo legislativo estadual e municipal.
13 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Do processo legislativo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 253.
(...)
(...)
Mas isso não quer dizer, pelo menos na minha avaliação, que não possa
o constituinte estadual impor que seja adotada espécie normativa
prevista no processo legislativo federal. A exigência que se faz na
Constituição Federal diz especificamente com a legislação federal, não
com a legislação estadual. Não me parece razoável que esse princípio da
simetria chegue ao ponto de inviabilizar a opção do constituinte estadual
sobre uma das espécies normativas disponíveis na Constituição Federal.
Em que essa opção violentaria a organização nacional? Em que essa
opção atacaria algum princípio sensível do estado nacional organizado
Então, para Menezes Direito, por exemplo, poderiam ser simétricas as Constituição
Estaduais e Leis Orgânicas que fixam quórum qualificado seguindo preceitos cons-
titucionais, como é o caso de temas afeitos à lei complementar, para determinadas
matérias que se revestem de maior importância, consoante o destaque regional ou local.
O princípio da simetria comportaria atenuações tais que, no caso das Leis Orgânicas,
possibilitaria delimitar e escolher as matérias para o quórum de maioria absoluta, sem,
contudo, exceder nesta capacidade de auto-organização. Se a Constituição prevê a regra
do art. 47, da maioria dos votos, prevendo as exceções constitucionais, a Lei Orgânica,
pela flexibilização da simetria, apenas poderia contar com três tipos de quórum: o de
dois terços, previsto apenas para alteração da Lei Orgânica, conforme o caput do art.
29 da CF/88; o que demanda o voto da maioria absoluta dos membros, cuja matéria
esteja previamente delimitada na própria Lei Orgânica; e, por fim, a regra da maioria
simples, constitucionalmente assentada. Jurisprudências recentes reconhecem tal
perspectiva, como é o caso do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
Mas até que ponto a escolha das matérias para o quórum qualificado extrapolaria
a discricionariedade de auto-organização e significaria uma mera arbitrariedade? E
não haveria uma incoerência do ordenamento jurídico ao, de um lado decidir que
determinado município cujo quórum da Lei Orgânica foi declarado inconstitucional
deve se ajustar à regra Constitucional da maioria simples, de outro, observar inerte o
mais variado quórum visto, principalmente, nos grandes municípios?
14 A Lei Orgânica de Florianópolis: Art. 61–As leis complementares serão aprovadas e alteradas pelo voto
favorável da maioria absoluta dos membros da Câmara. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº
01/90) § 1º Excetuam-se da regra de votação prevista no caput deste artigo as leis complementares
que disponham sobre o Plano Diretor e suas respectivas alterações, as quais, em ambos os casos,
serão aprovadas pelo voto de dois terços dos membros da Câmara. (Redação dada pela Emenda à Lei
Orgânica nº 19/2007) § 2º Além de outros casos previstos nesta Lei Orgânica, serão complementares
as leis que dispuserem sobre: (Parágrafo Único renumerado pela Emenda à Lei Orgânica nº 19/2007)
I–Código Tributário do Município; (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90) II–Plano
Diretor do Município; (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90) III–Plano de Transportes
Urbanos; (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90) IV–Lei de Parcelamento do Solo;
(Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90) V–Código de Obras e Edificações; (Redação
dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90) VI–Código de Posturas; (Redação dada pela Emenda à Lei
Orgânica nº 01/90) VII–Regime de cargos e empregos públicos, e as diretrizes para a elaboração do
Plano de Carreira. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 10/2003) VIII–Atribuições do Vice-
Prefeito e Secretários ou diretores equivalentes; (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90)
IX–Guarda Municipal, sua instituição e organização; (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº
01/90) X–Organização e reformulação do sistema municipal de ensino; (Redação dada pela Emenda à
Lei Orgânica nº 01/90) XI–Plebiscito e referendo. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90)
Lei Orgânica de Curitiba: Art. 47. A discussão e a votação da matéria constante da ordem do dia serão
realizadas com a presença da maioria absoluta dos membros da Casa. § 1º O voto será público, salvo as
exceções previstas em Regimento. § 1º O voto será público e aberto, exceto nas deliberações referentes
as penalidades aos Vereadores e ao Prefeito e na apreciação de vetos, para as quais será secreto.
(Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica n° 08, de 17 de novembro de 2001) § 2º Dependerá de voto
favorável de dois terços dos membros da Câmara: I–a deliberação sobre as contas do Município contra
o parecer prévio do Tribunal de Contas. II–a destituição de componente da Mesa. III–a representação
contra o Prefeito Municipal. IV–a aprovação de emenda à Lei Orgânica. V–a aprovação de proposta
para mudança do nome do Município. VI–a aprovação do Regimento Interno da Câmara Municipal.
VII -o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado. VII–a aprovação do Plano Diretor de Curitiba.
(Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica n° 15, de 20 de dezembro de 2011) § 3º Dependerá de voto
favorável da maioria absoluta dos membros da Câmara: I–a rejeição do veto prefeitural. I–a rejeição
do veto do Prefeito. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica n° 15, de 20 de dezembro de 2011)
II–a mudança de local de funcionamento da Câmara Municipal. III–a aprovação de leis complementares
Lei Orgânica de São Paulo: Art. 40–A discussão e votação de matéria constante da Ordem do Dia só
poderá ser efetuada com a presença da maioria absoluta dos membros da Câmara. § 1º–A aprovação
da matéria em discussão, salvo as exceções previstas nesta Lei Orgânica, dependerá do voto favorável
da maioria dos Vereadores presentes à sessão. § 2º–Os projetos de lei e a aprovação e alteração do
Regimento Interno serão apreciadas em 2 (dois) turnos de discussão e votação. § 3º–Dependerão do
voto favorável da maioria absoluta dos membros da Câmara a aprovação e as alterações das seguintes
matérias: I–matéria tributária; II–Código de Obras e Edificações e outros Códigos; III–Estatuto dos
Servidores Municipais; IV–criação de cargos, funções e empregos da administração direta, autárquica
e fundacional, bem como sua remuneração; V–concessão de serviço público; VI–concessão de direito
real de uso; VII–alienação de bens imóveis; VIII–autorização para obtenção de empréstimo de particular,
inclusive para as autarquias, fundações e demais entidades controladas pelo Poder Público; IX–lei de
diretrizes orçamentárias, plano plurianual e lei orçamentária anual; X–aquisição de bens imóveis por
doação com encargo; XI–criação, organização e supressão de distritos e subdistritos, e divisão do
território do Município em áreas administrativas; XII–criação, estruturação e atribuição das Secretarias,
Subprefeituras, Conselhos de Representantes e dos órgãos da Administração Pública; XIII–realização
A Lei Orgânica de Belo Horizonte, por exemplo, elenca uma série de matérias
que dependem do voto favorável de dois terços dos membros da Câmara: o plano
diretor; o parcelamento, a ocupação e o uso do solo; o código tributário; empréstimos,
concessões de isenções, incentivos, benefícios fiscais e gratuidades nos serviços
públicos de competência do Município. E como se não bastasse, a rejeição do veto
sobre tais matérias segue o anômalo quórum de 3/5 (três quintos)15. Quanto a esse
Lei Orgânica de Vitória: Art. 87 Dependem do voto favorável: I–da maioria absoluta dos membros da
Câmara, a aprovação, revogação e alterações de: a) Lei Orgânica dos órgãos municipais; b) Regimento
Interno da Câmara Municipal; a) criação de cargos e fixação de vencimento de servidores. II–de
três quintos dos membros da Câmara a autorização para: a) concessão de serviços públicos;
b) concessão de direito real de uso de bens imóveis; c) alienação de bens imóveis; d) aquisição de bens
imóveis por doação com encargo; e) outorga de títulos e honrarias; f) contratação de empréstimos de
entidades privadas; g) lei do sistema tributário municipal; h) estatuto do Magistério Público; i) estatuto
dos funcionários públicos do Município; j) códigos de obra, postura, sanitário e de polícia administrativa
e plano diretor urbano; (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 7/1995) k) realização de plebiscito
ou referendo. III–de dois terços dos membros da Câmara: a) rejeição do parecer prévio do Tribunal de
Contas; b) Revogada. (Revogada pela Emenda à Lei Orgânica nº 14/2000) c) realização de sessão secreta.
Lei Orgânica de Salvador: Art. 39. Somente pelo voto de, no mínimo, 2/3 (dois terços) dos membros da
Câmara consideram-se aprovadas as deliberações sobre: 21 I–destituição de componentes da Mesa;
II–aquisição de bens por doação ou legados, ambos se com encargos ou ônus para o Município; III–
suspensão, extinção ou exclusão de crédito tributário; IV- isenção de impostos municipais; V–mudança
de local de funcionamento da Câmara, comprovado o impedimento de acesso ao recinto do Paço
Municipal; VI–modificação territorial do Município; VII–cassação do mandato de Vereador; VIII–alteração
desta Lei; IX–alienação de bens imóveis; X–rejeição de Parecer Prévio do Tribunal de Contas.
15 Art. 92. § 5º–A Câmara, dentro de trinta dias, contados do recebimento da comunicação
do veto, sobre ele decidirá, em votação nominal, e sua rejeição só ocorrerá pelo voto:
I–de três quintos de seus membros, quando a matéria objeto da proposição de lei depender de aprovação
por dois terços;
Por sua vez, a Lei Orgânica de Porto Alegre16 chega a exigir o quórum de dois
terços para alteração de denominação oficial de próprios, vias e logradouros e para
concessão de títulos de cidadão honorário do Município. Ou seja, tais matérias exigem
mais que a deliberação sobre empréstimos, isenções ou o plano diretor – o que denota
certa arbitrariedade e exagero do quantum para aprovação.
Em Recife17, a alteração da Lei Orgânica vem a ser por meio de 3/5 (três quintos)18
dos membros e não 2/3 (dois terços) como prescreve o preceito constitucional inscul-
pido no caput do art. 29. Flagrante se tornam os exageros e casuísmos dispostos em
milhares de Leis Orgânicas dos milhares de municípios.
16 Lei Orgânica de Porto Alegre: Art. 82 - A Câmara Municipal deliberará pela maioria dos votos, presente
a maioria absoluta dos Vereadores, salvo as exceções previstas nesta Lei Orgânica e nos parágrafos
seguintes: § 1º–Dependerá de voto favorável da maioria absoluta dos membros da Câmara Municipal
a aprovação das seguintes matérias: I–leis complementares; II–seu Regimento; III–criação de cargos,
funções ou empregos públicos, aumento da remuneração, vantagens, estabilidade e aposentadoria
dos servidores; IV–alteração da denominação de próprios, vias e logradouros públicos; V–obtenção de
empréstimo de particular; VI–concessão de serviços públicos; VII–concessão de direito real de uso;
VIII–alienação de bens imóveis; IX–aquisição de bens imóveis por doação com encargo. X–conselhos
municipais. § 2º–Dependerá de voto favorável de dois terços dos membros da Câmara Municipal a
aprovação das seguintes matérias: I–rejeição de parecer prévio do Tribunal de Contas; II–cassação do
mandato do Prefeito ou do Vice-Prefeito e destituição de componentes da Mesa; III–alteração dos limites
do Município; IV–alteração da denominação oficial de próprios, vias e logradouros; V–concessão de
títulos de cidadão honorário do Município.
17 Embora a Lei Orgânica de Recife estabeleça tal casuísmo, é uma das poucas que não abusa do quórum
qualificado. Consoante seu art. 26, apenas a matéria relativa à diretrizes gerais de política urbana e do
plano diretor e à organização da Procuradoria Geral do Município demanda o quórum qualificado.
18 Art. 25 § 1º–A proposta será discutida e votada em dois turnos, com interstício mínimo de 10 (dez) dias,
considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, 3/5 (três quintos) dos votos dos membros da Câmara
Municipal ( Alterado pela Emenda nº 07/98).
Considerações finais
Parece não haver sentido em deixar a disposição sobre o quórum, em suas frações
de múltiplas possibilidades, ao bel-prazer dos caprichos dos entes federados. Imagine,
por exemplo, uma derrubada de veto por cinco sextos ou um quórum de seis sétimos
para alterar a Lei Orgânica ou a Constituição Estadual. A liberdade da auto-organização
abriria margem para a própria condenação da atividade legislativa.
Há quem diga que tais elevados e banalizados quóruns de dois terços ou três
quintos, supostamente, resguardam o município de uma modificação por parte de
uma maioria absoluta social e historicamente despreparada, atécnica e sem preparo –
representantes do povo que não sabem manejar a máquina pública tampouco entender
a complexidade de se administrar um ente federado. Por outro lado, tal perspectiva
também fomenta um “Executivo de coalizão20”, que, para conseguir imprimir suas
propostas, negocia cabedais municipais, substituindo a enxada pela burocracia, o
coronelismo pelo clientelismo e, diante de um quadro heterogêneo de representação
e interesses, busca agregar para processar as pressões e permitir a governabilidade.
19 LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
Tudo bem que o princípio da simetria não pode ser entendido e interpretado de
forma absoluta e que ele, como “norte” vinculante, pode ser relativizado (excepcionado)
em algumas situações22. Mas não pode a sua flexibilização servir de medidor político,
coadunando com a possibilidade de se instaurarem verdadeiras monarquias no Poder
Legislativo por meio de presidências sucessivas indeterminadamente.
Assim, não resta dúvida que os Municípios são entes federados autônomos e têm
certa autonomia para auto-organização, mas não podem se sobrepor ao que prescreve
21 Na ocasião, apenas os Ministros Marco Aurélio e Néri da Silveira atentaram para a necessidade de
respeitar à simetria por se tratar de composição de Poder e por essa composição obedecer aos preceitos
republicanos. Em seu voto, o Ministro Néri da Silveira argumentou: “Assim como os governadores não
podem ser reeleitos – à semelhança do Presidente da República, do Presidente da Câmara dos Deputados
e do Presidente do Senado Federal, em decorrência da regra expressa da Constituição – a reeleição está
vedada tanto para o Poder Executivo quanto para o Poder Legislativo. Não vejo por que o Governador e
o Presidente do Tribunal de Justiça não podem ser reeleitos e o Presidente da Assembleia Legislativa
pode. (...) Sobre ser saudável o princípio da renovação do comando das Casas Legislativas, assim como
entendo ser saudável a renovação do comando da Administração Federal e do comando dos Tribunais,
peno que, no caso concreto, nada está a justificar que permaneça a regra local que admite a reeleição de
Presidente da Assembleia Legislativa”.
22 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. ampl. E atual.–Salvador.
JusPODIVM, 2017.p. 915
Referências
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WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. New York: Oxford University Press, 1999.
Resumo
O presente artigo pretende analisar criticamente a decisão do Supremo
Tribunal Federal que restringiu o alcance do foro por prerrogativa de função
como exemplo que reforça a preocupante e contestável expansão da auto-
ridade da Corte em detrimento do Poder Legislativo. Nos 30 anos da Carta,
a problemática parece contemplar um Tribunal Constitucional que atua
como legislador ativo, definindo o sentido e o alcance de uma prerrogativa
parlamentar lastreada em uma interpretação que extrapola os limites das
próprias normas constitucionais.
INTRODUÇÃO
O Supremo Tribunal Federal decidiu unanimemente, em maio de 2018, por
uma interpretação restritiva do art. 102, I, “b”, da Constituição Federal. Os ministros
A partir disso, faz-se necessária uma leitura analítica e crítica do texto constitu-
cional e do fundamento das decisões relativas à problemática do foro por prerrogativa
de função contidas naquela Questão de Ordem, sobretudo no que se refere às garantias
constitucionais estabelecidas aos congressistas e também aos fundamentos políticos
democráticos ensejados pela Constituição Federal de 88.
3 Além disso, a Questão de Ordem fixou as seguintes teses: (ii) após o final da instrução processual, com
a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para
processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro
cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo; (iii) essa nova linha interpretativa
deve se aplicar imediatamente aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados
e decisões proferidas pelo STF e pelos demais juízos com base na jurisprudência anterior, conforme
precedente firmado na Questão de Ordem no Inquérito 687 (Rel. Min. Sydney Sanches, j. 25.08.1999);
(iv) embora se viesse interpretando a literalidade desse dispositivo no sentido de que o foro privilegiado
abrangeria todos os crimes comuns, é possível e desejável atribuir ao texto normativo acepção mais
restritiva, com base na teleologia do instituto e nos demais elementos de interpretação constitucional.
4 QUESTÃO DE ORDEM na Ação Penal 937/Rio de Janeiro. Rel. Min. Luis Roberto Barroso. Autor: Ministério
Público Federal. Réu: Marcos da Rocha Mendes. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/voto-
barroso-foro-especial.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2018.
5 KOERNER, Andrei. Judiciário e moralização da política: três reflexões sobre as tendências recentes no
Brasil. In: Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 3, set./dez, 2013, p. 705. Disponível em: <http://periodicos.unifor.br/
rpen/article/viewFile/2807/pdf>. Acesso em: 5 ago. 2018.
6 “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I–processar e julgar, originariamente: [...] b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o
Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da
República;”
A Constituição de 34, em seu art. 113, bem como tribunais de exceção: “Não haverá
foro privilegiado nem tribunaes de excepção; admittem-se, porém, juízos especiaes em
7 Ainda que as Constituições de 1824, que dispunha, em seu art. 179, XVII, que “À excepção das Causas,
que por sua natureza pertencem a Juízos particulares, na conformidade das Leis, não haverá foro
privilegiado, nem commissões especiaes nas causas cíveis, ou crimes”, e de 1891, que dispunha “À
excepção das causas, que, por sua natureza, pertencem a juízos especiaes, não haverá foro privilegiado”,
percebe-se que a proibição do foro privilegiado nas Constituições brasileiras é despicienda, do ponto de
vista da teoria processual, já que a previsão de juízos especiais em razão da matéria não configura foro
privilegiado, porquanto este é fixado com base em critérios pessoais e não materiais. Tal proibição tinha
por intuito enfatizar que somente a “natureza da causa”, e não a qualidade da parte, poderia servir de
critério para definição da competência de juízos especiais.
8 “A Constituição democrática de 1946, celebrada como um dos maiores marcos da trajetória constitucional
do Brasil, deu ao Senado Federal a competência para julgar o Presidente da República nos crimes de
responsabilidade (se admitida a acusação pela Câmara dos Deputados) e os Ministros de Estado nos
crimes da mesma natureza conexos com os daquele, bem como processar e julgar os Ministros do
Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República, nos crimes de responsabilidade (art. 62,
I e II). Nos crimes comuns, o Presidente da República seria submetido a julgamento perante o Supremo
Tribunal Federal, também se admitida a acusação pela Câmara dos Deputados (art. 88). Quanto ao
Supremo Tribunal Federal, competia-lhe processar e julgar originariamente o Presidente da República
nos crimes comuns, bem como os seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República nos crimes
comuns; os Ministros de Estado, os juízes dos Tribunais Superiores Federais, dos Tribunais Regionais
do Trabalho, do Tribunais de Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, os Ministros
do Tribunal de Contas e os Chefes de missão diplomática de caráter permanente, assim nos crimes
comuns como nos de responsabilidade, ressalvado, quanto aos Ministros de Estado, a os crimes conexos
com os do Presidente da República (art. 101, I, a, b e c). No âmbito estadual, competia privativamente
ao Tribunal de Justiça processar e julgar os Juízes de inferior instância, nos crimes comuns e nos de
responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral, quando se tratasse de crimes eleitorais.”
(FILHO, 2016, p. 7).
9 “Hoje, por determinação da Constituição Federal ou de leis que dela decorrem, possuem foro especial por
prerrogativa de função o Presidente e o Vice-Presidente da República; os membros do Congresso Nacional;
os Ministros do Supremo Tribunal Federal; o Procurador-Geral da República; os Ministros de Estado; os
Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; os membros dos Tribunais Superiores, os do
Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente; as autoridades
ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, em
caso de habeas corpus; os Governadores dos Estados e do Distrito Federal; os desembargadores
dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal; os membros dos Tribunais de Contas dos
Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e
do Trabalho; os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios; as autoridades federais
da administração direta ou indireta, em caso de mandado de injunção; os juízes federais, incluídos os da
Justiça Militar e da Justiça do Trabalho; os membros do Ministério Público da União; os juízes estaduais
e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público estadual; os Prefeitos; os
oficiais generais das três Armas (Lei 8.719, de 1993, art. 6º, I); e os juízes eleitorais, nos crimes eleitorais
(Código eleitoral, art. 29, I, d).” (FILHO, 2016, p. 8-9).
10 Segundo Koerner: “A regra segundo a qual os ocupantes de determinados cargos têm direito a foro
especial para serem julgados por tribunais superiores faz parte de nossa história. Adotada desde a
Constituição de 1824 e preservada pela de 1891, as Constituições posteriores ampliaram os ocupantes
de cargos beneficiados por ela. Mesmo no regime militar, ampliou-se o seu alcance, com o objetivo de
tornar mais expeditas as punições a parlamentares e ocupantes de cargos públicos20. A Constituição
de 1988 ampliou os cargos que eram beneficiados pelo foro privilegiado, compreendendo, em 1999, os
comandantes militares (art. 102, I, c, com redação dada pela EC n° 23, de 1999). Quanto às imunidades
parlamentares, a Constituição combinou a necessidade de licença da Casa para o início do processo
em qualquer crime e o foro privilegiado no STF. Em 2001, a regra foi modificada, para permitir que o STF
pudesse iniciar o processo, que seria aprovado (art. 52, § 3°, com redação dada pela EC n° 35, de 2001).”
KOERNER, Andrei. Judiciário e moralização da política: três reflexões sobre as tendências recentes no
Brasil. In: Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 3, set./dez, 2013, p. 704. Disponível em: <http://periodicos.unifor.br/
rpen/article/viewFile/2807/pdf>. Acesso em: 5 ago. 2018.
Os argumentos pelo fim do foro de função aos parlamentares para casos que
não estejam diretamente ligados ao seu exercício passam, segundo Barroso, pela
“disfuncionalidade” do instituto, já que “o Supremo Tribunal Federal não tem sido capaz
de julgar de maneira adequada e com a devida celeridade os casos abarcados pela
prerrogativa”12, sobrecarregando e tornando lenta as tramitações processuais, adiando
julgamentos e condenações, o que leva à impunidade; em um segundo momento,
Barroso defende a necessidade do duplo grau de jurisdição, ainda que não seja um
princípio constitucional expresso, afirma.
Curiosamente,
11 Conforme dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV). BETIM, Felipe. STF abre caminho para limitar foro
privilegiado de deputados e senadores. El país, São Paulo, 24 nov. 2017. Disponível em: <https://brasil.
elpais.com/brasil/2017/11/23/politica/1511464819_756831.html>. Acesso em: 5 ago. 2018.
12 QUESTÃO DE ORDEM na Ação Penal 937/Rio de Janeiro. Rel. Min. Luis Roberto Barroso. Autor: Ministério
Público Federal. Réu: Marcos da Rocha Mendes. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/voto-
barroso-foro-especial.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2018.
13 KOERNER, Andrei. Judiciário e moralização da política: três reflexões sobre as tendências recentes no
Brasil. In: Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 3, set./dez, 2013, p. 704. Disponível em: <http://periodicos.unifor.br/
rpen/article/viewFile/2807/pdf>. Acesso em: 5 ago. 2018.
14 Ibidem, p. 706.
15 FILHO, Newton Tavares. Foro privilegiado: pontos positivos e negativos. Consultoria Legislativa, Brasília,
2016. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/a-camara/documentos-e-pesquisa/estudos-e-notas-
tecnicas/areas-da-conle/tema6/2016_10290_foro-privilegiado-pontos-positivos-e-negativos.
O foro por prerrogativa de função está disposto no art. 53, §1º, da CF/88 que
dispõe que os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos
a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal. Inserindo-se, também, a aplicação do
art. 102, I, b, da CF que prescreve que compete ao Supremo Tribunal Federal, precipua-
mente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, nas
infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros
do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República.
16 GONÇALVES, Bernardo. Curso de Direito Constitucional,–9. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM,
2017, p. 989.
17 Em 2007, o STF anulou indiciamento realizado pela PF contra o senador Aloísio Mercadante.
18 O STF vinha se posicionando das duas maneiras, ora declinando da competência e não desmembrando,
à exemplo do caso do “Mensalão”, ora desmembramento com base na conveniência da instrução
processual, à exemplo da Operação “Lava-Jato”–Inq 3515 AgR/SP 12/02/2014.
A Ação Penal 937 trata do caso do ex-deputado federal Marcos da Rocha Mendes,
acusado de corrupção eleitoral (compra de votos) quando era candidato à prefeitura de
Cabo Frio/RJ, em 2008. Como Marcos Mendes foi eleito prefeito, o caso começou a ser
julgado no Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), onde a denúncia foi
recebida em 2013. Com o fim do mandato, o caso foi encaminhado à primeira instância
da Justiça Eleitoral.20
Em 2015, como era o primeiro suplente do partido para a Câmara dos Deputados
e diante do afastamento de titulares, Marcos da Rocha Mendes passou a exercer o
mandato de deputado federal, levando à remessa dos autos ao STF. Eleito novamente
prefeito de Cabo Frio, em 2016, renunciou ao mandato de deputado federal quando
a ação penal já estava liberada para ser julgada pela Primeira Turma do Supremo.21
19 Ex: Caso Cunha Lima (2007) – a competência foi deslocada. Mas o STF modificou posicionamento
no caso do Deputado Federal de Rondônia Natan Donadon em 2010, mantendo sua competência para
processo e julgamento sob argumento de fraude processual, abuso de direito e “burla” da Constituição.
Outra inversão jurisprudencial aconteceu conforme os Informativos n. 525 e 734 do STF. O primeiro
consiste no caso do Deputado Federal militar em que o julgamento fora iniciado com foro, mas no pleito
seguinte o deputado não foi reeleito e o processo foi mantido no STF. No segundo caso, o julgamento
fora iniciado sem foro e o candidato se elegeu no pleito seguinte; neste caso, não houve anulação do
julgamento do TJ, invalidando os atos subsequentes.
20 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Restrição a foro por prerrogativa de função na pauta desta quarta-
feira (2). Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=377039>.
Acesso em: 05 ago. 2018.
21 Ibidem.
A questão de ordem fixou as seguintes teses: (i) o foro por prerrogativa de função
aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às
funções desempenhadas; (ii) após o final da instrução processual, com a publicação
do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para
processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público
vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo;
(iii) essa nova linha interpretativa deve se aplicar imediatamente aos processos em
curso, com a ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e
pelos demais juízos com base na jurisprudência anterior, conforme precedente firmado
na Questão de Ordem no Inquérito 687 (Rel. Min. Sydney Sanches, j. 25.08.1999).
22 Ibidem.
23 QUESTÃO DE ORDEM na Ação Penal 937/Rio de Janeiro. Rel. Min. Luis Roberto Barroso. Autor: Ministério
Público Federal. Réu: Marcos da Rocha Mendes. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/voto-
O art. art. 53, §1º, da CF/88, é claro ao afirmar que deputados e senadores, desde
a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal
Federal. Correlacionado a esta disposição normativa, o art. 102, I, b, da CF/88, também
dispõe expressamente ao contrário, ou seja, que o STF é competente para julgar e
processar originariamente os membros do Congresso Nacional. Não há qualquer outra
norma constitucional que autorize a interpretação conferida pela Corte. Por que então
é razoável a defesa de que a nova interpretação restritiva conferida tem o condão de
assegurar a Constituição?
24 Jeremy Waldron, A Essência da Oposição ao Judicial Review. In BIGONHA, Antonio Carlos Alpino e
MOREIRA, Luiz. Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 118.
26 STJ. Foro para governadores e conselheiros é restrito a fatos relacionados ao cargo. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/
Foro-para-governadores-e-conselheiros-%C3%A9-restrito-a-fatos-relacionados-ao-cargo>. Acesso em: 06
ago. 2018.
27 Art. 1º, Parágrafo único, CF: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
28 FEREJOHN, John. Judicializando a Política, Politizando o Direito. In: MOREIRA, Luiz (Org.). Judicialização
da Política. São Paulo: 22 Editorial, 2012, p. 68.
29 Ibidem, p. 68.
32 Ibidem, p. 77.
34 Ibidem, p. 91.
35 “Diferentemente das constituições liberais, que estabeleciam poucos direitos e privilegiavam o desenho
de instituições políticas voltadas a permitir que cada geração pudesse fazer as suas próprias escolhas
substantivas, por intermédio da lei e de políticas públicas”. VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. In:
Revista Direito GV. São Paulo, p. 441-464, jul-dez 2008, p. 443.
36 “There is no principle of democracy in the U.S. Constitution. (True, we can infer the importance of certain
democratic considerations from Article I, 2.1, and also from the Fifteenth, Nineteenth, Twenty- Fourth,
and Twenty- Sixth Amendments, but the principle of democracy itself cannot be regarded as legally
enshrined.) Nevertheless, democracy is an indispensable part of our best theory of governance, and it
would be wrong to forego any interest in it simply on account of its lacking explicit legal status in the
text of the Constitution. Th e same is true of the rule of law. Although the framing of the U.S. Constitution
was permeated by the spirit of the rule of law, still the rule of law is not presented in the Constitution as a
free- standing principle and cannot be judicially enforced as such”. WALDRON, Jeremy. Political Political
Theory: essays on institutions. Cambridge: Harvard Univeristy Press, 2016, p. 47.
37 MELLO, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, 28 ed. São Paulo: Malheiros,
2011, p. 123.
38 O Princípio Democrático está disposto na Constituição Federal de 1988 em três situações distintas, quais
sejam, no Preâmbulo, no art. 1º e no art. 3º.
39 A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 2º, consagra o Princípio da Separação de Poderes no
Estado brasileiro ao dispor que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo,
o Executivo e o Judiciário.
40 Consubstanciado na definição das autoridades competentes, dos atos a serem editados, dos conteúdos
a serem regulados, dos procedimentos devidos, das matérias a serem tratadas, como forma de
potencializar os ideais de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade normativas. Exemplos:
processo legislativo, devido processo legal, supremacia da lei, reserva de lei, anterioridade da lei,
vigência da lei, incidência da lei, retroatividade e ultra-atividade da lei, repristinação da lei, lacunas da
lei, legalidade administrativa (artigo 37, caput, CF/88), legalidade penal (artigo 5º, inciso XXXIX, CF/88) e
legalidade tributária (artigo 150, inciso I, CF/88).
41 WALDRON, Jeremy. Political Political Theory: essays on institutions. Cambridge: Harvard Univeristy
Press, 2016, p. 51.
43 WALDRON, Jeremy. Derecho y desacuerdos. Traducción José Luis Martí y Águeda Quiroga. Madrid:
Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., 2005, p. XVIII.
44 WALDRON, Jeremy. Political Political Theory: essays on institutions. Cambridge: Harvard Univeristy
Press, 2016, p. 125, (tradução nossa).
45 “In democratic states most government officials achieve legitimacy by acknowledging their political rule
and claiming subordination to the people through elections or responsibility to those elected. Judges,
however, claim legitimacy by asserting that they are non-political, independent, neutral servants of ‘the
law’. Alone among democratic organs of government, courts achieve legitimacy by claiming they are
something they are not.” SHAPIRO, Martin; SWEET, Alec Stone. On Law, Politics, and Judicialization. New
York: Oxford University Press, 2002, p. 03.
46 Elas não são publicamente fornecidas com as estruturas, recursos e pessoal necessários para um
papel legislativo. Eles têm que estar juntos para a legislação a partir dos escritos que consideram ser a
razão para o cumprimento do cumprimento das leis existentes e a solução de controvérsias. WALDRON,
Jeremy. Political Political Theory: essays on institutions. Cambridge: Harvard Univeristy Press, 2016, p.
126.
48 Para aprofundamento, consultar SHAPIRO, Martin; SWEET, Alec Stone. On Law, Politics, and
Judicialization. New York: Oxford University Press, 2002.
51 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 06.
52 URBINATI, Nadia. Representação como advocacy. Tradução de Sieni Maria Campos. In Política &
Sociedade – Revista de Sociologia Política, v. 9, n. 16, abr. 2010, p. 54.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A decisão aqui estudada é apenas uma dentre tantas outras que toca o muito
sensível ponto sobre a atuação das instituições estatais brasileiras, em especial o
Judiciário.
53 Cf. PRZEWORSKI, Adam. Divided We Stand? Democracy as a Method of Processing Conflicts. In:
Scandinavian Political Studies, vol. 34, n. 2, 2011, pp. 168-182.
54 WALDRON, Jeremy. Political Political Theory: essays on institutions. Cambridge: Harvard Univeristy
Press, 2016.
55 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 06.
56 URBINATI, Nadia. Representação como advocacy. Tradução de Sieni Maria Campos. In: Política &
Sociedade – Revista de Sociologia Política, v. 9, n. 16, abr. 2010, p. 55.
A história do Brasil nos aponta os modos que constituem a relação entre aquilo
que é público e privado. Herdeiro da prática do “favor”, movido pelo jeitinho, também o
Judiciário, apesar de ter sido programado para atender aos interesses públicos, padece
da falta de controle que não seja aquele que faz sobre si mesmo.
Embora até maio de 2018 os art. 53 e 102 fossem interpretados literalmente, isto
é, no sentido de que o foro privilegiado abrangeria todos os crimes comuns, o STF
entendeu, pelos motivos já tratados, que uma acepção mais restritiva seria cabível. Com
o intuído de submeter a constituição à realidade, e não o contrário, tratou de promover
uma “redução teleológica” do texto constitucional. Reduziu, desta forma, o campo de
aplicação de uma disposição normativa a somente uma ou algumas das situações de
fato previstas por ela segundo uma interpretação literal.
Conforme preleciona o art. 102, caput, da CF, ao STF cabe a guarda da Constituição
– e esse é um fundamento constantemente reforçado pelo Ministro em seu voto. Não
existe norma constitucional que atribui ao STF a competência de restringir, por qualquer
motivo, a imunidade formal em relação ao processo. Não existe norma constitucional
que, correlacionada ao art. 53, § 1º, da CF/88, autorize e justifique a nova interpretação.
Existe, por outro lado, disposição do art. 102, I, b, da CF, que expressa justamente
aquilo que se quis negar: o STF é competente para julgar e processar originariamente
os membros do Congresso Nacional.
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57 SOUZA, Jessé. O “republicanismo” da esquerda e o Estado de Exceção. Carta Capital, 22 maio 2018.
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cevou-o-estado-de-excecao>. Acesso em: 06 ago. 2018.
Resumo
A Constituição cidadã de 1988 marcou história no constitucionalismo
brasileiro por ter sido redigida com uma expressiva participação popular reali-
zada por diversos instrumentos. A promessa democrática resultante deste
processo encontrou uma série de entraves, problemas e dificuldades ao longo
dos 30 anos de sua implementação. A falta de confiança nas instituições
políticas é um dos elementos que marcam a crise da democracia representa-
tiva e demonstra as contradições da promessa democrática. Nesse sentido,
o objetivo deste capítulo é de realizar um balanço da participação popular,
por meio de iniciativas legislativas, na Constituinte de 1988 e no período de
Introdução
O ideário democrático passou a fazer parte mais consistentemente do discurso
político logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, a democracia contem-
porânea passou a ser gestada logo após o fim da ditadura militar, tendo por um de
seus maiores símbolos a Assembleia Nacional Constituinte que resultou na elaboração
da Constituição de 1988. A Assembleia Nacional Constituinte, portanto, se insere na
dinâmica de construção política e jurídica de uma promessa democrática, assentada
numa concepção substancial de democracia que corresponde à positivação e efetivação
de novos direitos, tendo sido reconhecida a participação popular como elemento
fundamente da soberania popular.
Este capítulo tem por objetivo fornecer subsídios teóricos pare refletir sobre a
construção da promessa democrática no Brasil por meio da Constituição de 1988.
Para tanto, será realizado um balanço da participação popular realizada por meio
das propostas de iniciativa popular legislativas no âmbito da Assembleia Nacional
Constituinte e ao longo dos 30 anos de vigência do texto constitucional. O estudo
3 Para aprofundamentos, ver: SARTORI, Giovanni. Democrazia: cosa è? Roma: Rizzoli Libri, 2006; MIGUEL,
Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora UNESP, 2014; DAHL,
Robert. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora da UnB, 2001; PATEMAN, Carole.
Participação e teoria democrática. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
4 HOBSBAWN, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 97.
5 “Com efeito, na oratória política do nosso tempo, que em sua quase totalidade pode ser descrita, nas
palavras do grande Leviatã de Thomas Hobbes, como “discurso insignificante”, o termo “democracia”
tem como significado esse modelo-padrão de Estado; e isso significa um Estado constitucional, que
oferece a garantia do império da lei e de vários direitos e liberdades civis e políticas e é governado
por autoridades, que devem necessariamente incluir assembléias representativas, eleitas por sufrágio
universal e por maiorias numéricas entre todos os cidadãos, em eleições realizadas a intervalos regulares
entre candidatos e/ou organizações que competem entre si. Os historiadores e os cientistas políticos
podem recordar-nos, e com razão, de que esse não é o significado original de democracia e de que com
certeza não é o único”. HOBSBAWN, Eric. Globalização, democracia e terrorismo, p. 98.
6 Para aprofundamentos, ver: ACKERMAN, Bruce. The rise of world constitutionalism. Yale Law School,
1997.
7 HÄBERLE, Peter. Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura. Madrid: Tecnos, 2000.
8 Para uma análise crítica, ver: ELSTER, Jon. Forças e mecanismos no processo de elaboração da
constituição. In BIGONHA, Antonio Carlos Alpino; MOREIRA, Luiz (orgs). Limites do Controle de
Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
9 Nesse sentido, utiliza-se a distinção realizada por Chantal Mouffe entre “político” e “política”. De acordo
com a autora, o termo “político” se refere a uma dimensão maior, marcada pelas relações de poder em
uma sociedade. Já o termo “política” designa a política institucional realizada no âmbito de cada Estado.
Cfe. MOUFFE, Chantal. El retorno de lo político: comunidade, ciudadanía, pluralismo, democracia radical.
Buenos Aires: Paidós, 1999.
10 ALVES, José Carlos Moreira. Discurso de instalação da Assembleia Nacional Constituinte. Revista
Ciência Jurídica, v. 3, n. 26, p. 33-39, mar/abr. 1989, p. 08.
12 VERSIANI, Maria Helena. Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão. Revista Democracia Viva, n.
40, setembro de 2008.
14 HERKENHOFF, João Baptista. Gênese dos Direitos Humanos. 2. ed. Aparecida, SP: Santuário, 2002.
15 “Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de
trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de
estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e
autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.” Trecho do discurso de Ulysses Guimarães na
promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988.
16 CHINAGLIA, Arlindo. A reconquista da cidadania. In. BACKES, Ana Paula; AZEVEDO, Débora Bithiah de. A
sociedade no parlamento: imagens da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Brasília: Câmara
dos Deputados, 2008, p. 09.
17 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002, p. 7.
18 DE PAULA, Regina. Documentário Cartas ao País dos Sonhos. Brasília: TV Senado, 2013.
21 Gráfico extraído de: BRANDÃO, Luis Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte
de 1987-1988: entre a política institucional e a participação popular, Op. Cit., p. 82.
Como José Afonso da Silva afirma, o processo de elaboração do texto que resultou
na Constituição de 1988 foi permeado por uma dinâmica de embate entre conservadores
e progressistas. Tanto a Comissão Afonso Arinos (Comissão Provisória de Estudos
Constitucionais) como a Assembleia Nacional Constituinte, como um todo, eram
compostas de maioria conservadora que entraram em constante embate com a minoria
progressista. No entanto, foram produzidos resultados razoavelmente progressistas23
ao longo da Assembleia Constituinte. Os conflitos também se mostraram presentes
nos processos de crise da Constituinte, como foi o caso do “Centrão”, a inatividade
da Comissão e Sistematização em 1987, a interrupção dos trabalhos da Constituinte
entre 18.11.1987 a 28.1.1988, o processo de realização de acordos políticos, dentre
outros24. No entanto, prevaleceu na Assembleia Nacional Constituinte, como resultado,
a elaboração de um documento essencialmente progressista que primou pela cidadania
enquanto fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso II), e pela forma
democrática, inscrita na noção de “Estado democrático de direito” (art. 1º, caput),
23 SILVA, José Afonso da. O processo de formação da Constituição de 1988. In: LIMA, João Alberto de
Oliveira. A gênese do texto da Constituição de 1988. Brasília: Senado Federal, 2013, p. XXIV – XXV.
24 Para aprofundamentos sobre as dinâmicas da Constituinte, bem como sobre o processo de modernização
do direito, ver: KOERNER, Andrei; FREITAS, Lígia Barros de. “O Supremo na Constituinte e a Constituinte no
Supremo”. Lua Nova, São Paulo, 88: 141-184, 2013; e, QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. A modernização do
direito penal brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2007.
Tal participação ocorreu sobretudo por meio das chamadas “emendas populares”25.
Assegurado pelo art. 24 do Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte,
as emendas teriam que ser subscritas por pelo menos trinta mil eleitores, em listas
organizadas por, no mínimo, três entidades associativas legalmente constituídas,
responsáveis pela idoneidade das assinaturas. Ao todo foram recebidas 122 emendas
populares, apresentadas à Comissão de Sistematização. Elas foram marcadas por
uma heterogeneidade temática, variando de termas desde esportes até desarmamento
nuclear, além de uma heterogeneidade de entidades responsáveis, o que demonstra a
pluralidade de atores e perspectivas que tentaram influenciar o processo político na
Constituinte –entidades sindicais, associações profissionais, técnicas, científicas ou
acadêmicas; entidades religiosas; entidades patronais ou empresariais; entidades civis
(defesa dos direitos humanos, consumidor, de minorias, de mulheres, associações de
moradores, entidades estudantis, etc.) e instâncias ou entidades ligadas aos poderes
executivo ou legislativo (associações de municípios, câmaras de vereadores, assem-
bleias legislativas, prefeituras, dentre outros).
25 Para aprofundamento, ver: MICHELS, Carlos. Cidadão constituinte: a saga das emendas populares. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
A ANC pode ser entendica, nesse contexto, como a construção de uma promessa
democrática que redefine os limites até então estabelecidos do que era – e do que podia
ser – a democracia e a cidadania. O desenho de Estado estabelecido na Constituição
ampliou a possibilidade efetiva da construção de um novo modelo de sociedade,
baseado e fundado na cidadania. As emendas populares, por terem sido um mecanismo
de participação popular bem sucedido, demonstram empiricamente a vontade popular
por mudanças estruturais na ordem da política estatal, indicado pela homogeneidade
de temáticas incluídas nas propostas recebidas.
29 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 186.
30 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 06.
Ao discorrer sobre esse direito, o autor elucida a participação como o direito dos
direitos, não exatamente por ser um direito moralmente superior, mas, precisamente,
porque consiste em um direito apropriado no caso em que os indivíduos divergem
sobre os direitos que possuem. Aludindo à concepção de Karl Marx sobre ser o direito
de participação um direito negativo34, o autor traça uma via alternativa de encarar esse
31 WALDRON, Jeremy. Derechos y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 281, (tradução nossa).
32 Ibidem, p. 281.
33 Ibidem, p. 281.
34 Karl Marx dividiu direitos do homem de direitos do cidadão, estabelecendo, em síntese, que o primeiro é
o direito do homem egoísta, separado dos demais homens da sociedade e, o segundo, direitos políticos
que só podem ser exercidos em comunidade com outros homens. Nesse sentido, Waldron defende que
o direito de participação não constitui um direito negativo, pois o direito ao voto, por exemplo, não pode
ser garantido pela legislação – esta apenas impõe limites ao governo executivo. Ainda, também não
consiste em uma liberdade negativa para expressar uma preferência por um político favorito. O direito
ao voto vai além e requer muito mais que uma abstenção; requer instituições e operações de sistemas
administrativos, mão-de-obra, recursos, pessoal para executar ações do governo, etc. WALDRON, Jeremy.
Derechos y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 279, (tradução nossa).
36 Cf. WALDRON, Jeremy. Derechos y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 285, (tradução nossa).
37 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 07.
38 Ibidem, p. 07.
A Lei originariamente não previa em seu rol o crime de homicídio qualificado que
trata de crimes de maior gravidade, cujo delito compreende a incidência da intenção de
matar aliado a algum fator que tornou o crime ainda mais grave (motivo fútil ou torpe,
meios cruéis, acobertamento de outro crime e dificultação de defesa). Em dezembro de
1992, a atriz Daniella Perez, filha da autora de telenovelas Glória Perez, foi brutalmente
assassinada por Guilherme de Pádua, e sua esposa, Paula Nogueira Thomaz. Daniela
era protagonista de uma novela da Rede Globo naquele ano, motivo pelo qual o episódio
causou profunda comoção popular. Além disso, a mãe da atriz denunciou as “regalias”
a que os autores do crime tinham direito, ou seja, mesmo sendo acusados de homicídio
qualificado, os acusados tiveram direito a fiança e, quando condenados, cumpriram
parte da pena em regime semiaberto.
39 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n. 113, de 1994. Dá nova redação ao art. Primeiro da Lei 8072,
de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. Quinto, inciso XLIII,
da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/
web/atividade/materias/-/materia/22214, Acesso em 01 ago. 2018.
42 SENADO FEDERAL. Projeto de Lei da Câmara n° 45, de 1999–LEI DA CORRUPÇÃO ELEITORAL. Disponível
em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/41854>. Acesso em: 01 ago.
2018.
44 Ibidem, p. 13.
Por fim, o quarto projeto de lei de inciativa popular corresponde à Lei Complementar
135/2010: a Lei da Ficha Limpa. O Projeto de Lei da Câmara n° 58, de 2010 (comple-
mentar) (Nº na origem: PLP 168/1993) foi registrado como autoria da Câmara dos
Deputados, inciativa do Presidência da República.49 Apresentado em 22/10/1993,
o projeto pretendeu alterar a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que
estabelece, de acordo com o § 9º do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegi-
bilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses
de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no
45 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Combatendo a corrupção eleitoral. Biblioteca Digital da Câmara dos
Deputados–Centro de Documentação e Informação Coordenação de Biblioteca, Brasília, 1999. Disponível
em: <http://bd.camara.gov.br>.
46 SENADO FEDERAL. Projeto de Lei da Câmara n° 36, de 2004. Disponível em: <https://www25.senado.leg.
br/web/atividade/materias/-/materia/68396>. Acesso em: 01 ago. 2018.
48 ANDRÉ, Daniela. Moradia: Proposta de iniciativa popular. Câmara Agência Notícias, 07 ago. 2002.
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/agencia/noticias/21644.html>. Acesso em: 01 ago. 2018.
O projeto foi encabeçado por entidades que fazem parte do Movimento de Combate
à Corrupção Eleitoral (MCCE), e mobilizou vários setores da sociedade brasileira, entre
eles, a Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais
(Abramppe), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), organizações não governamentais, sindicatos, associações e confederações
de diversas categorias profissionais, além da Igreja católica. Foram obtidas mais de 1
milhão e 600 mil assinaturas em apoio.51
Dos quatro projetos que se originaram da iniciativa popular, três deles versam
sobre pontos de forte apelo popular: corrupção e penas para crimes hediondos. Dois
desses projetos versaram sobre temas relacionados à corrupção, tema que vem à
mente de grande parte dos brasileiros quando o assunto é política. Esse contexto
demonstra, em alguma medida, que há uma preocupação, em tese, a com a lisura dos
agentes públicos. Se essa preocupação é parte de um projeto maior de criminalização
da própria política já é um assunto que não cabe refletir neste artigo52. Outro projeto
tratou de uma questão penal muito importante e ainda teve respaldo em um episódio
trágico, que causou comoção nacional, além de contar com a iniciativa de uma pessoa
conhecida pelo público, Glória Perez. Por fim, dos quatro projetos, pode-se dizer que o
mais peculiar é o que criou Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, que teve
interesse popular por tentar resolver o problema da moradia no país. Ele também foi
o projeto que mais demorou para ser aprovado (14 anos, ao todo).53
Uma nova forma de participação por iniciativa popular tem sido pensada. A coleta
de assinaturas de apoio a projetos de lei de iniciativa popular poderá ser feita pela
Internet, sendo que a mudança está entre as sugestões da comissão especial da
51 LADEIRA, Beatriz Maria do Nascimento. Compreendendo a Lei da Ficha Limpa. Tribunal Superior Eleitoral,
Revista eletrônica EJE n.4, ano 5. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/o-tse/escola-judiciaria-eleitoral/
publicacoes/revistas-da-eje/artigos/revista-eletronica-eje-n.-4-ano-5/digressoes-sobre-as-doacoes-de-
campanha-oriundas-de-pessoas-juridicas>. Acesso em: 01 ago. 2018.
53 4 PROJETOS de iniciativa popular que viraram leis. Politize. Disponível em: < http://www.politize.com.
br/4-projetos-de-iniciativa-popular-que-viraram-leis/>. Acesso em: 01 ago. 2018.
Alguns dados, obtidos de pesquisas sobre a confiança nas instituições podem ser
destacados. “Retratar a confiança do cidadão em uma instituição significa identificar
se o cidadão acredita que essa instituição cumpre a sua função com qualidade, se faz
isso de forma em que benefícios de sua atuação sejam maiores que os seus custos e
se essa instituição é levada em conta no dia-a-dia do cidadão comum”56.
54 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Coleta de assinaturas de apoio a projetos de lei de iniciativa popular poderá
ser feita pela Internet. Câmara dos Deputados, 09 fev. 2018. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/
camaranoticias/noticias/POLITICA/553306-COLETA-DE-ASSINATURAS-DE-APOIO-A-PROJETOS-DE-LEI-
DE-INICIATIVA-POPULAR-PODERA-SER-FEITA-PELA-INTERNET.html>. Acesso em: 03 ago. 2018.
55 WALDRON, Jeremy. Derecho y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 295, (tradução nossa).
57 ICJBRASIL 2017: Confiança da população nas instituições cai. FGV, 24 out. 2017. Disponível em: <https://
portal.fgv.br/noticias/icjbrasil-2017-confianca-populacao-instituicoes-cai>. Acesso em: 03 ago. 2018.
58 Foram realizadas 2.824 entrevistas presenciais em 174 municípios, com margem de erro máxima 2 pontos
percentuais para mais ou para menos considerando um nível de confiança de 95%. Isto significa que se
fossem realizados 100 levantamentos com a mesma metodologia, em 95 os resultados estariam dentro
da margem de erro prevista. Disponível em: < http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2018/06/15/
e262facbdfa832a4b9d2d92594ba36eeci.pdf>. Acesso em: 03 ago. 2018.
59 DATAFOLHA. Partidos, Congresso e Presidência são instituições menos confiáveis do país. Datafolha
Instituto de Pesquisas, São Paulo, 15 jun. 2018. Disponível em: <https://datafolha.folha.uol.com.br/
opiniaopublica/2018/06/1971972-partidos-congresso-e-presidencia-sao-instituicoes-menos-confiaveis-
do-pais.shtml>. Acesso em: 03 ago. 2018.
60 MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp,
2014.
61 LEFORT apud MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo:
Editora Unesp, 2014., p. 13.
Atentos a isso, é preciso uma construção não apenas de uma cultura democrática,
mas também “investigar o próprio sentido de democracia”65. Isso porque,
62 Ibidem, p. 14.
63 “Condorcet demonstrou, já no século XVIII, que, na presença de mais de duas alternativas e mais de duas
pessoas votantes, há sempre o risco de que escolhas de indivíduos racionais levem a resultados coletivos
irracionais. A partir dele, Kenneth Arrow estabeleceu, no século XX, que a soma das racionalidades
individuais não produz uma racionalidade coletiva”. Ibidem, p. 14.
64 Cf. MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo: Editora
Unesp, 2014., p. pp. 15-17.
65 Ibidem, p. 27.
Quando uma democracia se encontra fragilizada, quase nada é tão frágil quanto
defender seu fim ao invés de tentar aprimorá-la. Democracia e representação são
territórios em disputa e são formas de exercício de poder. É verdade que autorização e
accountability (obrigação que os poderes públicos têm de se responsabilizar por seus
atos) são instrumentos que promovem a incerteza quanto ao exercício do poder, que,
como dizia Przeworski, é a marca da política democrática67. Mas, se são insuficientes,
como de fato são, nem por isso são descartáveis. “Formas de representação que deles
prescindem, como porta-vozes auto instituídos, quase com certeza estarão em pior
situação no que se refere a seu caráter democrático”68.
Considerações finais
A promessa democrática inscrita na Constituição de 1988 é marcada por uma
série de contradições. Em efeito, apesar do processo participativo da ANC ter resultado
em uma Constituição cujo texto é marcadamente progressista, em que sua plena
realização teria a potencialidade de transformar uma realidade ainda marcada pela
desigualdade – das mais variadas naturezas, política, social, econômica, cultural,
dentre outras – é fato, entretanto, que o processo de aplicação e concretização da
Constituição é marcado por uma série de conflitos de natureza política. O fato de
que em 30 anos de vigência somente tenham sido aprovados 4 projetos de iniciativa
popular em âmbito nacional demonstra a frágil cultura política de grande parte do povo
brasileiro, que por desconhecimento ou desinteresse não participa da vida política
ativamente da vida política nacional.
66 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 6.
67 PRZEWORSKI, Adam. Ama a incerteza e serás democrático. In: Novos Estudos, São Paulo, n. 9, p. 36-46,
1984 [1983].
68 MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp,
2014.
Referências
ACKERMAN, Bruce. The rise of world constitutionalism. Yale Law School, 1997.
ALVES, José Carlos Moreira. Discurso de instalação da Assembleia Nacional
Constituinte. Revista Ciência Jurídica, v. 3, n. 26, p. 33-39, mar/abr. 1989.
ANDRÉ, Daniela. Moradia: Proposta de iniciativa popular. Câmara Agência Notícias,
07 ago. 2002.
BRANDÃO, Luis Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte
de 1987-1988: entre a política institucional e a participação popular. Dissertação de
Mestrado em Sociologia. Universidade de São Paulo, 2011.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Combatendo a corrupção eleitoral. Biblioteca Digital
da Câmara dos Deputados–Centro de Documentação e Informação Coordenação de
Biblioteca, Brasília, 1999.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Coleta de assinaturas de apoio a projetos de lei de
iniciativa popular poderá ser feita pela Internet. Câmara dos Deputados, 09 fev. 2018.
Resumo
O artigo faz uma análise sobre as possibilidades que a abertura midiática
dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal traz para o desenvolvimento
de um controle social sobre os argumentos exarados pelos Ministros da
Corte. De forma analítica, examina hipóteses apontadas pela doutrina como
orientadoras para o estudo acerca das influências da opinião pública, e
de outros fatores externos, sobre a atividade jurisdicional das Cortes
Constitucionais. Dedica especial atenção para o exame das características da
imprensa comercial brasileira, a fim de que, derradeiramente, possa analisar
a relevância do papel até então cumprido pela TV Justiça, analisando as
diferenças entre mídias estatais e mídias comerciais.
Introdução
Com a crescente e rápida evolução dos meios de comunicação, sinal de uma
revolução tecnológica já adiantada no espectro da transmissão de informações, a
1 Professor no Centro Universitário UNA. Doutorando em Direito Político pela Universidade Federal de
Minas Gerais. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Pós-Graduado em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático. Graduado em
Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
SACCHETTO, Thiago Coelho. Justiça constitucional e mídia perspectivas teóricas e empíricas sobre as influências da opinião pública
sobre o Supremo Tribunal Federal. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo;
Duarte, Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 285-318. Disponível
em: https://doi.org/10.32445/978856713409312
questão da publicidade (com a transmissão ao vivo das sessões de julgamentos do
Colendo Tribunal) tem divido opiniões de especialistas quanto aos efeitos desta prática
adotada de forma pioneira pela principal corte jurisdicional brasileira.
Outros, por sua vez, dando importância basilar aos influxos de concepções demo-
cráticas nas quais se idealiza uma crescente e ilimitada permeabilidade das questões
do Estado e da Justiça pelos instrumentos de participação e controle pelo povo, e tendo
em conta as inexoráveis transformações promovidas pela Emenda Constitucional n.º
45/2004, entendem que os deveres de publicidade e transparência são atualmente
imposições teleológicas da Constituição Federal Brasileira de 1988, que devem ser
cumpridas com máxima efetividade.
2 Nesse sentido argumenta Luísa Neto para quem o nascimento da democracia está diretamente
associado a uma efetiva transparência e publicidade dos atos estatais. In verbis: “Ora, é bem sabido que a
democracia in statu nascendi pretendeu eliminar para sempre das sociedades humanas o poder invisível,
instaurando um governo cujos actos deveriam ser realizados em público, ‘au grand jour’, nos termos de
Maurice Joly. No fundo, foi este o mesmo princípio defendido por Kant, no Apêndice à Paz Perpétua,
segundo o qual ‘[T]odos os actos relativos ao direito de outros homens cuja máxima não seja susceptível
de ser tornada pública são injustos’”. p. 491. NETO, Luísa. Um outro tipo de “Freios e Contrapesos”: A
Comunicação Social no contexto do Estado de Direito Democrático. In: Estudos de Homenagem ao Prof.
Doutor Jorge Miranda. Volume II. Coordenação de Marcelo Rebelo de Sousa.. [et al.] Coimbra: Coimbra
Editora, 2012, pp. 491-493.
3 Para uma análise do inteiro teor da Emenda Constitucional n.º 45/04 consultar: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc45.htm. Acesso em 10/07/18.
Com uma análise atenta dos motivos que justificaram a proposição e a apro-
vação da EC n.º 45/044, constata-se que havia à época uma contumaz crítica ao Poder
Judiciário, que até então era considerado pela população como um poder: ineficiente,
moroso, com estruturação autocrática; e sem respaldo, razões pelas quais se fazia
necessária a sua reformulação.
4 A EC n.º 45 foi produto da PEC n.º 96/1992 proposta pelo então Deputado Hélio Bicudo. Para o inteiro teor
de sua exposição de motivos, consultar: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD01MAI1992.
pdf#page=7 pp. 7847-7853. Acesso em 10/07/18. Importante ressaltar que desde a sua proposição até
sua consolidação a proposta original sofreu inúmeras alterações.
5 DE BARCELLOS, Ana Paula. Papéis do direito constitucional no fomento do controle social democrático:
algumas propostas sobre o tema da informação. In: Revista Quaestio Iuris, v. 1, n. 6 a 9, 2012. pp. 6-7.
Nesse viés, o dever de publicidade, seja no que se refere aos atos estatais promo-
vidos pelos agentes dos Poderes Executivo ou Legislativo, como também em relação
aos julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, carece de ser enfrentado
pela doutrina jurídica como um verdadeiro mandado de otimização8, por meio do qual
se exija que este dever seja cumprido com a mais efetiva densidade.
6 DE BARCELLOS, Ana Paula. op. cit. pp. 11-12: “Ao menos um conjunto de problemas que contribuem para
a fragilidade do controle social deve receber influência do direito constitucional: trata-se do conjunto de
problemas relacionado com a informação sobre a ação pública. A rigor, e trata-se de um truísmo, qualquer
controle apenas pode ocorrer se houver conhecimento do objeto a ser controlado. Como controlar a
ação pública se as pessoas não dispõem de informação sobre ela? A dificuldade em obter informação
desestimula o controle social na medida em que impõe ao indivíduo eventualmente interessado em
desempenhar esse controle um custo enorme, de tempo e esforço, na busca por dados. E, ademais, caso
as informações não seja verdadeira ou compreensíveis, isso pode inviabilizar, afinal, qualquer controle real.
Por outro lado, caso as informações sejam de fácil acesso e compreensão para o público, o custo de se
informar e exercer alguma forma de controle social diminuirá sensivelmente.”.
7 Em sua atual redação, tratam diretamente sobre o direito a informação os incisos XIV e XXXII do art. 5º
da CRFB/1988. Ipsis literis: “Art. 5º (...) XIV–é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado
o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; (...)XXXIII–todos têm direito a receber dos
órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão
prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível
à segurança da sociedade e do Estado;” Sobre o dever de publicidade dos julgamentos dos órgãos do
Poder Judiciário, o art. 93, IX da CF, alterado pela EC n.º 45/03, assim passou a dispor: “Art. 93. (...) IX
todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões,
sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus
advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado
no sigilo não prejudique o interesse público à informação.” Ainda, sobre os princípios orientadores da
administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dispõe o art. 37 da CRFB: “Art.
37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade
e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”
8 Sobre o dever de publicidade e sua compreensão como princípio a ser otimizado em sua máxima eficácia,
ver: BINENBOJM, Gustavo. O princípio da publicidade administrativa e a eficácia da divulgação de atos
do poder público pela internet. In: Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto
Brasileiro de Direito Público, n. 19, 2006. pp. 4-11.
Não por outro fundamento, torna-se deveras relevante a ação pioneira adotada pelo
Estado Brasileiro de transmitir ao vivo e de forma integral as sessões de julgamento
realizadas pelo Supremo Tribunal Federal, fato que indubitavelmente contribui para
maximizar o dever de publicidade em consonância com as disposições normativas da
Constituição, e assim, garantir o direito a informação.
Daí poder se dizer com convicção que estes canais midiáticos oficiais, têm desde
a sua gênese, uma preocupação cívica e institucional de permitir de fato uma aproxi-
mação do Poder Judiciário com o cidadão, estreitando desta maneira os laços entre a
Justiça e os Jurisdicionados, inserindo as questões da Justiça no cotidiano do cidadão,
e promovendo o que se poderia denominar de cultura jurídica.
Embora a TV Justiça tenha sido criada em momento anterior a EC n.º 45/04, com
as modificações efetuadas no texto da Constituição por esta reforma, entende-se
que o papel maximizador de publicidade realizado pelas mídias oficiais ganhou um
importante substrato jurídico para amparar a atuação pioneira de transmissão dos
julgamentos, o que provocou uma inédita abertura da Corte Constitucional Brasileira
à crítica e análise popular.
17 De acordo com dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizado no ano de 2004, a maior parte da população
brasileira ainda tem como instrumentos predominantes de acesso à mídia eletrônica o Rádio e a Televisão.
Pelos dados prestados, os percentuais de domicílios que possuem os respectivos aparelhos de mídia são
os seguintes: Rádio: 88%; Televisão: 90%; Computador: 16%; Acesso à Internet: 12%. Conforme AZEVEDO,
Fernando Antônio. Democracia e mídia no Brasil: um balanço dos anos recentes. In: Mídia e Democracia.
GOULART, Jefferson O. (Org.). 1ª Edição. São Paulo: Annablume Editora, 2006. p. 31.
18 Cf. a crítica efetuada pelo Desembargador do TRF Néviton Guedes, ainda que direcionada a exposição
dos julgamentos em matéria penal, para quem: “O mais incrível é que, mesmo com o amplo acesso ao
julgamento, a mídia não se conforma aos limites legítimos do seu código de comunicação (informar/não
informar), pretendendo antes substituir-se ao próprio Supremo Tribunal, na sua competência constitucional
de dizer o direito, pois passou abertamente a confrontar os próprios ministros, ao dizer ao público com ares
de correção e perícia técnica o que é lícito ou ilícito nas condutas daqueles que estão sendo submetidos
a julgamento naquela Suprema Corte. Mais do que isso, alguns órgãos da imprensa e seus profissionais,
não se limitando a “julgar” o caso, passaram a julgar os próprios juízes e ministros, não aceitando qualquer
outra resposta ao caso que não seja aquela por eles próprios — órgãos de imprensa — considerada
adequada, além de invadir outro sistema social — a ética — para dizer o que, no comportamento de cada
ministro do Supremo, é certo ou errado, legítimo ou ilegítimo (gerechtfertigt/ungerechtfertigt).” Conforme:
GUEDES, Nevilton. Jean Baudrillard e o mensalão em tela total. In: Revista Consultor Jurídico, 27/08/12.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-ago-27/constituicao-poder-jean-baudrillard-mensalao-
tela-total. Acesso em 10/07/18.
19 Para uma leitura aprofundada sobre o tema ver: BICKEL, Alexander. The last dangerous branch. 2ª
Edição. Indianapolis: Bobbs-Merrill Co, 1986; ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of
Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1998; WALDRON, Jeremy. Law and disagreement.
Oxford: Clarendon Press, 1999; entre outros.
20 Sobre o tema, interessante e profunda é a obra publicada pelo professor da USP: RAMOS, Elival da Silva.
Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. 1ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2010. pp. 226-304. Recente
polêmica que traz a tona o debate sobre disputas institucionais entre o poder Legislativo e Judiciário no
Brasil refere-se a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados da PEC
n.º 33/11, que visa reduzir de forma considerável os poderes do Supremo Tribunal Federal.
21 Para uma aprofundada leitura acerca da polêmica, ver a obra. La polémica Schmitt / Kelsen sobre
la justicia constitucional: El defensor de la Constitución versus ¿Quien debe ser el defensor de la
Constitución? Madrid: Editorial Tecnos, 2009, na qual se incluem os textos: LOMBARDI, Giorgio. Estudio
Preliminar – La Querela Schmitt/Kelsen: Consideraciones Sobre lo Vivo e y ló Muerto em La Gran
Polémica Sobre La Justicia Constitucional de Siglo XX; KELSEN, Hans. ¿Quien debe ser el defensor de la
Constitución? 1931 e SCHMITT, Carl. El defensor de la Constitución. 1931.
22 Cf. afirma BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no
Brasil contemporâneo. In: RFD-Revista da Faculdade de Direito da UERJ, v. 2, n. 21, 2012. pp. 4-8.
Seguindo esse caminho, obra jurídica que provocou grande impacto na doutrina
foi aquela publicada pelo neozelandês Jerome Waldron, na qual em linhas gerais,
defende que as divergências e desacordos acerca dos conteúdos dos direitos devem
ser resolvidos por meio dos debates legislativos, e não pela deliberação judicial25, já
que do contrário, estar-se-ia legitimando um verdadeiro governo de juízes em prol de
um governo democrático.
23 Como bem leciona Elival da Silva Ramos, para quem: “Não se nega que os magistrados ou os juristas
exerçam suas respectivas atividades (operacionais ou científica) de modo diverso dos representantes
políticos, em relação ao direito. Estes últimos praticam a política legislativa, com acentuada liberdade de
opção entre as diretrizes em disputa, ao passo que aqueles outros devem respeitar as opções feitas, sendo-
lhes facultada apenas a movimentação permitida pela normatização das escolhas políticas primárias.”.
RAMOS, Elival da Silva. op. cit. p. 60.
25 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em Estado de Direito
Democrático. 1ª Edição. Coimbra Editora. Coimbra. 2012, pp. 149-150.
Daí se dizer que a adoção de uma Justiça Constitucional seria senão a legitimação
de um governo alicerçado em uma aristocracia dos sábios ou aristocracia judicial, que
a bem da verdade, acabaria por se revelar como um governo de juízes, supostamente
melhores preparados para resolverem os desacordos morais da sociedade acerca do
conteúdo de direitos fundamentais, do que a própria sociedade de leigos. 26
Com base nessa contumaz crítica, não por outra razão, o objetivo central do
presente estudo consiste em analisar os ganhos democráticos que se obtém com a
promoção de uma abertura midiática e o fomento da discussão democrática em relação
aos julgados promovidos pelo Supremo Tribunal Federal (sobre direitos fundamentais),
como forma de levar ao conhecimento da sociedade os pontos de vista, jurídicos e
políticos externados nos votos proferidos pelos magistrados.
Neste ponto, damos corpo à linha de pensamento propugnada por John Rawls
quando defende que a função desempenhada pelas Cortes Constitucionais deve
servir como instrumento e instituição exemplar da razão pública 27, por meio da qual
a Corte deve explicitar os argumentos expostos em seus julgados de forma racional,
desempenhando um papel educativo para a cidadania e a democracia28, por meio da
qual também poderá ser criticada.
Nesse ínterim, cumpre observar que é adotada neste trabalho uma posição de defesa
da atuação das Cortes Constitucionais como verdadeiras guardiãs da Constituição,
compreendendo-as na sua essência como verdadeiros órgãos fundamentais para
27 Nesse sentido o autor diz: “Dizer que a Suprema Corte é a instituição exemplar da razão púbica significa
também que é função dos juízes procurar desenvolver e expressar, em suas opiniões refletidas, as melhores
interpretações que puderem fazer da constituição, usando seu conhecimento daquilo que esta e os
precedentes constitucionais requerem. Aqui, a melhor interpretação é aquela que melhor se articula com
o corpo pertinente daqueles materiais constitucionais, e que se justifica nos termos da concepção pública
de justiça ou de uma de suas variantes razoáveis.”. RAWLS, John. O Liberalismo Político. Tradução: Dinah
de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000. p. 286.
Até porque, importa repisar que por meio do controle social é possível depurar e
aferir se de fato a atividade exercida pela corte na decisão de questões importantes
está sendo baseada em argumentos políticos e/ou argumentos jurídicos como os
que se expôs anteriormente. Com base nas constatações obtidas, pode melhor ser
avaliado se o papel desempenhado pela corte, em determinado Estado é desejável
ou não nos termos da separação de poder ali configurados e de acordo com o seu
arranjo institucional.
29 No esteio substancial das vertentes defendidas por Ronald Dworkin e John Rawls.
30 Que pode ser compreendido em duas vertentes: como controle social puro ou como controle social com
repercussões jurídicas. O primeiro se caracterizaria como meio de pressão por meio do qual a população
pode demonstrar a sua insatisfação (com protestos, manifestações) sobre alguma diretriz política
ou sobre o resultado de algum julgado, influenciando suas futuras decisões. Já o segundo pode ser
compreendido como um mecanismo formal por meio do qual a população ou os seus representantes
podem se insurgir contra alguma decisão da corte, limitando os seus efeitos como por exemplo por meio
aprovação de uma Emenda Constitucional. Cf. DE BARCELLOS, Ana Paula. op. cit. pp. 6 e 7.
31 Aqui, para não nos alargarmos demasiado no tema sobre as diferentes concepções de fundamentação
ou forma de interpretação da Constituição, a exemplo do debate estabelecido entre as doutrinas
interpretativistas e não-interpretativistas da Constituição, citemos trecho do livro de Rodolfo Viana
Pereira, que de forma elogiosa, resume em síntese aquelas que seriam as principais polaridades
teóricas do atual debate constitucional: “Dois caminhos majoritários se apresentam na doutrina em uma
relação de contraposição. Duas compreensões constitucionais que, em termos analíticos, representam
grosso modo, as polaridades teóricas mais debatidas nas últimas cinco décadas. Podemos resumi-las
da seguinte maneira: de um lado, o modelo da constituição pré-ordenante impositiva, eis que sustentada
sobre uma legitimação substancial, um núcleo ético-moral bem definido acerca dos valores fundamentais
da sociedade e dos objetivos prioritários do Estado; de outro lado o modelo da constituição pós-ordenante,
dialógica, eis que sustentada sobre uma legitimação procedimental, um núcleo ético-discursivo aberto
à multiplicidade dos valores sociais e dos objetivos fundamentais. PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito
Constitucional Democrático: Controle e Participação como Elementos Fundantes e Garantidores da
Constitucionalidade. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2010.Rodolfo Viana Pereira, pág 75.
32 Ainda: PEREIRA, Rodolfo Viana. op. cit. p. 78: “Nesse contexto, a constituição transformaria em linguagem
jurídica uma determinada pré-compreensão social acerca dos valores e dos objetivos essenciais da
comunidade política concreta, restando aos poderes estatais a obrigação de conformar suas funções aos
mesmos e, especialmente à jurisdição, o papel de garantir sua integridade através do manejo do princípio
da ponderação em casos de divergências fundamentais.”.
33 Idem. Ibidem. p. 81: Fazendo alusão ao pensamento de Habermas. “Em uma sociedade complexa,
heterogênea, diferenciada e descentrada, não haveria lugar para a previsão de valores pré-discursivos,
supostos como naturais ou não problematizados. A imposição de um modelo de vida boa ou de direitos
naturais pré-políticos afrontaria o pluralismo social e o respeito pela pretensão de validade dos vários
modos de vida, de visões e de comportamentos”.
35 Para um breve resumo acerca da teoria material da Constituição, ver: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito
Constitucional. 26ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 170-195.
37 Cf. HABERMAS, Jürgen. Soberania Popular como Procedimento. São Paulo: In: Novos Estudos CEBRAP,
nº 26, 1990. pp. 109- 111.
38 BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional... p. 115: “Assim, embora à Corte Constitucional
se cometa a palavra final sobre a interpretação da Constituição, suas decisões devem ser amplamente
fundamentadas e expostas ao debate público, pois a crítica advinda da esfera pública (juristas, operadores
do direito, políticos, jornalistas, profissionais liberais em geral) possui um potencial racionalizador e
legitimador.”
Daí, e nessas situações, podermos fazer coro ao que é defendido por Eduardo
Garcia de Entería, em posição diríamos até radical, quando fala que a legitimidade da
justiça constitucional se encontraria em última instância “en el plebiscito diário” 39 a
que estão sujeitas as suas decisões e na sua capacidade de gerar consenso.
Embora não seja da pretensão do presente trabalho firmar-se em uma linha espe-
cífica de pensamento doutrinário constitucional, havendo, do contrário, o intento de
refletir sobre o problema estudado com base nas diversas orientações doutrinárias
existentes, não podemos deixar de evidenciar que a possibilidade de controle sobre
39 ENTERRÍA, Eduardo Garcia de. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. 3ª Edición.
Madrid: Civitas, 1985. pp. 203-205.
41 Na seara da doutrina formulada por Ulrich Preuss e Gomes Canotilho. Cf. PEREIRA, Rodolfo Viana. op. cit.
p. 95.
43 Acerca dos delineamentos teoréticos sobre o que deve ser entendido por controle, interessante
transcrever a lição de Rodolfo Viana Pereira: “Em termos teoréticos, tais delineamentos inspiram o resgate
do termo controle como categoria útil para a definição dessa dimensão fundante da constitucionalidade.
A constituição se apresenta em sua melhor luz como um sistema normativo de controle das opções
constituintes de uma determinada comunidade política, isto é, a constituição funda um modelo de
organização político-jurídica controlando normativamente a possibilidade do ser e do vir-a-ser dessa
mesma comunidade, em face do conjunto de determinantes posto pela vontade popular. O conceito,
portanto, abre-se às particularidades e idiossincrasias dos diversos contextos regulados, assegurando,
da melhor forma possível. (...) Controlar é assim uma atividade em princípio neutra, mas funcionalmente
aberta, isto é, não se reduz a priori nem a dimensões substantivas, nem a vertentes procedimentalistas,
mas se abre a ambas, adaptando-se a uma ou a outra, bem como a modelos entrelaçados.” PEREIRA,
Rodolfo. Viana. op. cit. p. 97.
Entretanto, ainda que não se busque promover um estudo calcado nas influências
empíricas constatadas sobre os julgamentos realizados pela Colenda Corte, após e
com o advento das transmissões ao vivo por meio da TV Justiça e da Rádio Justiça,
não podemos deixar de, com base nomeadamente na doutrina norte-americana, fixar
alguns parâmetros e pontos fulcrais que têm servido para a análise das relações
recíprocas de influência que Cortes Constitucionais e opinião pública podem exercer
umas sobre as outras.
46 Sobre as diferentes perspectivas em que as influências da opinião pública sobre as decisões judiciais
podem ser abordadas, interessante transcrever excerto da lição de Marcelo Novelino, para quem: “A
influência exercida pela opinião pública sobre as decisões judiciais pode ser abordada sob duas perspectivas
distintas. Em termos normativos, a discussão tem como foco central a legitimidade da influência popular
sobre as decisões, especialmente em face da independência judicial e do papel contramajoritário atribuído
à Corte. Em que medida o Tribunal deve estar atento à opinião e se deixar influenciar por ela? Em que tipo
de situação a influência deve ou não ser admitida? Tal influência deve ser vista como algo que fortalece o
regime democrático ou deve ser considerada inconcebível em face dos princípios decorrentes do Estado
de Direito? Por um lado, há quem considere que a opinião pública não deve ser um fator relevante no
processo decisório, por sua incompatibilidade com o papel contramajoritário da Corte e com as exigências
de neutralidade, independência e imparcialidade do juiz, constitucionalmente protegidas contra pressões
externas através das garantias institucionais (autonomia administrativa e financeira) e funcionais
(vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade da remuneração). Por outro lado, há quem defenda que
os juízes não devem se manter totalmente indiferentes ao clamor popular, sobretudo porque o apoio da
sociedade é considerado um importante fator para a legitimidade do tribunal e para o seu fortalecimento
como instituição.” Conforme: NOVELINO, Marcelo. op. cit. pp. 284-285.
47 CFRB/1988: Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre
cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico
e reputação ilibada. Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo
Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.
48 Assim como as garantias gerais conferidas aos membros do poder judiciário pela CRFB em seu art. 95,
incisos I e III.
Outra hipótese apontada pela doutrina que evidencia razões aparentemente aptas
à justificar a convergência entre decisões proferidas por Cortes Constitucionais e a
opinião pública, dá-se com a análise sobre os diferentes modelos de nomeação dos
juízes constitucionais adotados em diferentes Estados, conhecida como hipótese
de influência indireta. De acordo com os contornos teóricos desta hipótese, embora
ela não permita aferir propriamente um fator comprovativo da influência da opinião
52 Conforme William Mishler e Reginald S. Sheehan: “The direct-effects hypothesis has two distinct
explanations. One, linked to Justice Frankfurter, holds that the Court is a political institution whose authority
depends on public deference and respect. Sensitive to this, justices are careful not to jeopardize the Court’s
authority by departing too far or too long from majoritarian views on fundamental issues.” ISHLER, William
e SHEEHAN, Reginald S. Response: Popular Influence on Supreme Court Decisions. In: The American
Political Science Review, Vol. 88, n. 3, 1994. P. 717. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2944805.
Acesso em: 10/07/18.
54 Cf. Lawrence Baum e Neal Devins: “For reasons we will now detail, Supreme Court Justices are not the
“Spock-like judges of the dominant models [who] have no interest in public approval as na end in itself”;
instead, Supreme Court Justices, like other people, “care a great deal about what people think of them.”,
BAUM, Lawrence e DEVINS, Neal. Why the Supreme Court Cares About Elites, Not the American People.
Faculty Publications. College of William & Mary Law School. Paper 1116, 2010. p. 1.529. Disponível
em: http://scholarship.law.wm.edu/facpubs/1116. Acesso em 10/07/18. No referido estudo chega-se a
constatação de que a opinião das elites, no caso da Corte Suprema americana teria mais importância do
que a opinião popular de modo geral.
De acordo com esta hipótese, o posicionamento dos juízes seria influenciado não
diretamente pela opinião pública, mas sim, devido ao fato de que por estarem inseridos
no mesmo contexto social, por meio do qual os valores e mudanças na realidade
social ocorreriam, suas opiniões individuais não estariam imunes ao processo social
de formação das opiniões56, e assim, suas convicções pessoais e jurídicas poderiam
ser afetadas como a dos demais membros da sociedade.57
55 Cf. NOVELINO, Marcelo. op. cit. p. 296. Nesse sentido, os resultados de algumas análises efetuadas por
Martin Epstein confirmaram de modo empírico a coincidência entre as decisões da corte constitucional
americana com a opinião popular, que trariam evidências da plausibilidade da hipótese de influência
indireta. Transcreva-se: “(...) virtually all the studies demonstrate an indirect effect of public opinion via
the appointments process. That is, they tend to show that changes in the Court’s composition can lead
to a higher or lower percentage of liberal decisions each term. Political scientists deem this “indirect”
because the public does not directly affect the percentage of liberal decisions; its role comes in electing
the President and the Senate, who appoint and confirm Justices reflecting the public’s preferences.
Accordingly, “the ideological orientation of the Court generally corresponds to the attitudes of the
electorate” and the ruling regime. EPSTEIN, Lee e MARTIN, Andrew D. Does public opinion influence the
Supreme Court? Possibly yes (but we’re not sure why). University of Pennsylvania Journal of Constitutional
Law, Vol. 13, No. 263, 2010. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=2087255. Acesso em 10/07/18.
in which (1) the ideological tenor of the Court’s decisions are responsive in the long run to the shifts in the
ideology of the public mood and (2) the Court’s decisions subsequently reinforce and legitimize those shifts
in mood. This is highly speculative, of course.” MISHLER, William e SHEEHAN, Reginald S. The Supreme
Court as a Countermajoritarian Institution? The Impact of Public Opinion on Supreme Court Decisions.
In: The American Political Science Review, Vol. 87, No. 1, 1993. Disponível em: http://www.jstor.org/
stable/2938958. Acesso em 10/07/18.
58 Entre vários casos, cite-se a ADPF 54/DF (que tratava da questão referente ao aborto de fetos
anencéfalos), a ADI 4277/DF (que abordou o tema das uniões homoafetivas), a ADPF 186/DF (que tratou
sobre o sistema de cotas em universidades públicas) e a recentíssima AP 470/DF (o caso do mensalão).
Por todo o exposto, ainda que se considere absolutamente legítima e bem quista a
atuação das mídias oficias (como a TV e Rádio Justiça) que ao efetuarem a publicização
dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, em grau que poderíamos classificar
como máximo, têm o cuidado de depurar a informação transmitida, em um viés (ainda
que idealístico) calcado na imparcialidade e no caráter informativo, faz-se necessário
ter em conta que a abertura do STF pelas mídias oficiais gera a possibilidade de uma
cobertura midiática não tão imparcial por parte da mídia comercial.
Por conta do risco que essa abertura inicialmente bem quista como densificação
do direito a informação, e do cumprimento do dever de publicidade estatal realizada
59 Nesse sentido disserta Daniel Innerarity: “A sociedade só pode conhecer o mundo por via dos
meios de comunicação (se excluirmos aquele mundo próximo, privado, que cada um pode conhecer
imediatamente). E até podemos afirmar que nem sequer podemos separar o saber que temos pelos
meios de comunicação do saber que adquirimos por experiência pessoal. É certo que há um círculo
vital pessoal acerca do qual se sabe sem o ter lido no jornal. Mas uma pessoa não se pode orientar no
espaço público sem aquele saber que se obtém pelos meios de comunicação.” INNERARITY, Daniel. O
novo espaço público. 1ª Edição. Lisboa: Editorial Teorema, 2010.
60 O que de forma alguma deve se confundir com estrita censura a liberdade de imprensa.
61 Propostas em sua originalidade por Daniel C. Hallin e Paolo Mancini no estudo clássico: Comparing
media systems – three models of media and politics. New York: Cambridge University Press, conforme
remissões efetuadas por AZEVEDO, Fernando Antônio. op. cit. p. 23.
Diante de uma constatação como esta é natural que ganhe força as vozes que
de certa forma defendem a necessidade de se garantir uma blindagem do Poder
Judiciário em relação à influência da mídia e da opinião pública, conquanto que o
posicionamento destas possam resultar senão no reflexo das opiniões de determinadas
elites dominantes, que além de já possuírem considerável influência nas órbitas dos
poderes Executivo e Legislativo, com a abertura da Corte teriam ampliado o seu âmbito
de influência sobre o poder que ao menos idealisticamente deveria ser influenciável
e imparcial.
62 Fernando Antônio Azevedo disserta sobre a importância em uma sociedade democrática e plural de
se possuir uma acentuada diversidade externa, definida em suas palavras como: “existência efetiva de
diversidade de informação e de opinião nos meios de comunicação em massa que garanta aos cidadãos
acesso às principais perspectivas políticas em competição”. Segundo o referido autor “para assegurar
as condições democráticas referidas é imprescindível que os meios de comunicação de massa estejam
organizados numa estrutural plural e competitiva e sejam capazes de refletir, se não toda, pelo menos
as correntes mais importantes da diversidade ideológica, política e cultural da sociedade.” Cf. AZEVEDO,
Fernando Antônio. op. cit. p. 32.
63 Cf. LIMA, Venício A. Mídia, teoria e política. Apud AZEVEDO, Fernando Antônio. op. cit. pp. 34-35. Sobre
o tema, interessante a informação fornecida sobre o fato de que desde 1946 as Constituições Brasileiras
proibiam o controle de empresas jornalísticas e de radiodifusão por parte de pessoas jurídicas,
sociedades anônimas por ações e estrangeiros. A finalidade de tais restrições estaria relacionada ao
intuito de possibilitar a identificação plena dos proprietários destes meios de comunicação e impedir o
controle da mídia pelo capital estrangeiro. Ocorre que indiretamente, tais restrições ajudaram a produzir
a formação de monopólios familiares. Idem, ibidem. p. 33.
Até porque, não faltam estudos, propostas e até alguns projetos de lei no ordena-
mento jurídico brasileiro que visam regulamentar, aprimorar ou estabelecer novos meios
de controle sobre a atividade da imprensa, que deve ser exercida com responsabilidade
sob pena de imputar o abuso ao próprio direito à liberdade e/ou liberdade de imprensa.66
64 Como já se manifestou Dalmo de Abreu Dallari, entre outros renomados juristas, em artigo publicado em
18/12/2012. DALLARI, Dalmo de Abreu. A transmissão de julgamentos. In: Observatório da Imprensa,
SSN 1519-7670, Ano 17–nº 764, 2012. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/
view/_ed725_a_transmissao_de_julgamentos. Acesso em 10/07/18.
65 Ainda que voltado estritamente para os riscos da Televisão e escrito em época aproximada de sua criação,
continua a ser um clássico sobre a crítica à TV, e em uma perspectiva ampla, aos meios de comunicação
de massa quando mal utilizados, o ensaio escrito por Karl Popper Uma lei para a televisão e trazido a
lume no livro Televisão: Um perigo para a Democracia. O filósofo alerta: “(...) a democracia consiste em
submeter o poder político a um controle. É essa a sua característica essencial. Numa democracia não
deveria existir nenhum poder político incontrolado.” “(...) Não pode haver democracia se não submetermos
a televisão a um controle, ou, para falar com mais precisão, a democracia não poder subsistir de uma forma
duradoura enquanto o poder da televisão não for totalmente esclarecido.” POPPER, Karl e CONDRY, John.
Televisão: Um perigo para a democracia. 4ª Edição. Lisboa: Gradiva, 2012, p. 29.
66 Sobre o tema, confira-se a Tese de Doutoramento de PAULINO, Fernando Oliveira: Responsabilidade Social
da Mídia. Análise Conceitual e perspectivas de aplicação no Brasil, Portugal e Espanha. Faculdade de
Comunicação da Universidade Federal de Brasília (UnB), 2008. Como exemplo de projeto normativo que
visa trazer inovações sobre a matéria, entre outros, a PEC n.º 33/09, proposta no Congresso Nacional
possui conteúdo interessante conforme se irá expor. Ressalte-se sempre que questões envolvendo a
regulamentação da liberdade de expressão e/ou liberdade de imprensa devam ser analisadas sempre
com muito critério sob pena de se violar esses tão custosos direitos.
Nesse sentido, ganha destaque o poder ainda desconhecido das redes sociais
como instrumentos alternativos de veiculação de ideias, opiniões e informações, que
por meio de sítios eletrônicos e virtuais como o Youtube, Facebook, Twitter, entre
outros, têm possibilitado aos indivíduos singulares construírem os seus pontos de
vista baseados em uma percepção dos fatos e das coisas, nem sempre intermediada
por meios das lentes da imprensa convencional e de mercado.
Lado outro, considerando que por ter organização empresarial a maior parte da
imprensa de massa necessite de investimentos publicitários para se manter e, como via
de regra, para receber investimentos faz-se imperioso que se conquiste credibilidade,
os meios de comunicação acabam em uma lógica de auto sustentação por precisar de
demonstrar que seu viés editorial preocupa-se com a busca pela informação imparcial
e informativa.
Ainda que seja idealista supor que os meios de comunicação possam extinguir os
seus próprios vieses ideológicos para fornecer uma informação puramente imparcial (o
que é inclusive rechaçável posto que a imprensa também possua um papel opinativo)
fato é que o contrapeso exercido pela sociedade de modo geral (que tem tido a sua voz
energizada com a evolução dos meios de comunicação democráticos) ocasiona uma
busca pelos meios de comunicação em massa para apresentar os fatos com maior
fidedignidade e verossimilhança ao público a que se destinam.
67 Em exemplo recente, observou-se por meio da difusão em redes sociais de uma crítica contumaz a
cobertura jornalística realizada por alguns meios de comunicação na imprensa brasileira sobre os
protestos iniciados em Junho de 2013 no Brasil contra a corrupção, os gastos excessivos do Poder
Público, e outras bandeiras, que ficou conhecido como “A primavera brasileira”. Ao que se constatou,
em síntese perfunctória, a imprensa inicialmente tratou os manifestantes como vândalos sem buscar
depurar com maior imparcialidade as causas e reivindicações que motivaram os atos de indignação.
Passado um primeiro momento, devido às extensas críticas efetuadas, sobretudo em veículos “não
oficiais” de comunicação (como as redes sociais) sobre a abordagem extremamente parcial dada pela
mídia comercial ao movimento político, a imprensa (em geral) acabou efetuando uma radical mudança
em seu viés editorial, por meio do qual buscou assumir um posicionamento mais informativo e menos
opinativo sobre os fatos narrados, alijando-se de pré-concepções simplistas.
Ora, a nosso ver, em que pese à concentração dos meios de comunicação tradi-
cionais nas mãos de uma minoria na sociedade brasileira, o atual aspecto da mídia
no país é potencialmente favorável para potencializar e contribuir com a prestação de
uma informação lisa69, com potencial e qualidade para os seus destinatários, podendo
influir positivamente na fomentação do debate democrático que envolve a constante
deliberação sobre a constituição pós-ordenante e o permanente controle sobre o subs-
trato ético-moral sobre os quais se fundam as premissas dos votos dos Ministros no
âmbito da Constituição pré-ordenante.
68 Transcreva-se excerto das análises feitas pelo pesquisador que concluem pela existência predominante de
uma mídia informativa: “(...)Todas essas transformações foram realizadas sob a pressão de uma acirrada
competição comercial entre os principais jornais de circulação nacional que engendrou uma nova visão de
negócios na qual a informação e a credibilidade se transformaram, pelo menos teoricamente, nas principais
mercadorias dos jornais, implicando, por sua vez, na valorização do jornalismo informativo em detrimento
do jornalismo opinativo (muito embora este sobreviva entre nós tanto nos jornais, através dos editoriais,
colunas assinadas e artigos, quanto nas revistas de informação semanal.) Essa nova configuração editorial
mais orientada para o jornalismo informativo vem fortalecendo a diversidade interna nos grandes jornais,
o que significa uma maior abertura às perspectivas conflitantes sobre temas e questões em disputa pelos
principais atores políticos e sociais, e uma cobertura editorial mais equilibrada, como mostram diversos
rastreamentos do comportamento da mídia realizados nos últimos anos por grupos acadêmicos (DOXA /
IUPERJ, ECA /USP), críticos da mídia (Observatório da Imprensa) e partidos políticos.” AZEVEDO, Fernando
Antônio. op. cit. p. 40. Algumas dessas impressões, além dos estudos citados, tiramos da própria análise
e experiência diária com os diversos meios de comunicação brasileiros.
69 Embora a recente cobertura do recebimento de Embargos Infringentes pelo Supremo Tribunal Federal na
Ação Penal 470 (o caso do mensalão), julgado em definitivo em 18/09/12, tenham demonstrado trações
de uma mídia ainda excessivamente opinativa e articulada por interesses ideológicos.
71 Para a consulta do iter legislativo da referida medida, ver informações disponíveis em: http://www.
senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=92006. Acesso em 10/07/18.
Considerações finais
Conforme se pontuou na introdução do presente trabalho, sabe-se que a temática
da exposição irrestrita dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, compreendida
neste estudo como a realização do dever de publicidade e transparência dos atos
estatais é polêmica.
Com esteio nessas primeiras indagações, pareceu-nos claro que a irrestrita publi-
cização dos julgamentos efetuados pelo Supremo Tribunal Federal, em um Estado que
se considera como Democrático de Direito (Art. 1º CF/88), e que contém expressas
disposições na constituição regulamentando o direito a informação e transparência
dos atos estatais, não poderia ser afastada ao simples argumento de que a irrestrita
publicização dos julgados poderia maximizar o poder de influências externas sobre
a corte.
O que acabamos por concluir, na realidade foi que uma irrestrita publicização
dos julgamentos efetuados pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos como tem
sido realizada (diretamente) pela TV e Rádio Justiça, e (indiretamente) pelas mídias
comerciais, apresenta-se em profícua consonância com as atuais compreensões dos
modelos de democracia participativa, que sugere a necessidade de implementação
de instrumentos de participação democrática, bem como prevê a intensificação de
instrumentos de controle social dos atos estatais.
Nessa toada, apontando de forma sintética para alguns dos principais argumentos
lançados contra a judicial review, conclui-se com esteio na doutrina que a atividade de
interpretação e resolução de problemas jurídicos de direitos fundamentais, operada
pela justiça constitucional, não se confunde com a atividade de definição do conteúdo
destes direitos, mas que, devido a sua natureza argumentativa, permitir que se evidencie
(por meio da máxima publicização) o caráter (político ou principiológico) das soluções
dadas pela corte é salutar para que se critique ou enalteça os seus julgados.
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73 No esteio das diretrizes teleológicas consubstanciada nas figuras do ombudsman, dos observatórios de
imprensa, etc.