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RODOLFO VIANA PEREIRA

BERNARDO GONÇALVES FERNANDES


COORDENADORES

LUCAS AZEVEDO PAULINO


ALÉXIA DUARTE TORRES
ORGANIZADORES

30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO

8818
CIDADÃ
DEBATES EM
SUA HOMENAGEM

20
30
CONSTITUIÇÃO
ANOS DA

CIDADÃ
DEBATES EM
SUA HOMENAGEM

Baixe gratuitamente esta obra em:


https://doi.org/10.32445/9788567134093l
RODOLFO VIANA PEREIRA
BERNARDO GONÇALVES FERNANDES
COORDENADORES

LUCAS AZEVEDO PAULINO


ALEXIA DUARTE
ORGANIZADORES

30
CONSTITUIÇÃO
ANOS DA

CIDADÃ
DEBATES EM
SUA HOMENAGEM

Belo Horizonte
2018
2018 - Instituto para o Desenvolvimento Democrático
Capa e Diagramação: Toque Digital
Impressão: Toque Digital

30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem /


T833 organização de Lucas Azevedo Paulino e Alexia Duarte - Belo
Horizonte: IDDE, 2018.
318p.; 15,5cm x 22,5cm.

ISBN: 978-85-67134-09-3

1. Direito Constitucional. 2. Constituição. I. Paulino, Lucas


Azevedo (org.). II. Duarte, Alexia (org.). III. Título.

CDD 341.2

Rua Espírito Santo, 1204, Loja Térrea


Centro - Belo Horizonte - MG
CEP 30.160.031
Sumário

APRESENTAÇÃO
....................................................................................................................... 7

O TRATAMENTO DADO À RELIGIÃO NA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL: UMA


ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL DE 1824 E DA
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988
Aléxia Duarte Torres ......................................................................................... 11

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS: A ORIGEM DO


CONTROLE JURISDICIONAL DE CONSTITUCIONALIDADE DAS EMENDAS
CONSTITUCIONAIS NO BRASIL
Almir Megali Neto............................................................................................. 27

REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS


HUMANOS
Bernardo Gonçalves Fernandes
Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna ............................................................. 57

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO DA DEMOCRACIA


TRIBUTÁRIA
Bernardo Motta Moreira
Rafael Dilly Patrus ............................................................................................ 85

TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME E OS DESAFIOS PARA SUA


APLICAÇÃO DE FORMA ADEQUEDA À CONSTITUIÇÃO DE 1988
Deivide Júlio Ribeiro ......................................................................................... 119

AGROTÓXICO: ANÁLISE QUANTO À NECESSIDADE DE MUDANÇA NA LEI DE


AGROTÓXICO DE 1989 E OS DESAFIOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Larissa Milkiewicz
Mariana Gmach Philippi .................................................................................... 141
PERSPECTIVAS PARA O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DA PROPOSTA DE MUDANÇA DA PEC Nº 33/11
Lucas Azevedo Paulino ..................................................................................... 161

A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E O


APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO: UM PEQUENO
AVANÇO EM MEIO AO RETROCESSO
Ludmila Corrêa Dutra
Caroline Mesquita Antunes ............................................................................... 195

O QUÓRUM CONSTITUCIONAL E SEU REFLEXO NO PROCESSO LEGISLATIVO


MUNICIPAL
Rafael Guimarães Abras Oliveira........................................................................ 215

A RESTRIÇÃO DO ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E OS


LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Suellen Moura
Marja Mangili Laurindo ..................................................................................... 235

A PROMESSA DEMOCRÁTICA: UM BALANÇO DAS PROPOSTAS DE


INICIATIVA POPULAR LEGISLATIVA NA ASSEMBLEIA NACIONAL
CONSTITUINTE E NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Suellen Moura
Thiago Burckhart .............................................................................................. 259

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E


EMPÍRICAS SOBRE AS INFLUÊNCIAS DA OPINIÃO PÚBLICA SOBRE O
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Thiago Coelho Sacchetto .................................................................................. 285
APRESENTAÇÃO

“Cumpre realçar, finalmente, a colaboração direta do povo no processo


político, não só através de centenas de propostas remetidas à Comissão
de Sistematização, vindas até do Exterior, (...) como também pela ação de
grupos variados de brasileiros, que atuavam diretamente: sindicatos, empre-
sários, militares, professores, mulheres, índios e negros. Era estimulante e
comovente sentir a mobilização direta do povo, desejoso de colaborar na
obra de seus representantes.

Srs. Constituintes, concluída está vossa tarefa preferencial, mas outro


dever se abre ao vosso cuidado e esforço. Este dever indeclinável é sustentar
a Constituição de 1988, apesar de quaisquer divergências com sua feitura;
é colaborar nas leis que a tomem mais rapidamente e mais eficazmente
operativa, apesar das dificuldades referidas; é colaborar na sua defesa contra
a onda que se avoluma e propaga no seio do povo, e que visa a atacá-la,
tão desabridamente, que esses ataques passaram a envolver toda a classe
política”

Afonso Arinos de Melo Franco

Em 05 de outubro de 1988, Afonso Arinos de Melo Franco realizou o discurso, do


qual o trecho acima foi retirado, representando os constituintes que participaram da
nova Constituição Democrática. A Constituição de 1988 marcou a ruptura com a ditadura
militar e trouxe o Brasil novamente para o rol das democracias constitucionais. Após
30 anos, podemos dizer que ela segue preservada ainda que com saltos e tropeços.

A Assembleia Constituinte de 1987/1988 contou com a participação de represen-


tantes eleitos e também com a contribuição de cidadãos de distintos grupos sociais
e econômicos, e de diferentes origens étnicas, por meio de emendas populares. Esse
caldeirão democrático deu origem a um documento constitucional extenso, analítico,
abrangente e compromissório, que organiza nossa democracia, nosso Estado de Direito,
e institui os direitos fundamentais de todos os cidadãos brasileiros.
Na própria época da constituinte, entretanto, conforme preocupação já demons-
trada no discurso de Afonso Arinos de Melo Franco, existiam os que atacavam a
Constituição. Três décadas mais tarde, em plena eleição presidencial, candidatos de
diferentes espectros ideológicos também apresentaram intenções de substituí-la.
Uma das chapas em disputa chegou até mesmo a considerar a elaboração de uma
nova Constituição sem participação popular, com apenas um plebiscito posterior, em
moldes cesaristas.

Em tempos de crise e ataques às democracias constitucionais em vários países do


globo, dada a ascensão de líderes populistas de extrema-direita e de extrema-esquerda
que subvertem instituições constitucionais para concentrar poderes e enfraquecer
direitos individuais–o que é denominado pela doutrina de decadência ou declínio
constitucional, com o surgimento de democracia iliberais (sem direitos) -, torna-se,
mais do que nunca, fundamental o dever de defender e sustentar a Constituição de
1988, como já alertava Afonso Arinos.

Consoante Ulysses Guimarães, o presidente da Assembleia Constituinte, bradou


em no discurso de promulgação da Constituição: “A Constituição certamente não
é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim.
Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”. Com a ressalva dos pilares do
constitucionalismo liberal que são cláusulas pétreas do nosso documento consti-
tucional–democracia, separação de poderes, direitos fundamentais e federalismo -,
todos os demais pontos da Constituição são passíveis de reforma constitucional.
Desnecessária, para não dizer perigosa, qualquer proposição de nova constituinte no
atual contexto.

Na presente obra, mestrandos, mestres e doutorandos de programa de pós-gra-


duação de qualidade do Brasil propõem justamente a reflexão crítica sobre as
instituições constitucionais brasileiras e sobre as interpretações adotadas pelos
órgãos judiciais de controle de constitucionalidade, muitas vezes discordando
e propondo reformulações de entendimentos e novos desenhos institucionais.

8
Aléxia Duarte apresenta um panorama histórico-constitucional comparativo
do tratamento dado à religião na primeira constituição do Brasil, a Constituição do
Império de 1824, que instituiu a Religião Católica como a religião oficial do Brasil, e da
Constituição da República Federativa de 1988.

Almir Megali Neto trabalha o tema do controle de constitucionalidade de emendas


constitucionais por parte de Cortes constitucionais e Supremas Cortes, além de verificar
a compatibilidade da reforma constitucional no caso do Habeas Corpus 18.178 em
favor de generais e soldados que se encontravam presos na Ilha da Trindade.

Bernardo Motta e Rafael Dilly denunciam o caminho que instituições brasileiras


têm tomado em direção contrária ao projeto de abertura e pluralização do debate sobre
direito tributário e financeiro e apontam que a desparlamentarização da democracia
tributária implica em violação às fundações do sistema tributário.

Deivide Júlio Ribeiro parte de uma análise empírica de duas ações que compõem
o controle de constitucionalidade concentrado brasileiro para expor os limites jurispru-
denciais impostos na aplicação da Técnica de Interpretação.

Larissa Milkiewicz e Mariana Gmach analisam a pertinência e necessidade de


eventual alteração à Lei de Agrotóxico de 1989, dados os diversos projetos de lei
apresentados em 2018, apontando soluções alternativas eficazes na busca pela mini-
mização dos efeitos negativos do uso desenfreado de agrotóxico.

Lucas Azevedo Paulino indaga se, a partir da Proposta de Emenda à Constituição


nº 33/11, seria possível a democratização do direito constitucional e a introdução de
mecanismos mais ativos de participação do Poder Legislativo, conciliado com uma
proteção efetiva de direitos fundamentais.

Ludmila Corrêa e Carolina Mesquita avaliam a decisão do Supremo Tribunal Federal


na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental–ADPF de nº 444/DF, no sentido
de aumentar a dimensão do direito ao silêncio no Brasil, ao deixar à conveniência do
acusado e de seu defensor o comparecimento ao interrogatório, seja policial ou judicial.

Rafael Guimarães, por sua vez, expõe o dilema entre a independência federativa
na elaboração de normas de auto-organização e a obediência ao princípio da simetria
no afastamento ou evocação nas Leis Orgânicas Municipais do quórum instituído no
artigo 47 da Constituição.
Suellen Moura e Marja Mangili desenvolvem uma análise crítica da restrição do
alcance do foro por prerrogativa de função que sofreu alteração em virtude da Emenda
Constitucional 35/2001 e questionam nova interpretação dada pelo Poder Judiciário
decorrente do julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal 937, do Rio de Janeiro.

Suellen Moura e Thiago Burckhart realizam um balanço da participação popular


por meio de iniciativas legislativas na Constituinte de 1988 e no período de vigência da
Constituição de 1988, apontando as fraquezas e potencialidades político-institucionais
desses processos.

Por fim, Thiago Sacchetto examina se é possível medir e graduar as eventuais


influências que aspectos externos exercem sobre o livre poder de convencimento e a
autonomia dos magistrados e se seria consonante com os princípios constitucionais
a blindagem midiática por parte do Supremo Tribunal Federal.

Rodolfo Viana Pereira


Bernardo Gonçalves Fernandes
coordenadores

Lucas Azevedo Paulino


Alexia Duarte
organizadores

10
O TRATAMENTO DADO À RELIGIÃO
NA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL: UMA
ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA
DO IMPÉRIO DO BRASIL DE 1824 E DA
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988
Aléxia Duarte Torres1

RESUMO
Dado o contexto hodierno e a celebração dos 30 anos da Constituição
da República Federativa do Brasil, a investigação do tratamento dado à
religião nos textos constitucionais de 1824 e 1988, a partir de documentos
e discursos históricos, é de extrema importância. Investigar as relações
da religião com o Estado se faz relevante a fim de entender as mudanças
estruturais na sociedade brasileira que afetam profundamente a configuração
do secularismo brasileiro e as formas como as religiões se relacionam com
a vida pública. O objetivo desse artigo, portanto, é mapear as interações
entre Direito e Religião no âmbito constitucional, especificamente na análise
dos dispositivos da primeira Constituição Brasileira, e em seguida, o da
Constituição de 1988, com apontamentos críticos e indicação das diferenças
e/ou semelhanças.

1 Aléxia Duarte Torres é mestranda em Direito pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) na linha Teoria Constitucional, Direitos Humanos e Instituições
Democráticas. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
Atualmente pesquisa acerca da liberdade de expressão, liberdade religiosa e discurso do ódio. Bolsista
CNPQ. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2574816656505318
Torres, Aléxia Duarte. O tratamento dado à religião na história constitucional uma análise da constituição política do império do Brasil
de 1824 e da Constituição da República de 1988. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO,
Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p.
11-26. Disponível em: https://doi.org/10.32445/97885671340931
Introdução
Conforme nos explica Bernardo Gonçalves2, o Brasil colônia passou por diversas
formas de organização até chegar a sua independência. Variou de sistema de feitorias
até a proclamação da Independência em 07 de setembro de 1822, com o início da era
do Estado do Brasil imperial, que culminou com a Constituição de 1824.

De fato, a Igreja Católica Apostólica Romana esteve presente na história brasileira


desde seus primórdios. O próprio Estado Português manteve por séculos uma aliança
com a Igreja, o que ficou conhecido como regime Padroado Régio, remontando ao
patrocínio dado pela Ordem de Cristo às navegações lusitanas, sucessora dos cava-
leiros Templários em Portugal3.

Uma vez alcançada a independência do Brasil, em 1822, o recém-fundado Império


se estabeleceu sobre a mesma dinastia do reinado Português e decidiu por manter o
padroado, que seguiu existindo, decerto que não sem abalos, até a proclamação da
República, em 1889.

A Constituição de 1824 deu destaque positivo à religião católica, inserindo-a como


religião oficial do Brasil. Além do mais, criou privilégios voltados para os grupos que
professavam a fé, apesar de constar em seu texto uma garantia de não perturbação de
outros grupos religiosos, conforme melhor detalhado ao longo do artigo.

Já a Constituição de 1988, fincada sob o princípio da laicidade do Estado não


adotou para si uma religião oficial, mas garantiu direitos importantes e necessários à
liberdade de culto das mais diversas confissões.

A seguir, veremos as principais características no tocante à temática religiosa


em cada Constituição e seus contextos. Ao final, breves apontamentos serão feitos
em relação às diferenças e possíveis semelhanças.

2 FERNANDES. Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p.


259.

3 KUHNEN, Alceu. A Formação da Igreja no Brasil, sob o signo da colonização e do Padroado Português,
de 1500 a 1550. Dissertatio ad Doctoratum, Pontificia Universitas Gregoriana. Roma, 2001. Pág. 120-121

12 Aléxia Duarte Torres


A Constituição de 1824 e o catolicismo como religião
oficial do Estado
Em 1824, com o Brasil já independente, foi outorgada a Primeira Constituição do
Brasil por Dom Pedro I, em nome da Santíssima Trindade4. Tal Constituição instituía o
catolicismo como religião oficial. Rezava em seu preâmbulo:

DOM PEDRO PRIMEIRO, POR GRAÇA DE DEOS, e Unanime Acclamação


dos Povos, Imperador Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil:
Fazemos saber a todos os Nossos Subditos, que tendo-Nos requeridos
o Povos deste Imperio, juntos em Camaras, que Nós quanto antes
jurassemos e fizessemos jurar o Projecto de Constituição, que haviamos
offerecido ás suas observações para serem depois presentes á nova
Assembléa Constituinte mostrando o grande desejo, que tinham, de que
elle se observasse já como Constituição do Imperio, por lhes merecer
a mais plena approvação, e delle esperarem a sua individual, e geral
felicidade Politica: Nós Jurámos o sobredito Projecto para o observarmos
e fazermos observar, como Constituição, que dora em diante fica sendo
deste Imperio a qual é do theor seguinte5.

Em seu artigo 5º declarava que a religião católica apostólica romana continuaria


a ser a religião do Império e que a todas as outras religiões eram permitidas o culto
doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior
do templo.

O projeto de Constituição redigido por Antônio Carlos, em 1823, havia sido mais
drástico. Em seu artigo 15, determinava que as outras religiões, além da cristã, seriam
apenas toleradas e a sua profissão inibiria o exercício dos direitos políticos6.

4 BRASIL, Constituição Política do Império do Brazil. 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm

5 Texto original mantido.

6 PORTO, Walter Costa. Católicos e acatólicos: o voto no Império. Brasília. Ano 41. Nº 162. Abril/Junho de
2004, p. 394.

O TRATAMENTO DADO À RELIGIÃO NA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL 13


De acordo com o texto definitivo constitucional, o imperador era obrigado a jurar
respeito ao Catolicismo, nos termos da Constituição7, bem como seu presumível
herdeiro, ao completar seus quatorze anos de idade8. Além do mais, por força do
artigo 95, inciso III, da Constituição de 1824, não poderiam ser deputados à Assembleia
Geral os que não professassem “a religião do Estado” 9, assim como os Conselheiros
do Conselho de Estado10.

Já os que não professassem a religião católica – os “acatólicos”, como se deno-


minavam no debate parlamentar e na imprensa – não poderiam, também, ocupar a
regência e, mesmo, o cargo de imperador, em vista do juramento que, para o exercício
dessas funções, era exigido pelo artigo 103 da Carta:

“Juro manter a Religião Católica Apostólica Romana, a integridade e a indivisibili-


dade do Império; observar e fazer observar a Constituição Política da Nação Brasileira,
e mais leis do Império, e prover o bem geral do Brasil, quanto em mim couber”.

Aos senadores, médicos, bacharéis em Direito, engenheiros, e até aos simples


bacharéis em ciências e letras do Colégio D. Pedro II, ao se formarem, era requerido que
jurassem “manter a religião do Estado, obedecer e defender a S. M. o Sr. Pedro II e as
instituições pátrias” 11. Mais adiante, o texto constitucional apresentava uma garantia
difícil de ser cumprida no contexto vigente: “Ninguém pode ser perseguido por motivo
religioso, uma vez que respeite a do Estado e não ofenda a moral pública” (art. 179, IV).

7 Art. 103. 0 Imperador antes do ser acclamado prestará nas mãos do Presidente do Senado, reunidas as
duas Camaras, o seguinte Juramento–Juro manter a Religião Catholica Apostolica Romana, a integridade,
e indivisibilidade do Imperio; observar, e fazer observar a Constituição Politica da Nação Brazileira, e mais
Leis do Imperio, e prover ao bem geral do Brazil, quanto em mim couber.

8   Art. 106.0 Herdeiro presumptivo, em completando quatorze annos de idade, prestará nas mãos do
Presidente do Senado, reunidas as duas Camaras, o seguinte Juramento–Juro manter a Religião
Catholica Apostolica Romana, observar a Constituição Politica da Nação Brazileira, e ser obediente ás
Leis, e ao Imperador.

9   Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se:  III.
Os que não professarem a Religião do Estado

10 Art. 14I. Os Conselheiros de Estado, antes de tomarem posse, prestarão juramento nas mãos do
Imperador de manter a Religião Catholica Apostolica Romana; observar a Constituição, e às Leis; ser fieis
ao Imperador; aconselhal-o segundo suas consciencias, attendendo sómente ao bem da Nação.

11 MAGALHÃES JUNIOR, R. O império em chinelos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957, p. 265.

14 Aléxia Duarte Torres


De acordo com a compreensão da época, era natural a aproximação entre Estado
e Igreja, conforme se vê em livro originalmente publicado em 1857, por Pimenta Bueno,
Marquês de São Vicente:

A religião, o dever sagrado de prestar culto, de adorar o onipotente, o


senhor do universo, é o primeiro e o mais justo de todos os deveres; é a
lei suprema da criatura inteligente; é o seu humilde tributo ao seu criador.
Esse é o princípio primordial de toda justiça, o primeiro fundamento de
toda a moral, e também a base das virtudes sociais [...] Precedendo
desses princípios, o nosso artigo constitucional começou por declarar
que religião católica apostólica romana é, e continuará a ser, a religião
do Estado, pois que felizmente ela é a religião, senão de todos, pelo
menos da quase totalidade dos brasileiros. Assim o seu culto não só
interno, como externo, constitui um dos direitos fundamentais de todos
os brasileiros; é a religião nacional, especialmente protegida [...]12

Diversas críticas foram feitas a essa junção ao longo do século XIX,


a exemplo da obra de Tobias Barreto, ferrenho opositor do dogma da
infalibilidade papal. De igual modo, Rui Barbosa defendia veemente que
Estado e Religião deveriam ser separados, afirmando que “o Estado
garante direitos e a Igreja determina crenças”13.

Foi o Decreto nº 3.029, de 09 de janeiro de 1881, no governo provisório do Marechal


Manoel Deodoro da Fonseca, que teve como redator final o Deputado Geral Rui Barbosa,
conhecido como “Lei Saraiva”, que abriu espaço para a elegibilidade dos acatólicos,
liderada pelo movimento de “reformas liberais em matéria de consciência”, como
afirmava Nabuco (1949, p. 193), e que requereria a gestão estatal dos cemitérios, o
casamento civil, e a separação entre o Estado e a Igreja.

Essa lei ordinária, que alterou o processo eleitoral, também dispensou as cerimô-
nias religiosas e a leitura das leis e regulamentos, que deviam preceder aos trabalhos
eleitorais (art. 15 § 2º), além de estabelecer que o governo, na Corte, e os Presidentes,
nas províncias, designassem, com a precisa antecedência, os edifícios em que se

12 MARQUÊS DE SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno. Direito Público Brasileiro e Análise da
Constituição do Império. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 82-83.

13 BARBOSA, Rui. Obras Completas: Trabalhos Políticos. V. II, 1872-1874, Tomo II. Rio de Janeiro: Fundação
Casa de Rui Barbosa, 1987, p. 92.

O TRATAMENTO DADO À RELIGIÃO NA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL 15


deveriam realizar as eleições (art. 15 §6º). Somente na falta absoluta de outros edifícios
é que poderiam ser utilizados, para esse fim, os templos religiosos.

Essa restrição foi necessária uma vez que as eleições aconteciam, com deter-
minada frequência, nas próprias instalações da igreja, seguidas de missas solenes e
celebrações religiosas. Não é difícil de prever, todavia, os incidentes e tumultos que
as emoções dos pleitos causavam.

Uma reforma nos procedimentos eleitorais era necessária, todavia o Senado a


negou a via reforma constitucional, o que restou ao novo governo, a reforma por lei
ordinária. O comendador José Antônio Saraiva, um liberal convicto, ficou responsável
por elaborar o projeto, que instituiu um novo ministério em 28 de abril 1880. O deputado
Rui Barbosa foi chamado por Saraiva para formular o projeto da eleição direta, que o
Gabinete submeteu ao Imperador como programa de seu governo14.

O projeto, firmado pelo Ministro do Império, Barão Homem de Melo, afirmava,


expressamente, em seu artigo 2º, que seria eleitor “todo cidadão brasileiro, nato ou
naturalizado, católico ou acatólico, ingênuo ou liberto”. E, ao falar dos elegíveis, no
artigo 8º, dizia ser apto para os cargos de Senador, Deputado Geral, membros da
Assembleia Legislativa Provincial, Vereador, Juiz de Paz e quaisquer outros criados
por lei, todo cidadão compreendido no artigo 2º. O substitutivo aprovado pela Câmara
manteve essa redação. Mas, afinal, o projeto aprovado não se referiu expressamente
aos acatólicos, limitando-se a declarar que seria eleitor todo cidadão brasileiro, nos
termos dos artigos 6º, 91 e 92 da Constituição, que tivesse a renda líquida não inferior
a 200$000 “por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego”. E elegível o cidadão que
fosse eleitor, nos termos do artigo 2º15.

Somente dois anos depois da proclamação da República, em 1890, que se aprovou


o Decreto 119-A de 07 de janeiro de 189016, cuja ementa se referia à proibição da
intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa,
consagração da plena liberdade de cultos, extinção do padroado e outras providências.

14 LEÃO, Michele de. Lei Saraiva (1881): se o analfabetismo é um problema, exclui-se o problema.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Aedos n.11. Vol 4. Set 2012, p. 608. Disponível em: < https://
seer.ufrgs.br/aedos/article/view/30737/20890> Acesso em: 17 out. 2018.

15 Cf PORTO, Walter Costa. 2004, p

16 O Decreto foi repristinado na nova ordem constitucional por meio do Decreto nº 4.496/2002.

16 Aléxia Duarte Torres


O texto, em seu artigo 1º, instituía que era proibido à autoridade federal, assim
como a dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou atos administrativos,
estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, bem como criar diferenças entre os
habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivo de
crenças, ou opiniões filosóficas ou religiosas.

Assim também garantia o direito de todas as confissões religiosas de exercerem o


seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos atos particulares
ou públicos, que interessassem o exercício do decreto17. 

Esclarecia que a liberdade de culto abrangia não só os indivíduos nos atos indivi-
duais, mas também as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados;
cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem coletivamente, segundo
o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder público18. 

Nesse contexto, o decreto, redigido por Rui Barbosa, determinou a separação


definitiva entre o Estado e a Igreja Católica Romana no Brasil e estabeleceu as bases
para a Constituição de 1891, na qual não consta referências a Deus no preâmbulo.

O texto constitucional, em sua Seção II, concernente aos direitos e liberdades


do cidadão, no artigo 72, assegurava a liberdade de culto de todos os indivíduos
e confissões religiosas (§ 3º) e estabelecia que nenhum culto ou igreja gozaria de
subvenção oficial, nem teria relações de dependência ou aliança com o Governo da
União ou dos Estados (§ 7º).

Também instituiu o caráter secular dos cemitérios, que seriam administrados pela
autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos
ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendessem a moral publica e as leis.

O contexto histórico pré-Constituição de 1988


Apesar da separação oficial da esfera da Igreja e do Estado desde 1891, ao analisar
a história do nascimento da nova Constituição, em 1988, percebe-se relevantes passa-
gens referentes ao envolvimento da religião cristã.

17 BRASIL. Art. 2º. Decreto nº 119-A. 07 de janeiro de 1890.

18 BRASIL. Art. 3º. Decreto nº 119-A. 07 de janeiro de 1890

O TRATAMENTO DADO À RELIGIÃO NA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL 17


Um dos grandes nomes do processo constituinte, Ulysses Guimarães, sempre
fazia referências à religião em seus discursos. Nascido em 1916, em Rio Claro, interior
paulista, era professor e advogado. Torcedor fervoroso dos Santos, diretor do clube e
militou na política por 45 anos. Começou como deputado estadual em São Paulo, em
1947, pelo extinto Partido Social Democrático (PSD). Depois, se elegeu deputado federal
por 11 mandatos consecutivos, entre 1951 e 1995. Foi ministro duas vezes, Presidente
da República interino em 1985, e candidato a presidente da República, em 1989.

Em 1964 apoiou a derrubada do presidente João Goulart, fundou o Movimento


Democrático Brasileiro (MDB), e participou ativamente de ações pela redemocratização
do país e da luta pela anistia nos anos 1980, ficando conhecido como Senhor Diretas e
Senhor Democracia. Seu mais relevante cargo, todavia, foi a atuação como Presidente
da Assembleia Nacional Constituinte dentre os anos 1986 a 1988.

No dia 22 de setembro de 1973, em seu histórico discurso ao citar Fernando


Pessoa em “Navegar é preciso. Viver não é preciso” na VI Convenção do MDB,
em Brasília, lançando-se como ‘anticandidato’ à presidência da República e
começando a abrir o caminho para a redemocratização do Brasil.

Mas, no episódio, nossa carta de marear não é de Camões e sim de


Fernando Pessoa ao recordar o brado: “Navegar é preciso. Viver não é
preciso”. Posto hoje no alto da gávea espero em Deus que em breve possa
gritar ao povo brasileiro: Alvíssaras, meu capitão. Terra à vista! Sem
ombra, medo e pesadelo, à vista a terra limpa e abençoada da liberdade.

Após um período extenso sob o regime militar, entre 1987 e 1988, o Congresso
Nacional se dedicou a redigir a nova Constituição Federal do Brasil. A Carta foi elaborada
e debatida durante 20 meses por 559 parlamentares (72 senadores e 487 deputados
federais) que integraram a Assembleia Nacional Constituinte, eleitos em 1986.

O presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, por


exemplo, ao ser eleito para comandar os trabalhos da assembleia, rogou a Deus para
que seu ofício de coordenador isento da elaboração constituinte, fosse modelado na
austeridade e na competência do exemplar republicano19.

19 GUIMARÃES, Ulysses. In: Ata da 3ª Sessão da Assembleia Nacional Constituinte. 03 fev 1987. P. 03.
Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/003anc04fev1987.pdf#page=>

18 Aléxia Duarte Torres


Ainda, declarou que apesar dos momentos de despotismo e assanho dos tiranos,
“prevalece a incessante expedição da humanidade para a realização do Reino de Deus
entre os homens, conforme a grande esperança cristã e que conduzir essa caminhada
é tarefa da política” 20.

Assim também, afirmou que no vestíbulo da Bíblia está decretado que Deus criou a
terra para que nela o homem trabalhasse e não a saqueasse e violentasse, ameaçando
a qualidade da vida, que deve ter no Estatuto Cívico Supremo seu guardião21. A ata da
Assembleia relata que houve palmas nesse momento.

Por fim, encerrou seu discurso ao dizer que “a voz do povo é a voz de Deus e com
Deus e com o povo venceremos”. Disse ainda que o nome político da Pátria seria uma
Constituição que perpetuaria a unidade de sua Geografia, com a substância de sua
História, a esperança de seu futuro e que exorcizaria a maldição da injustiça social.
Ao final, recebeu palmas prolongadas.

O Projeto de Resolução nº 01, de 1987 também estabeleceu um ritual de iniciação


para abertura de todas as sessões da Assembleia Constituinte. O texto, que criou
normas preliminares para funcionamento da Assembleia Nacional Constituinte até
a aprovação do Regimento Interno, designou em seu artigo 89, §2º que, a hora do
início da sessão, os membros da mesa e os constituintes ocupariam os seus lugares
e achando-se presentes, pelo menos, 94 constituintes, o Presidente comunicaria o seu
número e declararia aberta a sessão proferindo as seguintes palavras: “sob a proteção
de Deus, iniciamos nossos trabalhos” 22.

Depois de alguns meses, no dia 22 de setembro de 1988, foi realizada a última


votação da Assembleia Nacional Constituinte e instituído o dia 05 de outubro para a
promulgação do texto.

Após quatro meses de estiagem na capital do país, a chuva marcou o dia 05


de outubro, desestimulando a participação popular nas celebrações marcadas para
comemorar a promulgação da nova Constituição do Brasil.

20 Cf. GUIMARÃES, p. 02. 1987.

21 Cf. GUIMARÃES, p. 02. 1987

22 BRASIL, Diário da Assembleia Nacional Constituinte. Projeto de Resolução nº 1 de 1987. 04 fev 1987.
Ano XLII – nº 003. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/003anc04fev1987.
pdf#page=3>. Acesso em 17 out 2018.

O TRATAMENTO DADO À RELIGIÃO NA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL 19


Nascia a “Constituição Cidadã”, com duzentos e quarenta e seis artigos no texto
permanente e setenta artigos no texto temporário – Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias – apesar de hoje contar com números distintos do original23.

 O culto ecumênico concelebrado pelo cardeal arcebispo de Brasília na época,


dom José Freire Falcão e pelo pastor Geziel Gomes, da Assembleia de Deus, marcado
para as 9h da manhã, ocorreu no Salão Negro do Congresso e não no gramado da
Esplanada dos Ministérios, como estava previsto24.

No discurso de promulgação da Constituição da República, no dia 05 de outubro


de 1988, Ulysses Guimarães declarou: “Chegamos! Esperamos a Constituição como o
vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam”, e usou palavras e estruturas
bem parecidas com as palavras de Jesus descritas em Mateus 5, passagem conhecida
como o Sermão do Monte ou da Montanha.

Nos primeiros versículos do texto bíblico, a expressão “bem-aventurados” é usada


diversas vezes em diferentes situação, como: “Bem-aventurados os pobres de espírito,
porque deles é o reino dos céus (v.3)” e Bem-aventurados os que choram, porque eles
serão consolados” (v.4); Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque
eles serão fartos” (v.6).

Em uma entrevista concedida por Ulysses ao jornal O Globo, em setembro de 1988,


ao falar sobre democracia e liberalismo, também citou termos como a fraternidade
cristã:

“Sempre entendi que a democracia é o caminho político da dignidade, da esta-


bilidade social e da fraternidade cristã. Sempre fui um convicto adepto e defensor da
democracia. Sei que ela tem defeitos, mas se é um regime criado por homens para
governar homens, evidentemente, em todos esses estágios se tem que pagar o preço
de sua precariedade25”.

23 O texto atual conta com duzentos e cinquenta artigos no texto permanente e noventa e sete artigos
atualmente no ADCT.

24 BRASIL, Senado Federal. 05 de outubro de 1988: um dia histórico. Disponível em: < http://www.senado.
gov.br/noticias/especiais/constituicao25anos/um-dia-historico.htm>

25 O Globo, 02 de setembro de 1988, p.05.

20 Aléxia Duarte Torres


O novo tratamento dado à religião na Constituição de
1988 e apontamentos de diferenciação comparativos
com a Constituição Imperial
Apesar do envolvimento com a religião de grande parte dos envolvidos na assem-
bleia constituinte, a atual Constituição não instituiu nenhuma religião como sendo a
religião oficial do Estado. Outrossim, em seu art. 19, inciso I, preconiza que é vedado ao
Poder Público estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes
o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência
ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

Para ficar mais claro, notemos de forma mais simplificada que o texto apresenta
quatro vedações: a) a de estabelecer cultos religiosos ou igrejas, b) a de subvencionar
cultos religiosos ou igrejas, c) a de embaraçar o funcionamento dos cultos religiosos
ou igrejas e d) a de manter com os cultos religiosos, igrejas ou seus representantes
relações de dependência ou aliança.

Dessa forma, além de vedar a interferência do Estado na esfera religiosa, a


Constituição estabelece o principio de igualdade entre as religiões, crenças e seitas,
não favorecendo qualquer uma delas. Como esclarece Thiago Vieira (2018)26, a laicidade
brasileira é aberta à religião e garantidora desta, afastando-se totalmente dos modelos
mais fechados de laicismo, tais como o Belga e o Francês.

O Estado laico aberto brasileiro é simpático com a religiosidade, pois esta objeta o
bem comum da sociedade política e o aprimoramento do ser humano, mesmo objetivo
do Estado, porém na via secular. Apenas aquela determinada religião que não tem
como escopo objetivo o bem comum do ser humano que não deve ser protegida pela
laicidade brasileira, já que atenta contra os próprios princípios da República.

Jorge Miranda esclarece que a laicidade do Estado não deve desconhecer a


realidade social e a cultura religiosa, nem relegar as confissões religiosas para a esfera
privada. Ele explica que a existência das confissões e suas atividades não pode ser

26 VIEIRA, Thiago. A Imunidade Tributária como Garante da Liberdade Religiosa no Brasil. 2018; Monografia
final apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Estado Constitucional
e Liberdade Religiosa pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Universidade de Coimbra e University
of Oxford – Regent’s Park College. Disponível em: http://www.vradvogados.adv.br/2018/01/01/a-
imunidade-tributaria-religiosa-como-garante-da-liberdade-religiosa-no-brasil-the-religious-tax-immunity-
as-a-guarantor-of-religious-freedom-in-brazil/> Acesso em 17 out 2018.

O TRATAMENTO DADO À RELIGIÃO NA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL 21


ignorada ou secundarizada e nada impede mesmo laços de cooperação delas com o
Estado em diversos domínio sejam formados27.

Com exceção das Constituições de 1891 e 1937, todas as demais invocaram o


nome de Deus ou da Santíssima Trindade em seu preâmbulo. O preâmbulo, que muitas
vezes contém uma breve explanação, reflete a conjuntura histórica e reproduz a essência
do pensamento que guiou os trabalhos da Assembleia Constituinte, predominantes no
processo constituinte. Em geral, suas disposições descrevem a legitimidade do poder
constituinte, exaltam certos valores e fixam finalidades a serem perseguidas. Assim
também é registrado no preâmbulo da Constituição de 1988:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia


Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado
a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de  Deus, a seguinte Constituição da
República Federativa do Brasil”

Com base nos escritos do referido Preâmbulo, todas as Constituições dos Estados
Brasileiros repetiram a palavra Deus nas suas cartas, exceto o Estado do Acre, que
decidiu excluir a frase toda, “sob a proteção de Deus”, e por isso foi motivo de ADI 2076,
considerada improcedente28.

A Suprema Corte entendeu que o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 não


tem força normativa. Assim, julgou improcedente ação direta de inconstitucionalidade
por omissão movida em face do preâmbulo Constituição do Acre, a qual, diferentemente
da Constituição Federal, não se reportou “a proteção de Deus”. Arguiu que não há
qualquer obrigatoriedade de as constituições estaduais se reportarem à proteção
divina ou qualquer outra passagem do preâmbulo federal29.

27 MIRANDA, Jorge. Observatório da Jurisdição Constitucional. Brasília: IDP, 2014, p.06.

28 Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 2076 AC. Supremo Tribunal Federal.

29 STF, ADI 2076, Relator:  Min. Carlos Velloso, DJ 08-08-2003, p. 86.

22 Aléxia Duarte Torres


Todavia, interessante notar que a invocação do preâmbulo foi utilizada pela
Primeira Turma do STF no julgamento do Recurso em Mandado de Segurança nº 26071.
Durante o julgamento, decidiu-se que certo candidato portador de doença denominada
“ambliopia” tem direito a concorrer às vagas reservadas aos deficientes físicos. O
relator fundamentou sua interpretação do princípio da igualdade numa disposição do
preâmbulo da atual Constituição (“sociedade fraterna”): “A reparação ou compensação
dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica constitui
política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se
lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988”30.

Já em ruptura as Constituições anteriores, a Constituição de 1988 não estabelece


restrições ao exercício religioso, como condicionar o livre exercício religioso ao fato de
não ser contrário à ordem pública e aos bons costumes, como a de 1824 faz.

Apesar da Constituição não consagrar a expressão “liberdade religiosa”, apresenta


referências a termos como “culto”, “religião” e “crença”. Em art. 5°, VI assegura que é
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício
dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias;  VII–é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa
nas entidades civis e militares de internação coletiva;  VIII–ninguém será privado de
direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se
as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir
prestação alternativa, fixada em lei.

José Afonso da Silva nos lembra de que a liberdade de religião engloba, na verdade,
três tipos distintos, porém intrinsecamente relacionados de liberdades: a liberdade de
crença; a liberdade de culto; e a liberdade de organização religiosa31.

Quanto à liberdade de crença, explica que compreende a liberdade de escolha da


religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de
mudar de religião, e também a liberdade de não aderir a religião alguma, bem como
a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Não
engloba, contudo, a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de

30 STF, RMS 26071, Relator:  Min. Carlos Britto, Primeira Turma, DJe-018, 31-01-2008.

31 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 5 ed. rev. e ampl. de acordo com a nova
Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 223.

O TRATAMENTO DADO À RELIGIÃO NA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL 23


qualquer crença, “pois aqui também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique
a liberdade dos outros”.

No que tange à liberdade do culto, afirma que a religião não é apenas sentimento
sagrado puro. Não se realiza na simples contemplação do ente sagrado, não é simples
adoração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica
básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias, manifesta-
ções, reuniões, fidelidades aos hábitos, às tradições, na forma indicada pela religião
escolhida.

Alguns autores, como Soriano (1990, p.84)32 defendem que a liberdade religiosa
é o princípio jurídico fundamental que regula as relações entre o Estado e a Igreja
em consonância com o direito fundamental dos indivíduos e dos grupos a sustentar,
defender e propagar suas crenças religiosas, sendo o restante dos princípios, direitos e
liberdades, em matéria religiosa, apenas coadjuvantes e solidários do princípio básico
da liberdade religiosa.

Jorge Miranda (1988, p.348)33 também relaciona a liberdade religiosa com a


liberdade política. São suas palavras: “Sem plena liberdade religiosa, em todas as
suas dimensões — compatível, com diversos tipos jurídicos de relações das confissões
religiosas com o Estado — não há plena liberdade política”.

Percebe-se, portanto o tratamento diferenciado dado à Constituição da República


Federativa do Brasil de 1988, não somente em relação ao seu contexto histórico, de
ruptura ao período ditatorial, mas também à recepção e garantia do exercício do direito
à liberdade religiosa, de crença, de culto e de expressão dadas a todas as religiões,
crenças e seitas.

Considerações Finais
Por todo o exposto, dada a análise feita ao primeiro texto constitucional do Brasil,
ainda na época do império e o texto atual, é possível verificar que no suceder das leis e
dos regimes de governo, os dispositivos constitucionais que asseguravam a separação
entre a Igreja e o Estado no Brasil não retrocederam.

32 SORIANO, Ramón. Las liberdades públicas. Madri: Tecnos, 1990, p. 84

33 MIRANDA, Jorge.  Manual de direito constitucional: direitos fundamentais.  V. 4. Coimbra: Coimbra


Editora, 1988, p. 348.

24 Aléxia Duarte Torres


Além do mais, nota-se claro a diferença no tratamento dado à religião na
Constituição de 1824 quando comparada à Constituição da República de 1988, uma vez
que não institui para si uma religião oficial, nem cria privilégio ou limita direitos políticos
a uma determinada confissão, mas recepciona e abre espaço para o exercício das
mais diversas crenças.

Apontou-se que o modelo brasileiro de laicidade não significa ausência da religiosi-


dade na esfera pública, mas a garantia e a salvaguarda de todas suas expressões, uma
vez que a liberdade religiosa tem por finalidade a convivência plural e pacifica de todas
as denominações religiosas. A liberdade de organização religiosa de 1988, todavia, não
quer dizer a ausência de religião da vida social, mas a garantia do desenvolvimento
das religiões.

Na verdade, busca-se entender cada vez mais o papel das religiões no espaço
público, que em nome do pluralismo, tem apresentado um ativismo extraordinário nos
espaços públicos, provocando as cortes, manifestando-se nas ruas e ocupando diversos
espaços nas agendas governamentais e na esfera legislativa.

Dessa forma, o estudo histórico do tratamento dado à religião é de extrema


relevância para a academia, uma vez que nos permite traçar as características de
cada época e suas diferenciações, bem como perceber os laços conexos do Estado e
religião e seus agentes, mesmo com a devida separação oficial.

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O TRATAMENTO DADO À RELIGIÃO NA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL 25


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26 Aléxia Duarte Torres


EMENDAS CONSTITUCIONAIS
INCONSTITUCIONAIS: A ORIGEM
DO CONTROLE JURISDICIONAL DE
CONSTITUCIONALIDADE DAS EMENDAS
CONSTITUCIONAIS NO BRASIL
Almir Megali Neto1

RESUMO
O presente trabalho tem como objeto de estudo a teoria das emendas
constitucionais inconstitucionais no Brasil, a partir das origens do reco-
nhecimento da competência do Supremo Tribunal Federal para verificar a
compatibilidade da obra do poder constituinte derivado de reforma com a
constituição no julgamento do habeas corpus 18.178, ainda em 1926. Tendo
em vista que o poder de reforma da constituição é produto do constituciona-
lismo moderno e da distinção entre poder constituinte e poder constituído,
sustenta-se que a supremacia e a rigidez constitucional são fundamentos
para o poder de reforma da constituição. Dessa maneira, procura-se recuperar
o primeiro caso em que o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro
reconheceu sua competência para a prática. O tema se mostra relevante
no atual cenário brasileiro marcado por uma pretensão de proeminência
institucional do Judiciário e pela considerável quantidade de emendas nesses
30 anos de vigência da Constituição de 1988. No Direito Constitucional
Comparado, tem-se sustentado que o controle de constitucionalidade de
emendas constitucionais por parte de Cortes Constitucionais e Supremas

1 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrando em Direito pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Linha de Pesquisa: História, Poder e
Liberdade. Bolsista pela CAPES. E-mail: almir_megali@hotmail.com.
NETO, Almir Megali. Emendas constitucionais inconstitucionais a origem do controle jurisdicional de constitucionalidade das emendas
constitucionais no Brasil. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte,
Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 27-56. Disponível em:
https://doi.org/10.32445/97885671340932
Cortes ao redor do mundo se tornou uma prática comum às diversas demo-
cracias constitucionais, principalmente no pós Segunda Guerra Mundial,
constituindo uma agenda de pesquisa em expansão no plano internacional.

INTRODUÇÃO
A doutrina das emendas constitucionais inconstitucionais confere aos tribunais
a tarefa de apreciar a compatibilidade da obra do poder constituinte derivado de
reforma2 com a ordem constitucional estabelecida. Em caso de incompatibilidade de
ordem formal ou material entre uma emenda constitucional e a constituição3 vigente,
advoga-se a possibilidade de declaração da inconstitucionalidade da emenda consti-
tucional. A doutrina das emendas constitucionais inconstitucionais até pouco tempo
atrás era vista como uma curiosidade de alguns sistemas constitucionais isolados.4
Contudo, importantes estudos têm se desenvolvido neste campo, despertando a
atenção de pesquisadores ao redor do globo e construindo uma importante agenda
de pesquisa no âmbito do Direito Constitucional Comparado. Mais recentemente,
chega-se a sustentar que o controle jurisdicional de constitucionalidade das emendas
constitucionais constitui uma tendência constitucional comum entre diversas ordens
constitucionais, constituindo aquilo que Yaniv Roznai denomina de um caso de sucesso
de migração de ideias constitucionais.5 Sendo assim, sustenta-se que, da origem de
seus fundamentos políticos nas experiências constitucionais francesa e norte-ameri-
cana, para sua fundamentação teórica na Alemanha a ideia migrou para democracias
constitucionais ao redor do globo.

2 Considera-se o poder de reforma como gênero que abarca diferentes meios de alteração da constituição, a
saber, os processos de emenda e de revisão constitucional. Referida classificação é, inclusive, a adotada
pela Constituição brasileira de 1988. A doutrina constitucional diferencia as alterações constitucionais
mais amplas das menos amplas, chamando as primeiras de revisão e as últimas de emenda. Referidas
modalidades de alteração da constituição são consideradas mecanismos de mudança formal, pois seus
procedimentos encontram previsão expressa no texto constitucional.

3 Um esclarecimento quanto à utilização do termo constituição se faz necessário. Quando o termo for
empregado de modo genérico, sem particularizar de qual constituição se está a falar, utilizar-se-á o termo
com a letra “c” minúscula. Quando se fizer referência a uma constituição específica de algum país o
termo será escrito com a letra “c” maíuscula.

4 COLÓN-RÍOS, Joel. Introduction: The forms and limits of constitutional amendments. In. International
Journal of Constitutional Law, Vol. 13, nº 03, 1 July 2015, p. 567–574.

5 ROZNAI, Yaniv. Unconstitutional Constitutional Amendments: The Migration and Success of a


Constitutional Idea. In. The American Journal of Comparative Law, Vol. 61, 2013, p. 660.

28 Almir Megali Neto


O presente trabalho é ciente de que os estudos estrangeiros contribuem para a
compreensão do funcionamento dos institutos jurídicos, tais como o controle juris-
dicional de constitucionalidade das emendas constitucionais. Contudo, para além de
uma revisão bibliográfica do que vem sendo produzido fora do país para apresentar, por
assim dizer, o estado da arte dos estudos sobre o tema, julga-se necessário recuperar
as raízes históricas brasileiras do controle jurisdicional de constitucionalidade das
emendas constitucionais. Isso porque, acredita-se que esta reflexão pode contribuir
para a compreensão do tema e da cultura jurídica pátria que merece ter suas especi-
ficidades conhecidas. Não custa lembrar que desde a promulgação da Constituição,
o Supremo Tribunal Federal (STF) vem se reconhecendo competente para apreciar a
constitucionalidade de emendas constitucionais não apenas em seu aspecto formal,
mas também, em seu aspecto material.6

O resgate de momentos marcantes da história constitucional brasileira trona-se


relevante para que se possa compreender o sentido que se atribui à Constituição
no Brasil de hoje. Os recentes debates em torno da constitucionalidade da emenda
constitucional n. 95/2016 (EC n. 95/2016) que instituiu um novo regime fiscal para o
controle dos gastos públicos estabelecendo um teto para estes durante os próximos
vinte anos, bem refletem a necessidade de se recuperar o primeiro caso no qual o
Supremo Tribunal Federal (STF) se disse competente para apreciar a constitucionalidade
de emendas à constituição.

Não custa lembrar que a EC n. 95/2016 foi bastante criticada desde o momento
a partir do qual o Congresso Nacional iniciou as deliberações em torno da proposta
que lhe fora encaminhada pelo Executivo. Durante o período de votação da medida,
diversos setores da sociedade civil se posicionaram contrariamente à promulgação
da emenda.7 Nesse período, assistiu-se, inclusive, à ocupação de diversas instituições
de ensino no país como forma de protesto à aprovação da medida.8 A medida também

6 Cf.: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade 939. Relator Ministro
Sydney Sanches. Julgamento em: 15/12/1993. DJ 05/01/1994. Neste caso, o STF declarou, pela primeira
vez em sua história, a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional.

7 Segundo pesquisa realizada pelo Instituto DataFolha, às vésperas do segundo turno de votação
da proposta pelo Senado Federal, apenas 24% da população brasileira era favorável às mudanças
promovidas pela EC n. 95/2016. A pesquisa está inteiramente disponível em: <http://media.folha.uol.
com.br/datafolha/2016/12/12/b4dd8e8b801d33432a731ad9443c69ba6a741a9a.pdf>. Acesso em
20/05/2018>.

8 De acordo com o balanço divulgado pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), 1.197
instituições de ensino foram ocupadas em todo o país como forma de protesto às reformas promovidas

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 29


foi duramente criticada do ponto de vista de sua compatibilidade com a Constituição
de 1988, isto é, do ponto de vista de sua constitucionalidade. Cattoni de Oliveira, por
exemplo, classificou o caso como um ato desconstituinte, chegando a sustentar a
necessidade do STF exercer o controle da constitucionalidade da referida emenda.9 O
STF, inclusive, foi instado a se manifestar sobre a constitucionalidade da medida de
forma preventiva e repressiva.10

O objetivo deste trabalho, portanto, será o de contribuir para esse debate a partir
do resgate do primeiro caso em que o STF reconheceu sua competência para apreciar
a constitucionalidade de uma emenda constitucional, e que hoje é reconhecida como
a doutrina das emendas constitucionais inconstitucionais. Para tanto, proceder-se-á
ao estudo do caso do habeas corpus n. 18.178, julgado pelo pretório excelso em 1926.

Antes, porém, acredita-se ser preciso apresentar as discussões que têm sido
desenvolvidas no âmbito dos estudos daqueles que se dedicam às emendas consti-
tucionais, naquilo que, aqui se denomina de revisão bibliográfica do estado da arte
dos estudos sobre a doutrina das emendas constitucionais inconstitucionais. A partir
de então, propõe-se a retomada das discussões em torno da imprescindibilidade dos
dispositivos constitucionais que regulamentam o procedimento de alteração da própria
constituição, no seio do constitucionalismo moderno, para demonstrar como o poder de
reforma da constituição pode ser considerado produto do constitucionalismo moderno
e da distinção entre poder constituinte e poder constituído, a partir dos conceitos de
supremacia e rigidez constitucional.

pelo governo Temer, dentre elas a EC n. 95/2016. Disponível em: https://ubes.org.br/2016/ubes-divulga-


lista-de-escolas-ocupadas-e-pautas-das-mobilizacoes/. Acesso em 20/05/2018. Não há um balanço
nacional oficial sobre o número de instituições de ensino realmente ocupadas, razão pela qual, de
acordo com o Ministério da Educação, há divergências entre os números apresentados pela UBES.
Sobre isso, confira-se: <https://ubes.org.br/2016/ubes-divulga-lista-de-escolas-ocupadas-e-pautas-das-
mobilizacoes/>. Acesso em 20/05/2018.

9 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade de. Breves considerações iniciais sobre a PEC n. 241 (“Novo
Regime Fiscal”): o estado de exceção econômico e a subversão da Constituição democrática de 1988.
Empório do Direito, 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/breves-consideracoes-
iniciais-sobre-a-pec-n-241-novo-regime-fiscal-o-estado-de-excecao-economico-e-a-subversao-da-
constituicao-democratica-de-1988-por-marcelo-andrade-cattoni-de-oliveira>. Acesso em 20/05/2018.

10 Para tanto, confiram-se, respectivamente: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de segurança
34.448. Relator Ministro Luís Roberto Barroso; e BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de
inconstitucionalidade 5.643. Relatora Ministra Rosa Weber. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação
direta de inconstitucionalidade 5.658. Relatora Ministra Rosa Weber. BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Ação direta de inconstitucionalidade 5.715. Relatora Ministra Rosa Weber. BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Ação declaratória de inconstitucionalidade 5.734. Relatora Ministra Rosa Weber.

30 Almir Megali Neto


Por fim, apresentar-se-á o caso do habeas corpus 18.178, julgado pelo STF em
1926, como um caso pioneiro no qual, ainda no início do século XX, o pretório excelso
antecipou uma prática que se tornaria comum às democracias constitucionais apenas
na segunda metade do século passado. Apesar de, sob o atual marco constitucional, o
Tribunal exercer o controle de constitucionalidade de emendas constitucionais, sendo
um dos expoentes da prática no cenário do Direito Constitucional Comparado, poucos
estudos, inclusive nacionais, se dedicaram a recuperar os elementos constitutivos
do caso em que pela primeira vez o STF atribuiu a si a competência para defender
a Constituição, no caso, a de 1891, em face de possíveis abusos por parte do poder
constituinte derivado de reforma, revelando, portanto, a relevância deste estudo.

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS: BREVE


REVISÃO BILIOGRÁFICA SOBRE O ESTADO DA ARTE DOS
ESTUDOS SOBRE O TEMA
A tese de John Locke no sentido de que uma constituição deveria ser considerada
a forma sagrada e inalterável de organização de uma comunidade política não ganhou
adeptos no constitucionalismo moderno.11 Isso porque, gradativamente, as constitui-
ções modernas passaram a contar com dispositivos normativos que regulamentam o
seu próprio processo de alteração e, cada vez mais, assistiu-se a alterações formais
do texto constitucional.

Ginsburg e Elkins, por exemplo, observaram que cerca de 30 constituições são


emendadas por ano ao redor do mundo. De acordo com os autores, a nível global, o
número de emendas constitucionais tem crescido frequentemente desde 1950, não
obstante o processo de reforma constitucional ter ficado mais difícil, principalmente
a partir dos anos 1970 e 1980, período no qual boa parte das constituições passou
a adotar um processo mais dificultoso para sua própria alteração, exigindo maiorias
qualificadas e, por vezes, aprovação popular via referendo.12 Roznai, por sua vez, indica
um aumento gradual do número de constituições com limitações ao poder de reforma

11 HALMAI, op. cit., p. 101. Para tanto, cf. art. 121 da Constituição da Província da Carolina de 01 de março
de 1669. Disponível em: <http://avalon.law.yale.edu/17th_century/nc05.asp>. Acesso em: 30/06/2018.

12 ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom. Does the constitutional amendment rule matter at all? Amendment
cultures and the challenges of measuring amendment difficulty. In. International Journal of Constitutional
Law, Vol. 13, Issue 3, 1 July 2015, p. 689.

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 31


tomando como marco inicial para sua análise o ano de 1789. O autor também indica
um aumento da complexidade das cláusulas constitucionais que estabelecem limites
materiais ao poder de reforma da constituição.13

Costuma-se dizer que o modelo consagrado pelo artigo 5º da Constituição norte-


-americana estabeleceu os “fundamentos da rigidez constitucional, organizou a técnica
da emenda à constituição e ofereceu as primeiras manifestações da intangibilidade de
matérias constitucionais”.14 De fato, a previsão expressa da possibilidade de reforma
do texto constitucional combinada com o estabelecimento de um procedimento mais
dificultoso de alteração da Constituição, adotada pela experiência constitucional norte-
-americana, acabou prevalecendo mundo afora. A grande maioria das constituições
em vigor conta com regras que disciplinam sua própria mudança. Como aponta Royo,
todas as constituições editadas a partir de 1919 contaram com previsões deste tipo.15
Nesse sentido, pode-se dizer que a limitação ao poder de reforma da constituição se
tornou um elemento comum a diversos arranjos institucionais ao redor mundo.

Essa fórmula foi apontada como uma das principais contribuições norte-americanas
para a ciência política.16 Não obstante isso, no debate constitucional norte-americano,
há quem sustente a irrelevância dos procedimentos formais de reforma da constituição.
O argumento é no sentido de que, naquele país, a maior parte das alterações à cons-
tituição se dá por vias informais, pois, desde 1787, a Constituição daquele país foi
emendada apenas 27 vezes. David Strauss sustenta que “as emendas constitucionais
não têm sido um meio importante de mudar a ordem constitucional” norte-americana.
Segundo este autor, naquele país, as “emendas constitucionais têm sido questões
periféricas no processo de transformação do regime constitucional”.17 O argumento
é de que grande parte das alterações do sentido da Constituição norte-americana se
dá pela via da interpretação de suas disposições pela Suprema Corte. Não obstante

13 ROZNAI, Yaniv. Unconstitutional constitutional amendments: a study of the nature and limits of
constitutional amendment powers. Tese (Doutorado em Direito) – Department of Law of the London
School of Economics. Londres, 2014, p. 28.

14 HORTA, Raul Machado. Permanência e mudança na constituição. In. Revista de Informação Legislativa,
vol. 29, n. 115, jul./set. 1992, p. 05-06.

15 ROYO, Javier Perez. Curso de derecho constitucional. 7. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000, p. 179.

16 SCHEIPS, Paul J. Significance and adoption of article V of the constitution. In. Notre Dame Law Review,
Vol. 26, p. 48, 1950.

17 STRAUSS, David A. The irrelevance of constitutional amendments. In. Harvard Law Review, Vol. 144,
2001, p. 1457-1505.

32 Almir Megali Neto


isso, aponta-se que, a taxa de alteração formal das constituições estaduais daquele
país é aproximadamente dez vezes maior do que a taxa federal.18 Isso demonstra que,
embora as emendas constitucionais não sejam a principal via de alteração do texto
constitucional (pelo menos no âmbito federal) elas convivem com outros mecanismos
de alteração constitucional na experiência constitucional norte-americana.

No cenário brasileiro, o assunto vem se mostrando relevante, mormente quando


se tem em vista que a Constituição de 1988 passou por 99 emendas em seus quase 30
anos de vigência. Por essa razão, Elkins, Ginsburg e Melton caracterizam a Constituição
brasileira como um exemplo de statutory constitution, isto é, como uma Constituição que
conta com limites flexíveis de emenda e que é alterada quase todos os anos. Os autores
apontam que constituições desse tipo têm a virtude de serem frequentemente alteradas
através de mecanismos internos evitando a rota mais onerosa de substituição total.19

Apesar disso, há aqueles para os quais o elevado número de emendas pode


significar que a constituição não é vista como uma norma superior, tendo seu papel
confundido com o da legislação ordinária.20 No Brasil, denomina-se o fenômeno de
emendismo constitucional,21 chegando-se a afirmar que o país vive uma agenda cons-
tituinte permanente.22 Por outro lado, há quem sustente que o elevado número de
emendas constitucionais na experiência constitucional brasileira sugere que tanto a
sociedade quanto o sistema político rejeitam ações feitas completamente à margem da
Constituição. Nessa perspectiva, caso a Constituição fosse “desimportante, as ações
políticas desejadas pelos grupos hegemônicos seriam simplesmente adotadas à sua
margem, sem que os agentes interessados sequer tivessem que canalizar previamente
a sua energia no afã de alterar o texto constitucional”.23

18 HALMAI, op. cit., p. 102.

19 ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom; MELTON, James. The Endurance of National Constitutions. Cambridge:
University Press, 2009, p. 89.

20 LUTZ, Donald S. Toward a Theory of Constitutional Amendment. In. The American Political Science
Review, Vol. 88, n. 02, 1996, p. 246.

21 KUBLISCKAS, Wellington Márcio. Emendas e mutações constitucionais: análise dos mecanismos de


alteração formal e informal da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Atlas, 2009, p. 169.

22 COUTO, Claudio Gonçalves; ARANTES, Rogério Bastos. Constituição, governo e democracia no Brasil. In.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 21, n. 61, 2006, p. 41.

23 SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos
de trabalho. 2. ed. Fórum: Belo Horizonte, 2016, p. 283.

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 33


Tem-se preocupado cada vez mais com o conteúdo das emendas constitucionais
e, portanto, com sua compatibilidade com a ordem constitucional estabelecida. David
Landau, por exemplo, observa que o constitucionalismo está sendo utilizado como
ferramenta para enfraquecer a democracia. Nesse sentido, para o autor, regimes autori-
tários estariam recorrendo aos mecanismos de emenda à constituição e à substituição
constitucional para auxiliá-los a construir uma ordem constitucional mais autoritária,
por meio de alterações nos textos constitucionais que normalmente visariam extender
mandatos, extinguir instituições como as Cortes e, até mesmo, reduzir as competências
daquelas. Dessa maneira, referidos atores políticos estariam utilizando das possibili-
dades oferecidas pelo constitucionalismo para miná-lo. É o que o autor denomina de
constitucionalismo abusivo.24

Richard Albert, por sua vez, propõe a criação de um novo conceito no âmbito dos
estudos sobre as emendas constitucionais, a saber, a noção de desmembramento cons-
titucional. Albert observa que, cada vez mais, tem se tornado comum a promulgação de
emendas constitucionais que fazem mais do que reparar ou aprimorar alguma dispo-
sição constitucional à luz das novas demandas surgidas no seio da sociedade. Para
ele, haveria casos em que as emendas constitucionais estariam extrapolando os limites
estabelecidos, pelo poder constituinte originário, para alteração da constituição, uma
vez que, por meio do processo formal de reforma da constituição, determinados atores
políticos estariam, na verdade, rompendo com a ordem constitucional estabelecida.25

Sendo assim, ganha relevo a discussão em torno da possibilidade de controle


jurisdicional de constitucionalidade de emendas à constituição bem como dos critérios
utilizados pelos órgãos do Poder Judiciário para fazê-lo. Landau e Dixon apontam que,
no campo do Direito Constitucional Comparado, tradicionalmente, costuma-se aceitar a
existência de mecanismos de controle procedimental do processo de emenda à consti-
tuição e que, apenas recentemente, tem-se adotado restrições de ordem substancial a
referidos processos.26 No mesmo sentido, Roznai afirma que “parece que a tendência

24 LANDAU, David. Abusive constitutionalism. In. University of California Davis Law Review, 2013, p. 189-
260.

25 ALBERT, Richard. Constitutional Amendment and Dismemberment. In. Yale Law Journal, Vol. 43, n. 01,
2018, p. 01-84.

26 LANDAU, David; DIXON, Rosalind. Constraining Constitutional Change. In. Wake Forest Law Review,
Forthcoming; FSU College of Law, Public Law Research Paper No. 758, p. 08. Para os autores, as
limitações procedimentais ao poder de reforma da consituição se referem aos limites circunstanciais,
temporais e ao quórum exigido para que uma emenda possa ser válida. As limitações substanciais, por

34 Almir Megali Neto


global está se movendo no sentido de aceitar a idéia de limitações–explícitas ou
implícitas–no poder de reforma da constituição”.27 Dessa maneira, tem-se apontado que
a tese das emendas constitucionais inconstitucionais seria algo que faria parte daquilo
que se considera constitucionalismo transnacional.28 Nesse mesmo sentido, Albert
afirma que “a doutrina da emenda constitucional inconstitucional tem viajado pelo
mundo, desde suas bases políticas na França e nos Estados Unidos, até suas origens
doutrinárias na Alemanha, até sua aplicação prática nos Estados constitucionais em
quase todas as regiões do mundo”.29 Dessa maneira, mostra-se relevante recuperar o
primeiro caso em que o STF se disse competente para apreciar a constitucionalidade de
emendas à Constituição. Antes, porém, julga-se necessário apresentar os fundamentos
do poder de reforma da constituição e sua origem moderna.

O PODER DE REFORMA DA CONSTITUIÇÃO COMO PRODUTO DO


CONSTITUCIONALISMO MODERNO
O ano de 1789 é de importância singular para o constitucionalismo moderno
nos dois lados do Atlântico. Como aponta Roznai, nesse ano “se iniciou a Revolução
Francesa com a adoção da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, enquanto
nos Estados Unidos a Constituição entrou em vigor”.30 Além do mais, “é no interior
dessas revoluções [francesa e americana] que deve ser buscado o surgimento, de
maneira mais enfática, de um novo modo de relacionar as normas jurídicas e o poder
político”.31

sua vez, são aquelas que excluem determinadas matérias do âmbito do poder de reforma da constituição,
independentemente do procedimento adotado para realizar a alteração.

27 ROZNAI, Yaniv. Unconstitutional Constitutional Amendments: The Migration and Success of a


Constitutional Idea. In. The American Journal of Comparative Law, Vol. 61, 2013, p. 660.

28 DIXON, Rosalind. Transnational Constitutionalism and Unconstitutional Constitutional Amendments. In.


University of Chicago Public Law & Legal Theory Working Paper, No. 349, 2011, p. 01-19.

29 ALBERT, Richard. Constitutional Amendment and Dismemberment. In. Yale Law Journal, Vol. 43, n. 01,
2018, p. 15.

30 ROZNAI, Yaniv. Unconstitutional Constitutional Amendments: The Migration and Success of a


Constitutional Idea. In. The American Journal of Comparative Law. Vol. 61, 2013, p. 661.

31 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. 2. ed. belo Horizonte: Initia Via, 2014,
p. 90.

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 35


É partir desses movimentos revolucionários que se atribuiu à constituição seu
sentido moderno, ou seja, somente a partir de então é que surgiu o “conceito moderno
de constituição como documento jurídico-político, dotado de supralegalidade e pres-
suposto para o controle de constitucionalidade das leis”.32 Com efeito, foi nesses
países que, respectivamente, emergiram as noções de poder constituinte, poder cons-
tituído, supremacia e rigidez constitucional. Em outras palavras, pode-se dizer que os
fundamentos ao poder de reforma da constituição emergiram dessas experiências
constitucionais.

Como aponta Roznai, a “distinção entre poder constituinte e poder constituído foi
construída pelo grande teórico da teoria do poder constituinte, Emmanuel Sieyès”.33
De acordo com o referido autor, “esses dois poderes existem em planos diferentes: o
poder constituído existe apenas no Estado, inseparável de uma ordem constitucional
preestabelecida, enquanto o poder constituinte está situado fora do Estado e existe sem
ele”.34 Em outras palavras, o poder constituinte “é o poder extraordinário de estabelecer
a ordem constitucional de uma nação. É a expressão imediata da nação e, portanto,
seu representante. O poder constituído é o poder criado pela constituição, um poder
ordinário que a nação concede através do direito”.35

Desta distinção entre poder constituinte e poder constituído é que surgem as


exigências de limitações ao poder de reforma da constituição. Ora, como o poder
constituinte seria um poder extraordinário, normalmente exercido em momentos revo-
lucionários e sem qualquer constrangimento legal, os poderes por ele conferidos aos
poderes constituídos não deveriam ser exercidos para além dos limites estabelecidos
pela constituição. Dessa maneira, os limites ao poder de reforma da constituição
“reflete[m] a teoria de que qualquer exercício do poder de reforma – estabelecido pela
constituição e decorrente dela – deve obedecer às regras e proibições estipuladas na
constituição”.36

32 Ibid., p. 90.

33 ROZNAI, Yaniv. Unconstitutional Constitutional Amendments: The Migration and Success of a


Constitutional Idea. In. The American Journal of Comparative Law. Vol. 61, 2013, p. 664.

34 Ibid., p. 664.

35 Ibid., p. 664.

36 Ibid., p. 665.

36 Almir Megali Neto


Em suma, o poder de reforma é limitado pela própria constituição que o insti-
tuiu, razão pela qual lhe é vedado arvorar-se em poder constituinte originário para
substituir uma constituição a pretexto de estar alterando-a, atualizando-a ou garantin-
do-a. McIlwain exprime bem essa ideia ao comentar a relação existente entre poder
constituinte e poder constituído. Para o autor, se o poder constituinte cria o poder
constituído e delimita os legítimos espaços de atuação deste, a única conclusão a que
se poderia chegar é que “o poder constituído não pode exercer quaisquer poderes que
não estejam enumerados”.37 Tudo isso tendo em vista que “a principal característica
do constitucionalismo é a limitação do exercício do poder político pelo Direito”.38

Esse debate também esteve na pauta do dia nas origens do constitucionalismo


norte-americano.39 Thomas Paine, por exemplo, afirmava que “a constituição de um país
não é um ato normativo editado por algum dos poderes constituídos, mas do próprio
povo criando os poderes constituídos”.40 Apesar de a teoria do poder constituinte ter
sido elaborada no contexto do constitucionalismo francês, a “ideia do povo como
titular do poder constituinte é familiar ao constitucionalismo norte-americano”.41 O
argumento que conferiu supremacia à Constituição, já no momento de sua elaboração,
era a compreensão no sentido de que a Convenção Constitucional foi um órgão político
especial que expressou e operacionalizou a soberania popular com o único propósito
de criar uma Constituição para o povo norte-americano, razão pela qual, pode-se dizer
que “a Convenção conferiu à Constituição o status de lei suprema”.42

[...] para os americanos a constituição era um documento que expressava


o ato de constituição de um novo Estado, de modo que não significava

37 MCILWAIN, Charles Howard. Constitutionalism: ancient and modern. Ithaca: Cornell University Press,
1947, p. 21.

38 Ibid., p. 21.

39 Cf. BAYLIN, Bernard. As origens ideológicas da revolução americana. Trad. Cleide Rapucci. Bauru:
Edusc, 2003; e PAIXÃO, Cristiano. História constitucional inglesa e norte-americana: do surgimento à
estabilização da forma constitucional. Brasília: Editora Universidade de Brasília: Finatec, 2011.

40 PAINE, Thomas, apud, HOLMES, Stephen. Constitutions and Constitutionalism. In. The Oxford Handbook
of Comparative Constitutional Law. ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András (Orgs.). Oxford University Press,
2012, p. 192.

41 GRIFFIN, Stephen M. Constituent power and constitutional change in american constitutionalism. In.
LOUGHLIN, Martin; WALKER, Neil (Orgs.). The Paradox of Constitutionalism. Oxford University Press
2007, p. 49.

42 Ibid., p. 49.

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 37


apenas limite ao poder, mas também condição de possibilidade para
seu exercício legítimo em prol da expansão dos alicerces da república.
A constituição não somente restringia o governo, mas vinculava, unia,
constituía o povo que a elaborara ao fundar o corpo político que fazia
parte.43

Isso ficou claro quando, em Marbury v. Madison,44 o Chief Justice Marshall


consignou que todos os que participaram do processo de elaboração da Constituição
a concebiam como a lei fundamental e suprema da nação. Para Marshall, a Constituição,
como lei suprema da nação, sempre deveria prevalecer quando estivesse em conflito
com alguma norma infraconstitucional, pois, caso contrário, ela em nada se diferen-
ciaria da legislação ordinária. Bastaria ao Congresso elaborar uma lei por meio do
procedimento previsto pela Constituição para superar uma disposição constitucional
assim que bem lhe apetecesse. Como anota Fernandes, Marshall estava ciente de que
ao retirar o caráter supremo da Constituição ela “estaria, logo no início de sua vida,
assinando sua sentença de morte, pois sempre que o parlamento resolvesse modificá-la,
ele conseguiria”.45 Em sendo assim, é que, a partir de Marbury v. Madison, reconhece-se
a doutrina da supremacia da constituição.

Das experiências constitucionais francesa e americana, extraem-se os funda-


mentos para o processo de alteração formal da constituição. Na perspectiva francesa,
a alteração da constituição está arraigada na teoria do poder constituinte elaborada por
Sieyès que distinguia pouvoir costituant e pouvoir constituté, isto é, o poder constituinte
do poder constituído.46 Na matriz norte-americana, por sua vez, a consciência de que a
Constituição expressava a fundação de uma nova ordem jurídico-política trouxe consigo
as noções de rigidez e supremacia constitucional. Estas são as bases teóricas das
quais emanam os fundamentos para a limitação do poder de reforma da constituição.

Como as competências atribuídas aos poderes constituídos pelo poder constituinte


somente podem ser exercidas nos exatos termos desta delegação, ou seja, por meio e
no interior do ordenamento jurídico, tem-se alicerçada a base para a construção teórica

43 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. 2. ed. belo Horizonte: Initia Via, 2014,
p. 112.

44 Marbury v. Madison, 5 U.S. 1 Cranch 137 137 (1803).

45 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 7. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015, p.
37.

46 ALBERT, op. cit., p. 11.

38 Almir Megali Neto


daquilo que em doutrina se considera a supremacia constitucional. Asupremacia
constitucional reflete a posição hierárquico-superior da uma dada constituição em um
dado sistema normativo. Nesse sentido, as leis infraconstitucionais somente poderão
existir validamente neste sistema se tiverem sido elaboradas em conformidade com
o procedimento previamente estabelecido pela constituição e se estiverem de acordo
com as diretrizes e os preceitos desta ordem constitucional.

Os fundamentos para a supremacia constitucional são de duas ordens. O primeiro


se liga ao conteúdo das normas constitucionais que, em virtude de sua relevância,
exigem proteção contra maiorias eventuais e, até mesmo do legislador democrati-
camente eleito. O povo, ciente de suas fragilidades e limitações, conferiria a este
corpo de normas uma proteção superior, justamente porque traduziriam os princípios
fundamentais de uma dada comunidade. Este conteúdo material das constituições está
diretamente relacionado aos objetivos que o constitucionalismo moderno traz consigo,
a saber, a estruturação, a limitação e o modo de exercício do poder do Estado com o fim
de torná-lo limitado, moderado e racional bem como à garantia de direitos fundamentais.
O segundo fundamento para a supremacia constitucional reside na origem das normas
constitucionais que, por sua vez, seriam produto de intensa mobilização popular em
momentos extraordinários e destacados da história constitucional, pelo menos em
condições ideais.47 Dessa forma, a supremacia constitucional protegeria as disposições
constitucionais em face de eventuais abusos por parte da política ordinária.

Para assegurar proteção às disposições constitucionais em face da política


ordinária, a teoria constitucional criou o instituto da rigidez constitucional. A rigidez
constitucional exige que o processo legislativo para alteração de qualquer disposição
constitucional seja mais dificultoso que o processo legislativo de alteração de uma lei
infraconstitucional. Às constituições rígidas, assim consideradas aquelas que exigem
um processo mais rigoroso para sua alteração, opõem-se às constituições flexíveis, ou
seja, aquelas cujo procedimento para sua alteração é idêntico ao processo legislativo
ordinário. A distinção entre constituição rígida e flexível é da lavra de James Bryce,
para quem a rigidez constitucional é uma característica das constituições modernas.

As constituições mais antigas podem ser consideradas flexíveis, porque


possuem elasticidade, se adaptam e alteram suas formas sem perder
suas características principais. As constituições mais modernas, por
sua vez, não possuem esta característica porque sua estrutura é dura e

47 SARMENTO; SOUZA NETO, op. cit., p. 23-29.

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 39


fixa. Portanto, não há inconveniente em lhes chamar de constituições
rígidas.48

Dessa maneira, uma constituição é flexível quando não existirem impedimentos


para que a ordem constitucional estabelecida seja alterada pela via legislativa ordinária
ou pela alteração de um costume constitucional, ao contrário do que se passa com
as constituições rígidas. Como intuitivo, Bryce, classifica o sistema constitucional
inglês como flexível, pois este pode ser alterado a qualquer momento pelo Parlamento.
Por tal razão, “para Bryce, onde as constituições são flexíveis, a sua diferença em
relação às normas ordinárias decorre da matéria versada, mas não da superioridade
hierárquica tida como inexistente”.49 Sendo assim, eventual conflito existente entre
norma constitucional anterior e posterior se resolve não pelo critério hierárquico, mas
sim, pelo critério cronológico. Este é o fundamento da teoria da revogação implícita.
Logo, a norma constitucional posterior derroga a anterior se for contrária a esta.

Portanto, por força da rigidez constitucional, impõem-se um procedimento mais


rigoroso para alteração do texto constitucional do que o exigido para modificar a legis-
lação ordinária. Seu objetivo é conceder estabilidade aos princípios fundamentais que
compõem a estrutura básica do Estado, retirando das maiorias ocasionais a capacidade
de alterá-los sem que haja apoio de uma maioria expressiva da sociedade.50

Supremacia e rigidez constitucional constituem, dessa maneira, os fundamentos


subjacentes ao processo de reforma da constituição. Como bem salientado por Willian
Marbury, ainda no início do século XX, considerando a rigidez bem como a supremacia
constitucional, “pode-se afirmar com segurança que o poder de ‘emendar’ a constituição

48 BRYCE, James. Constituciones flexibles y Constituciones rígidas. Madrid: Centro de Estudios


Constitucionales, 1988, p. 26.

49 SARMENTO; SOUZA NETO, op. cit., p. 56-57.

50 A associação feita por Jon Elster entre um povo que restringe suas próprias deliberações futuras por
meio de uma constituição e o mito de Ulisses ilustre bem essa situação. De acordo com a mitologia
grega, Ulisses, ciente das dificuldades que enfrentaria ao passar próximo ao largo da ilha das sereias
teria ordenado aos seus marinheiros a tamparem seus próprios ouvidos com cera e a amarrarem os
braços dele, Ulisses, ao mastro do navio. O herói mitológico temia os encantos dos cantos das sereias
que sempre descontrolavam os navegantes que passavam pela região, levando-os ao naufrágio. Sendo
assim, Ulisses reconheceu a possibilidade de suas paixões colocarem em risco sua tripulação em um
provável momento de fraqueza que eles enfrentariam futuramente, razão pela qual delas se protegeu.
O mesmo se passaria com o povo que, temendo a degradação de seus princípios mais fundamentais,
adotaria mecanismos para dificultar futuras alterações constitucionais. Cf: ELSTER, Jon. Ulisses and the
sirens: studies in rationality and irrationality. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.

40 Almir Megali Neto


não se destina a incluir o poder de destruí-la”.51 Pois bem, tendo em vista o caráter
supremo do texto constitucional, isto é, tendo em vista que o texto constitucional é o
fundamento de validade de todas as demais normas do ordenamento jurídico bem como
o fundamento de legitimidade para o exercício de todo o poder político, em sistemas
constitucionais rígidos, o processo de alteração da constituição é mais dificultoso do
que o processo legislativo ordinário.

O PROCEDIMENTO DE REFORMA DA CONSTITUIÇÃO COMO


ELEMENTO IMPRESCINDÍVEL PARA MANUTENÇÃO DA
ESTABILIDADE E LONGEVIDADE CONSTITUCIONAL
Muito embora a distinção entre poder constituinte e poder constituído possa ser
extraída da teoria clássica do poder constituinte elaborada por Emmanuel Sieyès, a
experiência constitucional francesa demonstrou que, naquele país, o poder de reforma
não foi a principal via de atualização da constituição. Na França, o elevado número de
constituições revela que o fundamento para as alterações pretendidas pela sociedade
foi buscada mais com socorro à vontade da Nação do que no uso dos procedimentos
formais de alteração do texto constitucional. Isso porque, como anota Cattoni de
Oliveira, “a Nação, entendida como um macro-sujeito, formado pela multidão do povo,
desprovido de qualquer organização legal e acima de qualquer lei”,52 seria a fonte tanto
da origem do poder como da autoridade legal. Daí ser possível afirmar que, da refe-
rida formulação teórica “os resultados desastrosos, demonstrados pela historiografia
tradicional, foram a existência de um estado de revolução permanente”53 que permitia
a qualquer um que supostamente representasse a Nação, não apenas as condições
fáticas de agir, mas também, os fundamentos necessários para justificar seus atos.

Na experiência constitucional norte-americana, nos primeiros anos pós-indepen-


dência, a Constituição do Estado da Virgínia, primeira Constituição estadual dos Estados
Unidos da América, não continha qualquer previsão sobre os mecanismos de reforma

51 MARBURY, William L. The limitations upon the amending power. In. Harvard Law Review, Vol. 33, n. 02,
1919, p. 225.

52 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. 2. ed. belo Horizonte: Initia Via, 2014,
p. 107.

53 Ibid., p. 107.

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 41


da sua Constituição. No entanto, como demonstra Loughlin,54 consideráveis avanços
foram observados entre os anos de 1776 e 1783, período no qual as constituições
estaduais que foram sendo editadas passaram a conter previsões expressas regula-
mentando seu processo de alteração. Exemplares neste sentido são as Constituições
dos Estados de Nova Jérsei e Delaware, ambas de 1776.55 Como demonstra Roznai, no
mencionado período, além das Constituições dos Estados de Nova Jérsei e Delaware,
as Constituições dos Estados da Pensilvânia e de Maryland de 1776, da Geórgia e de
Vermont de 1777 e de Massachussetts de 1780 também estabeleceram procedimentos
para sua reforma contando, inclusive, com a previsão de limites materiais.

Ao tempo da Convenção Constitucional de 1787 parecia claro que a Constituição


dos Estados Unidos necessitaria prever a possibilidade de sua reforma. Edmund
Randolph, delegado convencional do estado da Virgínia, apresentou o projeto denomi-
nado Virginia Plan que continha previsão autorizando reformas à Constituição sempre
que fosse necessário. No mesmo sentido, George Mason sustentava que “seria melhor
prever mecanismos de reforma da Constituição de maneira fácil, regular e constitucional,
do que confiar no acaso e na violência”,56 pois uma previsão neste sentido “permitiria à
Constituição resistir ao teste do tempo. Tal mecanismo era necessário, especialmente
à luz do processo de emenda quase impossível dos Artigos da Confederação que exigia
aprovação unânime dos Estados”.57

James Madison sintetiza muito bem o resultado de toda essa deliberação


envolvendo a necessidade de adoção de mecanismos de reforma da Constituição ao
afirmar, no artigo 43 de O Federalista, que, seria preciso rejeitar tanto uma cláusula
que possibilitasse alterar o texto constitucional com extrema facilidade, quanto uma

54 LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law. Oxford University Press, 2010. p. 280-281.

55 ROZNAI, Yaniv. Unconstitutional constitutional amendments: a study of the nature and limits of
constitutional amendment powers. Tese (Doutorado em Direito) – Department of Law of the London
School of Economics. Londres, 2014, p. 10.

56 Ibid. p. 10-11.

57 Ibid. p. 10-11.

42 Almir Megali Neto


que tornasse o processo de alteração da Constituição extremamente difícil a ponto de
perpetuar suas falhas eventualmente descobertas pelas gerações futuras.58

[Madison] não defendeu uma Constituição inalterável. Ele simplesmente


queria que o processo de emenda fosse complexo e demorado, exigindo
não uma maioria simples, mas sim uma sequência de maiorias
extraordinárias em diferentes órgãos da estrutura estatal ao longo de
um período. Em outras palavras, ele não buscou a permanência absoluta,
mas apenas uma permanência relativa (HOLMES, 1999, p. 240).59

A questão giraria em torno de saber até que ponto uma geração poderia submeter
as outras aos seus desígnios, considerando que “a permanência da Constituição é a
ideia inspiradora do constitucionalismo moderno”.60 Nesse sentido, como as gerações
futuras deveriam se comportar frente à exigência de preservação do texto constitu-
cional requerida pelo constitucionalismo moderno? Thomas Jefferson, por exemplo,
sustentava que “os mortos não deveriam governar os vivos”.61 Paine também sustentava
posicionamento semelhante ao afirmar que “a vaidade e a presunção de governar para
além do túmulo é a mais ridícula e insolente das tiranias”.62 Edmund Burke dizia que
“um Estado sem os meios de mudança é um Estado sem os meios de sua própria
conservação”.63

Pois bem, a partir de então, é possível constatar que a reforma da constituição é


uma questão central do constitucionalismo moderno, já que desempenha o papel de
articular o dilema da estabilidade e da mudança no Direito Constitucional. Nas palavras

58 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Belo Horizonte: Líder, 2003, p. 267-
276.

59 HOLMES, Stephen. El precompromiso y la paradoja de la democracia. In. ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune.
Constitucionalismo y democracia. Trad. Monica Utrilla de Neira. México: Fondo de Cultura Económica,
1999, p. 240.

60 HORTA, op. cit., p. 05.

61 JEFFERSON, Thomas, apud, KLEIN, Claude; SAJÓ, András. Constitution-Making: Process and Substance.
In. The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law. ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András (Orgs.).
Oxford University Press, 2012, p. 394.

62 PAINE, Thomas, apud, BARROSO, LUÍS ROBERTO. Curso de direito constitucional contemporâneo. 7. ed.
Saraiva: São Paulo, 2015.

63 BURKE, Edmund, apud, MURPHY, Walter F. Merlin’s Memory: The past and future imperfect of the once
and future polity. In. Responding to Imperfection: The Theory and Practice of Constitutional Amendment.
LEVINSON, Sandford (Org.). Princeton: Princeton University Press, 1995, p. 168.

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 43


de Barroso, “o estudo do poder de reforma da constituição é pautado pela tensão
permanente, em um Estado Democrático de Direito, entre permanência e mudança no
direito constitucional”.64 Para Roznai, “o processo de reforma da constituição é um
método para reconciliar a tensão existente entre estabilidade e flexibilidade”.65 Isto
é, a discussão em torno dos limites ao poder de reforma da constituição tem relação
direta sobre a relação existente entre constitucionalismo e democracia.

Isso porque, uma constituição inteiramente imutável não resistiria ao teste do


tempo, uma vez que não atenderia às exigências e necessidades das gerações futuras.
Além disso, uma constituição deste tipo seria antidemocrática por impossibilitar que
as gerações futuras decidam sobre seu próprio destino. Sendo assim, a imutabilidade
das constituições seria politicamente inviável.66 Por sua vez, uma constituição cujo
processo de alteração seja extremamente facilitado estaria ao sabor das maiorias
ocasionais perdendo, assim, seu caráter fundamental bem como sua capacidade em
assegurar os direitos e valores mais caros de uma determinada sociedade, em face do
poder político e das forças sociais criando, ainda, um cenário de instabilidade.

Roznai apresenta quatro razões pelas quais se deveria optar pela possibilidade
de alteração dos textos constitucionais à luz das novas demandas exigidas pela
sociedade. Em primeiro lugar, constituições imutáveis se tornariam irrelevantes e
incapazes de lidar com a complexidade das relações sociais adquirida com o passar
dos tempos, pois, segundo o autor, os valores intersubjetivamente compartilhados
pela sociedade poderiam se alterar. Em segundo lugar, o procedimento de reforma de
uma constituição seria o melhor meio para alterar eventuais imperfeições contidas no
texto originário, tendo em vista a falibilidade do saber humano. Em terceiro lugar, seria
uma forma de assegurar ao povo a possibilidade de aprimorar ou corrigir os termos
de uma constituição sem precisar recorrer ao poder constituinte originário evitando,
dessa maneira, a instabilidade advinda com uma eventual ruptura jurídico-política.

64 BARROSO, op. cit., 2015, p. 175.

65 ROZNAI, Yaniv. Unconstitutional constitutional amendments: a study of the nature and limits of
constitutional amendment powers. Tese (Doutorado em Direito) – Department of Law of the London
School of Economics. Londres, 2014, p. 22.

66 VEGA, Pedro de. La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente. Madrid: Tecnos,
1988, p. 83-87.

44 Almir Megali Neto


Por fim, constituições passíveis de alteração tendem a durar por mais tempo do que
constituições inalteráveis.67

No Direito Constitucional brasileiro, todas as constituições contaram com dispo-


sitivos para regulamentação dos seus próprios processos de alteração. Até mesmo
a Constituição de 1824 que, seguindo a tradicional classificação das constituições,
pode ser considerada como uma Constituição semirrígida, contou com dispositivo
constitucional nesse sentido.68 Por sua vez, “um ligeiro exame da evolução constitu-
cional brasileira, desde a primeira constituição republicana, demonstra que é da nossa
tradição a atribuição do exercício do poder de reforma constitucional ao Congresso
Nacional, mas mediante um procedimento mais rigoroso”69 do que o previsto para a
alteração da legislação ordinária. Sendo assim, apresentar-se-á, em seguida, como o
STF enfrentou a questão da proteção da Constituição em face de possível violação
por parte de uma emenda constitucional promulgada pelo Congresso Nacional nos
primeiros anos de vigência da Constituição de 1891, primeira Constituição republicana
da história constitucional brasileira.

HABEAS CORPUS 18.178 E O RECONHECIMENTO DA


COMPETÊNCIA DO STF PARA EXERCER O CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE DE EMENDAS CONSTITUCIONAIS
Em 11 de setembro de 1926, o então advogado Themistocles Brandão Cavalcanti,
impetrou habeas corpus perante o STF em favor dos Generais João Maria Xavier de
Britto, Sylvestre Rocha, Coronel Waldomiro de Castilho Lima, Tenente Coronel Djalma
Ulrich de Oliveira, Capitães Godofredo Franco de Faria, Benjamin Pereira da Silva, Carlos
Miguel de Vasconcellos Querê, Juarez do Nascimento Fernandes Tavora, Francisco

67 ROZNAI, Yaniv. Unconstitutional constitutional amendments: a study of the nature and limits of
constitutional amendment powers. Tese (Doutorado em Direito) – Department of Law of the London
School of Economics. Londres, 2014, p. 11-12.

68 Trata-se do art. 178 da Constituição de 1824 que dispunha sobre a possibilidade de alteração, por um
procedimento mais gravoso, apenas para aquelas normas tidas como materialmente constitucionais,
nomeadamente, os dispositivos sobre os limites e atribuições dos poderes públicos e os direitos políticos
e individuais do cidadão.

69 BRANDÃO, Rodrigo; SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao artigo 60. In. CANOTILHO, José Joaquim
Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. (Orgs.). Comentários à
Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2.375.

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 45


Pereira da Silva, Mario de Magalhães Cardozo Barata, Alcino Artidoro da Costa, Solon
Lopes de Oliveira, Tenentes Luiz Cordeiro de Castro Affilhado, Jonathas de Moraes
Corrêa, Ruy da Cruz e Almeida, Raphael Guimarães, Sylo Meirelles, Dr. Arlindo de
Castro Carvalho, Carlos Saldanha da Gamna Chevalier, Eduardo Gomes, Aurelio da
Silva Py, Aristoteles de Souza Dantas, Léo da Costa, Langleberto Pinheiro Soares,
Roberto Carneiro de Mendonça, Arlindo Maurity da Cunha Menezes, Olindo Denys e
Cezar Gonçalves e de 150 soldados que se encontravam presos, incomunicáveis e
abandonados no penedo da Ilha da Trindade, a 800 milhas da costa brasileira, para que
cessasse o constrangimento ilegal que os pacientes estavam sofrendo em virtude dos
atos praticados pelo governo federal durante a vigência de estado de sítio.

O pedido formulado ao Tribunal era no sentido de garantir que os pacientes fossem


mantidos nas prisões a que teriam direito de acordo com a Constituição vigente à época
dos fatos e da legislação infraconstitucional aplicável à espécie. Contudo, antes de
adentrar no mérito propriamente dito do pedido formulado no habeas corpus 18.178,
o advogado impetrante sustentou uma importante questão preliminar e que interessa
diretamente ao presente trabalho. Trata-se da arguição de inconstitucionalidade da
reforma constitucional de 1926 que, segundo a inicial do referido writ, teria limitado a
competência do Poder Judiciário bem como os recursos contra os excessos dos atos
praticados pelo governo.

Durante o período de tramitação da proposta de reforma da Constituição de


1891 no Congresso Nacional (1925-1926), o país apresentava um quadro de grave
instabilidade político-institucional que, segundo a oposição parlamentar ao governo do
então Presidente da República, Arthur Bernardes, seria capaz de justificar a paralisação
das discussões em torno da proposta. A argumentação era no sentido de que, naquele
período, não havia no país a tranquilidade necessária para a discussão e aprovação de
medida de tamanha importância. Como destaca Ribeiro:

O que se tinha a discutir, mais especificamente no caso, era, em primeiro


lugar, o problema da oportunidade. Levantava-se a questão justamente
no momento em que não se gozava da tranquilidade e das garantias
legais necessárias ao pleno debate que um assunto como esse exigia;
momento de crise em que se somava às transações para o preparo da

46 Almir Megali Neto


sucessão presidencial e à emergência de revoltas armadas o regime
do sítio, sob o qual se encontrava grande parte do território do país.70

Em tal cenário, questionava-se, portanto, a oportunidade da medida. Ora, como


poderia ser adotada uma medida de tamanha amplitude e relevância em um período
em que não havia a possibilidade do livre debate sobre a reforma? Tanto a sociedade
civil organizada, quanto o Congresso Nacional, estavam cerceados pela ausência
das garantias fundamentais para apreciar a proposta. Nesse sentido, o quadro de
anormalidade político-institucional do momento justificaria, na ocasião, que não se
reformasse a Constituição de 1891. É nesse sentido que o impetrante sustentava a
inconstitucionalidade da reforma, seja por ela ter sido aprovada durante o estado de
sítio, seja devido à interferência do Poder Executivo nos trabalhos parlamentares desde
a proposição da medida até a sua promulgação pelo Congresso Nacional.

Embora o art. 90 da Constituição de 1891, que regulamentava o processo de


reforma do texto constitucional, não atribuísse ao Presidente da República a compe-
tência para deflagrar o processo legislativo, afirmava-se que as linhas gerais da proposta
haviam sido elaboradas diretamente pelo Chefe do Poder Executivo. Pontos decisivos
da reforma haviam sido elaborados nas dependências do Palácio do Catete entre Arthur
Bernardes e sua base política no Congresso Nacional e, além disso, a política dos
governadores teria permitido ao então Presidente cooptar governadores e presidentes
dos estados para controlar o comportamento de suas respectivas bancadas durante
a tramitação da proposta.71

Como demonstra Ribeiro, alegava-se, ainda, que a proposta violava a Constituição


de 1891 por representar “uma maior centralização de poderes nas mãos do Executivo
Federal, acompanhada pela restrição de liberdades civis, tão apregoadas pelos
constituintes republicanos”.72 Apesar de reconhecer e, inclusive, mencionar referidas
irregularidades apontadas durante a tramitação da proposta no Congresso Nacional
pelos parlamentares contrários à adoção da medida, o impetrante, em sua peça de

70 RIBEIRO, Marly Martinez. Revisão constitucional de 1926. In. Revista de Ciência Política, Vol. 1, nº 4, Dez.
1967, p. 67.

71 RIBEIRO, Marly Martinez. Op. cit., p. 69-71.

72 Ibid., p. 72.

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 47


ingresso, limita-se a arguir a inconstitucionalidade formal da reforma constitucional
aprovada pelo parlamento brasileiro em 1926, fazendo-o, nos seguintes termos:

[...] não é necessário entrar nesse terreno considerado, até hoje, sagrado
por este Egrégio Tribunal, não obstante opiniões valiosas, notadamente
de Ruy Barbosa–nem tampouco precisamos repetir as arguições
irrespondíveis feitas por membros dos mais competentes do Parlamento
Nacional, e que demonstraram à saciedade a inconstitucionalidade
da reforma, já pela sua decretação durante o estado de Sítio, já pela
intervenção acintosa, manifesta do Presidente da República, quer na sua
elaboração, quer mesmo na sua iniciativa. Temos em mãos argumentos
de ordem puramente legal, que dizem com a interpretação lógica, e
gramatical do texto da nossa Constituição e que só por si dispensam o
auxílio da interpretação histórica, ou mesmo o recurso ao espírito e a
intenção dos legisladores.73

De acordo com o impetrante, a reforma constitucional promulgada pelo Congresso


Nacional em 1926 não teria observado o quórum exigido pela Constituição para sua
aprovação. Isso porque, segundo a narrativa inicial, o art. 90 da Constituição de 1891
exigiria o quórum de 2/3 dos membros de cada Casa do Congresso Nacional para que
uma proposta de reforma constitucional pudesse ser aprovada. Na hipótese concreta
dos autos do habeas corpus 18.178, a proposta teria sido aprovada apenas por 2/3
dos membros presentes à sessão deliberativa ocorrida no Senado Federal, ou seja,
não teria sido aprovada por 2/3 do total dos membros da referida Casa legislativa.

A Constituição diz–dois terços dos votos nas duas Câmaras. São,


portanto, dos votos das Câmaras e não dos membros presentes. E
assim deve ser entendido porque sempre que a Constituição se refere
à votação das decisões do Congresso fala em membros presentes–(Arts.
33 § 2º–37 § 3º–39 § 1º e 47 § 2º–somente neste caso não se refere a
membros presentes mas a Câmaras o que significa, da casa legislativa,
isto é, dos membros que a compõem.74

73 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 18.178. Relator Ministro Hermenegildo de Barros.
Julgamento em: 01/10/1926, p. 05.

74 Ibid., p. 06.

48 Almir Megali Neto


Por outro lado, alegava o impetrante que a segunda parte do § 5º, do art. 60, da
Constituição de 1891, incluído pela reforma constitucional de 1926, representaria uma
afronta à ordem constitucional então vigente, uma vez que retirava a competência
de tribunais e juízes da República de apreciarem, na vigência do estado de sítio, a
constitucionalidade e a legalidade dos atos praticados pelo Executivo e pelo Legislativo
em virtude dele. A argumentação do impetrante era no sentido de que “admitir-se que,
contra atos do Governo não pode haver recurso judicial é admitir a ditadura, e das piores
ditaduras, porque é a ditadura da força e do exclusivo arbítrio”.75

Sendo assim, requereu o impetrante que o Tribunal se manifestasse a respeito


da interpretação que deveria ser conferida ao art. 60, § 5º, da Constituição de 1891,
pois, segundo a inicial do writ, ou se continuaria e entender que os órgãos do Poder
Judiciário seriam competentes para apreciar apenas os atos praticados durante o
estado de sítio que fossem diversos dos permitidos pelo art. 80, § 2º, da Constituição,
ou se passaria a entender que teria ficado completamente abolido o cabimento de
qualquer impugnação judicial em face dos atos praticados durante a vigência do estado
de sítio. Neste último caso, sustentava o impetrante que, referida interpretação, seria
equivalente à supressão do próprio STF, dos limites estabelecidos para o exercício do
poder bem como dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.

Egrégio Tribunal. Ou tal dispositivo não tem a amplitude que parecer ter,
pela significação literal do texto, e neste caso, permanecemos na mesma
situação, continuando-se a compreender o recurso judicial somente
quando o Governo se excede nas medidas expressamente autorizadas
pelo art. 80 nº 2 da Constituição–ou então–fica abolido inteiramente o
recurso judicial e o Governo pode usar e abusar da violência e arbítrio
sob pretexto do estado de sítio e neste caso, o Supremo Tribunal
Federal sofre uma diminuição na sua competência que equivale à sua
própria supressão. [...] o art. 80 nº 2 da Constituição Federal, limita as
medidas que podem ser tomadas pelo Governo durante o estado de sítio
à detenção e ao desterro–e não é lícito negar ao Poder Judiciário sua
intervenção quando o Governo se excede nessas medidas – sob pena
de tornar letra morta e inexistente a limitação constitucional. O princípio
geral não pode ser revogado porque importa em alteração fundamental
do próprio regime da Constituição. Demais, seria transformar em ditadura

75 Ibid., p. 09.

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 49


o nosso regime constitucional pela supressão das garantias aos direitos
individuais, negando-se mesmo ao Poder Judiciário o exercício de suas
funções primordiais, de intérprete da Constituição e de protetor dos
direitos individuais.76

Com base em tais fatos, o impetrante argumentou que, devido à supremacia da


Constituição e à competência de todos os tribunais e juízes da República para processar
e julgar as causas em que as pretensões deduzidas em juízo estiverem fundadas em
algum dispositivo constitucional (art. 60, da Constituição de 1891), o STF poderia
apreciar a compatibilidade de qualquer ato normativo editado pelo Congresso Nacional
com a Constituição.

É princípio indiscutível em nosso direito que o Supremo Tribunal


Federal, como intérprete máximo da Constituição, pode julgar da
costituciona1idade de qualquer decisão do Congresso Nacional que
venha ferir os dispositivos da nossa lei fundamental. Desde que se alegue
o desrespeito por parte de qualquer um dos poderes aos dispositivos
da Constituição Federal, pode o Supremo Tribunal Federal, mediante
provocação da parte ofendida, anular a decisão impugnada, tornando-a
sem efeito.

Ora, o que se vem alegar neste momento é que a lei que acaba de ser
sancionada pelo Congresso, modificando, alterando a Constituição
Federal, vem ferir de frente, a letra e o espírito da Constituição de 24
de Fevereiro.77

Sendo assim, requereu o impetrante que o Tribunal reconhecesse a inconstitu-


cionalidade da reforma. Na hipótese de a mesma ser admitida, requereu o impetrante
a admissibilidade do recurso contra atos abusivos praticados pelo governo federal
durante e em virtude do estado de sítio.78

76 Ibid., p. 09.

77 Ibid., p. 03.

78 No mérito, o habeas corpus 18.178 levanta questões relevantes, tais como, (i) a possibilidade do controle
de constitucionalidade da decretação do estado de sítio; (ii) a fixação de limites à discricionariedade do
Chefe do Poder Executivo na decretação do estado de sítio; e (iii) o princípio da humanidade da pena.
Contudo, por extrapolarem o recorte feito por este trabalho, tais questões não serão apreciadas aqui.

50 Almir Megali Neto


O STF conheceu do pedido por entender ser competente para apreciar os funda-
mentos que embasavam a impetração, mesmo se tratando a hipótese de medida
praticada durante a execução do estado de sítio. Ao interpretar a expressão “em virtude”
do estado de sítio, contida no § 5º, do art. 60, da Constituição de 1891, o Tribunal
entendeu que a mesma faria referência aos atos praticados “em consequência”; “em
razão”; “por efeito”; “por força” do estado de sítio. Ou seja, os atos insuscetíveis de
apreciação jurisdicional seriam aqueles praticados nos limites estabelecidos pelo art.
80, § 2º, da Constituição então vigente. Nesse sentido, para o Tribunal, o habeas corpus
cujo ato coator impugnado extrapolasse os limites estabelecidos no referido dispositivo
constitucional, deveria ser conhecido e concedido, pois tais atos não poderiam ser
tidos como decorrência do estado de sítio.

Para o Tribunal acatar o ato contrário à liberdade pessoal é necessário que


ele constitua uma providência que o estado de sítio permite ou comporta,
que seja um meio para sua eficácia, permitido pela Constituição da
República, a qual circunscreveu as medidas consideradas indispensáveis
para essa eficácia, em favor da segurança e da defesa da ordem pública,
prevenindo ou reprimindo a ação subversiva, a desordem, a anarquia.
Excedê-los, é infringir as disposições fundamentais reguladoras desse
instrumento, criado a bem da defesa da Pátria e da manutenção do regime
político, da tranquilidade social, da obediência à autoridade legítima,
investida principalmente da função de garantir a paz da sociedade, sem
a qual o Estado não pode cumprir os deveres para que fora organizado.

[...]

Fora de sua função constitucional, das lindes que lhe delimitam o uso,
essa arma, idônea para auxiliar o restabelecimento da normalidade da
vida interna do país, que é o primeiro dever do Estado, transforma-se
em providência criminosa, converte-se em instrumento de opressão
selvagem, numa manifestação franca da tirania, que o regime republicano
repele em absoluto.

Nas hipóteses indicadas e nas congêneres, por mais que a autoridade


coatora diga que procedeu em virtude do estado de sítio, o Tribunal

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 51


concederá,–e ninguém poderá duvidar disso,–a ordem protetora da
liberdade física do indivíduo.79

Pois bem, dessa maneira, o STF entendeu que seria competente para apreciar se
a medida imposta aos pacientes estaria abrangida pelos limites estabelecidos pelo
art. 80, § 2º, da Constituição de 1891. Ao assim proceder, destacou o Tribunal que o
ato coator questionado pela impetração estaria de acordo com os limites do referido
dispositivo constitucional, razão pela qual sua intervenção no caso violaria a separação
dos poderes.

Com relação à constitucionalidade da reforma constitucional de 1926, o STF


reconheceu ser competente para apreciar a compatibilidade da obra do poder consti-
tuinte derivado reformador com a Constituição. Aqui, vale destacar novamente que a
alegação do impetrante se limitava ao fato de que a reforma não teria sido aprovada
pelo quórum de exigido pelo art. 90, § 2º, da Constituição de 1891. Diz-se isso, porque,
naquela ordem constitucional, não havia limitação circunstancial ao poder de reforma
e as limitações de ordem material se limitavam à manutenção da forma republicano-
-federativa e da igualdade de representação dos estados no Senado (art. 90, § 4º, da
Constituição de 1891).

Nesse sentido, pelo menos em tese, seriam admitidas pelo texto constitucional
então vigente, as propostas de reforma da Constituição em situações atípicas ou de
crise, tais como durante o estado de sítio. Além disso, como não havia disposição
constitucional no sentido de impedir a aprovação de reformas que visassem subtrair
competências dos poderes constituídos e direitos e garantias fundamentais dos indi-
víduos, poder-se-ia cogitar de emendas constitucionais com esse teor. Talvez, por tais
razões, o impetrante se absteve de questionar a constitucionalidade da reforma cons-
titucional com base em referidas questões, limitando-se a arguir a incompatibilidade
do procedimento adotado pelo Congresso Nacional com o previsto pela Constituição.

Considerando a redação do § 1º, do art. 90, da Constituição de 1891, que dispunha


sobre a legitimidade ativa para propor reforma à Constituição, com o § 2º, do refe-
rido dispositivo constitucional, o STF entendeu que, caso a aprovação da proposta
dependesse da manifestação favorável de 2/3 da “totalidade dos membros de cada
casa do parlamento, seria mister que o legislador constituinte o houvesse declarado
expressamente, ou que, ao menos, houvesse empregado forma semelhante à usada

79 BRASIL, op. cit., p. 68-69.

52 Almir Megali Neto


no tocante à apresentação da proposta”.80 Sendo assim, conclui que “dois terços dos
votos só podem ser dois terços dos votos dos que no momento votam, satisfeita, é
bem de ver, a condição geral do quórum”,81 razão pela qual seria descabido sustentar
a inconstitucionalidade da medida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo de caso da primeira oportunidade na qual o STF reconheceu sua compe-
tência para apreciar a constitucionalidade de propostas de emendas à constituição é
uma parte importante da história constitucional brasileira, pois revela a inauguração de
uma tradição daquilo que hoje se denomina de doutrina das emendas constitucionais
inconstitucionais. Desde a Primeira República, o órgão de cúpula do Poder Judiciário
brasileiro vem se reconhecendo competente para tal mister, antecipando uma prática
que, como visto, se tornou comum apenas a partir da segunda metade do século no
âmbito do Direito Constitucional Comparado. O caso do habeas corpus 18.178, permite
analisar criticamente as relações existentes entre Direito e Política, a partir deste tipo
de controle de constitucionalidade que tem por objeto a obra do poder constituinte
derivado reformador.

Foi possível constatar, ainda, por meio da impetração realizada pelo então advo-
gado Themistocles Cavalcanti, os indícios dos fundamentos que embasam a doutrina
das emendas constitucionais inconstitucionais em solo pátrio. A base desse controle
reside na compreensão de que a supremacia da constituição exige a observância
de seus preceitos por todos os poderes constituídos, inclusive, nos processos de
alteração do próprio texto constitucional, como se passa com as emendas constitu-
cionais, por força da rigidez constitucional. A questão, portanto, diz respeito ao papel
político-institucional que deve ser realizado pelo STF enquanto guardião precípuo do
texto constitucional. Nesse sentido, a verificação da constitucionalidade da reforma
constitucional no caso do habeas corpus 18.178, revela, em última instância, o dever do
STF de atuar como guardião da soberania constituinte em face de possíveis abusos que
possam ser cometidos pelo Executivo e pelo Legislativo no exercício de suas funções.

80 Ibid. p. 91.

81 Ibid. p. 91

EMENDAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 53


Referências
ALBERT, Richard. Constitutional Amendment and Dismemberment. In. Yale Law Journal,
Vol. 43, n. 01, 2018, p. 01-84.
BAYLIN, Bernard. As origens ideológicas da revolução americana. Trad. Cleide Rapucci.
Bauru: Edusc, 2003.
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137 (1803).

56 Almir Megali Neto


REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA
E A MODERNA TEORIZAÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS
Bernardo Gonçalves Fernandes1
Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna2

Resumo
No presente trabalho os Direitos Humanos serão observados sob uma
perspectiva ampla que vai desde o seu histórico a partir de uma perspectiva
clássica, passando pela sua etapa de conversão em direito positivo, pela
sua generalização e internacionalização. A partir daí o ensaio também nos
remonta à construção do sistema de proteção internacional dos direitos
humanos, bem como ao atual debate sobre o universalismo, relativismo
cultural e multiculturalismo. Por último, é abordada a questão da integridade
transnacional dos direitos humanos.

1. Histórico dos Direitos Humanos a partir de uma


perspectiva clássica
Os Direitos Humanos sofreram importantes alterações conceituais e normativas ao
longo da história, como forma de adaptação e resposta coerente às novas perspectivas
conjunturais. Eis que os direitos humanos não constituem um dado objetivo, portanto,
mas são, na realidade, uma invenção humana decorrente de um contínuo processo de

1 Professor Associado II de Teoria da Constituição e Direito Constitucional do Departamento de Direito


Público da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Professor Adjunto IV de
Direito Constitucional da PUC-MINAS. Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Pós-Doutor
em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

2 Pesquisadora do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito da UFMG.


FERNANDES, Bernardo Gonçalves; SENNA, Juliana Ferreira Alvim Soares de. Reflexões sobre a clássica e a moderna teorização dos
Direitos Humanos. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia
(org.). 30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 57-84. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340933
(re)construção.3 O que se defende, portanto, a teor do que coloca Norberto Bobbio4,
é que não obstante sejam fundamentais, os direitos humanos são “históricos, ou
seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas
liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma
vez e nem de uma vez por todas.”. Dessa maneira, para fins didáticos, abordaremos a
historicidade dos direitos humanos de forma clássica a partir da percepção de que o
processo histórico dos direitos humanos pode ser dividido em três grandes etapas5:
i) etapa de conversão em direito positivo; ii) etapa de generalização e; iii) etapa de
internacionalização.

2. Etapa de Conversão em Direito Positivo


Uma noção bastante insipiente de proteção aos Direitos Humanos surgiu ainda
nos séculos XII e XIII, com as promulgações da Declaração das Cortes de Leão de
1188 e da Magna Carta de 1215. Ambos os instrumentos foram promulgados em
resposta à reconcentração do poder característica à Baixa Idade Média, de tal vênia
que “no embrião dos direitos humanos, portanto, despontou antes de tudo o valor da
liberdade.”.6 Ainda que muito importantes, esses instrumentos falhavam em reclamar
a liberdade contra possíveis ingerências do Estado de forma universal, sendo que eram
protegidas somente as classes mais privilegiadas, notadamente o clero e a nobreza.

Foi somente no século XVII, com a chamada “crise da consciência europeia”7


que o tema da proteção aos direitos humanos foi efetivamente revisitado, quando
ocorreu a promulgação de diversos atos protetivos em âmbito doméstico, tais como
a Petição de Direitos de 1628, a Declaração de Habeas Corpus de 1679 e a Declaração

3 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013.

4 BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004,
p. 9.

5 Cf. MARTÍNEZ, Gregorio Peces-Barba (ed.). Derecho Positivo de los Derechos Humanos. Madrid: Editora
Debate, 1987.

6 COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3ª ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2003, p. 58.

7 COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3ª ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2003.

58 Bernardo Gonçalves Fernandes


Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
de Direitos de 1689 (“Bill of Rights”).8 Os mencionados atos foram reconhecidos como
necessários sobretudo em razão dos séculos XV e XVI terem sido marcados por grande
recrudescimento da concentração de poder em diversos Estados europeus, de tal forma
que visava-se a afirmação da liberdade. Dado o contexto da época, sabe-se que se
iniciou, então, a moldagem do conceito clássico de Direitos Humanos, o qual consiste,
em termos didáticos, no estabelecimento de garantias básicas dos indivíduos para
protegê-los contra ingerências indevidas do Estado.

3. Etapa de Generalização
O processo de reconhecimento dos direitos de liberdade foi especialmente
intensificado com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela
Assembleia Nacional em agosto de 1789 como decorrência da Revolução Francesa. A
mencionada Declaração firmava “o direito de um povo decidir seu próprio destino”9, nos
sentidos de autodeterminação, autonomia e capacidade de se auto legislar.10 Dessa
maneira, iniciava-se o processo de mudança da titularidade do poder político para o
indivíduo, enquanto parte do povo. Fundamental salientar que a ideia de soberania
popular mencionada se deu nas bases da igualdade, haja vista que o artigo 1º da
Declaração diz respeito à condição natural dos indivíduos, a saber, “os homens nascem
livres e iguais em direitos”, frisando, adicionalmente, que “as distinções sociais só
podem fundamentar-se na utilidade comum.”.

Já no início do século XX, por ocasião do fortalecimento das ideologias de cunho


social provenientes do século XIX, inauguram-se, também, os direitos sociais, culturais e
econômicos, que, conforme teremos a oportunidade de mostrar, não apenas alargaram
a tábua de Direitos Humanos, como também remodelaram (reinterpretaram) a visão
sobre os direitos clássicos (de fundo liberal) até então já reconhecidos em âmbito
estatal. Passa a ser paradigmático a defesa de direitos como educação, saúde, trabalho
digno, moradia, lazer, cultura, entre outros, de cunho social que vão além da mera

8 BOUVIER, Antoine A. O Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional Humanitário.
In: BOUVIER, Antoine A. O Direito Internacional Humanitário e Direito dos Conflitos Armados.
Williamsburg: Instituto para Treinamento em Operações de Paz, 2011.

9 KANT apud BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004, p. 40.

10 KANT apud BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004, p. 40

REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A 59


MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
autodeterminação de indivíduos e que servem inclusive como pressupostos para um
adequado exercício dos clássicos direitos de liberdade.

4. Etapa de Internacionalização
Interessante notar que as mencionadas etapas de conversão em direito positivo e
de generalização ocorreram sob a égide do Estado, sendo que cabia exclusivamente à
legislação doméstica estabelecer um sistema protetivo para os direitos então concla-
mados.11 Assim, conforme salienta Flávia Piovesan12, o “Direito Humanitário, a Liga
das Nações e a Organização Internacional do Trabalho situam-se como os primeiros
marcos de internacionalização dos direitos humanos.”.

O Direito Humanitário trouxe a noção de limitações à atuação estatal sob a égide


de situações extraordinárias, isto é, a noção de que certos direitos individuais devem ser
protegidos ainda que em situações de conflitos. Foi, portanto, “a primeira expressão de
que, no plano internacional, há limites à liberdade e à autonomia dos Estados, ainda que
na hipótese de conflito armado.”.13 Em complementaridade à regulação em situações
de conflito encabeçada pelo Direito Humanitário, a Liga das Nações visava, a partir do
estabelecimento de certas obrigações, a promoção da cooperação entre as Nações e
a garantia da paz e da segurança internacionais14, além de enaltecer certas previsões
genéricas relativas ao desenvolvimento dos direitos humanos15. Assim, redefinia-se
“a noção de soberania absoluta do Estado, que passava a incorporar em seu conceito
compromissos e obrigações de alcance internacional no que diz respeito aos direitos

11 Certo é que breve análise política-jurídica do período pode explicar o porquê de tal exclusividade
doméstica: com o Direito Internacional ainda incipiente, não havia espaço político para que o
enaltecimento da noção de interesses coletivos – a própria noção de sociedade internacional, portanto
– fosse suficiente à relativização da até então mais absoluta norma internacional; o princípio da não
intervenção, consubstanciado pela noção de soberania.

12 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 188.

13 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 189.

14 PACTO DA SOCIEDADE DAS NAÇÕES. 1919.

15 Conforme menciona Thomas Burgenthaul, embora o Pacto da Liga das Nações não contivesse provisões
gerais regulamentando a questão dos direitos humanos, ele continha duas provisões, estabelecidas em
seus artigos 22 e 23, que conclamavam ao desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Cf. BUERGENTHAL, Thomas; SHELTON, Dinah L.; STEWART, David P. International Human Rights in a
Nutshell. 4ª ed. St. Paul: West Publishing Co., 1988,1995.

60 Bernardo Gonçalves Fernandes


Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
humanos.”.16 Finalmente, a Organização Internacional do Trabalho contribuiu para o
processo de internacionalização dos direitos humanos na medida em que fixou balizas
para as condições de trabalho para todo o ambiente internacional.

Ainda que os mencionados dispositivos e Organizações, especialmente a Liga das


Nações, tenham representado importantes passos na direção da relativização do prin-
cípio da soberania e da efetiva internacionalização da proteção dos direitos humanos,
foi somente no ditame e em razão da Segunda Guerra Mundial que o pensamento vigente
em relação aos direitos das gentes sofreu significativas alterações, haja vista ter se
apresentado como marco conjuntural suficientemente expressivo para a percepção
da necessidade de mudança dos moldes do sistema internacional. Conforme coloca
Godinho17, os abusos cometidos contra os indivíduos no decorrer da II Grande Guerra
foram tamanhos que serviram como elemento de propulsão para a criação de normas
protetivas à dignidade humana. Isso porque, quando “os seres humanos se tornam
supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que
cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessário a reconstrução
dos direitos humanos, como paradigma ético de restaurar a lógica do razoável.”.18

É nessa lógica que se afirma, a teor do que leciona Piovesan19, que “se a Segunda
Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar
sua reconstrução”. Salienta-se que essa reconstrução dos direitos humanos se deu
nos termos da percepção da necessidade de fortalecimento das regras internacionais
e da criação de uma Organização Internacional mais participativa – na visão de alguns,
mesmo de cunho intervencionista – haja vista os “horrores gerados pela omissão
injustificada da comunidade internacional em não intervir nos assuntos domésticos de
um Estado.”.20Ademais, percebia-se também a insuficiência dos sistemas de proteção

16 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 189.

17 GODINHO, Fabiana de Oliveira. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos. Belo Horizonte: Del Rey,
2006.

18 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 191.

19 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 192.

20 SUDRE, Fréderic. Droit International et européen des droits de l’homme. 2a ed. Paris: Presses Universitaires
de France, 1995, p. 13 apud RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem
Internacional. 2a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 44.

REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A 61


MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
de direitos humanos eminentemente domésticos, encaminhando de forma mais efetiva
a chamada “comunidade internacional” ao processo de internacionalização desse
sistema protetivo.

5. Sistema Internacional de Proteção aos Direitos


Humanos
As supracitadas questões levaram à criação da Organização das Nações Unidas
(ONU) enquanto fundamento, estrutura e norte do sistema internacional de proteção aos
direitos humanos. O órgão internacional, de cunho fundamentalmente político-jurídico,
tinha dois principais propósitos, a saber: primeiramente, visava o estabelecimento e
manutenção da paz e segurança internacionais e, em segundo lugar, buscava a efetiva
proteção dos direitos do homem.

Conforme mencionado anteriormente, em função da comoção gerada pelo exter-


mínio em massa dos judeus e do sofrimento e privação impostos a indivíduos do
mundo inteiro como consequência da II Grande Guerra, voltou-se a atenção aos direitos
humanos, enaltecendo-se o papel que deveria ser desempenhado pela sociedade
internacional.21 Dessa maneira, as Nações Unidas firmaram, em sua Carta originária,
a proteção dos direitos humanos como um de seus objetivos elementares22, o fazendo
em termos de coletividade internacional.

No iter desse projeto normativo embasado por uma nova concepção do Direito
Internacional, a Carta da Organização das Nações Unidas relativizou a soberania dos
Estados ao estabelecer exceções ao princípio da não intervenção, ficando enfim supe-
rada, portanto, a noção de que o tratamento concebido a indivíduos é uma questão
restrita à jurisdição doméstica. As possibilidades de intervenção internacional em prol
dos direitos humanos outorgadas às Nações Unidas por seu instrumento originário são

21 HAAS, Michael. International Human Rights: a Comprehensive Introduction. Nova York: Routledge, 2008.

22 Inclusive, a importância dada à proteção dos Direitos Humanos pela Carta das Nações Unidas pode
ser observada ainda em seu preâmbulo: “Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as
gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos
indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor
do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes
e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes
de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso
social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla [...]”. Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS. Carta da Organização das Nações Unidas. São Francisco:1945.

62 Bernardo Gonçalves Fernandes


Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
intrinsecamente relacionadas à mudança da percepção do indivíduo, que passou a ser
reconhecido como um sujeito de Direito Internacional, dotado de direitos, portanto – e
não mais apenas um objeto internacional23.

É certo, portanto, que a Carta das Nações Unidas é um marco na consolidação do


Direito Internacional dos Direitos Humanos24, na medida em que consagra “o movimento
de internacionalização dos direitos humanos, a partir do consenso de Estados que
elevam a promoção desses direitos a propósito e finalidade das Nações Unidas.”.25

Ainda que a Carta das Nações Unidas tenha representado um fundamental passo
em direção à proteção internacional dos direitos das gentes, principalmente no que
tange ao reconhecimento da necessidade de proteção normativa fundamentada sobre
os pilares da universalidade, este dispositivo apresenta disposições sobre o assunto de
forma um tanto quanto genérica26. Ora, parece certo que esse era o próprio propósito
da Carta, na medida em que representava o início do desenvolvimento do sistema
internacional de proteção aos direitos humanos, dispondo-se, portanto, tão somente
à proposição normativa da questão para que fosse trabalhada ao longo do tempo no
próprio seio das Nações Unidas.

Dessa maneira, ocorreram diversas discussões, no âmbito da ONU, relativas à


promulgação de outros documentos internacionais relativos aos Direitos Humanos.
Parte das discussões realizadas na esfera da Assembleia Geral culminou na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, datada de 1948, a qual definiu e delimitou o elenco
dos “direitos humanos e liberdades fundamentais” mencionados pela Carta das Nações
Unidas a partir dos princípios da universalidade e da indivisibilidade. Nesse sentido,

23 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013.

24 O direito internacional dos direitos humanos pode ser definido como o conjunto de normas que
estabelece os direitos que os seres humanos possuem para o desenvolvimento de sua personalidade e
estabelecem mecanismos para a proteção de tais direitos. Cf. MELLO, Celso D. Albuquerque. Curso de
Direito Internacional Público. 14a ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.

25 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 200.

26 “Embora a Carta das Nações Unidas seja enfática em determinar a importância de defender, promover
e respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais [...], ela não define o conteúdo dessas
expressões, deixando-as em aberto. Daí o desafio de desvendar o alcance e significado da expressão
“direitos humanos e liberdades fundamentais”, não definida pela Carta.”. Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos
Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 201.

REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A 63


MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
leciona a Professora Flávia Piovesan27: “É como se a Declaração, ao fixar um código
comum e universal de direitos humanos, viesse a concretizar a obrigação legal relativa
à promoção desses direitos – obrigação esta constante da Carta das Nações Unidas.”.
Necessário tecermos algumas considerações quanto à Declaração de 1948:

• Vale mencionar que essa Declaração, diferentemente de documentos que a


antecederam, não invocou preceitos ou credos específicos28, tornando mais fácil
sua adaptação. Entretanto, necessário ressaltar a dubiedade consequente de
tal característica: se, por um lado, permitiu o reconhecimento mais geral frente
a sociedade de Estados, permitindo que todos os indivíduos se tornassem
sujeitos de direito na esfera internacional, por outro permitiu a discricionariedade
interpretativa dos Estados frente suas disposições, o que acarretou, frente a
diversidade de correntes interpretativas, dificuldade na aplicação prática do
instrumento normativo.

• Outro ponto que merece destaque diz respeito à vinculação jurídica da


Declaração. Por ser, na realidade, uma Resolução da Assembleia Geral das
Nações Unidas, é, a princípio, meramente recomendatória, sendo, portanto,
um instrumento de “soft law”. Dessa maneira, nos termos da corrente volun-
tarista do Direito Internacional, seu cumprimento não seria de observância
obrigatória. Entretanto, diversos doutrinadores entendem que ao longo das
décadas o conteúdo da Declaração tornou-se obrigatório, sendo abordadas
três principais justificativas para esse vínculo jurídico-obrigacional: i) por ter
sido abarcada pelo direito consuetudinário internacional; ii) por ser considerada
um método válido de interpretação dos artigos 1o e 55o da Carta da ONU29
e; iii) por já ser considerada norma de jus cogens – isto é, norma que, por
ser considerada fundamental à própria existência do sistema internacional,
é hierarquicamente superior e tem eficácia erga omnes, de tal forma que sua
aplicabilidade independe do consentimento estatal.

27 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013, p. 201.

28 ALVES, José A.L. A arquitetura Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: FTD, 1997.

29 Essa seria uma “interpretação autorizada da expressão ‘direitos humanos’ constante da Carta das
Nações Unidas”. Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14a
ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 208.

64 Bernardo Gonçalves Fernandes


Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
Conforme mencionado anteriormente, o sistema internacional de proteção aos
direitos humanos é ainda composto por outros instrumentos normativos, citando-se,
especificamente:

• O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos foi adotado pela XXI Sessão
da Assembleia-Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, sendo
que se apresentava como um instrumento para aplicação imediata. Esse tratado
apresentava, originalmente, um mecanismo de denúncia facultativo estatal30,
o qual foi ampliado por seu Protocolo Adicional, ficando o Comitê de Diretores
Humanos autorizado a também receber denúncias ou petições de indivíduos,
desde que esgotadas as instâncias domésticas31.

• O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também


adotado pela AGNU em 16 de dezembro de 1966, apresentava caráter distinto,
haja vista que se propunha a uma aplicação progressiva32. Dessa maneira,
originalmente esse Pacto não apresentava mecanismos de enforcement – ou
seja, mecanismos que garantam a aplicação das normas –, produzindo, tão
somente, relatórios informativos. Vale mencionar que o Protocolo Adicional de
2008 adicionou a possibilidade de denúncia estatal e individual para os Estados
que reconhecem o Protocolo.

• A Declaração de Viena de 1993, a qual, embora recomendatória e de conteúdo


semelhante ao da Declaração de 1948, representou dois importantes avanços.
Primeiramente, foi a primeira Declaração posterior à Guerra Fria, de tal forma
que não apresentava a concepção de que o capitalismo seria mais afeto a
certos direitos e o socialismo a outros. Em segundo lugar, mostra-se impor-
tante porque quando da Declaração de 1948, a ONU possuía apenas 53

30 Vide art. 41 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

31 Nos termos do art. 1o do Protocolo Adicional de 1976: “Os Estados Partes no Pacto que se tornem
partes no presente Protocolo reconhecem que o Comité tem competência para receber e examinar
comunicações provenientes de particulares sujeitos à sua jurisdição que aleguem ser vítimas de uma
violação, por esses Estados Partes, de qualquer dos direitos enunciados no Pacto. O Comité não
recebe nenhuma comunicação respeitante a um Estado Parte no Pacto que não seja parte no presente
Protocolo.”.

32 Vide o art. 2o(1) do Pacto: “Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas,
tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos
planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar,
progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no
presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.”.

REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A 65


MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Estados-membros, sendo que em 1993 as Nações Unidas já possuíam em
torno de 190 Estados-membros.

• Existem, ainda, diversos tratados temáticos, tais como: Convenção para a


Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1951); Convenção Internacional
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965);
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres (1979); Convenção sobre os Direitos da Criança (1989); Convenção
contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou
Degradantes (1984); Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(2008); Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra
os Desaparecimentos Forçados (2010); entre outros.

Ademais, o sistema internacional é também composto por diversos órgãos inter-


nacionais, sendo que, no âmbito da ONU, todos os seus principais órgãos podem atuar
nesse sentido. Assim, temos:

• A Assembleia Geral da ONU, consistente em um fórum político multilateral,


sendo que a promoção e a proteção dos direitos humanos constantemente
fazem parte da Agenda. Inclusive, diversos importantes instrumentos norma-
tivos foram adotados no âmbito da AGNU, como a Declaração de 1948 e a
Declaração de Viena de 1993.

• O Secretariado das Nações Unidas desempenha função eminentemente admi-


nistrativa no âmbito das Nações Unidas. Assim, considerando que é sua função
administrar as políticas e os programas determinados pelos demais órgãos,
o Secretariado tem importante papel na condução das Operações de Paz da
ONU. Ademais, o Secretário-Geral das Nações Unidas atua no sentido de ser
uma espécie de “porta-voz dos interesses dos povos do mundo”, enaltecendo,
portanto, a necessidade de proteção aos direitos humanos.

• O Conselho de Segurança é o órgão responsável pela manutenção da paz e da


segurança internacionais; assim, originalmente, não lidava com questões de
violações a Direitos Humanos. Entretanto, em 1961, com o episódio do Massacre
de Shaperville, o Conselho considerou que violações graves e generalizadas de
Direitos Humanos consistiam em ameaça à paz e a à segurança internacionais.
Esse entendimento foi novamente prolatado – e então efetivamente implemen-
tado – em 1999, no caso do Kosovo. A clara extensão do mandato do CSNU o

66 Bernardo Gonçalves Fernandes


Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
permite, portanto, atuar em situações de graves e generalizadas violações aos
direitos humanos.

• O Conselho Econômico e Social das Nações Unidas tem como preocupação


central o desenvolvimento econômico e social, sendo, portanto, o órgão da ONU
mais marcante em termos de atuação em prol da proteção aos direitos humanos.

• Finalmente, a Corte Internacional de Justiça, enquanto principal órgão jurisdi-


cional do sistema ONU, atua em prol da justiça internacional. Importante notar
que por não possuir restrições temáticas, pode lidar com questões de direitos
humanos de forma incidental, a exemplo do caso Alemanha v. Itália33, julgado
em 2012.

Certamente existem, ainda, outros órgãos internacionais que atuam de forma


relevante no âmbito do sistema internacional de proteção aos direitos humanos.
Destaca-se o Tribunal Penal Internacional (TPI), o qual foi criado pelo Estatuto de
Roma em 1998 e entrou em vigor em 2002. Esse Tribunal exerce jurisdição sobre
os indivíduos – note-se: não os Estados – que cometam os seguintes crimes: crime
de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão.
Importante salientar que o TPI “é concebido como complementar das jurisdições
penais nacionais”, sendo que “as próprias condições de exercício de sua competência
(artigos 12-14) dão primazia às jurisdições nacionais para investigar e julgar os crimes
consignados no Estatuto de Roma, estando o ‘acionamento’ do TPI circunscrito a
circunstâncias excepcionais.”.34 Dessa maneira, o que se entende é que, via de regra,
os Estados exercem suas respectivas jurisdições para processar e punir os indivíduos
que cometam os crimes de genocídio, agressão, crimes de guerra ou crimes contra a
humanidade; ficando à cargo do TPI atuar nos casos em que os Estados falhem em
exercer sua atividade jurisdicional.

33 A Alemanha apresentou petição junto à Corte Internacional de Justiça alegando que a Itália – e a Grécia,
que fora admitida como parte interveniente – teria descumprido obrigações internacionais por intermédio
da atuação de suas cortes domésticas, as quais teriam falhado em respeitar a imunidade jurisdicional que
a Alemanha goza perante o Direito Internacional. Incidentalmente, a questão era se Estados poderiam ser
julgados em Cortes domésticas de outros Estados em casos de graves violações de direitos humanos. A
Corte Internacional de Justiça entendeu que a imunidade jurisdicional dos Estados não era passível de
relativização no caso em questão, sendo que o Juiz brasileiro Cançado Trindade proferiu voto dissidente.

34 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos e a Busca da


Realização do Ideal da Justiça Internacional. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte,
n. 57, pp. 37-68, jul./dez. 2010, p. 43.

REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A 67


MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Finalmente, é interessante notar que além da óbvia complementaridade dos
sistemas de proteção domésticos em relação ao sistema internacional, há também a
atuação dos sistemas de proteção regionais. Entende-se que aos sistemas regionais
fica designada a responsabilidade de promoção e proteção dos direitos ora delimitados
no âmbito do sistema internacional35, haja vista que, conforme mencionado anterior-
mente, este trata primordialmente da formulação de normas gerais de conduta, não
estabelecendo, no entanto, mecanismos de enforcement à observância das normas
em questão. Em outras palavras, a priori ficou reservada, aos sistemas regionais,
a função de efetivação da proteção aos direitos humanos via estabelecimento de
mecanismos fiscalizatórios e sancionatórios.36 Adicionalmente, os sistemas regionais
também abarcam função eminentemente legislativa e interpretativa. Mais especi-
ficamente, esses sistemas, visando aproximar os bens jurídicos protegidos pelas
normas internacionais de direitos humanos às particularidades regionais, a partir de um
senso de coletividade identitária regional37, estabelecem normas de direitos humanos
complementares e especificaram aquelas já existentes.

São, atualmente, sistemas regionais de proteção aos direitos humanos o sistema


europeu, o americano e o africano. A título exemplificativo, o Sistema Interamericano de
Direitos Humanos é desenvolvido no âmbito da Organização dos Estados Americanos
(OEA). Importante notar que o maior controle sobre a observância às normas de direitos
humanos, especialmente àquelas delimitadas pela Declaração Americana de Direitos
Humanos de 1948 e pelo Pacto São José da Costa Rica de 1969, se deve à atuação
de dois principais órgãos, a saber: a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos
Humanos.

35 FREITAS, Jeane Silva de; MACEDO, Sibelle Silva. Sistemas Regionais de Proteção aos Direitos Humanos:
Relevância da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos. Conjuntura Austral, Porto Alegre, vol. 4,
no. 18, jun/jul 2013. Disponível em: < https://seer.ufrgs.br/ConjunturaAustral/article/view/34685/25973>.
Acesso em 23.10.2018.

36 CARMO NETO, Manoel. O Papel dos Sistemas Regionais na Proteção dos Direitos Fundamentais. Revista
Mestrado em Direito, Osasco, ano 8, no. 01, 2008, pp. 309-326. Disponível em: < http://132.248.9.34/
hevila/Revistamestradoemdireito/2008/vol8/no1/16.pdf>. Acesso em 23.10.2018.

37 Ao apontar as vantagens dos sistemas regionais, Rhona K. M. Smith destaca que, “na medida em que
um número menor de Estados está envolvido, o consenso político se torna mais facilitado, com relação
aos textos convencionais e quanto aos mecanismos de monitoramento. Muitas regiões são ainda
relativamente homogêneas, relativamente à cultura, à língua e às tradições, o que oferece vantagens”. Cf.
SMITH, Rhona K. M. Textbook on International Human Rights. Oxford: Oxford University Press, 2007, p.
84, tradução livre.

68 Bernardo Gonçalves Fernandes


Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos desempenha as seguintes funções
em relação aos Estados-membros da OEA: i) produção de relatórios anuais acerca da
situação dos direitos humanos nos Estados americanos, realizando, portanto, um
diagnóstico; ii) prestação de assistência e fornecimento de informações aos Estados
que assim necessitarem e; iii) realização de visitas “in loco”, de tal maneira que pode
enviar técnicos a um Estado, desde que exista o consentimento prévio. Para além
dessas funções, a Comissão pode ainda desempenhar outras três em relação àqueles
Estados que ratificaram o Tratado pertinente à Comissão, sendo elas: i) implementação
do mecanismo de denúncia individual, pelo qual o órgão pode aceitar de um indivíduo a
denúncia acerca de violações de direitos humanos; ii) encaminhamento de casos para
a Corte Interamericana de Direitos Humanos e; iii) Visita “in loco” automática, sendo
desnecessário o consentimento do Estado para tal.

Em outro giro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos atua no sentido de


monitoramento e enforcement dos direitos humanos. A Corte trabalha com dois tipos de
demanda. Primeiramente, pode emitir pareceres consultivos de caráter não obrigatório,
desde que motivados por qualquer Estado-membro da OEA. Em segundo lugar, pode
atuar de forma contenciosa em relação aos Estados que reconhecerem o mecanismo
facultativo de reconhecimento da sua jurisdição, emitindo em relação a eles, portanto,
sentenças de caráter obrigatório.

6. O atual debate sobre: Universalismo, Relativismo


(cultural) e Multiculturalismo

6.1. Introdução
O sistema internacional de proteção aos direitos humanos antes mencionado tem
como pressuposto que certos direitos são tão caros e tão fundamentais à sociedade
internacional que devem ser por ela protegidos e garantidos em todo o globo. Conforme
visto anteriormente, essa noção coaduna com um processo histórico, fomentado
pela internacionalização dos direitos humanos e ainda constantemente aprofundado,
sobretudo via Tratados e ações afirmativas de diversas Organizações Internacionais,
notadamente a Organização das Nações Unidas.

REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A 69


MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Importa mencionar que a existência de um sistema internacional de proteção
aos direitos humanos suscita diversos questionamentos, sendo que um deles é perti-
nente ao fundamento de validade de tal proteção. Isto é, se esses direitos devem
ser internacionalmente protegidos por serem tão caros e fundamentais à sociedade
internacional, cabe questionar por que são eles tão caros e tão fundamentais. O ques-
tionamento acerca do fundamento de validade para a proteção dos direitos humanos
encontra a princípio duas respostas diferenciadas que se traduzem no universalismo
e no relativismo (cultural).

6.2. Alcance e aplicabilidade dos direitos humanos: universalismo


e relativismo cultural
Sem dúvida que visões tão distintas acerca dos fundamentos de validade de
proteção dos direitos humanos só poderiam resultar em concepções igualmente
contrapostas no que tange ao alcance e à aplicabilidade desses direitos, bem como
no que diz respeito aos seus limites.

Nesse sentido, o universalismo entende que para que possa ser assegurada a
existência digna, os direitos humanos constituem um conjunto mínimo de direitos que
deve ser garantido a todos os indivíduos, sem quaisquer distinções de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião, nacionalidade, cultura ou sociedade. Defesa essa corrente que
“os direitos humanos são, portanto, direitos ‘universais’ no sentido de que eles são
universalmente assegurados a todos os seres humanos.”.38

Essa concepção parece ser a mais aplicada pela sociedade internacional, o que
é evidenciado em diversos dispositivos normativos, como a Declaração de Direitos
Humanos de 1948 e pela atuação de diversas Organizações Internacionais. Inclusive,
nesse sentido, vale mencionar que mais recentemente, já na década de 1990 e nos
anos 2000, fortaleceu-se a noção de que a sociedade internacional é responsável pela
proteção desses direitos, em razão de diversos importantes acontecimentos, como
a realização de intervenções humanitárias39, o início do funcionamento do Tribunal

38 DONNELLY, Jack. The Relative Universality of Human Rights. Human Rights Quarterly, v. 29, n. 2, mai.
2007, pp. 281-306, p. 283, tradução livre do original: “Human rights are thus “universal” rights in the sense
that they are held “universally” by all human beings.”.

39 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Saraiva,
2013.

70 Bernardo Gonçalves Fernandes


Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
Penal Internacional, fundamentando na prática a noção de responsabilidade pessoal
por crimes internacionais40, e o fortalecimento e ampliação das normas de jus cogens.

Não obstante, suscitaram, ao longo dos anos, diversos questionamentos a essa


concepção acerca da aplicabilidade e do alcance dos direitos humanos. A um, até que
ponto realmente se poderia falar em universalismo de um dado direito? A dois, ainda
que se pudesse admitir um rol de direitos considerados universais, qual seria esse rol
e quem teria o condão de defini-lo?41

É com base nesses questionamentos que o relativismo cultural se estabelece


como contraponto ao universalismo, defendendo, com fulcro na corrente positivista
de fundamento de validade dos direitos humanos, que certos direitos só seriam consi-
derados “universais” porque a própria sociedade internacional assim o fez. Com base
nisso, seria importante se ter em mente que o sistema internacional de proteção aos
direitos humanos foi constituído em meados do século XX, em uma época na qual
muitos Estados ainda lutavam por suas respectivas independências ou ainda tentavam
obter uma mínima relevância política internacional. Por conseguinte, o “mínimo irredu-
tível” considerado pela sociedade internacional consistiria, na realidade, na imposição
de certos valores a outras culturas, de tal sorte que o universalismo seria somente mais
uma justificativa etnocêntrica para o imperialismo cultural das potências do ocidente.

Dessa maneira, para o relativismo cultural, “cada cultura possui seu próprio discurso
acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias
culturais e históricas de cada sociedade.”.42 Ora, o fato da história da humanidade ser
formada por uma pluralidade de culturas implicaria na necessidade de reconhecimento
de cada uma delas como competentes para produção e implementação de seus próprios
valores e impediria, por conseguinte, a formação de um sistema moral universal.

Para o universalismo, essa concepção falha para com a proteção dos direitos
humanos, uma vez que ofereceria legitimação argumentativa para graves e generali-
zadas violações de direitos humanos. Isto é, o relativismo justificaria “graves casos de
violações dos direitos humanos que, com base no sofisticado argumento do relativismo

40 Notadamente: crimes de Guerra, crimes contra a humanidade, crime de genocídio e crime de agressão.

41 RENTEL, Alison Dundes. International Human Rights: Universalism versus Relativism. Nova Orleans: Quid
Pro Books, 2013.

42 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 211.

REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A 71


MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
cultural, ficariam imunes ao controle da comunidade internacional.”.43 Ademais, pode-se
argumentar que o relativismo parece esquecer “que as culturas não são herméticas,
mas sim abertas aos valores universais”.44

Universalismo Relativismo Cultural

Primado do coletivismo: o indivíduo é percebido


Primazia do individualismo: os indivíduos são o
como parte integrante (viva) de sua sociedade,
foco, razão pela qual devem ter seus direitos e
razão pela qual a moral da coletividade na qual
liberdades garantidos universalmente.
está inserido deve prevalecer.

Ênfase na proteção do indivíduo, reconhecido Ênfase na proteção da cultura e, portanto, da


como sujeito de direito internacional. própria sociedade e de suas particularidades.

Principal crítica: seria um instrumento de Principal crítica: forneceria um importante


dominação cultural ocidental, não respeitando, argumento justificador de graves violações de
portanto, as particularidades culturais existentes direitos humanos, que seriam escondidas sob a
nas diversas sociedades. égide da “diversidade cultural”.

6.3. Diferentes correntes do universalismo e do relativismo


cultural
Ainda que a supramencionada diferenciação acerca do alcance e da aplicabilidade
dos direitos humanos seja importante, ela falha em oferecer respostas satisfatórias
a diversos casos (“hard cases”) que se mostram relevantes no cenário internacional.
Consideremos, por exemplo, o caso da prática de infanticídio em uma determinada
tribo indígena: pode o sujeito que tirou a vida de uma criança recém-nascida de sua
tribo por considerar tal prática necessária para a elevação de seu espírito (ou para
que ele ou a coletividade não sejam castigados por forças superiores) ser penalmente
responsabilizado? O que dizer das práticas de ablação do órgão sexual feminino em
determinadas tribos e comunidades? Parece-nos claro que a simples relação binária

43 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 213.

44 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Desafios e Conquistas do Direito Internacional dos Direitos
Humanos no início do século XXI. Curso de Direito Internacional, OEA, Rio de Janeiro, ago. 2006, p. 418.
Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/407-490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.
def.pdf. Acesso em 13.01.2017.

72 Bernardo Gonçalves Fernandes


Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
(universalismo versus relativismo cultural) anteriormente apresentada não consegue
oferecer respostas satisfatórias a estes casos – e a diversos outros.

Em razão disso, é necessário se ter em mente que o embate entre universalismo


e relativismo não é tão simples, uma vez que se pode (e deve) identificar diferentes
correntes sob a égide de ambos. Dessa maneira, nem sempre o universalismo implica
em uma espécie de “canibalismo cultural”45 e, por outro lado, não necessariamente
o relativismo cultural oferece uma justificativa irredutível para graves violações de
direitos humanos.

Na realidade, pode-se afirmar que existem, por um lado, “diversos graus de univer-
salismos, a depender do alcance do ‘mínimo ético irredutível’.”46, assim como existem
diversas correntes do relativismo47. Dessa maneira, o universalismo e o relativismo
cultural anteriormente apresentados seriam tipos ideais, representando os extremos de
um continuum, no qual haveria, ainda, outros dois principais graus: os universalismos
e relativismos fortes e fracos.48

Importa dizer que os termos “forte” e “fraco” dizem respeito às variações, em


termos quantitativos e qualitativos, do alcance do “mínimo ético irredutível”, no caso
do universalismo, e às variações culturais permitidas, no que tange ao relativismo
cultural.49 Os diferentes graus do universalismo e do relativismo podem ser assim
sumarizados, portanto:

45 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 45.

46 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 45

47 DONNELLY, Jack. Universal Human Rights in Theory and Practice. 2a ed. Ithaca: Cornell University Press,
2003.

48 DONNELLY, Jack. Cultural Relativism and Universal Human Rights. Human Rights Quarterly, 1984, 6(4),
pp. 400-419. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/762182?seq=1#page_scan_tab_contents>.
Acesso em 13.01.2017.

49 DONNELLY, Jack. Cultural Relativism and Universal Human Rights. Human Rights Quarterly, 1984, 6(4),
pp. 400-419. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/762182?seq=1#page_scan_tab_contents>.
Acesso em 13.01.2017

REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A 73


MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Relativismo
Universalismo Universalismo Universalismo Relativismo Relativismo
Cultural
Radical Forte Fraco Cultural Fraco Cultural Forte
Radical

Cultura como
potencial
importante Cultura como
Irrelevância da
fonte de principal fonte
cultura para a Defende a
Universalidade validação de validação,
validação de possibilidade
moral e de regras e servindo a
direitos e de de existência
fundamental direitos. Há universalidade
regras morais, de um “mínimo
clara, com uma fraca dos direitos Cultura como
que são presu- ético
limitado grau presunção de humanos única fonte de
midos como irredutível”,
de variações universalidade, como validade de
universal- valorizando a
culturais no mas a elemento de regras ou de
mente válidos, heterogenei-
modo e na relatividade verificação direitos.
por dizerem dade cultural
interpretação das culturas dos potenciais
respeito à que marca a
dos direitos serve como excessos do
existência história da
humanos. elemento de relativismo
digna dos humanidade.
verificação cultural
indivíduos.
dos potenciais radical.
excessos do
universalismo.

6.4. Críticas à dicotomia entre o universalismo e o relativismo:


multiculturalismo
É importante notar que certos autores buscaram superar o debate entre univer-
salismo e relativismo cultural, apresentando outras opções no que tange ao alcance e
à aplicabilidade dos direitos humanos. Forte exemplo dessa tentativa é o multicultu-
ralismo, que pode ser visto de diferentes maneiras.

Como salienta Patrick Savidan nas atuais sociedades democráticas ou em fase


de democratização, há fortes reivindicações ligadas a diferentes identidades cole-
tivas. O problema suscitado seria justamente o de ser possível promover diferenças
culturais sem reintroduzir desigualdades, injustiça ou mesmo instabilidade social. Em
sua visão liberal democrática de multiculturalismo salienta o professor francês que o
multiculturalismo compreende uma concepção de integração que estabelece que é de
certa forma dever do Estado democrático reconhecer, por um lado, a multiplicidade dos
grupos etnoculturais que constituem significativamente parte de sua população, e, por

74 Bernardo Gonçalves Fernandes


Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
outro lado, a recepção, na medida do possível, tendo como base princípios claramente
identificáveis, dessa mesma diversidade cultural.50

Na defesa do multiculturalismo, em uma linha mais socialista, Boaventura de


Souza Santos parte do pressuposto de que a globalização consiste em um processo
no qual o local torna-se global, isto é, um processo pelo qual “determinada condição
ou entidade local estende a sua influência a todo o globo, e, ao fazê-lo, desenvolve a
capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival.”51 Nesses
termos, não haveria globalização genuína, mas apenas globalizações bem sucedidas
de localismos.

À luz dessa concepção, o autor defende que “enquanto forem concebidos como
direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo
globalizado”, o que torna opostas a proteção aos direitos humanos e a legitimidade
local. Para que isso não aconteça, o autor propõe que os direitos humanos sejam conce-
bidos como multiculturais, uma vez que o multiculturalismo seria elemento necessário
ao estabelecimento de uma relação equilibrada e harmônica entre a competência global
e a legitimidade local.

Para que se possa conceber os direitos humanos como multiculturais e para que
se possa estabelecer um diálogo intercultural sobre a dignidade da pessoa humana,
Boaventura de Souza Santos estabelece algumas premissas. A primeira premissa é a
superação do debate entre universalismo e relativismo cultural. Para o autor, todas as
culturas são relativas e todas aspiram a valores universais, mas tanto o universalismo
como o relativismo seriam incorretos enquanto atitudes filosóficas. Assim, o embate
acima mencionado seria intrinsecamente falso. A dois, seria necessário se ter em
mente que não obstante todas as culturas tenham concepções acerca da dignidade
da pessoa humana, nem todas a concebem em termos de direitos humanos. A terceira
premissa diz respeito à percepção de que as concepções de dignidade humana de
todas as culturas são incompletas e problemáticas. De fato, “a incompletude provém

50 Segundo o autor, “o pluralismo etnocultural é uma premissa ancestral da história da humanidade. Por
mais que recuemos no tempo, encontraremos sempre populações que se deslocam, grupos que se
misturam, territórios que foram anexos, conquistados ou cedidos, trocas comerciais que se mantiveram e
se intensificaram, processos de integração política que foram levados a cabo, fronteiras alteradas. Todos
esses fenômenos contribuem para o aumento da diversidade etnocultural e tendem a atenuar o princípio
da nacionalidade (…).” Cf. SAVIDAN, Patrick. O Multiculturalismo. Parede (Portugal): Publicações Europa-
América, 2010, p. 13.

51 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 14.

REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A 75


MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
da própria existência de uma pluralidade de culturas, pois, se cada cultura fosse tão
completa como se julga, existiria apenas uma só cultura.”.52 Em quarto lugar, há que se
considerar que todas as culturas têm diferentes concepções do que é a dignidade da
pessoa humana. Finalmente, a quinta premissa é que todas as culturas tendem a operar
seus critérios de distribuição pelos princípios da igualdade e da diferença. Ocorre no
entanto, que “os dois princípios não se sobrepõem necessariamente e, por esse motivo,
nem todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são desiguais.”.53

A partir dessas premissas, pode-se ter um diálogo intercultural, no qual ocorre


a troca entre diferentes saberes e diferentes culturas. Para permitir o diálogo entre
universos de sentidos diferentes, faz-se uso dos topoi, que são “os lugares comuns retó-
ricos mais abrangentes de determinada cultura.”54 Assim, “funcionam como premissas
de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possível a
produção e a troca de argumentos.”55 Entretanto, a utilização dos topoi de um cultura
para a compreensão de outras pode se mostrar bastante problemática, razão pela qual
o autor defende um procedimento hermenêutico chamado de hermenêutica diatópica,
o qual parte do pressuposto que os topoi de uma cultura são sempre incompletos, uma
vez que a própria cultura o é.

Boaventura de Souza Santos frisa que o objetivo central da hermenêutica diatópica


não é, no entanto, tornar completos os topoi de um cultura, mas sim “ampliar ao máximo
a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por
assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra.”56 É justamente por isso que
diz respeito a um procedimento hermenêutico “dia-tópico”. Dessa maneira, a herme-
nêutica diatópica possibilitaria um real diálogo entre culturas que reconhecem suas
incompletudes mútuas a partir de um processo de produção de conhecimento coletivo,
interativo, intersubjetivo e reticular.

52 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 22.

53 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 22.

54 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 23.

55 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 23.

56 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 23.

76 Bernardo Gonçalves Fernandes


Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
Importa dizer que para que a hermenêutica diatópica tenha real caráter eman-
cipatório é necessário que dois imperativos interculturais sejam aceitos por seus
participantes. A um, que “das diferentes versões de um dada cultura, deve ser escolhida
aquela que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a
versão que vai mais longe no reconhecimento do outro.”.57 A dois, considerando que as
culturas tendem a operar critérios de distribuições à luz dos princípios da igualdade e da
diferença, “as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença
os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza.”.58

Diante de todo o exposto, Boaventura de Souza Santos defende, em suma, que, ao


ligar “em rede línguas nativas de emancipação, tornando-as mutuamente inteligíveis e
traduzíveis”59, o multiculturalismo, por meio da sua perspectiva hermenêutica, permitiria
um real diálogo intercultural acerca da dignidade da pessoa humana que poderia
potencialmente levar “a uma concepção mestiça de direitos humanos, uma concepção
que, em vez de recorrer a falsos universalismos, se organiza como uma constelação
de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, e se constitui em redes de referências
normativas capacitantes.”.60

7. Integridade Transnacional dos Direitos Humanos


Como último ponto de reflexão trazemos à baila a tese da integridade transnacional
dos direitos humanos. Nesse sentido, Alonso Freire apresenta uma nova alternativa ao
debate entre universalismo e relativismo cultural, na qual, embora não argumente em
favor de uma harmonização global, defende a ideia de integridade transnacional dos
direitos humanos. O autor, à luz de Dworkin61, toma como ponto de partida a afirmação
de que a integridade é a chave para a melhor interpretação das relações políticas e
pessoais de uma sociedade e, notadamente, do modo como os juízes devem decidir

57 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 30,

58 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 30,

59 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 30.

60 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 48, jun. 1997, p. 22.

61 Cf. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A 77


MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
os casos. Ocorre que a integridade, no Direito, pode ser dividida em dois princípios:
o primeiro “exige que os legisladores, ao legislarem, mantenham o Direito coerente
com os princípios que o compõe”62, ao passo que o segundo “exige que os juízes,
ao aplicarem as leis e decidirem sobre casos, façam-no de maneira coerente com os
princípios jurídicos.”63

Importante destacar, no entanto, que a integridade não se limita à coerência. De


fato, esta se liga ao passado, exigindo que decisões anteriores sejam repetidas o mais
fiel e precisamente possível. Ocorre que essa exigência pode ter um lado perverso, na
medida em que pode acabar por exigir, frente um excesso de fidelidade, a continuidade
de um erro. Assim, quando a coerência acaba por exigir a aplicação de precedentes
injustos e incompatíveis com o presente, a integridade assume, em relação à coerência,
um aspecto correcional.

Isso porque a integridade exige a consideração do “sistema jurídico como se ele


expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios, um juiz que honra a
integridade em sua atividade judicante às vezes se afastará da linha de suas decisões
anteriores em busca da melhor interpretação dos princípios mais fundamentais que
conformam o sistema.”.64 Nesses termos, a integridade, não obstante considere o
passado, a ele não se prende, combinando também elementos do futuro.

Para o autor, essa integridade não pode ser apenas nacional, devendo assumir,
em complementaridade, um caráter transnacional, uma vez que, em muitos casos, a
“resposta certa” poderia ser extraída da experiência de outrem.

A título exemplificativo, cita-se o caso Lawrence v. Texas, no qual a Suprema


Corte dos Estados Unidos rejeitou, por maioria, a fundamentação de casos anteriores,
optando por não considerar manter presos dois homens que haviam sido pegos
praticando a sodomia (definida como “qualquer ato sexual envolvendo os órgãos
sexuais de uma pessoa e a boca ou o ânus de outra de mesmo sexo”). Nesse caso, a
Suprema Corte optou por abrir mão da “coerência” (não seguindo o precedente do caso
Bowers v. Hardwick, de 1986) em favor da integridade, uma vez que os precedentes

62 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 265.

63 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 265-266.

64 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 266.

78 Bernardo Gonçalves Fernandes


Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
norte-americanos anteriores foram considerados como erros. Importa dizer que a Corte
considerou, à época, que “o direito estrangeiro e internacional eram relevantes para
decidirem um caso constitucional que envolvia os direitos à privacidade, à liberdade
e à igualdade”65, citando, como parte da fundamentação da decisão, as legislações
europeias que já haviam descriminalizado práticas homossexuais, bem como citando
uma decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos (Dudgeon v. UK, de 1981). Mais
além, Alonso Freire ainda argumenta que se essa integridade transnacional tivesse sido
observada no caso Bowers v. Hardwick, o erro poderia ter sido evitado, uma vez que
as experiências protetivas europeias haviam sido anteriores ao julgamento do caso.

Esses exemplos demonstram, para Freire, a necessidade do respeito à integri-


dade transnacional. Ocorre, no entanto, que não obstante seja inegável o dever de um
Tribunal de manter a integridade do direito interno, essa questão por vezes não é tão
óbvia no que tange ao direito estrangeiro. De fato, “o que pode ser dito em favor do
dever de consideração de precedentes e outras fontes estrangeiras e internacionais
por um tribunal nacional em suas decisões envolvendo direito humanos ou direitos
fundamentais inegavelmente humanos?”.66

Para responder a esse questionamento, o autor, com base em Jeremy Waldron67,


faz uso de dois argumentos. Em primeiro lugar, Freire se vale da analogia de Waldron
entre o papel representado pelo consenso e a comunidade na ciência e aquele repre-
sentado pelo consenso e a comunidade jurídica, isto é, “tal como as autoridades
nacionais de saúde ao enfrentarem uma doença nunca antes detectada em seu território
não devem olhar apenas para os conhecimentos científicos desenvolvidos dentro de
seu país ao decidirem qual deve ser o melhor tratamento a ser dado aos pacientes,
também os juízes e tribunais de um determinado sistema não deveriam ater-se apenas
em suas leis e doutrinas nacionais ao decidirem os casos complexos que se repetem
ao redor do mundo.”.68

65 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 269.

66 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 269-270.

67 Cf. WALDRON, Jeremy. Partly laws common to all mankind: foreign law in American courts. New Haven
(EUA): Yale University Press, 2012.

68 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 271.

REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A 79


MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
À luz dessa lógica, não seria apenas recomendado que juízes e tribunais olhassem
para experiências de outros sistemas jurídicos, mas também devido. De fato, “mesmo
que juízes e juristas reconheçam que aspectos culturais ou políticos de seus sistemas
devam ser levados em consideração ao analisarem os casos que devem julgar, seria
insensato que desconsiderassem ou resistissem a investigar se há alguma espécie
de consenso jurídico sobre o caso em questão.”.69 Assim, a integridade transnacional
seria de observância necessária, sob pena das decisões judicias responderem somente
“arbitrariamente ou irracionalmente às peculiaridades locais.”.70

O segundo argumento utilizado para justificar a observância à integridade trans-


nacional diz respeito à ideia de “coerência mundial” defendida por Waldron71, pela
qual a ausência de uma instituição única para aplicação da justiça em um mesmo
local não impede a exigência de coerência e harmonização. Isso porque, ainda que
inexista uma única autoridade administrando os direitos humanos nos diversos países,
as diferentes declarações de direitos nacionais guardam muitas semelhanças e, mais
além, as pessoas desses países têm consciência dos direitos que são concedidos a
outrem em situação de semelhança. Dessa maneira, Waldron argumenta que essas
circunstâncias permitem o pensamento de uma comunidade global em termos de
administração dos direitos humanos.

De forma menos exigente, Freire opta por não defender uma harmonização global
e regional entre direitos humanos constitucionais. Na realidade, embora adote a noção
de “coerência mundial” de Waldron, admite o que chama de “margem de apreciação
comparativa”, pela qual os tribunais, ao apreciarem casos de direitos humanos, “devem
levar a sério, entre outras questões, as características das sociedades e os aspectos
situacionais dos casos concretos”.72

69 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 271.

70 WALDRON, Jeremy. Partly laws common to all mankind: foreign law in American courts. New Haven
(EUA): Yale University Press, 2012, p. 102.

71 WALDRON, Jeremy. Partly laws common to all mankind: foreign law in American courts. New Haven
(EUA): Yale University Press, 2012

72 FREIRE, Alonso. Integridade transnacional dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 273.

80 Bernardo Gonçalves Fernandes


Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
Considerações finais
Conforme trabalhado no início do presente ensaio, os Direitos Humanos sofreram
importantes alterações conceituais e normativas ao longo da história, como forma de
adaptação e resposta coerente a uma série de perspectivas conjunturais nas quais
foram paulatinamente inseridos. Ainda, a conversão em direito positivo, generalização,
internacionalização e a consequente construção do sistema de proteção internacional
foram de extrema relevância para o desenvolvimento e afirmação histórica dos Direitos
Humanos.

Em que pese a ideia subjacente ao universalismo ter tido relevância ímpar no


supramencionado processo, qual seja, o processo de consolidação de um sistema
internacional de proteção aos direitos humanos, tem-se que tal corrente vem sofrendo
mitigações (a exemplo do universalismo fraco) e questionamentos, destacando-se,
nesse último ponto, o relativismo cultural e o multiculturalismo. Para além da óbvia
conclusão acerca da busca por autonomia, ainda no que no iter de direitos mínimos
compartilhados pela dita “sociedade internacional”, interessante ressaltar que esses
questionamentos podem muito bem ser a própria causa de sobrevida do sistema a
que se refere.

Nesse cenário, que pese o tradicional debate entre universalismo e relativismo


ainda ter alguma relevância, existem outras questões fulcrais que merecem atenção.
A opção pelo multiculturalismo frente a recentes ondas de xenofobia na Europa e nas
Américas, bem como uma ênfase na construção da integridade transnacional dos
direitos humanos são vertentes interessantes para a continuidade do debate.

Portanto, se, no passado, o universalismo foi fundamental para o estabelecimento


e o fortalecimento de direitos humanos (ditos) universais, hoje são as contraposições
a essa vertente, bem como as respostas do universalismo a tais contraposições, que
permitem a manutenção de um (ainda verdadeiro?) sistema internacional de direitos
humanos.

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82 Bernardo Gonçalves Fernandes


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REFLEXÕES SOBRE A CLÁSSICA E A 83


MODERNA TEORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
84 Bernardo Gonçalves Fernandes
Juliana Ferreira Alvim Soares de Senna
A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A
DESPARLAMENTARIZAÇÃO DA
DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
Bernardo Motta Moreira1
Rafael Dilly Patrus2

Resumo
O presente trabalho desenvolve a tese da existência de um projeto
constituinte de abertura e pluralização do debate republicano sobre direito
tributário e direito financeiro. Todavia, as instituições têm caminhado na
contramão de tal perspectiva, e não é difícil perceber que, nos trinta anos da
Constituição, a tributação é mais do que nunca objeto de decisões tomadas
no epicentro de um governo disfarçado de técnico. São elementos desse
quadro: os reflexos na iniciativa legislativa em matéria tributária, a profusão
de leis autorizativas e delegantes, a concessão de benefícios fiscais e
regimes especiais de tributação via meros regulamentos, entre outros.
Feito o diagnóstico, quer-se defender, à luz da lição do professor alemão
Paul Kirchhof, que a desparlamentarização da democracia tributária implica
transgressão à lógica fundacional do sistema tributário, em violação ao
princípio constitucional da publicidade material.

1 Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Consultor em Direito
Tributário na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Professor Universitário e da Pós-graduação em
Direito Tributário das Faculdades Milton Campos. Advogado. E-mail: bermmoreira@gmail.com.

2 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Consultor Legislativo na Assembleia
Legislativa de Minas Gerais. Professor voluntário do Departamento de Direito Público da Universidade
Federal de Minas Gerais. Advogado. E-mail: rafael@dillypatrus.com.br.
MOREIRA, Bernardo Motta; PATRUS, Rafael Dilly. A Constituição de 1988 e a desparlamentarização da democracia tributária.
In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.). 30
anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 85-118. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340934
Introdução
A Constituição de 1988 lança luz especial sobre a edificação do sistema tributário.
Passadas três décadas de sua promulgação, o projeto constituinte de democratização
do processo decisório ainda convive com entraves estruturais de proporções gigan-
tescas. A existência de um plano de abertura e pluralização do debate republicano sobre
direito tributário e direito financeiro decorre não apenas da máxima geral plasmada
no caput e no parágrafo único do art. 1º da Constituição, mas também – e principal-
mente – do rol atribuições atribuídas ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo, dos
princípios que orientam o Sistema Tributário Nacional e as finanças públicas e da
lógica fundacional que embasa as limitações constitucionais ao poder de tributar.
Todavia, as instituições têm caminhado na contramão de tal perspectiva, e não é difícil
perceber que, nos trinta anos da Constituição, a tributação é mais do que nunca objeto
de decisões tomadas no epicentro de um governo disfarçado de técnico.

A expansão contemporânea das atividades do Estado, a complexificação das


demandas de caráter político, econômico e social e a lentidão inerente ao processo
de elaboração e aprovação das leis ensejaram a ampliação do espectro de atuação
normativa do Poder Executivo. Na sociedade fluida, compartimentada e dinâmica do
Século XXI, a legislação deixa de oferecer segurança às relações entre cidadão e poder
público. Quanto à relação especial (e frequentemente conflituosa) entre contribuinte e
fisco, é claro o diagnóstico de enfraquecimento gradual do Poder Legislativo, principal-
mente em razão de dificuldades técnicas e operacionais para o tratamento eficiente,
satisfatório e abrangente das realidades submetidas à sua apreciação.

A crise da legalidade é inafastável, e a ascensão do Poder Executivo é evidente


sobretudo no campo tributário. Embora ainda formalmente dependente do Parlamento,
a norma tributária é hoje quase inteiramente pensada e procedimentalizada pela
tecnoburocracia governamental. Não é raro que as proposições legislativas cheguem
ao espaço parlamentar praticamente acabadas, sofrendo, a partir daí um máximo
de pequeníssimos acertos arrimados em interesses pontualmente representados
pelos parlamentares. Somam-se a isso os reflexos na iniciativa legislativa em matéria
tributária, a profusão de leis autorizativas e delegantes e de obrigações tributárias
acessórias definidas em âmbito infralegal. Tudo isso alimenta o cenário de fechamento
decisório: a lei tributária consubstancia, nesse quadro, o produto de decisões tomadas
sem interveniência significativa da representação popular.

86 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
Porém, é exatamente o povo, na outra extremidade da conjuntura, que se vê
atingido pela imposição. E mais: sem condições reais de compreendê-la. Em um
contexto de profunda ambivalência, marca da modernidade líquida, a indeterminação
tem impactado sobremaneira as normas tributárias, que se tornaram cada vez mais
intrincadas e de difícil leitura por seus aplicadores e destinatários. O corporativismo
e a utilização da legislação como instrumento de defesa de interesses de grupos
econômicos fizeram do ordenamento tributário um cipoal de normas incoerentes e
ininteligíveis. O sistema tributário brasileiro é especialmente confuso, complexo e
regressivo: a tributação constitui abstração dominada por poucos, e aos mais pobres,
direcionados por comandos que não conhecem nem entendem, é imposto contribuir
proporcionalmente mais que os mais ricos.

Diante de tal realidade, é possível pensar o direito tributário à luz das exigências
de legitimidade democrática instituídas pela Constituição de 1988? O que significa a
redução do papel desempenhado pelo Parlamento no processo de formação da decisão
tributária? Qual é o verdadeiro impacto da governamentalização do poder decisório
em matéria tributária para a higidez e a sustentabilidade do projeto constituinte de
democracia no Brasil?

Em resposta a esses questionamentos, quer-se defender a tese de que a desparla-


mentarização da democracia tributária implica grave transgressão à lógica fundacional
do sistema tributário, em violação ao princípio constitucional da publicidade material.
O esvaziamento do papel do Poder Legislativo na (re)definição do sistema tributário
brasileiro tem levado a um contexto de profunda distorção na estrutura básica da
separação dos poderes, minando a legitimidade da tributação. O problema é relevante
e atual, e não há dúvidas de que a comemoração dos trinta anos de uma Constituição
que se pretende cidadã traduz momento oportuno para a abertura de reflexão a esse
respeito. É sempre tempo de reconstruir.

A Constituição de 1988 e a governamentalização do


poder de decisão em matéria tributária
A governamentalização do poder de decisão em matéria tributária tem alimentado
a produção de uma legislação complexa, tipológica e delegante. O núcleo decisório
está quase completamente encastelado no interior do governo tecnoburocrático, e
o pouco espaço que resta à instância parlamentar é desigualmente repartido entre

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 87


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
interesses corporativos e particularizados, fortes o suficiente para manterem algum
lugar na representação legislativa.3

A reiterada produção de normas pelo Poder Executivo,4 muitas vezes extrapolando


suas próprias funções,5 e a dificuldade de se estabelecer o debate parlamentar sobre
temas de elevada e crescente complexidade técnica6 têm robustecido o que a doutrina
denomina “legislação governamental”. As disfunções inerentes ao processo legislativo
e a necessidade de soluções regulativas complexas, dinâmicas e instantâneas são
os principais argumentos para a defesa da inevitabilidade do enclausuramento da
decisão tributária.7

Responsabiliza-se a atual “sociedade técnica” pelas crises do Poder Legislativo


e da lei,8 ao fundamento de que as questões atualmente enfrentadas demandam
respostas rápidas e eficientes. Além disso, os assuntos que têm penetrado nas pautas

3 Nesse sentido: BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. A “governamentalização” do poder de decisão tributário.
In: SCHOUERI, Luís Eduardo (coord.). Direito tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. V. 1. São
Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 419.

4 “A participação do Executivo no processo legislativo ocorre de dois modos: (i) ou o Executivo intervém
em uma das fases do procedimento de elaboração da lei, ou (ii) exerce, ele mesmo, a função de elaborar
a lei (no sentido formal e material da expressão).” (CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do
Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1993, p. 93).

5 Vicente Ráo tece diversas críticas à atuação do Poder Executivo “excedendo os limites naturais e
institucionais de suas atribuições” e à legislação governamental, que se traduziria em leis de plenos
poderes, leis delegadas, leis-quadros ou de princípios, decisões normativas de órgãos jurisdicionais,
decretos e regulamentos usurpadores de poderes legislativos”. (RÁO, Vicente. As delegações legislativas
no parlamentarismo e no presidencialismo. São Paulo: Max Limonad, 1966, p. 13).

6 Ferreira Filho considera que a inadequação do processo legislativo clássico resulta do irrealismo da
representação e da incapacidade de um órgão coletivo, de caráter não-técnico, para o desempenho de
uma atividade já per se técnica – como o é o estabelecimento da lei –, ainda mais em matéria ou campos
de caráter também técnico (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 4ª ed. São
Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 269).

7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Legislação governamental. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva.
(coord.). As vertentes do direito constitucional contemporâneo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002,
p. 64.

8 O próprio conceito de lei foi alterado na sociedade complexa atual, conforme assinala Clève: “O conceito
de lei, como aquele comando normativo estatal proveniente do Legislativo e dotado das características
de generalidade (abstração e impessoalidade) e permanência não se adapta mais aos tempos do Estado
Providência e da sociedade técnica. O Estado hoje, não apenas arbitra os conflitos de interesse que
porventura se manifestam no seio da sociedade. Comanda a direção da economia e impõe políticas
sociais que acabam por conformar a vida de relação. Nesse passo, as leis nem sempre podem ser
permanentes. Devem atender às características conjunturais, sempre mutáveis, da sociedade técnica.”
(CLÈVE, Clèmerson Merlin. op. cit., 1993, p. 53).

88 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
estatais revestem-se de complexidade cada vez maior, impondo à Administração
Pública socorrer-se do auxílio de especialistas que, em nome da objetividade e/ou da
infalibilidade da ciência e da técnica, quase nunca se mostram dispostos a dialogar
com o Parlamento.9

A dominação exercida pela referida classe técnica, que passa a impor sua vontade
no campo político, vai de encontro ao projeto básico de democracia constitucional,
obstando a efetiva participação dos detentores do poder. A desparlamentarização do
poder de decisão em matéria tributária implica não só a despolitização da relação
contribuinte-fisco, mas também a neutralização da possibilidade de interferência social,
já que os cidadãos se tornam reféns do caráter técnico das proposições.10

O direito tributário é ramo que lida com o valor liberdade, eis que conforma os
limites de atuação do Estado, visando impedir ou minimizar abusos perpetrados
contra a esfera jurídica do particular. Nessa conjuntura, a seara tributária é regida
por um profundo conflito de interesses privados, que muitas vezes se chocam com as
motivações públicas sobre o direito de propriedade.11 A preponderância do Executivo
na produção das leis e na decisão dos rumos da tributação se torna uma questão de
altíssima relevância, na medida em que o próprio governo é o posterior sujeito ativo
da obrigação tributária por ele criada, meramente homologada no interior das casas
legislativas.

9 CLÈVE, Clèmerson Merlin. op. cit., 1993, pp. 50-51.

10 Bobbio considera a tecnocracia e a democracia como antitéticas. De fato, “a democracia sustenta-se


sobre a hipótese de que todos podem decidir a respeito de tudo. A tecnocracia, ao contrário, pretende que
sejam convocados para decidir apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos específicos.” (BOBBIO,
Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 34).

11 É sempre bom recordar a assertiva de Murphy e Nagel: “Qual é o fundamento moral do direito do cidadão
de reter aquilo que ganhou? Num país onde a maior parte da economia está nas mãos da iniciativa
privada e o governo é democrático, será no domínio da política tributária que se travará o embate entre
essas diversas concepções. Como cada um de nós é, por um lado, um indivíduo particular que participa
da economia de mercado, e, por outro, um cidadão que participa – ou pelo menos pode participar – do
processo das decisões governamentais através da política, temos que estabelecer um meio-termo entre
nossas convicções de justiça social e legitimidade política e nossas motivações mais pessoais para
formar uma concepção estável de o que queremos que o governo faça. Quando nos posicionamos contra
ou a favor de uma redução nos impostos, não pensamos somente nos efeitos dessa redução sobre
a renda que teremos à disposição, mas também em suas consequências sociais e econômicas mais
amplas. O tema se complica ainda mais pelo fato de que o sistema tributário não deve ser decidido por
forças que se encontram fora da sociedade, mas, de algum modo, pelas forças que a compõem, sendo,
portanto, resultante política de discordâncias inevitavelmente profundas.” (MURPHY, Liam; NAGEL,
Thomas. O mito da propriedade: os impostos e a justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 129).

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 89


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
É evidente que a noção de legalidade como mero autoconsentimento do cidadão,
no sentido de uma garantia individual contra a tributação, perdeu espaço na moderni-
dade. No Estado Democrático de Direito, a legalidade se revela como dimensão plural, e
o seu principal fundamento passa a ser a garantia da democratização do procedimento
de imposição das normas tributárias. Isso só é possível a partir de um juízo formulado
em um fórum que, por sua composição e seu funcionamento, traduz e assegura com
maior efetividade a proteção dos direitos coletivos, por meio da harmonização de
interesses contrapostos. Além disso, a abertura e a pluralização do debate garantem
uma maior igualdade e/ou uniformidade no tratamento das disparidades da carga fiscal
entre as diferentes regiões do país.12

Teoricamente, o direito tributário consubstancia um segmento do ordenamento


jurídico no qual se expressa uma maior confiança no legislador (o “planejador”), em
detrimento do intérprete (o “aplicador”). É o que se pode depreender da teoria plani-
ficadora do direito13 e da descrição da “economia da confiança”14 em Scott Shapiro:15
os planejadores do sistema tributário entenderam que a matéria tributária é de alta
contenciosidade, permeada por um elevado grau de desconfiança, razão pela qual, em
um desenho que se quer democrático, as tarefas a serem atribuídas aos atores do Poder
Legislativo devem ser mais amplas do que as atribuídas aos atores do Poder Executivo
ou do Poder Judiciário. Ou seja, o direito tributário revela um espaço no qual deve ser
outorgada maior confiança ao Parlamento. Segundo a teoria de Shapiro, portanto, a

12 RIBEIRO, Ricardo Lodi. O fundamento da legalidade tributária: do autoconsentimento ao pluralismo


político. Revista de Informação Legislativa, v. 45, nº 177, 2008, p. 220. Concordamos com o autor
quanto à afirmação, baseada nas lições de Garcia Novoa, de que a “legalidade baseada no pluralismo
político extraído de um parlamento onde estejam presentes representantes de todos os segmentos da
sociedade, e onde os movimentos sociais e econômicos tenham amplo espaço de atuação, é a principal
arma de combate contra uma visão unívoca da realidade e negadora da ambivalência no âmbito fiscal,
representada pela fixação das regras tributárias por aquele poder encarregado de arrecadar e dar destino
às receitas públicas.” (RIBEIRO, Ricardo Lodi. op. cit., 2008, p. 221). Cf., ainda, GARCIA NOVOA, César. El
principio de seguridad jurídica em materia tributaria. Barcelona: M. Pons, 2000, p. 28.

13 Segundo a teoria, as regras de um ordenamento jurídico expressam as escolhas do planejador social no


que diz respeito à economia da confiança do sistema. Cuida-se de uma teoria positivista exclusiva (não
inclusiva) da interpretação jurídica, que indica que o método interpretativo deve ser identificado a partir
do grau de confiança e desconfiança no sistema.

14 Na teoria da economia da confiança, a confiança é o fator determinante do método de interpretação da


norma. Ao adotar uma postura favorável à reserva absoluta da lei, Shapiro assevera que a escolha de um
método interpretativo que confira maior discricionariedade ao aplicador da lei pode frustrar os objetivos
da norma, uma vez que nem sempre a visão do intérprete coincide com aquela idealizada pelo legislador.

15 SHAPIRO, Scott J. Legality. Cambridge/MA: Harvard University Press, 2011.

90 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
impossibilidade de os atores do Poder Executivo e do Poder Judiciário desempenharem
a tarefa de legislar é mais incisiva e marcante no campo tributário.16

Não obstante isso, o predomínio do Poder Executivo na elaboração das leis tribu-
tárias é uma realidade incontestável. Isso impõe uma enorme distorção no desenho
constitucional. A norma que, para preservar a segurança jurídica e a metodologia da
especificação conceitual, não poderia comportar margem discricionária em favor da
Administração Fiscal, operando tendencialmente17 com o fechamento por conceitos,18
acaba sofrendo alterações substanciais: leis delegantes e/ou autorizativas tornam-se
comuns; surgem figuras legais “convalidando” atos administrativos retroativamente;
proliferam tipos no seio das normas de tributação; em não raras ocasiões, dispositivos
da lei fiquem sujeitos a vigorar “nos termos do regulamento”. Em resumo, o regra-
mento tributário que, por sua natureza, deveria ser incompleto e incompletável19 acaba

16 COHEN, Sarah Amarante de Mendonça. O Princípio da legalidade no direito tributário: uma releitura
interpretativa. In: BREYNER, Frederico Menezes (org.). Segurança jurídica e proteção da confiança no
direito tributário: homenagem à Professora Misabel Derzi. Belo Horizonte: Initia Via, 2014, pp. 207-208.

17 Mesmo que no direito tributário haja uma tendência pelo modo de pensar por conceitos, prevalecendo o
uso de estruturas rígidas e conformações fechadas (o impropriamente chamado “tipo fechado”), o ramo
não está imune à interferência dos tipos, com propriedades graduáveis e contornos fluidos. Na esteira
dos ensinamentos de Misabel Derzi, ainda que tendencialmente conceitual, o direito tributário convive
com resíduos tipológicos. É dizer, a utilização de tipos nas normas tributárias serve, por exemplo, para
estabelecer presunções que visam a obter praticidade, entendida como economicidade e simplificação
na aplicação da lei em massa (DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007).

18 “O procedimento interpretativo que melhor realiza os objetivos sistêmicos que os atores foram
incumbidos de promover e realizar no Direito Tributário brasileiro é o método da interpretação estrita, da
reserva absoluta de lei e da adoção do tipo em sentido impróprio, ou seja, dos conceitos classificatórios
fechados, na medida em que atende ao objetivo traçado pelo planejador do sistema, quando concebeu
o Direito Tributário como um direito cuja matéria de fundo é de um alto grau de contenciosidade. O
planejador, por consequência, não atribuiu ao intérprete do Direito Tributário um alto grau de confiança e,
por lógica, não lhe outorgou a tarefa de interpretar o Direito Tributário criativamente, sob pena de ofensa
à moldura geral do sistema.” (COHEN, Sarah Amarante de Mendonça. op. cit., 2014, p. 208).

19 Misabel Derzi leciona o seguinte: “(...) não temos dúvida em afirmar que o sistema jurídico é incompleto
no seu conjunto (não importa que estejamos nos referindo ao Direito Civil, Comercial ou Tributário). O
real e o contingente impulsionam as operações internas do sistema, suas irritações e perturbações. Tal
fenômeno explica as mutações sistêmicas e a relevância das técnicas de estabilização das expectativas.
(...) Embora todo o sistema jurídico seja incompleto e aberto à cognição, o Direito Privado tende à
completude em sua aplicação concreta, exceção feita àquelas áreas em que a segurança dita restrições
à mobilidade da expansão analógica, como nos direitos reais, nos direitos creditórios, sucessórios,
etc. (...) [O] Direito Tributário está iluminado por valores e princípios como segurança jurídica (e seus
desdobramentos no Estado de Direito), que impedem a completabilidade de suas normas, como se dá
no Direito dos contratos. Ao contrário, as normas tributárias são incompletas (em relação à realidade) e
incompletáveis por meio do uso da analogia ou da extensão criativa” (DERZI, Misabel Abreu Machado.
O planejamento tributário e o buraco do real: contraste entre a complementabilidade do direito civil e a

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 91


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
constantemente completado por atos governamentais, à total revelia dos representantes
do povo.

Submetido à estrita legalidade, o legislador tributário deveria programar as linhas


mestras de orientação do sistema fiscal, mediante processo legislativo arrimado na
publicidade e no contraditório e sopesando os interesses em conflito.20 Por outro lado,
um modelo burocrático ligado à “cultura do não”,21 o apego à lei formal e um Poder
Executivo forte e centralizador fizeram com que as leis se tornassem casuísticas,
sobejamente detalhadas. A proliferação de regimes especiais é tamanha que se chega
facilmente à constatação da existência de uma modalidade de recolhimento tributário
para cada contribuinte do país. Nesse caminho sem volta, marcado pela ambivalência
e pela indeterminação da modernidade líquida,22 o Poder Legislativo se vê cada vez
mais como mero “homologador” das decisões gestadas e construídas no seio da
tecnoburocracia governamental.

São dignos de nota os seguintes exemplos de reflexos no sistema tributário dessa


tendência de fechamento e centralização governamentais:

(i) Excepcionados do princípio constitucional da legalidade tributária (art. 150, I,


c/c § 1º do art. 153), os impostos extrafiscais (de importação, de exportação, sobre
produtos industrializados e sobre operações financeiras) deveriam ser graduados
em razão de sua função regulatória. Infelizmente, o governo federal tem feito um uso

vedação da completude no direito tributário. In: FERREIRA, Eduardo Paz; TORRES, Heleno Taveira; PALMA,
Clotilde Celorico (org.) Estudos em homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier. Coimbra: Almedina,
2013, pp. 403-409).

20 Nessa direção: BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Princípio constitucional da eficiência administrativa.
Belo Horizonte: Fórum, 2012, pp. 260-261.

21 Nas palavras de Batista Júnior, “a rigidez do modelo burocrático conduziu a AP, em especial em países
mais pobres, a um emaranhado infindável de normas, e desenvolveu uma cultura administrativa de
rigoroso e cego apego às regras formais. Este apego formal acabou por fazer dominar a cultura do
“não”, do receio pela quebra de qualquer regra regulamentar, ou mesmo dos procedimentos cravados
em portarias, circulares e resoluções, que nessa profusão de normas, na verdade, poucos conhecem.”
(BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. op. cit., 2012, p. 281). Ainda com base nas lições do professor, “a lei
não deve necessariamente dar todos os contornos da solução para o caso concreto; não deve tentar
determinar, genericamente, o interesse social concreto a prevalecer em cada situação singular” (BATISTA
JÚNIOR, Onofre Alves. op. cit., 2012, p. 280).

22 ROCHA, Sergio André. A tributação na sociedade de risco. Revista Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 12,
n. 1, 2006, p. 219.

92 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
deturpado da faculdade de majorar as alíquotas de tais impostos.23 Recentemente, por
exemplo, mediante a publicação do Decreto nº 8.731, de 2016, o Executivo majorou de
0,38% para 1,10% a alíquota do IOF incidente sobre a aquisição de moeda estrangeira
em espécie, com o objetivo declarado de aumentar a arrecadação – estimada em R$
1,4 bilhão por mês –, em claro desvio de finalidade. A exceção à legalidade tributária
merece interpretação restritiva, segundo os cânones da hermenêutica, e só tem lugar
em vista do uso extrafiscal do tributo. Isso implica dizer que, em casos como o do
decreto mencionado, a medida vislumbrada não poderia ser aprovada sem a chancela
do Parlamento, via lei formal.

(ii) O (ab)uso das medidas provisórias para criação e majoração de tributos é


evidente. Nesse quadro, os conceitos abertos de “urgência e relevância” jamais foram
suficientes para limitar o exercício legiferante da Presidência da República, desde o
advento da Constituição. É preciso consignar que essa utilização abusiva se deveu
também à inércia do Congresso Nacional, que, em um primeiro momento, furtou-se
ao dever de deliberar sobre as medidas editadas com a celeridade exigida e, mais
recentemente, tem se esquivado de uma análise pormenorizada da urgência, aspecto
impactado pelo flexível entendimento dos tribunais. A possibilidade da edição de
medida provisória para criar ou majorar tributos foi admitida pelo Supremo Tribunal
Federal em diversos precedentes, desde que o tributo não se submeta à reserva de
lei complementar, como é o caso do imposto sobre grandes fortunas. Com a Emenda
Constitucional nº 32, de 2001, que introduziu inúmeras modificações ao art. 62, dentre
elas a inserção do § 2º, foi expressamente previsto o cabimento da medida para instituir
ou majorar impostos. Mesmo assim, nada justifica o uso do instrumento, que hoje
colabora sobremaneira para mitigar o debate parlamentar sobre parte considerável
da regulação tributária.

(iii) Leis autorizativas e/ou delegantes nascidas de proposições de iniciativa do


Poder Executivo24 – inconstitucionais, porque violam a separação dos poderes, e ilegais,

23 Em janeiro de 2008, para ajustar o orçamento com a perda de aproximadamente R$ 40 bilhões que
eram arrecadados com a cobrança da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, entre
outras medidas, o governo federal aumentou a alíquota do IOF em 0,38% (a mesma alíquota da extinta
contribuição) incidente sobre as operações de crédito, câmbio para a exportação e operações de seguro
(Decreto nº 6.339, de 3 de janeiro de 2008). O então ministro da Fazenda, Guido Mantega, afirmou que
tais medida serviam para compensar a perda da CPMF, que parou de ser cobrada no primeiro dia do ano
de 2008.

24 Não são raros os projetos de lei de iniciativa parlamentar que visam a conceder meras autorizações para
a atuação do Poder Executivo, como forma de burlar as regras constitucionais de iniciativa privativa

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 93


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
por não veicularem normas, mas faculdades25 – subsistem aos montes, em todas as
esferas federativas,26 e demonstram cabalmente como a força do governo tende à
produção de leis flexíveis. É certo que a flexibilidade permite a rápida ação do Poder
Executivo na busca de uma tributação mais justa e isonômica. Contudo, as autorizações
legislativas acabaram servindo para a recomposição do caixa do Tesouro em tempos de
crise fiscal. Há que se criticar, ainda, a prática comum de leis meramente autorizativas
para que o Executivo implemente benefícios fiscais, privilégios injustificáveis que
resultam em verdadeiros “gastos tributários” suportados por toda a sociedade, tornando

do chefe do Poder Executivo no processo legislativo. Um parlamentar não pode, por exemplo, propor
a criação de algum órgão no Poder Executivo; em assim sendo, ele instaura o processo legislativo
“autorizando” que o Poder Executivo o faça. A medida claramente viola a regra de iniciativa privativa e
o princípio corolário, a separação dos poderes. Estranho é que por vezes o próprio Executivo apresenta
projetos de lei para que o Legislativo o autorize a disciplinar algo. Alguns casos são meros equívocos
de técnica legislativa; em outros, a outorga de poder ao Executivo não se compatibiliza com o princípio
da legalidade.

25 Tratando sobre os projetos de lei autorizativos de iniciativa parlamentar, Márcio Silva Fernandes,
consultor legislativo da Câmara dos Deputados, considera-os injurídicos, na medida em que não veiculam
norma a ser cumprida por outrem, mas mera faculdade (para cujo exercício é dada autorização não
solicitada por quem de direito), que pode ou não ser exercida por quem a recebe (FERNANDES, Márcio
Silva. Inconstitucionalidade de projetos de lei autorizativos. Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados.
Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. Nov/2007. Disponível em: <http://bd.camara.gov.
br/bd/bitstream/handle/bdcamara/1375/incons-titucionalidade_projetos_fernandes.pdf?sequence=4>.
Acesso em: 24/07/2018).

26 Vejamos os exemplos a seguir. Âmbito municipal: a Lei do Município de São Miguel do Oeste, do Estado
de Santa Catarina, nº 7.228, de 14 de dezembro de 2015, que decorreu de projeto de lei de iniciativa
do Poder Executivo, estabelece, em seu art. 1º, que “fica o Chefe do Poder Executivo Municipal (...)
autorizado a conceder à empresa A R PNEUS LTDA EPP (...) o seguinte incentivo fiscal: I – isenção da
Taxa de Licença para Execução de Obras e Loteamentos – TLEOL, que tenha como fato gerador o projeto
de engenharia para edificação da ampliação da planta industrial; II – isenção do ISS, que tenha como
fato gerador a edificação da ampliação da planta industrial a ser edificada, até 0 limite de R$ 20.000,00
(vinte mil reais). Âmbito estadual: a Lei do Estado de Minas Gerais nº 15.956, de 2005, que decorreu
do Projeto de Lei nº 1.991/2004, de autoria do governador do Estado, autorizou, por exemplo, que o
Poder Executivo reduza “para até 12% (doze por cento) a carga tributária nas operações promovidas por
estabelecimento signatário de protocolo firmado com o Estado que promova exclusivamente operação de
saída contratada no âmbito do comércio eletrônico ou do telemarketing” (§ 32 do art. 12 da Lei nº 6.763,
de 1975). Vale notar que, na própria Mensagem nº 313, de 2004, que encaminhou o projeto para a ALMG,
já constava a exposição de motivos do Secretário de Fazenda encaminhando “minuta de anteprojeto
de lei contendo proposta de alteração de dispositivo da Lei nº 6.763, de 26 de dezembro de 1975, que
consolida a legislação tributária do Estado de Minas Gerais, com o objetivo de autorizar o Poder Executivo
a reduzir a carga tributária incidente nas operações internas com os produtos classificados nas posições
7113 (artefatos de joalheria e suas partes, de metais preciosos ou de metais folheados ou chapeados
de metais preciosos), 7114 (artefatos de ourivesaria e suas partes, de metais preciosos ou de metais
folheados ou chapeados de metais preciosos) e 7116 (obras de pérolas naturais ou cultivadas, de pedras
preciosas ou semipreciosas, de pedras sintéticas ou   reconstituídas) da Nomenclatura Brasileira de
Mercadorias/Sistema Harmonizado – NBM/SH, nos termos, condições e limites a serem estabelecidos
em regulamento”.

94 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
a tributação mais regressiva. A tarefa de criar a norma é do Poder Legislativo, e, em
matéria de benefícios tributários, a lei autorizativa viola frontalmente o § 6º do art. 150,
que estabelece que qualquer subsídio, isenção, redução de base de cálculo, concessão
de crédito presumido, anistia ou remissão relativos a impostos, taxas ou contribuições
só poderá ser concedido mediante lei específica,27 federal, estadual ou municipal, que
regule exclusivamente as exonerações fiscais mencionadas ou o correspondente tributo
ou contribuição. Isso quer dizer que é vedado ao Poder Legislativo conferir a outro
órgão a prerrogativa que lhe é constitucionalmente atribuída de conceder exonerações
fiscais, sob pena de transgressão do princípio da separação dos poderes.28

(iv) O próprio Código Tributário Nacional admite, por exemplo, que ato do Poder
Executivo atualize o valor de tributo, não considerando majoração a mera atualização do
valor monetário da respectiva base de cálculo (art. 97, § 2º). Se a norma faz sentido para
a correção da base de cálculo de impostos que incidem sobre o patrimônio, é fortemente
questionável a possibilidade de alterações dos valores das taxas pelo Poder Executivo,
à justificativa de que o custo da respectiva atividade estatal teria aumentado. É certo
que, a partir do julgamento do Recurso Extraordinário nº 343.446, o STF passou a admitir
delegações legislativas.29 Todavia, ficou definido que não cabem delegações puras para

27 A exigência constitucional de lei específica é garantia do contribuinte que objetiva “coibir o uso desses
institutos de desoneração tributária como moeda de barganha para obtenção de vantagem pessoal pela
autoridade pública, pois a fixação pelo mesmo Poder instituidor do tributo, de requisitos objetivos para
a concessão do benefício tende a mitigar arbítrio do Chefe do Poder Executivo, garantindo que qualquer
pessoa física ou jurídica enquadrada nas hipóteses legalmente previstas usufrua da benesse tributária”
(GRECO, Marco Aurélio. Comentário ao art. 150, § 6º. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.;
SARLET, Ingo W.; STRECK, Lênio L (coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/
Almedina, 2013, pp. 1.666-1.667).

28 O entendimento pela impossibilidade de se lançar mão de outra fonte de direito que não a lei em tema
de exonerações fiscais é o adotado pelo STF (cf., por exemplo, a decisão na ADI 1.296, de relatoria do
Ministro Celso de Mello).

29 Marciano Seabra de Godoi também identifica o caráter inovador do julgado do STF e vislumbra o
impacto da flexibilização da legalidade em outras matérias, como a delegação para o decreto municipal
estabelecer a planta genérica de valores para fins de lançamento do IPTU, tradicionalmente inadmitida
pelo STF. Confiram-se as conclusões de Godoi: “A comparação que o Ministro Velloso faz em seu voto
(RE 343.446) entre a delegação legislativa da contribuição do salário-educação (art. 1º do Decreto-lei
14.522/75) e a delegação legislativa da contribuição do SAT (art. 22, § 3º da Lei 8.212/91) deve ser
vista com ressalva. A primeira norma está no bojo da legislação de uma figura não tributária que se
submetia à lógica da Constituição de 1967/69, ao passo que a segunda está no bojo da legislação de
uma figura tributária (contribuição de seguridade social) que se submete por inteiro à legalidade tributária
estrita contida no art. 150, I, da Constituição de 1988. Parece-nos assim que o Plenário do STF inovou
no julgamento do RE 343.446, pois decidiu ser válida, mesmo perante a legalidade tributária estrita do
art. 150, I da Constituição de 1988, uma norma que delega a decretos do Executivo a aferição de dados
e parâmetros necessários para possibilitar a aplicação in concreto da norma de incidência tributária. A

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 95


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
o Executivo manejar o quantum do tributo, apenas delegações de caráter técnico. Ou
seja, admite-se certa mitigação do princípio da legalidade em matéria de delegação
legislativa se – e somente se – o legislador estabelecer o desenho mínimo, fixando
balizas e parâmetros razoáveis, de modo a evitar o arbítrio fiscal. Tanto é assim que,
recentemente, seguindo voto do Ministro Dias Toffoli, relator do Recurso Extraordinário
nº 1.095.001, a Segunda Turma do Supremo, à unanimidade, reputou inconstitucional o
art. 3º da Lei nº 9.716, de 1998, que fixou o valor inicial da taxa para o Siscomex e, no
§ 2º, delegou a regulamento a possibilidade de reajustar, anualmente, o valor da taxa,
“conforme a variação dos custos de operação e dos investimentos ao Siscomex”.30

(v) Há dispositivos do CTN que permitem delegações não toleradas pela


Constituição. É o caso do art. 172, quando diz que a lei pode autorizar a autoridade
administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do
crédito tributário, atendendo a algumas condicionantes, como a situação econômica
do sujeito passivo ou a diminuta importância do crédito tributário. A lei não pode
autorizar a autoridade administrativa a conceder remissão de forma indeterminada e
discricionária, sem definir com precisão a oportunidade, as condições, a extensão e
os limites quantitativos do seu alcance.

(vi) Ainda no CTN, há o reconhecimento da existência de leis interpretativas (art.


106, I), com força retroativa. Embora tal modalidade de leis seja bastante questionável
– assim como o é a interpretação autêntica31 –, chegando alguns a defender sua

linha jurisprudencial que o STF parece ter inaugurado no julgamento do RE 343.446 pode inclusive levar
a Corte a rever seu posicionamento sobre a impossibilidade de aprovação, por decreto do Executivo, da
Planta Genérica de Valores para fins de lançamento do IPTU (vide RE 87.763, Pleno, e 96.825, 2ª Turma).”
(GODOI, Marciano Seabra de. Questões atuais do direito tributário na jurisprudência do STF. São Paulo:
Dialética, 2006, p. 22).

30 Mais uma vez, é de se notar a iniciativa do Poder Executivo, pois a mencionada lei decorre de conversão da
Medida Provisória nº 1.725, de 29 de outubro de 1998, que já previa a delegação legislativa originalmente.

31 Carlos Maximiliano explica o problema: “O ideal do direito, como de toda ciência, é a certeza, embora relativa;
pois bem, a forma autêntica de exegese oferece um grave inconveniente – a sua constitucionalidade posta
em dúvida por escritores de grande prestígio. Ela positivamente arranha o princípio de Montesquieu; ao
Congresso incumbe fazer leis; ao aplicador (Executivo e Judiciário), interpretá-las. A exegese autêntica
transforma o legislador em juiz; aquele toma conhecimento de casos concretos e procura resolvê-los
por meio de uma disposição geral. Amplifica-se, deste modo, a autoridade da legislatura, num regime
de freios e contrapesos; releva-se desamor pelo dogma da divisão dos poderes, pedra angular das
instituições vigentes.” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro:
Forense, 1999, pp. 93-94).

96 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
inexistência,32 é fato que o Código as admite, deixando espaço para iniciativas do
Poder Executivo no intuito de fazer prevalecer retroativamente uma interpretação de
seu interesse. Isso importa em grave esvaziamento do debate no que diz respeito às
interpretações praticadas até o advento da nova lei interpretativa.33 Coêlho questiona a
governamentalização do direito tributário pelo uso das leis interpretativas, iluminando
o prejuízo de tais iniciativas à democracia e à separação dos poderes. Para o autor,
pelo uso de tais leis, o Legislativo – a serviço do Executivo, que opera com maiorias
parlamentares –, anula as interpretações judiciais sem necessidade de manejar ações
rescisórias, em claro desrespeito ao dever processo constitucional.34

(vii) A norma do art. 116, parágrafo único, do CTN é duramente criticada pela
doutrina, tendo em vista o entendimento de ser inconstitucional a adoção de cláusula
geral antielisiva – aquela que, embora sem prática de ato ilícito pelo contribuinte,
autoriza a Administração Tributária a estender a incidência da norma legal a fato/ato
estranho ao gerador e praticado com vistas à economia de imposto. Essa cláusula
geral acarreta necessariamente a complementação do direito por meio de aplicação
analógica, deslocando a competência legislativa para o Poder Executivo.

32 Carrazza entende que a lei interpretativa exercida pelo Poder Legislativo é inconstitucional e se trata
de “‘desvio de poder’ no exercício da função legislativa” (CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito
constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 339).

33 A Lei Complementar nº 118, de 2005, demonstra esse intento. Por meio da Mensagem nº 152, de 29
de julho de 2003, o então Ministro da Fazenda submeteu ao Presidente da República projeto de lei
complementar com o objetivo de modificar “o Código Tributário Nacional, tornando-o permeável às
inovações que possivelmente constarão da nova legislação falimentar”. Registrou o Ministro que “o que
consta do projeto de lei complementar ora apresentado já foi objeto de discussões preliminares com
algumas das forças políticas presentes no Congresso Nacional. Há mais: incorpora proposições que
já estão em discussão no seio do Congresso Nacional”. Finalmente, informa que a proposição “veicula
normas interpretativas que eliminam dúvidas acerca do alcance de dispositivos do Código Tributário
Nacional, com evidentes benefícios para o contribuinte e para a Fazenda Pública federal, estadual e
municipal, mormente no que toca à segurança jurídica”. O projeto, protocolado sob o nº 73/2003,
contemplou então proposta de “interpretação” de três dispositivos do CTN que versam sobre temas
polêmicos, sendo que alguns deles eram aplicados pelos tribunais de forma amplamente favorável
ao contribuinte. Como se sabe, acabou vingando a alínea “b” no texto final da LC nº 118/2005, o que
recebeu inúmeras críticas doutrinárias e foi rechaçado pelo Poder Judiciário. Como o projeto de autoria
do Executivo foi apresentado em 30 de julho de 2003, após o Projeto de Lei nº 72/2002, de autoria
do deputado Antônio Carlos Magalhães Neto, ele acabou sendo anexado à proposição de autoria
parlamentar – que, de fato, tinha dispositivos legais análogos. Por isso, à primeira vista foi um projeto
de iniciativa parlamentar que deu origem à LC nº 118/2003. Todavia, ficou muito evidente que o governo
federal atuou no sentido de aprovar uma regra supostamente interpretativa do CTN em seu favor, isto é,
nos interesses da Fazenda Pública e em detrimento da interpretação que prevalecia no âmbito do Poder
Judiciário.

34 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p.
476.

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 97


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
(viii) Por fim, cabe pontuar que o maior e talvez pior reflexo da governamentalização
do poder de decisão tributário seja a complexidade e a multiplicidade da legislação
tributária.35 As leis complexas – muitas vezes ininteligíveis até para especialistas na
matéria – retroalimentam a desparlamentarização da decisão tributária, retirando
do Poder Legislativo a possibilidade de fazer escolhas políticas tendo em conta os
contribuintes.

Com relação ao último tópico, é importante trazer à tona o tema da recepção dos
convênios do Conselho Nacional de Política Fazendária, que autorizam a concessão de
benefícios fiscais do imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços,
pelos Poderes Executivos estaduais, sem a participação dos Legislativos. A situação
demonstra de forma cabal como se tornou absurdamente complexo o relativo ao prin-
cipal imposto do país. A concessão dos benefícios de ICMS foi devidamente planejada
pelo constituinte de 1988 de forma a evitar a disputa entre os Estados-membros. Na
contramão desse plano, o que se tem verificado é uma famigerada “guerra fiscal” – um
dos principais fatores responsáveis pela destruição da federação.36

No que tange à ratificação dos convênios do Confaz por cada Estado, a Lei
Complementar nº 24, de 1975, dispõe em seu art. 4º que “(...) o Poder Executivo de cada
Unidade da Federação publicará decreto ratificando ou não os convênios celebrados,
considerando-se ratificação tácita dos convênios a falta de manifestação no prazo
assinalado”. Ricardo Lobo Torres pontua que a Lei Complementar nº 87, de 1996,
atual norma geral do ICMS, deveria ter compatibilizado o regime dos convênios com

35 Na visão de Misabel Derzi, a complexidade do sistema tributário tem fontes múltiplas. Entre elas: o abuso
desencadeado por pressões corporativas, que criam miríades de regimes especiais e excepcionais de
tributação, escondidos sob o manto da justiça e da inclusão social; a democracia participativa e plural
facilita a intervenção legítima ou ilegítima de sindicatos, organismos profissionais, econômicos, internos
e internacionais no processo legislativo; nesse cenário assim projetado, a descrença e o ceticismo
em relação a valores e princípios até então inquestionáveis levam muitos países a experimentar
simplificações e tentativas de aumento de base dos impostos, que arranham aqueles mesmos valores
e princípios (DERZI, Misabel Abreu Machado. Pós-modernismo e tributos: complexidade, descrença e
corporativismo. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo: nº 100, jan. 2004, p. 72).

36 O art. 155, § 2º, XII, “g” da Constituição dispõe que cabe à lei complementar regular a forma como,
mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais relativos
ao ICMS serão concedidos e revogados. A lei complementar relativa à disciplina da matéria é a Lei
Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975. Nela está disposto que benefícios fiscais relativos ao
ICMS devem estar previstos em instrumento formalizado por todas as unidades da Federação. Trata-se
dos convênios celebrados no âmbito do Confaz, órgão colegiado que congrega os Estados e o Distrito
Federal. Essa lei foi recepcionada pelo art. 34, § 8º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
motivo pelo qual, atualmente, quaisquer isenções, incentivos e benefícios fiscais relativos ao ICMS
dependem da celebração de convênios pelos Estados no âmbito do Confaz.

98 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
as garantias democráticas previstas na Constituição, passando a exigir a ratificação
pelas Assembleias Legislativas.37

O déficit de legitimidade democrática dos benefícios de ICMS foi enfrentado pelo


STF no julgamento do Recurso Extraordinário 539.130, ocasião em que a Segunda Turma
entendeu ser necessária a celebração de convênio no âmbito do Confaz e a publicação
de decreto legislativo pela Assembleia. O Ministro Joaquim Barbosa, acompanhando
a relatora Ministra Ellen Gracie, justificou que é “imprescindível resgatar a função
que a regra da legalidade tem no sistema constitucional”. Esse entendimento vem
sendo observado em sucessivos julgamentos (vale conferir, por exemplo, as decisões
monocráticas nos Recursos Extraordinários 576.357, 588.765, 610.480 e 611.433).

Apesar de tal orientação, são inúmeros os convênios recepcionados ao longo


da história sem o aval do Legislativo. O procedimento – que ainda ocorre – desparla-
mentalizou completamente a concessão dos incentivos do ICMS, alijando o legislador
do processo de formulação de uma verdadeira política tributária exonerativa para o
referido imposto. A situação permitiu que os governos estaduais forjassem um sistema
tributário paralelo, em sede regulamentar, seccionado e moldado para cada setor
econômico, de acordo com seus interesses e os de grupos específicos. Tais grupos
deixaram, nesse contexto, de atuar no âmbito do Parlamento, passando a pactuar suas
intenções perante as superintendências fiscais e as pastas governamentais.

Com todos esses elementos, o cenário de acentuada desparlamentarização


implica grave transgressão à lógica fundacional do sistema tributário. No próximo
tópico, examinam-se os fundamentos teóricos para a valoração de tal quadro, o que
possibilitará a conclusão de que o contexto vivenciado nos últimos trinta anos tem
importado em recorrente violação ao projeto constituinte de democracia tributária.

A desparlamentarização da democracia tributária: um


problema à luz do princípio da publicidade material
O diagnóstico apresentado no tópico anterior permite iluminar o déficit demo-
crático dos processos pelos quais as decisões tributárias têm sido tomadas no
Brasil pós-1988. A compreensão desse déficit exige, contudo, que se explicitem duas
premissas teóricas: (i) a ideia de Estado Democrático de Direito, a partir da qual será

37 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 342.

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 99


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
possível esquadrinhar o referencial, plasmado no art. 1º da Constituição da República,
que orienta a crítica que se formula à desparlamentarização da democracia tributária;
(ii) a proposta de releitura do princípio constitucional da publicidade, com base na
qual será reapresentada a tese de que o sistema tributário depende estruturalmente
da abertura à esfera pública informal e desregulada.

A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e


tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Nesse universo,
é indispensável ter em conta que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição. A apreensão
do significado de tais postulados é de enorme relevância para a realização do projeto
de sociedade política desenhado à luz da ordem de 1988, inclusive – e sobretudo – no
que diz respeito às finanças públicas e ao sistema tributário.

O campo tributário é especialmente sensível, porque sua essência está sedimen-


tada sobre uma enorme tensão: sua realização é condição necessária ao funcionamento
do Estado, mas implica a instituição de obrigações pecuniárias em face do patrimônio
dos particulares. A luta de diversos segmentos pela ampliação e pelo aprimoramento
dos serviços públicos convive lado a lado com a resistência ao pagamento de tributos.
Concebido no epicentro de uma esfera que, por sua própria natureza, é complexa, poli-
valente e marcada pelo desentendimento, o direito tributário propõe encarar o referido
conflito servindo como ferramenta de inúmeras realizações estatais: a viabilização
das prestações básicas, a definição de políticas públicas fundamentais, o controle do
endividamento público, a proteção dos direitos fundamentais, o desenvolvimento de
determinados setores da economia e/ou determinadas regiões do país, entre muitos
outros.38 Porém, o equacionamento da tensão identificada só se efetiva por completo
na perspectiva de um povo que decide e aceita se tributar a si próprio.39

Por isso mesmo, a ideia de uma democracia tributária precisa estar intimamente
ligada à noção de legalidade. A descrição empreendida no tópico antecedente é eluci-
dativa da distorção conceitual que hoje permeia o sistema tributário brasileiro. Se o
poder decisório em matéria tributária está encerrado nos castelos do governo, sem
abertura ao debate que emerge da sociedade, a exação tributária nasce carecedora de

38 KIRCHHOF, Paul. Deutschland im Schuldensog: der Weg vom Bürgen zurück zum Bürgen. München: C. H.
Beck, 2012.

39 A menção é a frase usualmente atribuída a Pontes de Miranda.

100 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
um fundamento básico de existência, resultando, em última análise, em mera ingerência
estatal. O erro elementar está em raciocinar a decisão tributária como um ato formal
de soberania, sem atentar para a necessidade de introduzi-la em um contexto de sope-
samentos e entendimentos – contexto que só se representa, ainda que parcialmente,
no espaço legislativo.40

Nesses termos, a desparlamentarização da democracia tributária é um problema


de proporções incomensuráveis, vez que tende a culminar no próprio esvaziamento
do caráter democrático do sistema. Paul Kirchhof adverte para o problema da terceiri-
zação do poder de tomar decisões na democracia, argumentando que a transferência
do núcleo decisório para espaços diferentes daquele em que a representação de
ideias, interesses e temas é mais diversificada e plural importa, ao longo do tempo, no
engessamento do processo de seleção de prioridades e de definição de escolhas.41 A
tributação é assunto-chave nesse prisma. Com efeito, passado o entusiasmo inicial com
que a democracia representativa lançou as bases de um direito tributário supostamente
amparado pela reflexão criteriosa de um corpo parlamentar comprometido com a
isonomia e a justiça social, o que se tem verdadeiramente experimentado é um estado
de coisas no qual o Executivo decide, fazendo escolhas à revelia do pluralismo popular,
e o Judiciário protege os direitos básicos, mas apenas mediante acionamento e depois
de cumprido o rito do processo.42 Cuida-se claramente de democracia não parlamentar.

40 “Não se aceita a noção de que o tributo é ato de soberania do Estado. Antes, como advertiu Pontes de
Miranda, o princípio a priori é de que o povo se tributa a si mesmo, juiz supremo, através da representação
das suas vantagens e conveniências em pagar as despesas propostas pelo Executivo.” (BALEEIRO,
Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 8. ed. atualizada por Misabel de Abreu
Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010, pp. 85-86). Na mesma linha, Sacha Calmon Navarro Coêlho
pontua o seguinte: “A legalidade da tributação, dizia Pontes de Miranda, significa o povo se tributando
a si próprio. Traduz-se como o povo autorizando a tributação através dos seus representantes eleitos
para fazer leis, ficando o príncipe, o chefe do Poder Executivo – que cobra os tributos –, a depender
do Parlamento.” (COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O princípio da legalidade: o objeto da tutela. In:
PIRES, Adilson R.; TÔRRES, Heleno T. (org.). Princípios de direito financeiro e tributário: estudos em
homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 630). Cf. também:
ATALIBA, Geraldo.  República e Constituição. São Paulo: Malheiros, 2001; MACHADO, Hugo de Brito.
Princípio da legalidade tributária na Constituição de 1988. Revista de Direito Tributário. São Paulo, n. 45,
1988, pp. 175-187.

41 KIRCHHOF, Paul. Entparlamentarisierung der Demokratie? In: KAISER, André; ZITTEL, Thomas.
Demokratietheorie und Demokratieentwicklung: Festschrift für Peter Graf Kielmansegg. Wiesbaden: VS
Verlag für Sozialwissenschaften, 1997, pp. 359-376. No mesmo sentido: KIRCHHOF, Paul. Das Gesetz
der Hydra: gebt den Bürgern ihren Staat zurück! München: Knaur TB, 2008; KIRCHHOF, Paul. Recht lässt
hoffen. München: C. H. Beck, 2013.

42 “Desde o seu início, a democracia representativa acreditou que conseguiria garantir uma tributação
criteriosa e igualitária somente por meio de procedimentos legislativos. Pressupunha-se que, quando

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 101


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
A tendência de deslocamento do núcleo decisório tributário para fora do Poder
Legislativo é também uma tendência de deslegitimação da tributação. Isso porque as
bases que sustentam a imposição da obrigação tributária, em toda a sua complexidade
e com todos os seus desdobramentos, não se mostram concretamente traduzíveis em
uma conjuntura na qual a justificativa do tributo não está lastreada em uma escolha
do povo.

No entanto, só seria dado ao povo escolher se, por outro lado, o universo tributário
fosse claro o suficiente para se fazer minimamente cognoscível por todos. É sabido
que o direito tributário, em especial o brasileiro, é um conjunto confuso e desordenado
de normas, descolado da vivência da sociedade e impassível de compreensão pelos
contribuintes. Os exemplos explorados no tópico anterior denotam não só o caráter
centralizado e fechado do processo de tomada de decisão no campo tributário, mas
também a roupagem excessivamente técnica de que se reveste a burocracia governa-
mental. Nas práticas institucionais, é precisamente o fundamento da técnica – dominada
por poucos, muito distante do “chão de fábrica” que caracteriza o Parlamento43 – que
alimenta o enclausuramento do processo decisório tributário.

Nessa linha de ideias, o argumento central para a defesa da inconstitucionalidade


de um sistema tributário como o nosso é não apenas seu caráter profundamente
desparlamentarizado, mas principalmente sua resistência à parlamentarização.
Em outras palavras, o maior problema da pseudodemocracia tributária no Brasil é
a impossibilidade de (re)parlamentarização do debate, condição que é reiterada e

os próprios contribuintes decidem sobre a carga tributária, por meio de seus representantes, estaria
suficientemente garantido que as pessoas não seriam tributadas de forma desmedida, e eventuais
privilégios fiscais seriam imediatamente abandonados. Esse ideal democrático ressoa ocasionalmente
também no Estado fiscal constitucionalizado, com a tese de que as liberdades fundamentais não
possuem eficácia de proteção em face do legislador tributário. Ou, ainda, que elas garantem uma
margem de conformação que coloca os direitos dos contribuintes nas mãos do legislador, onde serão
respeitados. Com o passar do tempo, despedimo-nos deste otimismo democrático. Ainda vivenciamos
a realidade de que os eleitores não encaram os representantes eleitos como garantidores de uma carga
tributária reduzida, mas sim como mentores de prestações estatais adicionais e, por conseguinte,
aumento dos tributos. Até mesmo uma demanda tão geral e elementar quanto a garantia do mínimo
existencial por meio do imposto de renda, que permite a todos aqueles que obtêm renda a manutenção
e o financiamento de suas necessidades pessoais, e que torna desnecessária a ajuda social estatal, não
foi assegurada pelo Parlamento, tendo que ser garantida por meio de decisão do Tribunal Constitucional”.
(KIRCHHOF, Paul. Tributação no Estado Constitucional. Trad. Pedro Adamy. São Paulo: Quartier Latin,
2016, p. 17).

43 KIRCHHOF, Paul. op. cit., 1997, p. 368. Ver também: PÜNDER, Herman. More government with the people:
the crisis of representative democracy and options for reform in Germany. German Law Journal, 16, n.
713, 2015, pp. 91-92.

102 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
violentamente robustecida pela maneira reificante com que a tecnoburocracia trata o
tema da tributação. Para Kirchhof, a origem de todo esse ciclo viciado e vicioso é a
ilegibilidade do sistema: a matéria tributária é retirada da pauta corrente de discussão
política sob o pretexto de ser exageradamente técnica, mas é exatamente sua carapaça
técnico-discursiva que impede a tematização do sistema no espaço parlamentar.44

A constatação em questão está arrimada em uma noção específica do princípio


constitucional da publicidade material. Tal noção, por sua vez, tem como premissa
inescapável a compreensão procedimental do Estado Democrático de Direito, baseada
em uma ideia de política deliberativa radicalmente dependente da proteção e da pleni-
potencialização da autonomia dos indivíduos.

A tese da coesão interna entre Estado de Direito e democracia é exposta por


Jürgen Habermas em Faktizität und Geltung. A ideia primária, de acordo com a qual
“no marco de uma política secularizada, o Estado de Direito não pode se formar nem
se manter sem democracia radical”,45 é posteriormente retomada no Capítulo 10 de
Die Einbeziehung des Anderen: Studien zur politischen Theorie, oportunidade em que
Habermas esclarece que, a despeito de haver razões empíricas para a separação do
tratamento científico do direito e da democracia (um pela Ciência do Direito, a outra
pela Ciência Política), o conceito moderno de direito pressupõe características que
impedem a sua legitimação por outra via que não a da garantia universal da autonomia.
O entrelaçamento da concepção liberal do direito à perspectiva de uma igualdade
jurídica materializada no paradigma do Estado Social, em seguida à crise vivenciada
no seio deste, conduz as comunidades político-jurídicas a uma autocompreensão
discursiva e procedimentalista do Estado Democrático de Direito.46

As compreensões paradigmáticas de uma época, traduzidas em ordenamentos


jurídicos concretos, refletem o conjunto de imagens que a sociedade tem de si própria
e do direito que produz e aplica. O paradigma jurídico, nessa linha de ideias, explicita e
esclarece, amparado em um modelo social contemporâneo, “como os direitos funda-
mentais e os princípios constitucionais devem ser concebidos e implementados, de

44 KIRCHHOF, Paul. Der sanfte Verlust der Freiheit: für ein neues Steuerrecht – klar, verständlich, gerecht.
München: Carl Hanser Verlag, 2004, pp. 76-98.

45 HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtsstaates. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1992, p. 168, tradução nossa.

46 HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1992, pp. 166-237; Die Einbeziehung des Anderen: Studien zur politischen
Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1996, pp. 293-308.

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 103


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
forma a realizarem, em determinado contexto, as funções que normativamente lhes
são atribuídas”.47 Embora a materialização corrente desses ideais seja o principal pilar
de legitimação do exercício do poder político, a estrutura da esfera pública resultou,
tanto no eixo liberal quanto no social, em uma orientação dissolutiva e ocultante.48

Nessa leitura, Habermas ilumina a edificação de uma legitimidade que se recons-


trói na esfera pública a partir de um referencial que concebe a autonomia privada
(os direitos fundamentais, garantidos por meio do domínio do direito) e a autonomia
pública (a cidadania, que pressupõe os direitos de comunicação e participação no
universo público-decisório) como grandezas equiprimordiais e interdependentes. 49
A interdependência entre o Estado de Direito, escorado na exigência de juridificação
dos direitos fundamentais, do devido processo legislativo e do devido processo cons-
titucional, e a democracia, baseada no espaço de exercício de uma soberania popular
constituída por uma comunidade de cidadãos que se reconhecem livres e iguais, é não
apenas primordial, mas indispensável. A autonomia privada e a autonomia pública se
complementam e se pressupõem. É que, de um lado, o desempenho da cidadania só se
verifica de fato em um contexto de proteção e gozo dos direitos básicos dos cidadãos
participantes; outrossim, o processo de densificação de tais direitos só pode ocorrer
de maneira legítima se os atingidos pela decisão participarem de sua construção. Isso
significa dizer que os direitos fundamentais e a cidadania são indivisíveis e, para a
devida realização da legitimidade, cooriginários.

47 HABERMAS, op. cit., 1992, p. 292, tradução nossa.

48 A crise do Estado Social traduz um tema central para a teoria política contemporânea. Isso porque,
a despeito da aparência inicial, o colapso do paradigma não pode ser adequadamente reduzido à
percepção, na década de 1970, do crescimento desenfreado do endividamento dos setores públicos
em diversas economias ocidentais. Não se pode resumir a falência do modelo à tomada pública de
consciência a respeito do déficit fiscal gerado pela hipertrofia da estrutura administrativa e a sobrecarga
das frentes de atuação estatal, sobretudo em seguida às crises do petróleo. O problema fundamental do
paradigma social é o da incapacidade de assimilar as diferenças e gerar inclusão. Pode-se afirmar, por
conseguinte, que tanto no paradigma do Estado Liberal quando no do Estado Social, “perdeu-se de vista a
coesão interna entre autonomia privada e autonomia pública” (HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1996, p. 302,
tradução nossa).

49 Segundo Habermas, “no círculo que envolvia o poder entendido instrumentalmente e o direito
instrumentalizado, abriu-se uma brecha carente de legitimação (...). Pois as condições de constituição
desse complexo evolucionário envolvendo o direito e a política, que tornara possível a passagem para
sociedades organizadas em forma de Estado, foram feridas na medida em que o poder político não
podia mais legitimar-se por intermédio de uma tradição sagrada ou um direito legítimo intrinsicamente.
A razão deveria substituir a fonte sagrada do direito, (...). O conceito de autonomia política adotado pela
Teoria do Discurso abre uma perspectiva diferente. Esse conceito explica o motivo de a produção de um
direito legítimo exigir a mobilização das liberdades comunicativas dos cidadãos.” (op. cit., 1992, p. 182,
tradução nossa)

104 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
No Capítulo 7 de Faktizität und Geltung, Habermas oferece uma noção de política
deliberativa, calcada em um “conceito procedimental de democracia”. Tendo em vista
o paradigma do Estado Democrático de Direito, o autor afirma que, face à adaptação da
esfera pública geral (que é ilimitada) a uma “luta pela interpretação de necessidades”,
a conversão de temas inicialmente privados em assuntos com reconhecimento político
depende de um percurso sinuoso. Somente por meio de uma “luta por reconheci-
mento”, engendrada publicamente, é que os interesses questionados e as necessidades
vindicadas poderão ser articulados nas instâncias políticas responsáveis, pela via da
introdução no debate parlamentar e da posterior formalização no formato de decisões
impositivas. A política na democracia deliberativa é, destarte, um espaço de movimen-
tação do poder comunicativo que pressupõe a abertura às esferas privadas e aos fóruns
não institucionalizados, que são informais e espontâneos.50

No esquema de ideais apresentado, a interação entre o epicentro do sistema


político e as redes periféricas da esfera pública é essencial para a formação legítima
da vontade coletiva. A sensibilidade do locus representativo com relação à interlocução
com os espaços não oficiais é que garante, pelo exercício da autonomia pública,
a amplitude e a higidez do processo discursivo de assimilação e densificação dos
problemas, anseios e misérias da sociedade.

Eis o ponto crucial: a deliberação que toma corpo nos fóruns políticos formais,
ordenada e procedimentalizada, só tem verdadeiramente lugar na democracia se
partir, no seu nascedouro, de um processo antecedente, informal e desordenado de
identificação e elaboração de problemas politicamente relevantes. A dimensão formal
da política deliberativa é, sem sombra de dúvida, essencial para o embasamento das
escolhas que se fazem com relação à questão selecionada e à solução concebida;
todavia, o espaço político oficial não é capaz de formular por si próprio uma leitura
suficientemente democrática das realidades que pretende enfrentar. A espontaneidade
da esfera pública é o atributo que alimenta e garante a discursividade da decisão
política. Em outros termos, o caráter espontâneo e, de certa forma, anárquico do
processo comunicativo que se forma nos espaços discursivos periféricos constitui
condição de possibilidade da vontade coletiva.51

50 HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1992, pp. 367-382.

51 HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1992, pp. 415-434. Habermas dá à esfera pública informal, periférica e
desordenada o nome de “público fraco”, em razão de se tratar de espaço comunicativo sem poder de
decisão. Entretanto, a referida denominação não pode ser encarada como sinal de que o autor qualifica
tais instâncias como efetivamente dotadas de fraqueza, no sentido mediano da palavra. Sobre essas

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 105


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
A preservação dessa espontaneidade está conectada a um sistema de proteção
e realização dos direitos e liberdades fundamentais, com amparo no ordenamento
constitucional. O cidadão livre, que tem acesso a bens e serviços básicos e, nesse
contexto, vive com dignidade é o mesmo comunicador que, embora restrito à periferia da
esfera pública, participa do processo político, movimenta o agir discursivo e influencia
a formação da vontade coletiva.

É inevitável, nessa perspectiva, que o conceito de representação sofra uma revisi-


tação profunda. A crescente fluidez das linhas que dividem o Estado e a sociedade lança
luzes sobre a necessidade de reelaboração dos critérios de legitimidade democrática
da representação, desde muito tempo vinculados às ideias primárias de autorização e
delegação. Com base no modelo habermasiano de democracia deliberativa, não restam
dúvidas de que a legitimidade democrática não pode se resumir ao atributo exclusivo de
um ato autorizativo. Cuida-se, a bem da verdade, de um atributo de qualidade, calcado
em uma re-apresentação contínua, aberta e ampla de interesses, discursos, ideias e
perspectivas sociais, nunca absolutamente adquirido.52 A democracia contemporânea
pressupõe uma exigência de legitimação incompatível com o discurso enviesado e
distorcido da onipotência da vontade geral expressa no momentum eleitoral.53

A representação política precisa se reposicionar conceitualmente, com vistas


a enfrentar, de modo minimamente satisfatório, os problemas da temporalidade,
da limitação temática e da identificação de seu lugar e de seu modo. A perspectiva
tradicional, baseada na autorização eleitoral, no monopólio e na territorialidade, não

expressões, ver também: FRASER, Nancy. Rethinking the public sphere: a contribution to the critique of
actually existing democracy. In: CALHOUN, Craig (org.). Habermas and the public sphere. Cambridge/
MA: MIT Press, 1993.

52 ROSANVALLON, Pierre. Democratic legitimacy: impartiality, reflexivity, proximity. Princeton: Princeton


University Press, 2011. Ver também: DILLY PATRUS, Rafael. Representação e pobreza política:
invisibilidades e inclusão na arena pública do Brasil democrático. In: ALVES, Cândice Lisbôa.
Vulnerabilidades e invisibilidades: desafios contemporâneos para a concretização dos direitos humanos.
Belo Horizonte: Arraes, 2015, pp. 195-210.

53 “A democracia de tradição eleitoral-representativa é baseada no axioma de que a vontade geral é inteira


e diretamente expressa por meio do processo eleitoral. A apuração serve à suposta manifestação da
vontade dos eleitores; os eleitores atuam como supostos agentes políticos; e o momento da votação
supostamente determina a temporalidade do processo político. Essa concepção de democracia se
escora em três premissas básicas: a de que a soma das escolhas dos eleitores equivale à vontade geral;
a de que os eleitores equivalem ao povo; e a de que toda atividade política e legislativa subsequente flui
continuamente à luz do marco temporal eleitoral. Não há dúvida de que essas hipóteses são irreais: a
fragilidade da lógica que as suporta é evidente.” (ROSANVALLON, Pierre. op. cit., 2011, p. 123, tradução
nossa).

106 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
se mostra suficiente para o equacionamento atual da complexidade dos movimentos
sociais e conflitos políticos, sendo indispensável repensar a figura do representante
de modo a abarcar não só a representação autorizativa, mas também a tematização
pública e a participação. O único espaço formal capaz de absorver adequadamente
o pluralismo que deve orientar o processo de formação da vontade coletiva, inclusive
em matéria tributária, é o Poder Legislativo. Deslocar o eixo decisório para outras
instâncias tematicamente menos plurais e discursivamente menos acessíveis implica
reduzir o canal de comunicação pública que, em última análise, corresponde à base
legitimadora do caráter vinculante da norma.

Em Habermas, essa redução significa um fechamento das eclusas de interação


entre o núcleo do sistema político e a esfera pública mais ampla, a partir da qual o
poder comunicativo se forma. Essa esfera pública geral consiste em um fenômeno
social elementar, traduzido em uma rede adequada para a comunicação de conteúdos,
tomadas de posição e opiniões, na qual “os fluxos comunicacionais são filtrados e
sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas envoltas em temas
específicos”.54 Embora margeada por “funções gerais de reprodução do mundo da vida”
e por “diferentes aspectos de validade do saber comunicado por meio da linguagem
comum”, a esfera pública não se limita a essas especializações.55

Paralelamente, também não se pode resumir a esfera pública a um processo homo-


gêneo de legitimação do poder político, já que por ela se introduz no debate público
uma infinidade de matérias tradicionalmente camufladas na estreiteza das esferas
privadas. A manifestação da estrutura comunicativa, em sua orientação em prol da
compreensão mútua, perfaz um fluxo desorganizado de expressões. A qualificação da
relevância política de determinada reivindicação, para sua decomposição e conversão
política depende de uma investida inoficiosa, exprimida pela categoria das “lutas por
reconhecimento” no Estado Democrático de Direito.56

54 HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1992, p. 436, tradução nossa.

55 “Por isso, na abrangência de questões de relevância política, deixa-se ao cargo do sistema político a
elaboração especializada. A esfera pública consiste sobretudo em uma estrutura comunicacional do
agir orientado pelo entendimento, que tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, e não
exatamente com as funções ou conteúdos da comunicação rotineira.” (HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1992,
p. 437, tradução nossa).

56 HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1996, pp. 237-276. Habermas explica, em acréscimo, que “a sociedade
civil compõe-se de movimentos, organizações e associações, os quais captam os ecos dos problemas
sociais que ressoam nas esferas privadas, condensando-os e inserindo-os, em seguida, na esfera pública
política. O núcleo da sociedade civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os discursos

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 107


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
A necessidade de representação desses pressupostos na arena política revela a
insuficiência de um referencial representativo restrito ao ato formal de autorização.
A polivalência do intercâmbio comunicativo, que emerge a partir dos fluxos que atra-
vessam as comportas que ligam o núcleo político-decisório aos espaços periféricos da
esfera pública geral, depende da pluralização institucionalizada de canais participativos,
sobretudo para a afirmação e a contribuição dos mais diversos projetos de vida privada e
pública nos processos de significação dos direitos fundamentais, que são as liberdades
comunicacionais que possibilitam o próprio exercício da cidadania.

Naquilo que toca à tributação, é vital que o sistema garanta as condições básicas
para a inserção do contribuinte em um ambiente de compreensão mínima das normas
e de participação, mesmo indireta,57 na seleção das necessidades sociais, políticas e
econômicas prioritárias.

A lei tributária deve ser simples, clara e objetiva, expressando com transparência
e de forma direta os elementos da obrigação tributária. O texto legal deve propiciar aos
contribuintes que cumpram o dever de pagar o débito tributário com responsabilidade
e consciência.58 Isso depende, evidentemente, do estabelecimento de um referencial
macro que sirva de suporte para o regramento da tributação; é de enorme relevância,
nesse contexto, que o ordenamento tributário esteja basilarmente ancorado no princípio
da igualdade, de modo a garantir um substrato positivo de confiança no sistema. A
instituição recorrente de exceções e privilégios fiscais, sobretudo com base em razões
que não sejam intuitiva e claramente reconhecidas como republicanas, transmite ao

capazes de dirimir problemas, convertendo-os em questões de interesse geral no quadro de esferas


públicas. Esses desenhos discursivos evidenciam, em sua forma aberta e igualitária de organização,
as características que formam o tipo comunicacional em torno do qual se sedimentam, garantindo-lhe
continuidade e longevidade.” (HABERMAS, Jürgen. op. cit., 1992, p. 443, tradução nossa).

57 Um problema largamente tratado pela literatura em ciências sociais, em especial no campo da ciência
política, é o do desinteresse dos cidadãos com relação à vida política. O presente trabalho não aborda
nem enfrenta tal questão, mas parte do pressuposto de que a realização das condições básicas de vida
digna (a efetivação de alguma autonomia privada) implica o fortalecimento da capacidade de influência
dos espaços comunicativos periféricos no processo de tomada das decisões políticas. Isso significa
que, mesmo em um contexto no qual os cidadãos optem por não participar ativamente da vida pública,
seu potencial participativo, isto é, sua condição, garantida pelo sistema, de atuar politicamente, caso
desejem fazê-lo, resulta por si só em elemento decisivo na seleção dos problemas, na priorização das
abordagens e na formulação das soluções. Cuida-se do que se convencionou chamar de “participação
indireta”.

58 “(...) o direito tributário precisa ser simplificado para que o cidadão possa compreender a imposição e
tê-la como justa, para que possa planejar a longo prazo, para que, enfim, possa entregar a sua declaração
e pagar seus débitos tributários de forma responsável, informada e consciente.” (KIRCHHOF, Paul. op. cit.,
2016, p. 121).

108 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
contribuinte a péssima mensagem de que a sua obrigação tributária é decorrência
do fato de ele e seu grupo não terem sido contemplados no balcão de distribuição
desigual de benefícios.59

O princípio da publicidade material é premissa inafastável de um sistema tributário


democrático, na medida em que assume como marco inicial a perspectiva de que
o tributo é instituído pelos contribuintes, e não apenas em face deles.60 Na ordem
constitucional brasileira, a publicidade constitui princípio geral da Administração
Pública, previsto no caput do art. 37 da Constituição. Diferentemente do que parece
a princípio, o postulado não se vê suficientemente concretizado com o atendimento
a formalidades atinentes à prestação oficial e à divulgação da informação pública.
Publicizar o conteúdo é, antes de qualquer coisa, torná-lo cognoscível e acessível.61

Assim, o prisma da reparlamentarização do debate tributário é informado pela


publicidade que se impinge à normativa tributária e às alterações nela realizadas. Não
basta transcrever as leis aprovadas em diários oficiais de divulgação institucional, pois a
informação divulgada, embora aberta ao acesso público, só se mostrará autenticamente
tangível quando estiver minimamente decodificada em conformidade com os usos do
cidadão comum.62

A bem da verdade, é fundamental que o ciclo procedimental virtuoso, consubs-


tanciador do que podemos denominar devido processo legislativo tributário, esteja

59 “O contribuinte precisa ter a certeza de que paga seus tributos por ter sido bem-sucedido no mercado
econômico, já que sua capacidade contributiva foi incrementada pelas condições socioeconômicas
colocadas à disposição pelo Estado. Em um sistema tributário com muitas exceções, privilégios e
finalidades extrafiscais, o contribuinte tem a péssima sensação de que precisa pagar seus tributos
apenas porque ele e seu grupo não foram agraciados com isenções ou benefícios fiscais suficientes.
Assim, o contribuinte exige igualdade na isenção, não igualdade na imposição. O combate a essa
falha no desenvolvimento da imposição tributária é a atual tarefa do direito constitucional, qual seja,
instituir e garantir a tributação igualitária e moderada para todos os cidadãos, devendo ser definida
exclusivamente pela capacidade contributiva individual. O texto legal deve determinar o fundamento da
imposição de forma clara e compreensível, possibilitando ao contribuinte deduzir diretamente do texto
suas obrigações e seus débitos fiscais. Naqueles tributos que exigem uma declaração do contribuinte,
a lei deve garantir que se possa reconhecer as obrigações pela simples leitura dos dispositivos legais.
Assim, na sua declaração de rendimentos para o imposto de renda, o contribuinte pode afirmar a exatidão
e correção das informações, somente sendo por elas responsável – inclusive na esfera penal – se a lei
do imposto de renda definir as obrigações de forma clara, de modo que o obrigado – mesmo leigo e sem
conhecimentos prévios – as entenda e as possa cumprir.” (KIRCHHOF, Paul. op. cit., 2016, pp. 121-122).

60 KIRCHHOF, Paul. op. cit., 2008, pp. 189-192.

61 KIRCHHOF, Paul. op. cit., 2004, p. 204.

62 KIRCHHOF, Paul. op. cit., 1997, p. 368; op. cit., 2004, pp. 110-118.

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 109


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
inteiramente marcado pelo estandarte da publicidade material. A cidadania tributária
é, nesses termos, um empreendimento circular: a norma é dada ao conhecimento da
sociedade, que a assimila, apreende, interpreta e aplica, para então, compreendendo
a exação imposta, formular críticas e/ou sugestões de aprimoramento do sistema, a
partir das quais é (re)colocado o debate sobre a preservação e/ou a alteração da norma.
Simplificar, deformalizar, descomplicar, tornar público, incluir, debater: eis a tônica
de um regime de cidadãos tributantes e tributados que se reconhecem mutuamente
como livres e iguais.

Considerações finais
Só a estrita obediência aos postulados que fundam a comunidade política de
cidadãos livres e iguais pode legitimar o exercício do poder em nome do povo. O
engrandecimento do Poder Executivo e o papel relevante que ele tem desempenhado
– uma exigência do próprio Estado de desiderato social – não podem significar uma
transferência integral ao governo da prerrogativa de decidir sobre os rumos da socie-
dade sem a correspondente discussão pública. Em especial no que diz respeito à
matéria tributária, que trata da regulação de aspectos fundantes do Estado, o Executivo
deve observar limites e respeitar o sistema de freios e contrapesos, sob pena de colocar
em risco a própria democracia. Toda governabilidade só é democraticamente possível
conforme os ditames da Constituição.

A impossibilidade de (re)parlamentarizar o debate tributário brasileiro é um


problema grave que deve ser enfrentado mediante a ressignificação da figura do
representante eleito, eis que, como visto, o único espaço formal capaz de absorver
adequadamente o pluralismo que deve orientar o processo de formação da vontade
coletiva, sobretudo sobre direito tributário e direito financeiro, é o Poder Legislativo.
A carapaça técnico-discursiva que impede a tematização no espaço parlamentar dos
problemas e das necessidades relativas ao sistema tributário, na leitura de Paul Kirchhof,
pode ser mitigada com a criação e o fortalecimento de uma contratecnoburocracia

110 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
legislativa,63 estruturada para atenuar o déficit informacional no âmbito parlamentar e
ao mesmo tempo combater a complexificação excessiva da tributação.64

Órgãos como a Consultoria Legislativa – os quais, embora incipientes no Brasil,65


há muito ocupam um lugar institucional decisivo em sistemas tanto de common law
quanto de civil law –, são fundamentais para o equacionamento da tensão comunica-
cional entre o político e o técnico. Os consultores legislativos trabalham na superação
das assimetrias informacionais e na garantia das condições para a recolocação discur-
siva dos temas debatidos, não apenas em vista da pressão exercida pelos grupos de
interesse que usualmente atuam na produção das leis, mas sobretudo à luz de uma
esfera pública maior, informal e desregulada.66

A qualificação da informação é a melhor forma de democratizar a decisão parla-


mentar, na medida em que permite o aprofundamento e o aprimoramento da discussão
e da argumentação na construção de soluções. Isso contempla sobretudo as minorias
parlamentares, que poderão, nesse ambiente renovado, vocalizar anseios, dificuldades

63 “Não há dúvida de que o Congresso pode tentar preparar-se melhor para tornar-se capaz de negociar
com o Executivo as questões sofisticadas de suas demandas e políticas. Uma das possibilidades de
alcançar este objetivo seria a elevação do nível técnico de seus membros. Mas isto (...) não seria
uma solução, pois, ao agir desta forma, o Congresso estaria abdicando de uma parte considerável de
sua representatividade. (...) outra alternativa seria a manutenção de sua representatividade, não com
a imposição de restrições de competência técnica para os seus membros, mas através da criação de
órgão de consultoria parlamentar recrutados abertamente da sociedade, que lhe permitiriam elevar o
nível das negociações com o Executivo. Teoricamente, isto faria com o que o Congresso, ao mesmo
tempo, se tornasse mais ‘racional’ e pudesse considerar as demandas da sociedade. Esta combinação
entre a representatividade e um alto nível de competência técnica na avaliação dos projetos fortaleceria
o Congresso. Em última análise, isto significaria a criação da chama ‘contratecnocracia’, capaz de
alimentar o Congresso com argumentos de barganha com o Executivo” (MONTORO, André Franco. Os
Partidos Políticos. O Cerceamento do Congresso. Parlamento e Desenvolvimento. In: MENDES, Cândido
(org.). O Legislativo e a tecnocracia. Rio de Janeiro: Imago, 1974, pp. 214-215).

64 A reação deve necessariamente partir do espaço legislativo, na medida em que, como acertadamente
aponta Aulis Aarnio, diante do quadro atual, em que, ao mesmo tempo, até os corpos políticos, como o
governo e o Parlamento, têm cedido parcela de seu poder em favor da administração tecnoburocrática,
cabendo aos agentes politicamente responsáveis atuar dentro dos limites impostos pelos experts, as
decisões desenhadas pelos especialistas só podem ser controladas pelos especialistas (cf. AARNIO,
Aulis. Lo racional como razonable: un tratado sobre la justificación jurídica. Trad. Ernesto Garzón Valdés.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 38).

65 Há modelos de carreira no Senado e na Câmara dos Deputados. No âmbito estadual, há profissionalização


nas Assembleias Legislativas dos Estados de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, do Ceará e do Paraná
(com ou sem carreira).

66 SOARES, Fabiana de Menezes; GELAPE, Lucas de Oliveira. Consultoria legislativa da ALMG: o amicus curiae
do processo legislativo? In: SANTOS, Manoel Leonardo; ANASTASIA, Fátima. Política e desenvolvimento
institucional no Legislativo de Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2016, pp. 381-413.

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 111


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
e ressalvas que quase sempre ficam à margem do processo de formação da suposta
vontade coletiva. Ainda que não necessariamente se produza uma decisão de melhor
qualidade, um Legislativo mais bem informado é capaz de proporcionar condições
políticas menos desiguais, fiscalizar com mais eficiência os atos do Executivo e prestar
mais adequadamente contas à sociedade.

Em toda parte, é recorrente a tentativa de fortalecimento da legalidade com


legitimidade, por meio de uma renovação sistemática do consentimento do tributo,
cuja manifestação não se esgota na representação tradicional.67 Entre as estratégias
adotadas pelas Administrações Tributárias apontadas por Misabel Derzi para reforçar
tal consentimento, está justamente a melhora da qualidade da norma tributária, com
vistas ao aperfeiçoamento dos princípios da acessibilidade e da inteligibilidade da lei. O
ponto é de imensa importância, porquanto o sistema tributário só será verdadeiramente
público e, por consequência, democrático, se for minimamente acessível e inteligível.68

Ademais, é urgente que se assegurem as condições para um processo contínuo


de adequação e avaliação legislativas, cumprindo ao Parlamento direcionar a ativi-
dade legiferante à racionalização das leis. O uso de instrumentos de controle, como
a suspensão da eficácia de atos do Executivo que extrapolem o poder regulamentar,
a técnica da consolidação legislativa – exigida pelo art. 212 do CTN, mas jamais
realizada por qualquer Administração – e o uso efetivo da avaliação de impacto ex ante
e ex post da lei tributária, entre outras ferramentas de legística, deve ser seriamente
considerado. Lançar mão do maquinário que a ordem constitucional já põe à disposição
do legislador constitui um excelente passo inicial no caminho para tornar mais acessível
e transparente o processo de elaboração das leis, trazendo maior legitimidade para a
exação tributária.

67 “Vários países criaram regras, que visam à melhoria da redação e da técnica legislativa do Direito
Tributário, entre eles a Itália, a Holanda e a Inglaterra, o último tendente a reescrever suas leis. Não
obstante, o aperfeiçoamento da norma tributária não se restringe à clareza e simplificação. Constantes
avaliações são necessárias, para introduzir mais adequação à realidade e à carga tributária, mais justiça
e mais modernização. Em busca desse aperfeiçoamento, dentro de um ambiente econômico e político em
mutação contínua, cada vez mais célere, as reformas tributárias têm sido frequentes em todos os países.
Em regra não se fazem mais grandes e definitivas reformas do sistema tributário, porém contínuas e
pequenas mudanças.” (DERZI, Misabel de Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da
confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar.
São Paulo: Noeses, 2009, p. 465).

68 DERZI, Misabel de Abreu Machado. op cit., 2009, p. 467.

112 Bernardo Motta Moreira


Rafael Dilly Patrus
Quanto menos transparente se fizerem a criação e o entrelaçamento das normas
tributárias e quanto maior for a inflação da burocracia, tanto mais o Poder Executivo se
agigantará, subtraindo atribuições e prerrogativas do controle parlamentar.69 A solução
para a supressão do déficit de legitimação do tributo, com o aumento qualitativo da
participação do legislador (e também da sociedade) nos processos de formação da
vontade coletiva em matéria tributária, perpassa obrigatoriamente pela simplificação
das normas.

Não há dúvidas de que existe um comando constitucional no sentido da neces-


sidade de simplificar as obrigações tributárias. Isso fica evidenciado com a inclusão
da alínea “d” no inciso III do art. 146, realizada pela Emenda Constitucional nº 42, de
19 de dezembro de 2003, que estabeleceu ser papel de lei complementar “a definição
de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas
de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados (...)”. Essa lógica
simplificadora já estava no art. 179, desde 1988, com a determinação de que os entes
tributantes deverão dispensar às microempresas e às empresas de pequeno porte
tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas
obrigações tributárias. A ideia de tornar a tributação mais clara e simples está, sem
dúvida, intrinsicamente ligada à perspectiva de propiciar e ampliar o conhecimento
daqueles que estão na base do sistema, de forma a fomentar e incrementar o controle
daqueles que governam no topo.70

Simplificar o procedimento pelo qual os contribuintes honram suas obrigações tributá-


rias é, acima de tudo, democratizar o sistema: facilita-se o controle dos atos públicos,
aumenta-se o esclarecimento dos cidadãos acerca do conteúdo das leis às quais estão

69 REINHOLD, Zippelius. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 501.

70 Luigi Zingales, professor da Escola de Negócios da Universidade de Chicado Booth, observa que, se
a regulação “for complexa demais, as pessoas não podem compreendê-la e, dessa forma, não podem
participar devidamente na democracia”. Dessa forma, “simplificar as leis é essencial para a construção
de um capitalismo para o povo”. Segundo o autor, “regras simples permitem uma melhor comparação
entre mercados realistas e regulação realista”. Por isso, sustenta que “a simplicidade traz ainda um
benefício adicional. Além de reduzir as distorções e os custos do lobby, simplificar a legislação também
facilita que o público se envolva no monitoramento, reduzindo a captura”. Assim, “um dos muitos
benefícios das regras simples é o fato de elas facilitarem a accountability. É difícil policiar o cumprimento
de normas complicadas mesmo na melhor das circunstâncias, algo que se torna impossível quando esse
enforcement fica sob a responsabilidade de agências capturadas.” (ZINGALES, Luigi. Um capitalismo
para o povo: reencontrando a chave da prosperidade americana. SP: BeT Comunicação, 2015, pp. 181-
183).

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A DESPARLAMENTARIZAÇÃO 113


DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
submetidos, eleva-se o nível de debate na esfera pública, fortifica-se a accountability
republicana. Realizar o Estado Democrático de Direito na seara tributária, adequando
o sistema às exigências democratizantes que embasam o princípio da publicidade
material, pressupõe o estabelecimento de um canal efetivo de acesso à tributação.
Para tanto, é primordial que os contribuintes conheçam as obrigações tributárias, não
só o quantum a ser pago, mas também o por quê de se pagar, o para quê se paga e
como o pagamento é realizado da melhor maneira.71

O projeto de inclusão dos contribuintes em um universo tão vasto é, sim, ousado,


mas é indispensável que se dê início à sua implementação desde logo, sem espera.72
Preservada a premissa republicana, hoje não restam mais dúvidas – passados trinta
anos da promulgação da Constituição – de que a única via legítima de o colocarmos
em prática é a da reparlamentarização da democracia tributária.

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71 KIRCHHOF, Paul. op. cit., 2004, pp. 224-226.

72 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Democracia sem espera e processo de constitucionalização:


uma crítica aos discursos oficiais sobre a chamada “transição política brasileira”. In: CATTONI DE
OLIVEIRA, Marcelo Andrade (coord.). Constitucionalismo e história do direito. Belo Horizonte: Pergamum,
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DA DEMOCRACIA TRIBUTÁRIA
118 Bernardo Motta Moreira
Rafael Dilly Patrus
TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO
CONFORME E OS DESAFIOS PARA SUA
APLICAÇÃO DE FORMA ADEQUEDA À
CONSTITUIÇÃO DE 1988
Deivide Júlio Ribeiro1

RESUMO
O presente capítulo tem como objetivo analisar os limites jurispruden-
ciais impostos para a aplicação da Técnica de Interpretação Conforme a
Constituição, no controle de Constitucionalidade das leis, ao longo destes
30 anos desde a promulgação. Esses critérios são: não contrariar o sentido
inequívoco da lei, bem como não contrariar o sentido pretendido pelo legis-
lador. Para isso, toma como recorte empírico duas ações de mesma natureza
(ADPF) do controle de constitucionalidade concentrado, as quais foram
aplicadas a mencionada técnica, onde o Supremo Tribunal Federal chegou
em resultados distintos, mesmo se valendo dos mesmos critérios. Para
testar a coerência argumentativa dos dois julgados toma-se como referen-
ciais teóricos o giro-linguístico e a teoria da integridade de Ronald Dworkin,
para só assim chegar a uma conclusão se estes limites jurisprudências,
estabelecidos anteriormente à Constituição de 1988, aplicados à Técnica de
Interpretação Conforme, permitem uma leitura democraticamente adequada
da Constituição.

1 Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG.


Endereço eletrônico: deividej@gmail.com
RIBEIRO, Deivide Júlio. Técnica de interpretação conforme e os desafios para sua aplicação de forma adequeda à Constituição
de 1988. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 119-140. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340935
INTRODUÇÃO
A preocupação com os fundamentos do direito e da legitimidade das decisões
judiciais tem fomentado um rico e intenso debate tanto no âmbito acadêmico quanto
na pratica jurídica nacional, sobretudo após a instauração do paradigma do Estado
Democrático de Direito pela a Constituição de 1988. Esse novo pano de fundo vigente
exigiu uma releitura tanto da teoria quanto da dogmática dos direitos fundamentais. Isso
porque, contemporaneamente, qualquer reflexão sobre direitos fundamentais somente
faz sentido se for mediada pela linguagem. Por essa razão, os direitos fundamentais
são reconstruídos a todo o momento.

Com advento do Estado Democrático de Direito a Constituição passa a ser o


referencial teórico para as demais normas do ordenamento jurídico. Assume, como
referência, a responsabilidade de tutelar uma sociedade complexa, plural e em cons-
tante transformação. No intuito de conciliar as mudanças sociais com a abertura
semântica do texto normativo e os pressupostos democráticos, existe, no controle de
constitucionalidade pátrio, a diretriz da Interpretação Conforme a Constituição, que tem
como finalidade realizar um juízo de adequação entre as normas infraconstitucionais
em face da Constituição.

No contexto brasileiro, mais que um princípio de interpretação, a interpretação


conforme é utilizada como uma verdadeira técnica de controle de constitucionalidade.
Ocorre que, ainda hoje, 30 anos da promulgação da Constituição de 1988, o Supremo
Tribunal Federal, por intermédio de entendimento jurisprudencial anterior a esta,
estabelece limites para sua aplicação, tais como não contrariar sentido inequívoco
pretendido pelo legislador ou o sentido literal do texto normativo. Em que pese a
Técnica da Intepretação Conforme a Constituição ser de grande importância para o
controle de constitucionalidade das leis, estabelecer tais limites à sua aplicação é
retornar aos critérios metodológicos da hermenêutica jurídica clássica, do contexto do
Estado Liberal e Estada Social, que buscava o sentido da norma a partir das intenções
dos legisladores e da vontade da lei. Ocorre que diante dos avanços interpretativos
proporcionados pelo giro linguístico, bem como pela teoria da decisão contemporânea,
a utilização destes critérios de forma isolada pode não atender a coerência e a inte-
gridade que a Constituição exige.

Assim, o presente capítulo tem como objetivo analisar se a técnica de Interpretação


Conforme a Constituição restrita a apenas sentido literal do texto normativo e à vontade
do legislador representa um referencial interpretativo seguro, que possa oferecer

120 Deivide Júlio Ribeiro


respostas jurídicas adequadas à Constituição. Para isso, a presente seção foi dividida
em quatro etapas.

Num primeiro momento contextualiza-se a teórica e dogmática da técnica de


Interpretação Conforme a Constituição e os limites impostos pelo Supremo Tribunal
para sua aplicação, por meio de sua jurisprudência. Logo em seguida, procedeu-se um
recorte empírico em duas decisões, oriundas de ações com a mesma natureza, proposta
em sede de controle de constitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal. Ambas
as ações tinham como pedido a aplicação da Técnica de Interpretação Conforme a
Constituição como medida viável para a análise de seus respectivos méritos. Nessas
duas decisões, apesar de se valerem dos mesmos limites para aplicá-la, a Corte
Suprema chegou a resultados distintos em um curto intervalo de tempo. A análise
das duas decisões se justifica, dessa forma, para demonstrar as possíveis falhas
argumentativas, contradições e o déficit democrático que o atual modo de aplicação da
Técnica da Interpretação Conforme a Constituição pode causar nas decisões judiciais.

Na terceira etapa o trabalho preocupou-se, uma vez identificadas possíveis incoe-


rências argumentativas — tanto na teoria quanto nos dois julgados selecionados —, em
fazer uma reconstrução de uma proposta que entende poder auxiliar o Supremo Tribunal
Federal a buscar uma interpretação hermeneuticamente adequada a Constituição.
Nesse sentido, utiliza-se dos ganhos que o giro linguístico proporcionou para hermenêu-
tica. Tendo em vista que a proposta metodológica do trabalho não é exaurir o tema, mas
apenas ter fundamento para o problema posto, a análise desta perspectiva ficou restrita
a dois importantes autores deste giro: Ludwig Wittgenstein e Hans-Georg Gadamer.
Terminando esta etapa, como modelo complementar ao giro-linguístico-pragmático, o
presente trabalho adota a Teoria da Integridade de Ronald Dwokin e sua interpretação
criativa para analisar e testar a coerência argumentativa dos julgados adotados.

Por derradeiro, na quarta etapa, após toda essa análise, apresenta-se as consi-
derações finais desta reflexão a respeito se a Técnica de Interpretação Conforme a
Constituição, presa ao sentido literal do texto normativo e à vontade do legislador,
é capaz oferecer respostas jurídicas democraticamente adequadas à Constituição.

1 O PROBLEMA: VOLUNTAS LEGIS X VOLUNTAS LEGISLATORIS

Sob o paradigma jurídico do Estado Democrático de Direito e das transformações


advindas da Hermenêutica Filosófica na Hermenêutica Jurídica, é possível afirmar a
existência de uma Hermenêutica Constitucional. Essa constatação deve-se ao fato de
as normas presentes na Constituição possuírem determinadas características que as

TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME E OS DESAFIOS PARA SUA 121


APLICAÇÃO DE FORMA ADEQUEDA À CONSTITUIÇÃO DE 1988
diferem das demais. Nesse sentido, a Constituição passa a ser o filtro interpretativo,
o qual orienta toda interpretação normativa infraconstitucional.

Por outro lado, é cediço que a sociedade moderna é complexa e se encontra em


permanente mutação, pois, ao lidar com os riscos da instabilidade, ela faz da própria
mutabilidade seu motor propulsor. Ao contrário das sociedades antigas, que eram
rígidas e estáticas, o atual modelo social alimenta-se de sua própria transformação e,
dessa forma, reproduz-se.2

Em vista dessa permanente dinâmica social e da possibilidade de novas inter-


pretações do texto normativo, devido à sua textura aberta, surge a necessidade de se
desenvolver critérios que possam conciliar essa abertura semântica, com os pressu-
postos democráticos e a estabilidade jurídica. Nesse sentido, destaca-se, dentro do
controle de constitucionalidade, entre outras, a Técnica de Interpretação Conforme
a Constituição. Essa diretriz tem como finalidade realizar um juízo de compatibili-
dade entre uma norma infraconstitucional em face da Constituição, de modo que seu
sentido esteja condizente ao todo constitucional, afastando quaisquer outros que não
estejam adequados a ele3. Atualmente, de acordo com o art. 28, parágrafo único, da
Lei nº 9.868/1999, o Supremo Tribunal Federal utiliza-se da Interpretação Conforme a
Constituição como uma técnica de controle de constitucionalidade.

Ocorre que, tanto na teoria4 quanto na jurisprudência do Pretório Excelso, enten-


de-se que há limites para aplicação da mencionada técnica, uma vez que somente pode
ser utilizada se não contrariar o sentido pretendido pelo legislador, ou o sentido literal do
texto normativo. Tais restrições foram inseridas no controle de constitucionalidade das
leis por meio da Representação de Inconstitucionalidade nº 1417/1987, de Relatoria do
então Ministro Moreira Alves. Esta é a jurisprudência que orienta a aplicação da Técnica
de Interpretação Conforme a Constituição em sede de jurisdição constitucional.5

2 NETTO, Menelick de Carvalho. A constituição da Europa. In. Crises e desafios da constituição, Org.: José
Adércio Leite Sampaio. Belo Horizonte: Del Rey. 2004.

3 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris. 1998.

4 Alguns juristas entendem que a Técnica de Interpretação conforme a Constituição não pode contrariar
a vontade pretendida pelo legislador na elaboração normativa. Nessa linha encontra-se o Ministro do
Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que aduz que a vontade do legislador não pode ser substituída
pela vontade do Juiz. MENDES. Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva. 2008.

5 [...] O princípio da interpretação conforme a Constituição (Verfassungskonformeauslegung) é princípio


que se situa no âmbito do controle de constitucionalidade e não apenas como regra de interpretação. A

122 Deivide Júlio Ribeiro


Ao observar estas restrições à aplicação da Técnica de Interpretação Conforme a
Constituição percebe-se que tais limites são os mesmos utilizados pela hermenêutica
jurídica, clássica no contexto dos paradigmas do Estado Liberal (Séculos XVIII e XIX)
e Estado Social (Século XX) que buscavam, respectivamente, a vontade do legislador
(voluntas legislatoris) e a vontade da lei (voluntas legis). Essa busca em torno da mens
legis e mens legislatoris tinha como intuito criar uma base argumentativa que pudesse
trazer um pouco de previsibilidade e, consequentemente, maior segurança jurídica,
para as decisões judiciais.

Ocorre que, atribuir o sentido de uma norma aos pensamentos e intenções de seu
possível criador, assim como buscar a vontade da lei sem considerar o contexto no
qual ela está inserida, incorre-se no provável erro de desconsiderar as especificidades
e pluralidade do tempo do intérprete. Em outras palavras aplicar esses critérios de
forma isolada é neutralizar o horizonte hermenêutico daquele que realiza e aplica a
interpretação.

Diante desta breve explanação a respeito dos limites jurisprudencial e doutrinário


estabelecidos para aplicação da Técnica de Interpretação Conforme a Constituição,
analisar se-á dois julgados do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle de
constitucionalidade, nos quais ambos utilizaram da mencionada técnica para aferir a
constitucionalidade das normas postas para sua apreciação.

2 OS CASOS

Inicialmente, a título de esclarecimento, é importante evidenciar que dado o


universo de decisões que o Supremo Tribunal Federal possui, a escolha das duas
decisões abaixo como paradigma desta seção justifica-se pelo fato delas evidenciarem
a ambiguidade argumentativa sustentada pela mesma Corte em um curto intervalo

aplicação desse princípio sofre, porém, restrições, uma vez que, ao declarar a inconstitucionalidade de
uma lei em tese, o STF — em suas funções de Corte Constitucional — atua como legislador negativo,
mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída
pelo Poder Legislativo. Por isso, se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a
Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode
aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, em criação de
norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo. [...] No caso, não se pode aplicar a interpretação
conforme a Constituição por não se coadunar essa com a finalidade inequivocamente colimada
pelo legislador, expressa literalmente no dispositivo em causa. BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Representação nº 1417/DF. Representante: Procurador Geral da República. Representado: Presidente
da República. Relator Ministro Moreira Alves. Brasília/DF: Disponível em:.http://www.stf.jus.br/portal/.
Acesso em: 20 jun. 2018.

TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME E OS DESAFIOS PARA SUA 123


APLICAÇÃO DE FORMA ADEQUEDA À CONSTITUIÇÃO DE 1988
de tempo, em uma mesma espécie de ação de controle de constitucionalidade, bem
como pelo rico e intenso debate que fomentaram tanto no âmbito acadêmico quanto
na prática jurídica.

Analisando a decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental


nº 153/DF, a respeito da extensão do alcance da Anistia concedida pela da Lei nº
6.683/1979, e a decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº
132/RJ, sobre o reconhecimento da união estável entre casais homossexuais, perce-
be-se que ambas se valeram da Interpretação Conforme a Constituição.

Importante frisar que não é objetivo deste capítulo esmiuçar análise o mérito das
decisões analisadas6. Primeiro, porque existem excelentes trabalhos que o fazem;
segundo, porque o recorte metodológico exigido por esta obra não permite tecer
tamanho esforço. Sendo assim, a análise dos dois julgados se restringe a demonstrar
que as limitações impostas para a aplicação da mencionada técnica não se sustentam
nos argumentos levantados pelos ministros, indo de encontro aos pressupostos
firmados pela Corte em sua jurisprudência. Dessa forma, passa-se para a análise das
mencionadas decisões.

2.1 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153

Em 21 de outubro de 2008 o Conselho Federal da Ordem dos Advogados, valen-


do-se da competência que lhe fora atribuída pela Constituição Federal de 1988, ajuizou
no Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº 153/DF, a qual teve como relator o então Ministro Eros Grau. A mencionada ação
foi proposta no sentido de pleitear Interpretação Conforme a Constituição ao §1º do
artigo 1º da Lei nº 6.683/1979, de maneira a declarar que os termos “crimes políticos e
conexos” não estendessem aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão
contra opositores políticos, durante o regime militar7.

Como já mencionado, a técnica de Interpretação Conforme a Constituição é um


mecanismo que visa tão somente “homenagear o trabalho do legislador mantendo a

6 Para uma análise mais detalhada a respeito da ADPF nº 153/DF ver: MEYER, Emílio Peluso Neder.
Responsabilização por graves violações de direitos humanos na ditadura de 1964-1985: a necessária
superação da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 153/DF pelo Direito Internacional dos
Direitos Humanos. Tese. Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais. 2012.

7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153/DF.


Arguente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Arguidos: Presidente da República e
Congresso Nacional. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília/DF. 2011. Disponível em:< http://www.stf.jus.br/
por tal/geral/verdfPaginado.asp?id=330654&t ipo=TP&descricao=ADPF2 F153> Acesso em: 23 jul 2018.

124 Deivide Júlio Ribeiro


disposição textual no ordenamento e retirando normas ou interpretações em contra-
riedade à Constituição.”8

Nesta direção, num dos primeiros argumentos para julgar improcedente o pedido
da ação, o Ministro Eros Grau afirmou que nem mesmo para reparar iniquidades o
Supremo Tribunal Federal poderia rever decisões do Legislativo. Dessa forma, se
houvesse algo a ser modificado na Lei da Anistia deveria ser realizado pelo legislador
e não pelo Judiciário.9 Verifica-se, assim, a preocupação da Corte, por meio do Relator
da ação, com a deferência ao legislador. Essa preocupação visa justamente impedir
que o Poder Judiciário venha agir como legislador positivo, usurpando competência
que não lhe fora atribuída.

Importante trazer para discussão que ao alegar que “nem mesmo para reparar
flagrantes iniquidades o Supremo pode avançar sobre a competência constitucional
do Poder Legislativo [...]”10, o ministro coloca em xeque a própria função da Corte,
que é a de reforçar as condições normativas da democracia e descumprir um dever
institucional estabelecido pela Constituição, adotando uma postura de autocontenção
contrária a outros julgados dessa Corte. Para argumentar nesse sentido, Grau parte do
pressuposto de que a Lei da Anistia foi fruto de um “acordo político”,11 o qual se tornou
texto normativo e que, por tal razão, o único órgão com competência para revê-lo seria
o Poder Legislativo.

8 MEYER, op.cit., p. 76

9 [...] No Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra
redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas.
Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a reescrever leis de anistia [...] Nem mesmo
para reparar flagrantes iniquidades o Supremo pode avançar sobre a competência constitucional do
Poder Legislativo. [...] Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem,
haverá ou não de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário. [...]. BRASIL, 2011, p. 58.

10 Ibid, 2011, p. 58.

11 No que diz respeito a esse possível acordo político para conceder uma anistia de mão dupla, tanto para
apoiadores quanto opositores do regime militar, o professor Emílio assevera que “É complicado falar
em um acordo político justamente pelo fato de não mais haver oposição política efetiva. [...] o General
Geisel, com base no AI-5, baixa o ‘pacote de abril’: governadores e um terço dos senadores eleitos
indiretamente por colégios eleitorais formados por vereadores em sua maioria da ARENA, imunidade das
Polícias Militares ao controle jurisdicional civil, criação de mais um instrumento de controle concentrado
de constitucionalidade no STF — sob provocação unipessoal do Procurador-Geral da República (nomeado
pelo Presidente da República, frise-se) — e a aprovação de uma nova Lei de Segurança Nacional em 1979.
Diante de todo este contexto, como esta sociedade negociaria algo na anistia por ela buscada?”. MEYER,
op.cit., p. 104.

TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME E OS DESAFIOS PARA SUA 125


APLICAÇÃO DE FORMA ADEQUEDA À CONSTITUIÇÃO DE 1988
Vale lembrar que na decisão a respeito da Lei nº 6.683/1979 houve questio-
namento, por parte de todos os ministros do Supremo Tribunal Federal, se a anistia
concedida por essa Lei seria fruto de acordos políticos ou imposições dos ocupantes
do poder.12 Esse possível acordo seria o sentido pretendido pelo legislador com a
promulgação da Lei, o que impediria o Supremo Tribunal Federal de contrariar essa
vontade legiferante.

Nessa linha de raciocínio, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, seguindo o


voto do Relator, no dia 29.04.2010, preso à vontade do legislador e à literalidade do
texto normativo, decidiu que a mencionada Lei é compatível com Constituição Federal
de 1988 e a Anistia por ela concedida é ampla e geral, alcançando inclusive os agentes
da repressão.

Conforme mencionado, ao se ater aos limites de aplicação da Técnica de


Interpretação Conforme a Constituição, o Supremo Tribunal Federal toma uma postura
de autocontenção, de deferência ao legislador que em outros casos não acontece13,
como se verá abaixo no julgamento da ADPF nº 132/DF.

2.2 Arguição de descumprimento de Preceito Fundamental nº 132

Em 04 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal julgou a Arguição de


Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ. A ação foi proposta pelo
Governador do Estado do Rio de Janeiro, e almejava que aos casais homossexuais
fosse aplicado o regime jurídico da união estável, haja vista que decisões judiciais lhes
negavam, no dia a dia, direitos fundamentais, tais como: liberdade, igualdade e digni-
dade humana. Para isso, como complementação do pedido principal, foi pleiteado que
ao artigo 1723 do Código Civil fosse dada interpretação conforme a Constituição, para
equiparar a união estável entre casais homossexuais ao conceito de entidade familiar.
Levando em consideração os limites jurisprudenciais estabelecidos para a aplicação da
técnica de Interpretação Conforme a Constituição, nesta decisão o Supremo Tribunal
Federal encontraria um ônus argumentativo maior para julgar procedente o pedido da
ADPF nº 132.

12 Ibid., p. 92.

13 Nesse sentido ver também: FERNANDES, Bernardo Gonçalves Alfredo. Breve abordagem crítica sobre a
questão dos Tratados Internacionais frente à Constituição e sobre a recepção da Lei de Anistia em nosso
ordenamento: uma análise reflexiva sobre decisões do Supremo Tribunal Federal permeadas pelo self
restraint ou pelo ativismo. In: Revista da Procuradoria-Geral do Município de Juiz de Fora – RPGMJF,
no.1: 25-35. Belo Horizonte: Fórum. 2011.

126 Deivide Júlio Ribeiro


Ao analisar o primeiro limite estabelecido para aplicação da mencionada técnica
(não contrariar o sentido literal do texto normativo), encontrava-se o possível entrave
inicial. O artigo 1723 do Código Civil prescreve que. “É reconhecida como entidade
familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”14.

Ocorre que o artigo 226, §3º, da Constituição, que serviu de paradigma interpre-
tativo para o supramencionado dispositivo, prescreve que “Para efeito da proteção
do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”15.

Da análise dos dois dispositivos é possível perceber que a norma comum estabe-
lecida em ambos é: a união estável entre homem e mulher é reconhecida como entidade
familiar. Nesse sentido, partindo da impossibilidade de contrariar o sentido literal do
texto normativo para a aplicação da técnica, indaga-se: como seria possível obter nessa
decisão resultado diverso se ambos os artigos possuem o mesmo núcleo normativo?

O segundo critério que deve ser atendido para aplicação da interpretação conforme
a Constituição consiste em não contrariar o sentido pretendido pelo legislador. Para
verificar qual era a “vontade do Constituinte” ao editar o artigo 226, §3º, da Constituição,
dada a impossibilidade de reconstrução psíquica e histórica de maneira perfeita, faz
se necessário recorrer a documentos que permitem fazer uma reconstrução mais
aproximada da realidade à época. Para isso, valer-nos-emos dos Anais da Constituinte
de 1987/1988.

A possibilidade da existência da união estável, naquele momento, consistia num


avanço no que diz respeito à reconstrução do conceito de família que, até então, era
enraizado numa tradição patriarcal e somente se constituía por meio do matrimônio.
Sendo assim, parte da sociedade civil interessada no tema se mobilizou para fomentar
a discussão, que ressoou nos debates Constituinte, conforme se pode verificar no
excerto abaixo:

SR. CONSTITUINTE GASTONE RIGHI:–Finalmente a emenda do


constituinte Roberto Augusto. É o art. 225 (sic), §3º. Este parágrafo

14 BRASIL. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:<http://www.
planal to.gov.br/ccivil_03/leis/L9868.htm.>. Acesso em: 16 jul. 2018.

15 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 5 de outubro de 1988. Disponível


em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 20 jun. 2018.

TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME E OS DESAFIOS PARA SUA 127


APLICAÇÃO DE FORMA ADEQUEDA À CONSTITUIÇÃO DE 1988
prevê: ‘Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar
sua conversão em casamento’ Tem-se prestado a amplos comentários
jocosos, seja pela imprensa, seja pela televisão, com manifestação
inclusive de grupos gays através do País, porque com a ausência do artigo
poder-se-ia estar entendendo que a união poderia ser feita, inclusive, entre
pessoas do mesmo sexo. Isto foi divulgado, por noticiário de televisão,
no show do Fantástico, nas revistas e jornais. O bispo Roberto Augusto,
autor deste parágrafo, teve a preocupação de deixar bem definido, e
pede que se coloque no §3º dois artigos: ‘Para efeito de proteção do
Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’.
Claro que nunca foi outro o desiderato desta Assembleia, mas, para
se evitar toda e qualquer malévola interpretação deste austero texto
constitucional, recomendo a V. Exa. que me permitam aprovar pelo menos
uma emenda. O SR. CONSTITUINTE ROBERTO FREIRE:–Isso é coação
moral irresistível. O SR. PRESIDENTE (ULYSSES GUIMARÃES):–Concedo a
palavra ao relator. O SR. CONSTITUINTE GERSON PERES:–A Inglaterra já
casa homem com homem há muito tempo. O SR. RELATOR (BERNARDO
CABRAL):–Sr. Presidente, estou de acordo. O SR. PRESIDENTE (ULYSSES
GUIMARÃES):–Todos os que estiverem de acordo permaneçam como
estão. (Pausa). Aprovada (Palmas).16

Como visto, nos debates que precederam a edição do artigo 226, §3º, da
Constituição, a “vontade do Constituinte” era que apenas a união estável entre homem
e mulher fosse reconhecida como entidade familiar.

Partindo dessa análise, é possível crer que o Supremo Tribunal Federal ao aplicar a
técnica de Interpretação Conforme a Constituição, respeitando os limites estabelecidos
por sua jurisprudência, julgaria improcedente os pedidos da ADPF nº 132, mas não
foi o que aconteceu.

Nessa decisão, a mencionada Corte reconheceu a união estável entre casais


do mesmo sexo, na contramão do sentido literal do texto normativo e a vontade do
legislador–haja vista que, nos Anais da Constituinte, a intenção dos legisladores

16 BRASIL. Anais da Assembleia Constituinte. Disponível em:< https://www.senado.leg.br/publicacoes/


anais /asp/CT_Abertura.asp>. Acesso em: 18 jul. 2018.

128 Deivide Júlio Ribeiro


era restringir a união estável a homem e mulher–mesmo esse direito não estando
expresso no texto normativo da Constituição. A preocupação dos ministros, em seus
fundamentos, era demonstrar que não se tratava de inovação ou criação, mas sim de
efetivar um direito que se encontrava inserto na estrutura da Constituição e que era
negligenciado pelos Poderes Públicos17.

Como demonstrado, as duas decisões de mesma natureza jurídica em sede de


controle de constitucionalidade se valeram da técnica de interpretação conforme a
Constituição, inclusive dos limites impostos pela jurisprudência para sua aplicação, mas
ambas chegaram a resultados distintos. Num caso, o respeito à vontade do legislador
e ao sentido literal do texto normativo foram respeitados para negar provimento; no
outro caso, os mesmo limites foram ignorados para dar provimento à ação. Diante desta
possível contrariedade constatada, passa-se a analisar uma forma de interpretação
que minimize essa contrariedade, de forma que leve as decisões convergirem com a
Constituição.

3 UMA CONSTRUÇÃO HERMENÊUTICA ADEQUADA À CONSTITUIÇÃO

3.1 Considerações sobre a Hermenêutica Filosófica

Um dos movimentos filosóficos que teve grande importância para o direito, sem
sombra de dúvidas, foi o giro hermenêutico-pragmático, sobretudo porque, a partir desse
momento, a linguagem passa a ser vista como aquilo que possibilita a compreensão
do ser no mundo, substituindo a relação sujeito/objeto por uma relação pautada na
intersubjetividade sujeito/objeto/sujeito. Nessa perspectiva, a linguagem passa a ser
elemento de mediação das interações sociais18.

Em sua obra Investigações Filosóficas, Wittgenstein, contrariando a tradição ilumi-


nista, chega à conclusão de que é impossível obter um conceito essencial e objetivo a
respeito de determinado objeto, porque o sentido atribuído a ele pode variar de acordo
com o contexto no qual está inserido. Para elucidar esse argumento, o autor se vale

17 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 132/RJ.


Arguente: Governador do Estado do Rio de Janeiro. Arguidos: Governador do Estado do Rio de Janeiro
Tribunais de Justiça dos Estados Assembleia Legislativa do Estado Do Rio De Janeiro. Relator: Min. Ayres
Britto. Brasília, 05 de maio de 2011. Disponível em:< http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf
/anexo/ adi427 7pdf.> Acesso em: 15 jul.2018.

18 FERNANDES, Bernardo Gonçalves Alfredo; PEDRON, Flávio Quinaud. Poder judiciário e(m) crise: reflexões
de teoria da Constituição e teoria geral do processo sobre o acesso à Justiça e as recentes reformas do
poder judiciário à luz de: Ronald Dworkin, Klaus Günther e Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
2008.

TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME E OS DESAFIOS PARA SUA 129


APLICAÇÃO DE FORMA ADEQUEDA À CONSTITUIÇÃO DE 1988
do exemplo da peça de xadrez. Para ele, o cavalo fora da dinâmica do jogo de xadrez
não é elemento constitutivo deste. O que irá determiná-lo como uma importante peça
nessa atividade será, justamente, sua interação com os demais elementos do jogo.19

Nesse sentido, não é a estrutura de um objeto ou termo linguístico que define o


seu significado, mas sim toda uma dinâmica na qual ele está inserido e que o autor
denomina de “jogos de linguagem”. Assim, a linguagem deixa de ser apenas mero instru-
mento para transmissão de conhecimento e também passa a constituí-lo. Trazendo essa
perspectiva para a teoria do direito, o sentido da norma somente pode ser construído
pelos coparticipantes de um mesmo jogo de linguagem.

Em que pese a imensurável contribuição de Wittgenstein para hermenêutica, sua


perspectiva ainda assim padece de um vício, pois os jogos de linguagem desenvol-
vem-se de forma descritiva. Em outros termos, o sujeito que observa os jogos está
localizado em uma posição “privilegiada”, externa a toda essa dinâmica.20 A partir disso,
surge um questionamento: como um suposto observador externo pode compreender
o significado da coisa em si, sem que de alguma forma ele participe desta dinâmica?

Gadamer, preocupado com entendimento mútuo entre autor e intérprete, trará


a linguagem e o diálogo com peça fundamental dessa intersubjetividade. Sob essa
perspectiva, respondendo ao questionamento apresentado, o autor afirma que o obser-
vador é alguém inserido em determinado contexto, tradição, e por isso permeado por
pré-compreensões, razão pela qual tona-se impossível esse observador determinar o
sentido de algo sem que, de alguma forma, participe da dinâmica dos observados21.

Assim, toda construção de sentido ocorre dentro de uma determinada tradição,


na qual o intérprete e o texto a ser interpretado se situam em horizontes distintos. Se
assim o é, como resolver o mal-entendido entre as opiniões prévias do intérprete e do
autor em relação ao objeto? O ponto inicial para resposta a esta indagação encontra-se
delimitado pela coisa interpretada.

Segundo Gadamer, aquele que se propõe a interpretar algo deve ter em mente a
possibilidade de aprender com esse algo. De acordo com autor, esse processo se inicia
por meio de opiniões prévias em relação a esse objeto a ser interpretado, de forma

19 WITTGENSTEIN, Ludwing. Investigações Filosóficas. São Paulo: Abril Cultural. 1980.

20 WITTGENSTEIN, 1980, p. 186.

21 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.


Petrópolis: Vozes. 2003.

130 Deivide Júlio Ribeiro


a confrontar as verdades apresentadas por ele com os pré-conceitos do intérprete —
importante evidenciar que o não reconhecimento desses pré-conceitos impede que a
comunicação se desenvolva22.

Esse momento de embate entre as pré-compreensões do intérprete — sua cons-


ciência histórica — e a mensagem apresentada pelo texto, se dá de forma circular, numa
espécie de círculo hermenêutico23. Nesse, os pré-conceitos daquele que se propõe a
interpretar se entrelaçam ao mundo apresentado pelo texto a ser interpretado, passando
a dividir um mesmo espaço. Não há apropriação de um pelo outro nesse lugar comum,
mas sim um diálogo, seguido de perguntas e respostas que se fundem por meio da
fusão de horizontes, emergindo, assim, a compreensão24.

A compreensão em Gadamer, para além de clarificar os sentidos obscuros dos


textos, com pretendia a hermenêutica clássica, consiste num processo de constante
reconstrução à luz do presente do interprete. Sendo assim, o ato de compreender
implicará, necessariamente, num ato de aplicação.25

Nesse sentido, uma vez que o círculo hermenêutico viabiliza a fusão de horizontes,
permitindo a reconstrução de um sentido à situação presente do intérprete, é preciso
levar em conta, nesse momento, que o círculo se aperfeiçoa levando à compreensão.
Denominando esse momento de concepção prévia da perfeição, o filósofo vai dizer que
determinado objeto a ser interpretado somente se torna passível de compreensão se
se parte do pressuposto de que ele possui uma unidade de sentido perfeita. Quando
isso não ocorrer, existirá sempre a necessidade de o círculo se movimentar para que
possa buscá-la.26

O professor Emílio Peluso, realizando uma interpretação desta parte, afirma


que durante muito tempo, dadas as condições contextuais, ele se encontrava sob a
mencionada unidade de sentido perfeita, à luz de uma parte da sociedade e instituições

22 GADAMER, 2003, p. 362.

23 GADAMER, 2003, p. 439-440.

24 Ibid. p. 445.

25 [...] na compreensão, sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido à situação
atual do intérprete. Nesse sentido, nos vemos obrigados a dar um passo mais além da hermenêutica
romântica, considerando como processo unitário não somente a compreensão e interpretação, mas
também a aplicação Ibid. p. 446.

26 Ibid. p.389-390.

TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME E OS DESAFIOS PARA SUA 131


APLICAÇÃO DE FORMA ADEQUEDA À CONSTITUIÇÃO DE 1988
constitucionais brasileiras. Isso, contudo, não impede que essa concepção prévia de
perfeição possa ser revista, pois, como demonstrado, cada época compreende a seu
modo o texto transmitido27.

Nesse sentido, sob a perspectiva do giro-hermenêutico-pragmático, sobretudo a


partir de Wittgenstein e Gadamer, verifica-se a falibilidade do conhecimento, demons-
trando a impossibilidade de se ter acesso às coisas de forma neutra, bem como
inviabilidade de buscar suas essências conceituais, tendo em vista que o acesso ao
conhecimento se dará de forma mediada pela linguagem no espaço e no tempo, ou
seja, sempre acontecerá sob um olhar socialmente condicionado. Com o giro linguís-
tico percebemos que a linguagem, muito mais que um instrumento para angariar
conhecimento, é a manifestação constitutiva existencial do homem, seja ela técnica,
de tradição ou artística.

Uma vez apresentada essa concepção da hermenêutica filosófica a respeito da


construção e limitação do sentido ao tempo de seu intérprete, bem como a necessária
compreensão da falibilidade do conhecimento, passa-se a aplicá-la de forma comple-
mentar à teoria da decisão. Para isso, faz-se a seguir uma análise da interpretação
construtiva proposta por Ronald Dworkin.

3.2 Teoria da Decisão e a Interpretação Construtiva

Dworkin concebe o direito como um conceito interpretativo que deve ser analisado
de forma construtiva, o que implica dizer que ele deve ser concebido como a melhor
justificativa possível das práticas jurídicas.28

O autor norte-americano se opõe às denominadas teorias semânticas do direito,


as quais acreditam na existência de critérios objetivos para determinar o sentido de
um texto normativo. Sendo o direito uma das formas de expressão da linguagem,
estabelecer critérios neutros para sua efetivação é ignorar que seu intérprete faz parte
das práticas jurídicas e isso seria incoerente com sua pretensão de correção. Diante
desse impasse, Dworkin apresenta a sua Teoria da Integridade, que consiste na busca
de uma interpretação construtiva e coerente das práticas sociais, consubstanciada em
princípios político-jurídicos, constituídos pela comunidade de princípios e incorporados
na Constituição.

27 MEYER, op.cit. p. 61.

28 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes. 1998.

132 Deivide Júlio Ribeiro


Nessa comunidade as decisões estatais somente são tomadas como legítimas
se tratam a todos com igual respeito e consideração. Essa seria a virtude soberana, ou
moralidade política. Por tal motivo, todos os seus membros são responsáveis diretos
na busca da concretização da integridade.

Ao aplicar a sua teoria à jurisdição, Dworkin cria a metáfora de um juiz com poderes
sobre-humanos para demonstrar qual a postura hermenêutica se espera de um juiz
real. A esse magistrado ideal, Dworkin denomina de juiz Hércules. Portanto, Hércules
tem a responsabilidade política de interpretar a história institucional, com seus erros
e acertos, de modo a reconstruí-la para proferir decisões que justifiquem as práticas
da comunidade na qual está inserido.29

Assumindo-se como Hércules, cada juiz desta comunidade avoca o papel de um


romancista que escreve um capítulo de uma obra coletiva, como num romance escrito
em cadeia, e que tem a responsabilidade de construir, da melhor maneira possível, o
romance em elaboração, cuidando para que o resultado revele a essência de um único
autor.30

Bem, se assim o é, por que ainda se busca o sentido da norma a partir da vontade
dos legisladores ou professando fidelidade ao sentido literal do texto normativo? Como
já demonstrado, o texto é o ponto de partida de extrema relevância para aquele que se
propõe a interpretá-lo. Entretanto, tentar lhe dar sentido a qualquer custo incorre-se
em se perder a ligação do sentido encontrado e a coerência buscada. Dessa forma,
ainda que o intérprete se mantenha fiel ao texto, a interpretação não se exaure. Vale
lembrar que limitar a interpretação constitucional à vontade do legislador e ao sentido
literal do texto normativo é abrir mão da integridade e toda coerência que ela exige.

Para resolver essa questão, Dworkin afirma que a Constituição é criada a partir de
princípios morais abstratos que embasam os critérios de correção que justificam um
direito. Para demonstrar a necessidade de se interpretar o texto de maneira construtiva,
ao invés de se apegar apenas a critérios semânticos orientadores, o autor elucida o
exemplo a seguir: determinado aeroporto, por meio de normas internas de segurança,

29 O direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em
que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual,
os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles
fizeram [...] em uma história geral digna de consta aqui, uma história que traz consigo uma afirmação
complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente
atraentes para oferecer um futuro honrado. DWORKIN, op. cit. p. 274

30 DWORKIN, op. cit. p. 274.

TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME E OS DESAFIOS PARA SUA 133


APLICAÇÃO DE FORMA ADEQUEDA À CONSTITUIÇÃO DE 1988
proibiu que seus passageiros portassem em suas bagagens de mão: facas, armas
de fogo e explosivos. Os funcionários deste aeroporto, valendo-se da interpretação,
chegam à conclusão de que latas de gás lacrimogêneo devem, também, ser proibidas,
pois, no mesmo sentido das armas constates da lista de proibição, o gás lacrimogêneo
pode ser usado por criminosos para cometer, por exemplo, o crime de terrorismo31.

Diante deste caso, resta a indagação: uma vez que a lata de gás lacrimogênio não
consta expressamente da lista de proibição exibida pelo aeroporto, os funcionários do
aeroporto teriam autoridade para acrescentar esta arma à lista?

Se se parte apenas da literalidade do texto normativo, não resta dúvida de que o


gás lacrimogêneo não se enquadraria na lista das armas enumeradas. Mas se tomarmos
como pressuposto uma interpretação construtiva e coerente com o propósito do aero-
porto garantir a segurança, a integridade física e psíquica de seus passageiros, os
funcionários estão corretos ao englobar o gás lacrimogênio às demais categorias de
armas proibidas.

Ser fiel ao texto constitucional, nos moldes da teoria da integridade, não se resume
apenas a respeitar os limites semânticos formais, mas sim verificar qual o sentido que
ele possui no momento que o intérprete se propõe a efetivá-lo.

Se, por um lado, a fidelidade ao texto normativo, por si só, não é capaz de oferecer
um sentido coerente com as práticas contemporâneas do intérprete, porque então não
se valer da vontade do legislador e suas expectativas a respeito de como os dispositivos
normativos por eles criados seriam aplicados? Essa linha teórica que acredita que a
Constituição deve ser interpretada de acordo com a vontade dos pais fundadores, ou
Constituintes, é denominada de originalismo.

Assim como para iniciar uma resposta de o porquê o respeito exacerbado à


literalidade do texto normativo pode restringir o sentido que ele pode alcançar, Dworkin,
para começar a construir argumentos contrários à busca do sentido da norma a partir
da vontade do Constituinte, apresenta as seguintes situações:

Imagine que você é proprietário de uma grande empresa que tem uma
vaga em um de seus departamentos. Você chama sua gerente e lhe
diz: “Por favor, preencha a vaga para mim com o melhor candidato que
se apresentar”. Aliás, você acrescenta, sem insinuar nada com uma

31 DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da constituição norte americana. Trad. Marcelo
Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes. 2006.

134 Deivide Júlio Ribeiro


piscadela, “saiba que meu filho é um dos candidatos ao cargo”. Suponha
que você está sinceramente convencido de que seu filho é o candidato
mais qualificado. Suponha também que você não teria dado essas
instruções à sua gerente se não estivesse convencido de que o fato
dele ser o melhor candidato era óbvio para todos, inclusive para ela.
Por último, suponha que sua gerente saiba de tudo isso: ela sabe, que
se a escolha fosse sua, você indicaria conscientemente seu filho como
candidato mais bem qualificado. Não obstante, você não lhe disse para
contratar seu filho. Disse-lhe apenas para contratar o melhor candidato.
E se, do ponto de vista dela, outra pessoa, e não seu filho, fosse o melhor
candidato, então ela estaria obedecendo às suas instruções ao contratar
o outro candidato, e desobedecendo a suas instruções ao contratar o
candidato que você pretendia e previa que conseguisse o emprego. Você
poderia — espero que não o fizesse — demiti-la se ela obedecesse às
suas instruções desse modo. Mas você não poderia negar que ela fora
leal às suas instruções, e que não o teria sido se tivesse acatado a sua
opinião sobre o melhor candidato, e não a opinião dela.32

Levar em consideração a vontade de alguém para interpretar uma ordem ou até


mesmo um texto pode gerar um grande problema no seu momento de efetivação, pois
está em jogo o modo como cada intérprete entende essa ordem.

Trazendo essa argumentação para a seara da teoria da decisão, Dowkin apresenta


o exemplo do caso Brown vs. Board of Education. Em síntese, no início da década 1950
o senhor Brown tentou matricular sua filha, Linda Brow, em uma escola pública para
pessoas brancas, mas a matrícula da criança foi negada. O argumento apresentado
pela escola foi fundamentado na famosa decisão Plessy vs. Ferguson, de 1892, na qual
a Suprema Corte dos Estados Unidos indeferiu o pedido de um negro que reivindicava
o direito de ter assento em vagões de trem onde se encontravam pessoas brancas.
Essa sentença disse que negros e brancos eram iguais, mas deveriam ficar separados.
É nesse contexto que surge a frase segregacionista: “separados, mas iguais”.

Não satisfeito, o senhor Brown ingressou com uma ação que teve seu desfecho
em 1954, na Suprema Corte, cujo Presidente à época era Earl Warren. Por unanimidade,
a Corte norte-americana decidiu que a política do “separados, mas iguais” feria a
Décima Quarta Emenda da Constituição, pois a segregação racial nas escolas pública

32 DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes. 2010.

TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME E OS DESAFIOS PARA SUA 135


APLICAÇÃO DE FORMA ADEQUEDA À CONSTITUIÇÃO DE 1988
não permitia que as crianças negras tivessem as mesmas oportunidades das crianças
brancas. Ainda que a decisão tenha ficado restrita a acabar com segregação racial
apenas nas escolas pública, ela foi um ponto de partida para que culminasse no fim da
segregação racial nos Estados Unidos, ao menos em relação às instituições.

A partir desse caso, Dworkin chama a atenção para o equívoco que a vontade
do legislador pode causar no momento de aplicação. O autor lembra que os congres-
sistas que propuseram a Décima Quarta emenda não entendiam que a segregação era
inconstitucional, pois o próprio redator do projeto que precedeu a Emenda afirmou para
o Congresso que “os direitos civis não significam que todas as crianças tenham que
frequentar a mesma escola”. Dworkin também lembra que esse “mesmo Congresso deu
continuidade à segregação racial nas escolas do Distrito de Colúmbia, que na época
era administrado pelo Congresso Nacional.”33

A integridade constitucional em sua plenitude pode exigir um resultado que não


se poderia conseguir por intermédio da “melhor interpretação do texto constitucional,
compreendido este como algo apartado da história de sua vigência, e que talvez
chegasse, inclusive, a contradizer tal interpretação.”34

Nessa leitura apresentada, a Teoria da Integridade do Direito converge, assim, aos


ganhos oriundos do giro hermenêutico-pragmático. A mencionada teoria entende que
a interpretação constitucional adequada leva em consideração tanto o texto quanto a
prática do passado para a resolução de problemas constitucionais contemporâneos.
Para isso, juristas e magistrados que se deparam com tais problemas devem valer-se
de uma interpretação construtiva, com fundamentos em princípios convincentes e
coerentes da estrutura constitucional como um todo, bem como nossa história sobre
pálio da Constituição. Em outros termos, a intepretação adequada deve buscar a
integridade constitucional. Com isso, Dworkin entende que em determinadas ocasiões
a integridade constitucional pode “exigir um resultado que não se poderia justificar
por meio da melhor interpretação do texto normativo, compreendido este como algo
apartado de sua história de vigência, e que talvez chegasse, inclusive, a contradizer
tal interpretação.”35

CONSIDERAÇÕES FINAIS

33 DWORKIN, 2006, p. 427.

34 DWORKIN, 2010, p. 168.

35 Ibid., p. 169.

136 Deivide Júlio Ribeiro


Não resta dúvida de que a Técnica de Interpretação conforme é um importante
instrumento de atualização do texto constitucional ao tempo, espaços e exigências
presentes ao tempo do interprete. Entretanto, limitar sua aplicação a critérios exclusivos
da hermenêutica jurídica clássica pode-se incorrer erros interpretativos que prejudiquem
a concretização da Constituição. Como visto, além da incoerência argumentativa dos
ministros, que se contradizem em relação aos pressupostos por eles antes firmados,
a interpretação constitucional presa ao formalismo textual, com abertura apenas para
a intenção do legislador, não é o bastante para uma compreensão hermeneuticamente
adequada à Constituição, uma vez que limita a norma ao seu texto e as intenções preten-
didas, olvidando-se do horizonte hermenêutico daquele que se propõe a interpretar.

Não se está aqui dizendo que a utilização destes critérios seja errada, muito pelo
contrário. O que se chama atenção é para o fato de que, dada a complexidade da socie-
dade, eles, por si só, não são capazes de minimizar estes equívocos. Isso porque, como
demonstrado acima, ainda que se seja fiel ao texto constitucional, a sua interpretação
não se exaure apenas neste. Nesse sentido, ser fiel ao texto constitucional, não se
restringe a respeitar apenas os limites semânticos formais, mas também analisar qual
o sentido que ele possui no momento que o interprete se propõe a fazê-lo.

Uma jurisdição que leve os direitos fundamentais a sério deve-se amparar em uma
leitura constitucional democraticamente adequada, que toma como ponto de partida
tanto o texto quanto as práticas constitucionais do passado, mas sem abdicar-se do
contexto no qual a compreensão do texto normativo se insere, de modo a tornar o
direito tão íntegro quanto possível.

Limitar a Técnica da Interpretação Conforme a Constituição às finalidades preten-


didas pelos legisladores e à literalidade dos direitos expressos no texto normativo é
ignorar os ganhos advindos do giro linguístico, relativizar o caráter de universalidade
dos direitos, transformando-os em instrumento de conveniência, o que acaba por criar
um déficit democrático nas decisões do Supremo Tribunal Federal.

Essa prática interpretativa e de decisão não oferece um referencial seguro, porque


ao invés de o direito, concebido como um conjunto coerente de regras e princípios,
interpretado construtivamente, dizer como se deve agir, fica-se à mercê da pretensa
sensibilidade do magistrado que, para resolução do caso, recorre aos parâmetros
metodológicos da hermenêutica jurídica clássica, que buscavam, em última instância,
a vontade do legislador ou a vontade da lei. Tais parâmetros não são suficientes para
atender as exigências de uma sociedade marcada pela dinâmica, complexidade e

TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME E OS DESAFIOS PARA SUA 137


APLICAÇÃO DE FORMA ADEQUEDA À CONSTITUIÇÃO DE 1988
pluralismo. A integridade exigida pela Constituição vai muito além da melhor inter-
pretação de seu texto, se esse for compreendido como algo apartado da história de
sua vigência.

Nesses 30 anos da promulgação da Constituição de 1988, percebe-se o grande


desafio que a atividade jurisdicional enfrentou e ainda enfrenta no que diz respeito
à hermenêutica constitucional. Não obstante, da mesma forma que a sociedade é
resultado de uma permanente dinâmica, a atividade jurisdicional deve se ater a este
fato, como forma de auxiliar na manutenção da força normativa da Carta Magna.
Para isso, acredita-se que o giro linguístico e a teoria da integridade são exemplos de
paradigmas que podem auxiliar a aplicação da Técnica de Interpretação conforme a
Constituição de maneira hermenêutica e democraticamente adequada a Constituição.

Essas são algumas considerações inicias a respeito dos pressupostos para


aplicação da Técnica de Interpretação Conforme no controle de constitucionalidade
brasileiro, de modo a fomentar o debate em terno deste tema, para que possa contribuir
para o aperfeiçoamento da jurisdição constitucional.

Referências
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Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9868.htm.>. Acesso em:
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de 1988. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
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BRASIL. Lei 9868 de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento
da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade

138 Deivide Júlio Ribeiro


perante o Supremo Tribunal Federal. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/
ccivil_0 3/leis/L9868. ht m>. Acesso em: 10 jul. 2018
BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:<http://www.planalto.
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Brasil. Arguidos: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Luiz
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WITTGENSTEIN, Ludwing. Investigações Filosóficas. São Paulo: Abril Cultural. 1980.

TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME E OS DESAFIOS PARA SUA 139


APLICAÇÃO DE FORMA ADEQUEDA À CONSTITUIÇÃO DE 1988
140 Deivide Júlio Ribeiro
AGROTÓXICO: ANÁLISE QUANTO À
NECESSIDADE DE MUDANÇA NA LEI DE
AGROTÓXICO DE 1989 E OS DESAFIOS
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Larissa Milkiewicz1
Mariana Gmach Philippi2

Resumo
A Lei Federal de Agrotóxico é datada de 1989, tendo sido sancionada
um ano após a promulgação da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, e têm sido examinados, sobretudo em 2018, projetos de
leis para sua alteração. Tendo em conta que a economia do Brasil possui
no agronegócio um de seus pilares, e que o desenvolvimento econômico
deve ser perseguido para o crescimento do país de modo que os danos
ambientais sejam minimizados, busca-se avaliar a pertinência e necessi-
dade de eventual alteração à Lei de Agrotóxico de 1989. Para atingir tal
propósito, tem-se como base os termos expostos, em especial, no capítulo
VI da Constituição Federal, que disciplina o direito fundamental ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado. Para tanto, é empregada a técnica
de levantamento bibliográfico, em especial por meio de fontes primárias de
informação, como livros, artigos científicos, teses e dissertações, e também
o método de pesquisa indutiva. Chegou-se à conclusão de que alteração na

1 Mestranda (bolsista CAPES) em Direito Socioambiental e Sustentabilidade pela Pontifícia Universidade


Católica do Paraná. Coordenadora com o prof. Dr. Vladimir Passos de Freitas e coautora das obras
“FONTES DE ENERGIA & MEIO AMBIENTE” (Curitiba-PR, Juruá, 2017) e “DIREITO AMBIENTAL Tecnologias
& Impactos Econômicos” (Curitiba-PR, Juruá, 2018). Advogada atuante em Curitiba/PR. E-mail: larissa@
pmsustentavel.adv.br

2 Mestranda em Direito Socioambiental e Sustentabilidade pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.


Advogada militante em Direito Ambiental. Curitiba/PR. E-mail: mariana@pmsustentavel.adv.br.
MILKIEWICZ, Larissa; PHILIPPI, Mariana Gmach. Agrotóxico análise quanto à necessidade de mudança na lei de agrotóxico de 1989 e
os desafios da Constituição Federal de 1988. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas
Azevedo; Duarte, Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 141-160.
Disponível em: https://doi.org/10.32445/97885671340937
Lei de Agrotóxico não é a alternativa imprescindível, podendo, em suma,
serem adotadas, por exemplo, políticas públicas para evolução do meio
ambiente cultural brasileiro.

INTRODUÇÃO
Agrotóxico é um tema cuja pertinência percorre o viés social, econômico e
ambiental, em especial pela característica econômica que o Brasil apresenta, tendo
como um de seus alicerces o agronegócio.

Os efeitos negativos à saúde humana e ao meio ambiente em razão do uso


excessivo são aferidos pela comunidade científica, conforme apontado no Relatório
da Organização das Nações Unidas de 2017, elaborado por especialistas do Conselho
dos Direitos Humanos, em 24 de janeiro de 2017, no qual foram apontados os impactos
nos direitos humanos em razão do uso de agrotóxicos considerados perigosos, mas
que ainda assim são empregados em escala global na agricultura.3

Célia Silva e Elisabeth Francisconi justificam que a agricultura utiliza agrotóxicos


por três principais objetivos: a) maior produtividade; b) produção em alta qualidade; e
c) redução dos custos de mão-de-obra4. No entanto, verifica-se que o uso demasiado de
agrotóxico resulta em problemas para a saúde dos brasileiros, conforme demostrado
pelo mapa de intoxicação extraído da pesquisa realizada com dados de 2007 a 2014,
por Larissa Mies Bombardi, da Universidade de São Paulo (USP).5

Vale destacar que, no ordenamento jurídico, o tema agrotóxico se encontra disci-


plinado na Lei nº 7.802/1989, com sua nova redação atribuída pela Lei nº 9.974/2000,
sendo esta a norma vigente na esfera federal que versa sobre todas as etapas neces-
sárias para disponibilizar o agrotóxico para o consumo final, inclusive sobre as regras
de pesquisa até a inspeção da utilização do produto químico e o recolhimento de

3 UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS. Report of the Special Rapporteur on the right to food. Office of
the High Commissioner for Human Rights. Disponível em: <http://ap.ohchr.org/documents/dpage_e.
aspx?si=A/HRC/34/48>. Acesso em: 18 out. 2017.

4 SILVA, Célia Maria Maganhotto de Souza; FAY, Elisabeth Francisconi. Agrotóxico & Ambiente. Embrapa
Informações Tecnologia, Brasilia, 2004, p. 18.

5 CORTEZ, Glauco. Pesquisadora da USP monta mapa da contaminação por agrotóxico no Brasil. Disponível
em: <http://cartacampinas.com.br/2016/07/pesquisadora-da-usp-monta-mapa-da-contaminacao-por-
agrotoxico-no-brasil/>. Acesso em: 24 set. 2017.

142 Larissa Milkiewicz


Mariana Gmach Philippi
embalagens. No entanto, no cenário atual do Brasil, há projetos com o propósito de
alterar a referida Lei Federal de 1989.

Em 2018, acirraram-se as discussões na Câmara dos Deputados em busca da


aprovação de alterações na Lei Federal de Agrotóxico de 1989, sendo que, em suma,
“pode sofrer mudanças nos critérios de aprovação, na análise de riscos e até no nome
que será dado aos produtos”.6

Com base nas informações apresentadas, demostrou-se, brevemente, a relevância


jurídica deste trabalho científico. A importância temática permeia o Direito, bem como
outras áreas acadêmicas, como, por exemplo, a Economia e a Sociologia. Em outras
palavras, os apontamentos sobre a Lei de Agrotóxico de 1989 e a reflexão sobre a
possibilidade de alteração normativa guarda a sua relevância acadêmica e social.

Por isso, busca-se, no limite deste trabalho acadêmico, responder ao seguinte


questionamento: há necessidade de alterar a Lei de Agrotóxico de 1989 com o propósito
de atender ao artigo 255 da Constituição Federal de 1988? Para tanto, vale-se da
metodologia de pesquisa de revisão bibliográfica para apresentar nas considerações
finais a resposta ao questionamento proposto.

No trabalho é discorrido, primeiramente, sobre o contexto histórico da Lei de


Agrotóxico de 1989. Posteriormente, é realizada a análise do artigo 225 da Constituição
Federal da República de 1988, sob a perspectiva do Agrotóxico. Por fim e não menos
importante, apresentam-se aspectos relevantes sobre a Lei de Agrotóxico de 1989,
e reflexões sobre a necessidade da alteração normativa, a fim de corroborar com a
questão proposta neste trabalho e com as considerações finais.

1. CONTEXTO HISTÓRICO DA LEI DE AGROTÓXICO DE 1989


O teórico da independência do Brasil e estudioso também sobre agricultura a partir
do viés preservacionistas dos recursos naturais, José Bonifácio de Andrade e Silva, já
no século XIX demonstrava a sua preocupação com a necessidade de implementação
de técnicas de agricultura que não agredissem demasiadamente o meio ambiente,

6 JORNAL O GLOBO. Projeto de lei quer mudar legislação dos agrotóxicos no Brasil. Publicado em
20/06/2018. Disponível em: < https://g1.globo.com/natureza/noticia/projeto-de-lei-quer-mudar-
legislacao-dos-agrotoxicos-no-brasil-entenda.ghtml>. Acesso em: 02 ago. 2018.

AGROTÓXICO 143
sem deixar de lado o desenvolvimento econômico.7 Isso demostra que o Brasil, país
promissor no agronegócio, tinha nele seu precursor da defesa do meio ambiente e da
saúde humana, sem acometer o desenvolvimento econômico do país.

Em 1934 foi publicado o Decreto nº 24.114, primeira regulamentação no país


acerca do tema agrotóxico. Nesse casso, o Decreto dispunha sobre a defesa sanitária
vegetal, e sobre os procedimentos a serem seguidos pelas empresas com o propósito
de obter o registro e a licença para a comercialização de apenas inseticidas e fungicidas
no país. No entanto, considerou-se desatualizado à época, haja vista que foi promulgado
antes mesmo do lançamento mundial do agrotóxico organossintético (difundido em
meados do ano de 1939). Destaca-se que o procedimento para a obtenção do registro
de agrotóxico era extremamente simples (art. 53 do Decreto), sem critérios em relação
à avaliação toxicológica do produto químico, no entanto, o aspecto positivo do registro
se refere ao prazo de validade do registro, que era de 5 anos (art. 53, §2º).8

Historicamente, constata-se que a primeira política nacional em favor do agrotó-


xico é o Sistema Nacional de Crédito Rural, implementado no ano de 1965, época na qual
o país vivenciava a Ditadura Militar (1964-1985). Os objetivos econômicos do regime
militar direcionavam-se para o propósito de, em síntese, fomentar o desenvolvimento
do país, controlar a inflação, incentivar as exportações, diminuir as diferenças regionais,
atrair capitais estrangeiros por intermédio da oferta de bons lucros e da estabilidade
política.9

No Brasil, os agrotóxicos passaram a ser produzidos no território nacional no ano


de 1950, quando seis fábricas foram instaladas, dentre elas uma pertencente à empresa
Bayer, em Belfort Roxo, no estado do Rio de Janeiro, correspondendo, à época, a uma
das maiores fábricas de agrotóxico do continente. Em 1965, quatro novas fábricas foram
instaladas, e outras seis em 1973, o que totalizou dezesseis fábricas em operação no

7 MORAES, Maurecir Guimarães de. O pensamento ambiental em José Bonifácio de Andrada e Silva.
VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.16, n.2, p. 129-142, maio/ago. 2014.

8 BRASIL. Decreto nº 24.114 de 12 de abril de 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/


decreto/1930-1949/D24114.htm>. Acesso em: 02 mai. 2018.

9 ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História. História Geral e História do Brasil. 7. ed.
São Paulo: Editora Ática, 1997, p. 324.

144 Larissa Milkiewicz


Mariana Gmach Philippi
país até o lançamento do Programa Nacional de Defensivos Agrícola (PNDA), as quais
produziam o montante de 18 agrotóxicos com princípios ativos distintos.10

Em 1975, ficou consagrado o impulso definitivo do crescimento da indústria de


agrotóxicos no país, a partir da implementação do PNDA, desenvolvido pelos Ministérios
da Fazenda, da Indústria e Comércio, da Agricultura e pela Secretaria de Planejamento
da Presidência da República. A finalidade desse programa era alcançar os objetivos
propostos em um prazo de 2 a 4 anos, os quais pretendiam atender às diretrizes do II
Plano Nacional de Desenvolvimento quanto a busca pela autossuficiência nacional na
produção de insumos básicos.

Nesse contexto, a meta econômica era a ampliação da oferta de agrotóxico, em


especial, no período de 1975 a 1980, e como meta técnica a ampliação de estudos e
pesquisas sobre o controle dos danos causados pelas pragas da agricultura, assim
como sobre os efeitos exteriorizados em razão dos agrotóxicos que acometem a
saúde humana e o meio ambiente. Para isso, o incentivo fiscal foi concedido aos
projetos submetidos pelas fabricantes de agrotóxicos ao Conselho de Desenvolvimento
Industrial (CDI), através da redução das alíquotas de importação para os produtos que
possuíam produção em território nacional, a fim de incentivar o crescimento da cadeia
produtiva de produtos químicos agrícolas.11

Assim como o PNDA é considerado uma referência histórica para o tema, é rele-
vante ponderar que, também em 1975, foi editado o Decreto-lei nº 1.413, com o objetivo
de proteger o meio ambiente do Brasil, sendo considerado o primeiro diploma brasileiro
sobre a proteção ambiental, consoante Vladimir Passos de Freitas.12 Ainda, o art. 1º do
referido Decreto discorre que “as indústrias instaladas ou a se instalarem em território
nacional são obrigadas a promover as medidas necessárias a prevenir ou corrigir os
inconvenientes e prejuízos da poluição e da contaminação do meio ambiente”.13

10 BULL, David; HATHAWAY, David. Pragas e Venenos: Agrotóxicos no Brasil e no terceiro mundo. Petrópolis:
Editora Vozes, 1986, p, 153.

11 PELAEZ, Victor Manoel; SILVA, Letícia Rodrigues da; GUIMARÃES, Thiago André; DAL RI, Fabiano;
TEODOROVICZ, Thomaz. A (des)coordenação de políticas para a indústria de agrotóxicos no Brasil.
Revista Brasileira de Inovação, Campinas (SP), 14, n. esp., p. 153-178, julho 2015, p. 160.

12 FREITAS, Vladimir Passos de. A constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 3. ed. atual.
ampl., rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 21.

13 BRASIL. Decreto-lei nº 1.413, de 14 de agosto de 1975. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/


legin/fed/declei/1970-1979/decreto-lei-1413-14-agosto-1975-378171-publicacaooriginal-1-pe.html>.
Acesso em: 29 abr. 2018.

AGROTÓXICO 145
O Rio Grande do Sul, com sua característica promissora para o agronegócio, foi o
estado pioneiro a tornar obrigatório o receituário agrônomo em 1977, tendo em vista
que o Decreto nº 24.114 de 1934, que disciplinava o agrotóxico, não tratava sobre
a necessidade de receituário. Por esse razão, o Conselho Regional de Engenharia e
Agronomia do Rio Grande do Sul aprovou, em 1977, o Ato nº 2 como um mecanismo de
restringir o uso de agrotóxicos organoclorados e aqueles altamente tóxicos apenas para
casos sem alternativa menos agressiva de acordo com os conhecimentos científicos
de um engenheiro agrônomo.14

Não obstante o fato de que a atenção do Brasil estivesse, nesta época, focada
no fomento do crescimento da agricultura, o jornal O Estado de São Paulo publicou
sua primeira reportagem nacional sobre agrotóxicos em 29 de janeiro de 1978, no qual
a crise ambiental concebida por Ulrich Beck era referenciada sob a perspectiva dos
efeitos dos agrotóxicos na saúde humana e no meio ambiente. Assim, a manchete da
primeira reportagem brasileira foi intitulada “Os agrotóxicos e a crise ambiental”, e
Adilson Paschoal argumenta que “os efeitos colaterais dos produtos químicos usados
no controle de pragas analisados neste artigo mostra que a utilização maciça desses
produtos leva a um grande desequilíbrio da natureza colocando em perigo a vida dos
animais úteis e do próprio homem”.15

Em 1982, no rio Guaíba, principal fonte de água para o abastecimento da cidade


de Porto Alegre, foi constatada a presença de resíduos de inseticida que colocou
em risco a população de dois milhões de habitantes. Tal fato acarretou na mobi-
lização e na proibição de organoclorados no estado e, em dezembro do mesmo
ano, a Assembleia Gaúcha aprovou a primeira lei estadual sobre agrotóxicos (Lei nº
7.747/198216), “tornando compulsório o uso do Receituário Agronômico e o registro
dos produtos comercializados no estado. Acrescentou, ainda, artigos referentes ao
controle dos rótulos e ao direito de entidades civis requererem a impugnação do registro

14 CONSELHO REGIONAL DE ENGENHARIA E AGRONOMIA. Apresentação CREA/RS: Histórico dos


receituários. Disponível em: <http://www.crea-rs.org.br/site/documentos/Hist%C3%B3rico%20
Receitu%C3%A1rio,%20Palma.pdf>. Acesso em: 05 mai. 2018.

15 O ESTADO DE SÃO PAULO. Os agrotóxicos e a crise ambiental. Adilson D. Paschoal. Páginas da edição
de 29 de janeiro de 1978, p. 203.

16 BRASIL. Lei nº 7.747, de 22 de dezembro de 1982. Disponível em: < http://www.al.rs.gov.br/filerepository/


repLegis/arquivos/07.747.pdf>. Acesso em: 05 mai. 2018.

146 Larissa Milkiewicz


Mariana Gmach Philippi
de produtos”.17 É pertinente destacar que a referida mobilização em favor de uma lei
estadual sobre agrotóxicos foi idealizada pelo engenheiro agrônomo e ex-funcionário
da Basf, José Lutzenberger, assim como pela Associação Gaúcha de Proteção ao
Ambiente Natural (AGAPAN).

Desde 197118, José Lutzenberger apresentava soluções ambientais que culmi-


naram no despertar da atenção dos governantes e tornaram possível que a proteção
à saúde e ao meio ambiente adentrasse a agenda governamental, trazendo a atenção
da sociedade às discussões e à análise das implicações da opção pela agricultura
baseada no uso intensivo de insumos químicos.

É importante discorrer que o ideário de Lutzenberger, engenheiro agrônomo, era


respeitado perante a sua classe profissional e isso possibilitou a sua ascensão à função
de Presidente da Associação de Engenheiros Agrônomos do Estado de São Paulo em
1978.19 Infere-se que nesse período a classe de engenheiros agrônomos era presidida
por um representante da defesa do meio ambiente e da saúde humana, sobretudo no
que diz respeito ao uso de agrotóxico.

Retornando a análise sobre a lei estadual de agrotóxico, apresenta-se que o Paraná


é o segundo estado a disciplinar o tema no Brasil, sendo, também, um destaque histórico
ao lado do Rio Grande do Sul no que tange à iniciativa legislativa para regulamentar os
produtos químicos que estavam sendo utilizados em seus respectivos territórios. A Lei
Paranaense é datada de 29 de dezembro de 1983, registrada sob nº 7.827, e “dispõe
que a distribuição e comercialização no território do Estado do Paraná, de produtos

17 ANDRADE, Manoel Jorge Fajardo Villela de Andrade. Economia do Meio Ambiente: Análise da Legislação
de Brasileira sobre Agrotóxicos. Dissertação. Escola de Pós-graduação em Economia. Fundação Getúlio
Vargas. 1995. 110f, p. 20. P. 36

18 Reportagem “Ecologista contra Jost”, publicada no jornal O Estado de São Paulo, página 15 da edição de
17 de abril de 1984, referendava que “Em telegrama enviado ontem ao presidente da República com cópia
para a Secretaria Especial do Meio Ambiente, e à presidência do Senado e da Câmara de Deputados, o
engenheiro agrônomo, José Lutzenberger e as entidades de preservação do meio ambiente do Rio Grande
do Sul repudiaram as recentes declarações do ministro Nestor Jost, da Agricultura, feitas na capital da
República Federal da Alemanha, na semana passada, e favorável à utilização, no Brasil, de pesticidas cuja
utilização é proibida na Alemanha.”. O Estado de São Paulo. Páginas da edição de 17 de abril de 1984.
Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19840417-33473-nac-0015-999-15-not/busca/
Lutzenberger>. Acesso em: 07 mai. 2018.

19 FRANCO, Caroline da Rocha; PELAEZ, Victor. Antecedentes da Lei Federal de Agrotóxicos (7.802/1989): o
protagonismo. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 41, p. 40-56, agosto 2017, p. 44.

AGROTÓXICO 147
agrotóxicos e outros biocidas, ficam condicionados ao prévio cadastramento perante
a Secretaria de Agricultura e Secretaria do Interior e adota outras providências”.20

Sobre as leis estaduais do Rio Grande do Sul e do Paraná, Paulo Affonso Leme
Machado publicou uma reportagem intitulada “Agrotóxicos e Federalismo” no jornal O
Estado de São Paulo, em 21 de outubro de 1984, para se pronunciar no sentido de que:

houve um atraso no plano federal para legislar sobre a matéria. Mas


os Estados começaram a legislar, sobretudo, a partir do Estado do Rio
Grande do Sul, com a Lei nº 7.747/1982. Vemos surgir rapidamente outras
leis estaduais, como, por exemplo, as do Paraná (Lei nº 7.827/1983), e
a do Estado de Sergipe (Lei nº 2.411/1983), e a do Estado de São Paulo
(Lei nº 4.002/1984).21

Assim, a cronologia de normas federais que disciplinaram o agrotóxico pode


ser resumida da seguinte maneira: Decreto de 1934 perdeu a vigência em 1989 com
a promulgação da Lei Federal nº 7.802, conhecida como Lei de Agrotóxicos, que foi
regulamentada pelo Decreto nº 98.816 de 11 de janeiro de 1990, e que mais tarde, em
2002, foi revogado pelo Decreto nº 4.074.

No que tange à Lei Federal de Agrotóxico de 1989, segundo Paulo Affonso Leme
Machado, que participou da preparação da Lei, “a legislação brasileira de 1989 previu
diversos procedimentos de prevenção e de responsabilização dos agentes e das
empresas que atuam na área de agrotóxicos, chegando a haver inovações, em 2000,
sobre embalagens e sua disposição”.22

Por fim, contextualiza-se que, em 1989, o Brasil enfrentava a pressão interna-


cional para inserção da questão ambiental na sua agenda política, e a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, nos termos de Paulo de Bessa Antunes, “trouxe
imensas novidades em relação às que a antecederam, notadamente na defesa dos

20 AGÊNCIA DE DEFESA AGROPECUÁRIA DO PARANÁ. Lei nº 7827 de 29 de dezembro de 1983. Disponível


em: <http://celepar07web.pr.gov.br/agrotoxicos/legislacao/lei7827.asp>. Acesso em: 05 mai. 2018.

21 O ESTADO DE SÃO PAULO. Agrotóxico e Federalismo. Publicado por Paulo Affonso Leme Machado.
Páginas 48 da edição de 21 de outubro de 1984. Disponível em: < http://acervo.estadao.com.br/
pagina/#!/19841021-33632-nac-0048-999-48-not/busca/AFFONSO+LEME+MACHADO>. Acesso em: 07
mai. 2018.

22 VILLALOBOS, Jorge Ulises Guerra; FAZOLLI, Silvio Alexandre (org). Agrotóxicos: um enfoque
multidisciplinar. Prefácio Paulo Affonso Leme Machado. Maringá: Eduem, 2017, p.7.

148 Larissa Milkiewicz


Mariana Gmach Philippi
direitos e garantias individuais e o reconhecimento de nova gama de direitos, dentre
os quais se destaca o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.23

2. ANÁLISE DO ARTIGO 225 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DA


REPÚBLICA DE 1988
Fritjof Capra sustenta que as duas últimas décadas do século XX estão regis-
tradas com uma crise mundial considerada complexa e multidimensional, cujas facetas
alcançam vários dos aspectos da vida social (saúde, modo de vida, qualidade ambiental
e das relações sociais, economia, tecnologia e política), e pela primeira vez na história
se suscitou sobre uma “real ameaça de extinção da raça humana e de toda a vida no
planeta”.24

Esta crise multidimensional e complexa fomentou a discussão, em breve palavras,


sobre a necessidade de se repensar o posicionamento adotado pelo homem em relação
à utilização da natureza. Sobre isso, a Conferência de Estocolmo (1972) e o Relatório
Brundland (1987), por exemplo, foram celebrados em um cenário internacional em
torno desta crise referenciada, assim como a Constituição Federal promulgada em 5
de outubro de 1988. Por consequência, a Constituição Federal de 1988 refletiu as
discussões desses dois eventos e inovou ao destinar um capítulo específico para o meio
ambiente, titulado como “Da Ordem Social”, e passou, desde então, a consagrar o direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado atrelando à dignidade da
pessoa humana.

Segundo Guido Fernando Silva Soares, “para o Brasil, o meio ambiente, que até
então tinha sido um assunto incômodo e passageiro em suas relações com o resto do
mundo, passaria para o domínio das regras constitucionais, e, portanto, impor-se-ia
como tema avassalador e preponderante na diplomacia nacional”.25

Assim, a Constituição Federal de 1988, em específico no aspecto dos princípios


fundamentais, consagrou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do
Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, da CF). Isso autoriza afirmar que “no momento

23 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 19. Rio de Janeiro: Atlas 2017, p. 45.

24 CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 21.

25 SOARES, Guido Fernando Silva. A proteção internacional do meio ambiente. São Paulo: Manole, 2003, p
184.

AGROTÓXICO 149
em que a dignidade é guindada à condição de princípio estruturante e fundamento
do Estado Democrático de Direito, é o Estado que passa a servir como instrumento
para a garantia e promoção da dignidade das pessoas individual e coletivamente
consideradas”.26

Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida disciplina que o art. 225 da Constituição


Federal de 1988 foi inspirado nos princípios da Declaração de Estocolmo e na
Constituição Portuguesa de 1976, e está previsto o direito fundamental de todos ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo a co-responsabilidade do Poder
Público e da coletividade de protegê-lo para as presentes e futuras gerações a partir
da solidariedade e da equidade intergeracionais.27

Ainda, infere-se que a ética da solidariedade está consagrada no artigo referen-


ciado anteriormente, haja vista que “[...] as gerações presentes não podem usar o meio
ambiente fabricando a escassez e a debilidade para as gerações vindouras”.28 Logo, o
desenvolvimento sustentável ambiental visa satisfazer as necessidades desta geração
sem comprometer a possibilidade de que as futuras gerações também as satisfaçam.

Enfim, Paulo Affonso Leme Machado sustenta que a Constituição Federal não
se omitiu ao prever a obrigatoriedade do Poder Público de controlar os agrotóxicos,
tendo sido abrangente ao não mencionar expressamente o termo ‘agrotóxico’, mas
“substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”
(art. 225, §1º, V, da CF).29

26 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel Francisco.  Curso de direito
constitucional. 5. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 257.

27 YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. A proteção do meio ambiente e dos direitos fundamentais
correlatos no sistema constitucional brasileiro. In. YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato, AHMED,
Flávio, CAVALCA, Renata Falson. Temas fundamentais de Direito Difuso e Coletivos: Desafios e
Perspectivas. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 2.

28 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 24. ed., rev., ampl. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2016, p. 154.

29 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 70.

150 Larissa Milkiewicz


Mariana Gmach Philippi
3. ASPECTOS RELEVANTE SOBRE A LEI DE AGROTÓXICO DE
1989: REFLEXÃO SOBRE A NECESSIDADE DA ALTERAÇÃO
NORMATIVA
Considerando o contexto histórico abordado nos itens anteriores, reitera-se que o
tema agrotóxico encontra-se disciplinado na Lei nº 7.802/1989, com sua nova redação
apresentada pela Lei nº 9.974/2000, sendo esta a norma vigente na esfera federal
que versa sobre todas as etapas necessárias para disponibilizar o agrotóxico para o
consumo final, inclusive sobre as regras de pesquisa até a inspeção da utilização do
produto químico e o recolhimento das embalagens.

De acordo com a Lei de Agrotóxico de 1978, a competência para analisar os


pedidos de registro de agrotóxico foi direcionada da seguinte forma:

a) Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis


(Ibama), a fim de avaliar o comportamento do produto químico no solo, nos ambientes
hídricos, e os efeitos sobre a vida animal;

b) Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com o propósito de aferir a


segurança do trabalhador rural e a segurança alimentar;

c) Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), para constatar a


eficácia e praticidade agronômica do produto ativo.

Essa atribuição de competências prevista no Capítulo II do Decreto regulamentar


nº 4.074/2002 visa à apreciação, com cautela administrativa e científica, no que tange
ao viés ambiental e à saúde humana do pleito de registro de componente ativo em
procedimento. Em outras palavras, a presente divisão de competências para análise
da concessão ou não do registro do produto é um aspecto positivo da Lei de 1989 e
que corrobora com o posicionamento de que não se faz imprescindível, neste momento
histórico, uma alteração na Lei de Agrotóxico.

O registro do agrotóxico é a primeira fase para o controle dos possíveis riscos já


apontados pela comunidade científica, ante o princípio da prevenção, sendo a segunda
fase a adequada prescrição do produto químico, com orientações sobre a aplicação
devida ao caso, tempo para reaplicação do produto químico, diagnóstico por um profis-
sional habilitado para receitar o uso do agrotóxico, por exemplo.

AGROTÓXICO 151
Apresenta-se uma reflexão sobre a Lei de Agrotóxico no que tange ao registro do
produto químico. Segundo a doutrina, umas das lacunas existente na lei encontra-se
no prazo de concessão do registro, pois “o registro de um agrotóxico é ad eternum,
pois não existe o procedimento de atualização do registro definido por período, como
ocorre no caso de medicamentos, em que a cada cinco anos a concessão é revisada
para manutenção ou revogação da autorização”.30

Nas palavras de Paulo Affonso Leme Machado, o registro é “a porta principal de


entrada dos agrotóxicos, através de sua fabricação ou de seus componentes e/ou da
importação dos mesmos”.31

Ainda, “a reavaliação periódica desses produtos estimularia o avanço da ciência


na área e, consequentemente, a disposição no mercado de produtos menos tóxicos,
contribuindo-se, assim para a melhoria da proteção do meio ambiente e da saúde
humana”, conforme apresenta Maria Leonar Paes Cavalcanti Ferreira em sua tese de
doutorado.32

No entanto, enfatiza-se que há previsão de reavaliação do registro em apenas duas


hipóteses expressas na Lei, sendo a primeira quando “surgirem indícios de ocorrência
de riscos que desaconselhem o uso do produto” e a segunda “quando o país for alertado
nesse sentido por organizações internacionais responsáveis pela saúde, alimentação
ou meio ambiente, das quais o Brasil seja membro integrante ou signatário de acordo”.33

Além dessa lacuna no prazo de registro do agrotóxico, destaca-se a ausência de


uma previsão proibitiva da importação de agrotóxicos que possuam sua utilização
restrita no país de origem por precaução disposta pelas autoridades competentes
locais. Sobre isso, Heline Sivini Ferreira e Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira dispõem

30 CARNEIRO, Fernando Ferreira; AUGUSTO, Lia Giraldo da Silva; RIGOTTO, Raquel Maria; FRIEDRICH, Karen;
BÚRIGO, André Campos (Org.) Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde.
Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 108.

31 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 22. ed., rev., ampl. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2014, p. 725.

32 FERREIRA, Maria Leonor Paes Cavalcanti. A regulação do uso dos agrotóxicos no Brasil: Uma proposta
para um direito de sustentabilidade/ Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira; Orientador, Professor Doutor
José Rubens Morato Leite; Co-orientador Professor Doutor Patryck de Araújo Ayala. – Florianópolis, SC,
2013, p. 212.

33 FERREIRA, Heline Sivini; FERREIRA, Maria Leonor Paes Cavalcanti. Registro e importação de agrotóxicos:
não seria dever do Poder Público controlar as atividades que envolvem substâncias capazes de causar
danos à vida, à qualidade de vida e ao meio ambiente? In: LEITE, José Rubens Morato (coordenador).
Dano ambiental na sociedade de risco. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 209.

152 Larissa Milkiewicz


Mariana Gmach Philippi
que “isso parece fundamental para proteger a população brasileira dos efeitos nefastos
de determinados agrotóxicos”.34

Sem dúvida, essas duas lacunas são as principais da Lei de Agrotóxico, sem exaurir
a temática, respeitando a delimitação deste trabalho. No entanto, faz-se necessário
mencionar que “as tecnologias usadas durante o processo de desenvolvimento econô-
mico são os verdadeiros determinantes da qualidade ambiental”, em outras palavras, a
tecnologia pode ser empregada como um aliado no propósito de “propiciar a utilização
de processos e técnicas apropriadas para o crescimento sustentável”.35

A inteligência artificial é uma das ferramentas aliadas ao Direito Ambiental e que


pode ser aplicada em benefício do meio ambiente e da saúde do homem, corroborando
com o exposto no artigo 225 da Constituição Federal de 1998. As sofisticadas ferra-
mentas tecnológicas que estão disponíveis nesse século XXI constituem uma medida
para auxiliar na redução do uso de agrotóxico, como, por exemplo, a agricultura de
precisão que “surge com o objetivo de maximizar a eficiência e eficácia das áreas
agrícolas, através de estudos do solo e da variabilidade espacial, utilizando tecnologia
de ponta para ajustar as deficiências nas zonas de manejo”.36

Ocorre que a mudança legislativa nem sempre é a única ou melhor solução a ser
adotada. Outrossim, não se pode deixar de considerar que o próprio procedimento
de regulamentação poderá estar eivado por interesses distintos da garantia ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, CF).

A esse respeito, a Teoria Econômica do Direito fornece exemplos interessantes.


Cita-se, nesse passo, a Teoria da Captura37, fenômeno relacionado ao processo

34 LEITE, José Rubens Morato; FERREIRA, Heline Sivini; FERREIRA, Maria Leonor Paes Cavalcanti. op. cit., p.
209.

35 MORAES, Orozimbo José. Economia ambiental: Instrumentos econômicos para o desenvolvimento


sustentável. São Paulo: Centauro, 2009, p. 37.

36 DE MIRANDA, Ana Clara Cavalcanti; VERÍSSIMO, Amanda Miranda; CEOLIN, Alessandra Carla. Agricultura
De Precisão: Um Mapeamento Da Base Da Scielo. Revista Eletrônica de Gestão Organizacional. 129, Jan.
2, 2017. Disponível em: <http://eds.b.ebscohost.com/eds/detail/detail?vid=8&sid=f78971ba-c29d-468b-
be88-9717c9e93daf%40sessionmgr103&bdata=Jmxhbmc9cHQtYnImc2l0ZT1lZHMtbGl2ZQ%3d%3d#AN
=127279889&db=edb>. Acesso em: 12 mai. 2018.

37 DEMETERCO NETO, Antenor Figueiredo; STRUECKER, Fernando Almeida. Teoria da Captura. In:
DOMINGUES, Victor Hugo; KLEIN, Vinícius; DOMINGUES, Marcia Carla Pereira. Análise Econômica do
Direito: justiça e desenvolvimento. 1ª ed. Curitiba: CRV, 2016, p. 28.

AGROTÓXICO 153
corruptivo do regulador, no âmbito das agências regulatórias. George Stigler38, teórico
do tema, afirma que a regulação pode ser prejudicial, na medida em que o regulador é
parcial e pode optar por conceder benefícios aos agentes privados.

Outro exemplo de possível desvantagem oriunda da excessiva regulamentação é


o chamado Efeito Peltzman, que se refere às consequências não intencionais advindas
das regulações estatais39. Em outros termos, o Efeito Peltzman pode ser definido
como a redução do benefício esperado de uma regulação, em razão da mudança no
comportamento dos envolvidos, ocasionada pela própria inserção da norma40.

Esses e tantos outros exemplos colocam em evidência que, por melhor intencio-
nada que seja a inserção de uma regulação no ordenamento, não é possível prever
de antemão a integralidade das consequências dela advindas. Nesse passo, a norma
pode vir a atender o objetivo traçado. Mas também pode não ser eficaz ou até mesmo
impactar de modo negativo no propósito inicialmente almejado.

Ao contrário de inviabilizar a edição de toda e qualquer regulação, esses aspectos


devem ser considerados no processo de análise, de modo a permitir identificar os
casos em que a inserção de dada norma se revela de fato imprescindível e benéfica,
e aqueles nos quais outros caminhos serão mais aconselháveis ao atingimento dos
objetivos propostos.

Sem dúvida, há aspectos legais que carecem de ajustes na Lei Federal de 1989.No
entanto, o meio ambiente cultural pode ser uma das opções a serem aprimoradas como
uma alternativa neste momento, a fim de que interesses correlatos às garantias dos
direitos fundamentais adentrem nos projetos de lei sobre o Agrotóxico. Como exemplo
do significativo papel do meio ambiente cultural, podem ser citadas as políticas públicas
direcionadas à conscientização do uso adequado de agrotóxicos.

38 DEMETERCO NETO, Antenor Figueiredo; STRUECKER, Fernando Almeida. Teoria da Captura. In:
DOMINGUES, Victor Hugo; KLEIN, Vinícius; DOMINGUES, Marcia Carla Pereira. Análise Econômica do
Direito: justiça e desenvolvimento. 1ª ed. Curitiba: CRV, 2016, p. 28.

39 SHIKIDA, Claudio. Efeito Peltzman. In: DOMINGUES, Victor Hugo; KLEIN, Vinícius; DOMINGUES, Marcia
Carla Pereira. Análise Econômica do Direito: justiça e desenvolvimento. 1ª ed. Curitiba: CRV, 2016, p. 36.

40 SHIKIDA, Claudio. Efeito Peltzman. In: DOMINGUES, Victor Hugo; KLEIN, Vinícius; DOMINGUES, Marcia
Carla Pereira. Análise Econômica do Direito: justiça e desenvolvimento. 1ª ed. Curitiba: CRV, 2016, p. 36.

154 Larissa Milkiewicz


Mariana Gmach Philippi
Sobre a reflexão da importância da política pública, destaca-se uma pesquisa
desenvolvida com base em dados coletados no munícipio de Chapecó/SC, onde a
pecuária e a agricultura são predominantes na economia local:

Apenas 23,3% dos trabalhadores rurais costumam ler sempre o receituário


agronômico e 30% compreendem todas as informações contidas na bula
dos agrotóxicos. Somente 36,7% revelam compreender totalmente as
tarjas, e 20% entendem todos os desenhos presentes nos rótulos dos
agrotóxicos. Além disso, 83,3% dos agricultores utiliza algum tipo de
EPI, no entanto o fazem parcialmente. Em relação ao armazenamento
dos agrotóxicos, 60% revelaram não sinalizá-los adequadamente. E
mais, 70% não sabem diferenciar um agrotóxico contrabandeado de
um agrotóxico legal.41

A pesquisa, acima citada, foi realizada em 2011 e corrobora com o argumento


de que uma nova regulamentação do tema pode, a princípio, ser substituída por uma
política pública eficaz, principalmente quando o meio ambiente cultural também carece
de aprimoramentos a fim de que os danos à saúde humana em decorrência do uso
irracional de agrotóxicos, como a intoxicação, sejam minimizados, o que requer a
inserção de uma ferramenta apropriada, como as políticas públicas.

Em 18 de junho de 2018, foi publicada coluna do jornal O Valor Econômico acerca


da alteração na Lei de Agrotóxico do Brasil, intitulada ‘A pressão por uma nova lei dos
agrotóxicos’. É interessante evidenciar que Fabio Feldman e Suely Araújo esclareceram
nesta publicação:

No Brasil, há consolidada tendência de se tentar remeter à lei em senso


estrito a solução de todos os problemas afetos às políticas públicas, nos
diferentes níveis da federação. Sem uma avaliação prévia consistente
de quais questões necessitam ser enfrentadas com inovações pelo
legislador e quais deveriam ficar a cargo dos gestores e outros atores.
[...]

Anteriormente à decisão por uma nova Lei dos Agrotóxicos, o país


precisa discutir com clareza as razões que fundamentam essa proposta.

41 BOHNER, Tanny Oliveira Lima; ARAÚJO, Luiz Ernani Bonesso; NISHJIMA, Toshio. O impacto ambiental do
uso de agrotóxicos no meio ambiente e na saúde dos trabalhadores rurais. Revista Eletrônica do Curso
de Direito da Universidade Federal de Santa Maria. v. 8, 2013, p. 329-341.

AGROTÓXICO 155
Se existem problemas, eles serão realmente resolvidos por uma nova
lei? A dependência excessiva dos agrotóxicos em nossos sistemas
agrícolas também não é problema a ser necessariamente enfrentado?
Há questões estruturais a serem debatidas, que ultrapassam os limites
dos dispositivos formais de uma lei.42

Conclui-se relembrando que a sustentabilidade importa na consideração dos


vieses ambiental, social e econômico, através de uma visão holística dos direitos e
deveres em jogo. Outrossim, a ausência de desenvolvimento econômico traz conse-
quências nefastas ao país, como bolsões de pobreza, violência e o domínio de grupos
criminosos. Esse posicionamento é adotado por Vladimir Passos de Freitas, e pode
ser posto em outras palavras esclarecendo que o desenvolvimento econômico deve
ser perseguido, mas de uma maneira em que os danos ambientais sejam reduzidos
ao mínimo possível.43

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando as informações apresentadas, passa-se a tecer algumas conside-
rações, sem a intenção de esgotar o tema, mas que são pertinentes à fase histórica
em que a Lei de Agrotóxico se encontra e à celebração pelos 30 anos da Constituição
Federal de 1988.

Indubitavelmente, o tema agrotóxico é complexo e interdisciplinar, perpassando


diversas áreas, como a Economia, Sociologia, Direito, Engenharia Agronômica, entre
outras.. Ademais, trata-se de um tema polêmico que transcende o viés jurídico e alcança
os aspectos social, ambiental, da saúde pública e econômico do país.

Essas considerações tornam-se especialmente relevantes no contexto brasileiro,


país que tem como um de seus alicerces produtivos o agronegócio.

Tendo em conta a complexidade de fatores que integram a questão, faz-se neces-


sário pensar de modo crítico quanto à real necessidade e conveniência de alterações

42 VALOR ECONÔMICO. A pressão por uma nova lei dos agrotóxicos. Publicado por Fabio Feldman e Suely
Araújo, em 18/07/2018. Disponível em: <https://www.valor.com.br/opiniao/5666555/pressao-por-uma-
nova-lei-dos-agrotoxicos>. Acesso em: 03 ago. 2018.

43 FREITAS, Vladimir Passos de. A desejada e complexa conciliação entre desenvolvimento econômico e
proteção do meio ambiente no Brasil. Revista Direito Ambiental e Sociedade, v. 4, n. 1, p. 235-263, 2014,
p. 244.

156 Larissa Milkiewicz


Mariana Gmach Philippi
legislativas neste cenário. Isso porque, não raras vezes, a inserção de dada regulação
acaba por não resolver de maneira eficaz as questões que se destina a responder ou,
pior ainda, acaba por gerar efeitos não calculados, que podem impactar negativa no
contexto que se destinam a regular.

Sendo assim, antes de pensar em alterações na Lei Federal de Agrotóxico, a


sociedade brasileira deve conhecer as reais razões e justificativas que podem motivar
a mudança normativa, a fim de que esta não venha a atender interesses distintos à
garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado, convertendo-se em regresso
ao direito fundamental previsto no art. 225 da C.F.

Por fim, merecem destaque as medidas existentes nos diferentes níveis da fede-
ração, implementadas por meio de políticas públicas, que constituem alternativa eficaz
na busca pela minimização dos efeitos negativos pelo uso desenfreado de agrotóxico.
Em outros termos, é possível que a questão seja ajustada em nível estadual, como de
fato já vem ocorrendo, o que permitiria considerar as particularidades regionais e os
aspectos inerentes ao meio ambiente cultural da sociedade, sem que fosse necessária
a edição de uma nova norma pela União, a quem cabe regulamentar aspectos gerais
do tema.

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Pós-graduação em Economia. Fundação Getúlio Vargas. 1995. 110p.
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158 Larissa Milkiewicz


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160 Larissa Milkiewicz


Mariana Gmach Philippi
PERSPECTIVAS PARA O CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO:
UMA ANÁLISE DA PROPOSTA DE
MUDANÇA DA PEC Nº 33/111
Lucas Azevedo Paulino2

Resumo
Diante de um contexto de expansão da jurisdição constitucional nos
últimos 30 anos, sob a égide da Constituição de 1988, o presente artigo tem
o propósito de analisar se a Proposta de Emenda à Constituição nº 33/11
poderia aperfeiçoar a legitimidade democrática do sistema constitucional
brasileiro, conciliando a proteção efetiva de direitos fundamentais com o
exercício democrático do poder, ao desassociar o controle de constitucio-
nalidade da supremacia judicial.

Introdução
O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro é eminentemente judicial
e repressivo de cunho misto, ao combinar o controle por via incidental e difuso, de

1 Esse artigo é uma reprodução, com adaptações, das reflexões presentes na segunda parte do capítulo
4 da dissertação de mestrado do autor: PAULINO, Lucas Azevedo. Jurisdição Constitucional sem
Supremacia Judicial: a reconciliação entre a proteção de direitos fundamentais e a legitimidade
democrática. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais. UFMG: Belo Horizonte, 2016.

2 Lucas Azevedo Paulino é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012).
Especialista em Direito Constitucional pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (2013). Mestre
(2016) e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais (desde 2017). Visiting Scholar na Universidade de Harvard (2018).
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 161-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
matriz norte-americana, que vem desde a origem da República3, com o controle por via
principal e concentrado, de matriz austríaca (adotado, em regra, no sistema continental
europeu), que foi introduzido pela Emenda Constitucional nº 16/654.

A Constituição brasileira de 1988 consagrou um amplo sistema de jurisdição cons-


titucional, rico em técnicas, métodos e vias de acesso, que pode ser desencadeado com
facilidade, uma vez que associa uma Constituição extensa e analítica com inúmeros
instrumentos de controle de constitucionalidade5.

Nos mais de 30 anos de vigência da Constituição de 1988, a jurisdição consti-


tucional se expandiu e se reinventou de inúmeras formas, adotando cada vez mais
instrumentos de centralização, simplificação e abstrativização6. A constitucionalização
analítica e abrangente leva um tema que pertencia ao debate político “para o universo
das pretensões judicializáveis”7. Esse fator aliado a uma profusão de meios e vias para
a realização da fiscalização jurisdicional de compatibilidade da vida pública em face
da Constituição, abre um espaço considerável ao Judiciário para a revisão do produto
das atividades políticas desempenhadas pelo Legislativo e pelo Executivo8. Em face
de tal realidade, boa parte das questões de relevância política, social ou moral são

3 Implementado pelo Decreto nº 848/1890 e posteriormente adotado pela Constituição de 1891.

4 A Emenda Constitucional nº 16 de 1965 à Constituição de 1946 (já vigente o regime militar) instituiu a
então denominada ação genérica de inconstitucionalidade, pela qual o Supremo Tribunal Federal passava
a ter a competência de declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato federal, por meio de representação
que lhe fosse encaminhada pelo Procurador-Geral da República. Apesar ser esse o marco histórico da
introdução do controle abstrato e concentrado pelo STF, a Constituição de 1934 já previa uma modalidade
específica de ação de controle concentrado: a representação interventiva, cabível na hipótese de os
Estados violarem os denominados princípios constitucionais sensíveis (BARROSO, 2011b, p. 85-86).

5 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos
de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 175

6 BUSTAMANTE, Thomas; PATRUS, Rafael Dilly. Do Governo dos Cenáculos ao Governo do Povo: A
Jurisdição Constitucional nos Vinte e Cinco Anos da Constituição da República. In.: CLÈVE, Clemerson
Marlin; FREIRE, Alexandre (coord.). Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. Editora Revista
dos Tribunais: São Paulo, p. 791-816, 2014, p. 795.

7 BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011.

8 BUSTAMANTE; PATRUS; op. cit; p. 795

162 NOME DO AUTOR


discutidas judicialmente, notadamente perante o Supremo Tribunal Federal, conforme
exemplificado pelos seguintes casos:

(i) instituição de contribuição dos inativos na Reforma da Previdência


(ADI 3105/DF); (ii) criação do Conselho Nacional de Justiça na Reforma
do Judiciário (ADI 3367); (iii) pesquisas com células-tronco embrionárias
(ADI 3510/DF); (iv) liberdade de expressão e racismo (HC 82424/RS –
caso Ellwanger); (v) interrupção da gestação de fetos anencefálicos
(ADPF 54/DF); (vi) restrição ao uso de algemas (HC 91952/SP e Súmula
Vinculante nº 11); (vii) demarcação da reserva indígena Raposa Serra
do Sol (Pet 3388/RR); (viii) legitimidade de ações afirmativas e quotas
sociais e raciais (ADI 3330); (ix) vedação ao nepotismo (ADC 12/DF e
Súmula nº 13); (x) não recepção da Lei de Imprensa (ADPF 130/DF)9

Oscar Vilhena Vieira designa esse fenômeno da expansão da autoridade


do Supremo Tribunal Federal – deslocando-se para o centro do arranjo
político, muitas vezes em detrimento dos demais poderes – como
“supremocracia” 10. A ampliação dos instrumentos disponíveis à
jurisdição constitucional tem levado o tribunal constitucional brasileiro
a ser responsável por enunciar a última palavra acerca de inúmeros
assuntos de natureza substantiva, ora validando e legitimando as
escolhas dos órgãos representativos, ora contrariando as decisões
majoritárias. É importante ressaltar, ainda, que no sistema de controle
de constitucionalidade brasileiro, entende-se que o Supremo Tribunal
Federal possui a competência para verificar a constitucionalidade de
emendas à Constituição, e invalidá-las caso essas coloquem em perigo
as cláusulas pétreas previstas no artigo 60, §4º, da Constituição, o que
reforça a ideia de que o Judiciário deteria a palavra final no sistema
constitucional brasileiro.

Essa atribuição ao Supremo Tribunal Federal de controle judicial de emendas cons-


titucionais evidencia o caráter forte da jurisdição constitucional brasileira, bem como

9 BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: Direito e política no


Brasil contemporâneo, 2011. Disponível em < http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/
uploads/2011/11/Direito-e-pol%C3%ADtica-no-Brasil-contempor%C3%A2neo_Lu%C3%ADs-Roberto-
Barroso1.pdf>. Acesso em 03/06/2016.

10 VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Rev. Direito GV, vol. 4, nº. 2, São Paulo: July/Dec, 2008.
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
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org/10.32445/97885671340938
a supremacia judicial em sentindo formal da corte na estrutura geral do ordenamento
jurídico-constitucional brasileiro. O sistema constitucional brasileiro enquadra-se no
paradigma de constitucionalismo jurídico tradicional, uma vez que a última palavra é
alocada formalmente no Judiciário, especialmente no que diz respeito às matérias
protegidas por cláusulas pétreas. No entanto, é importante ressaltar que o quórum para
aprovação de emendas constitucionais não é tão rígido comparativamente, exige-se
três quintos dos membros da Câmara e do Senado em dois turnos, e essa relativa
facilidade para o exercício do poder de reforma constitucional já ensejou a promulgação
de 99 emendas constitucionais no decorrer dos 30 anos de vigência da Constituição
de 198811. Há alguns precedentes, inclusive, de emendas que superaram interpretação
fixada pelo Supremo Tribunal Federal12.

A despeito de a supremacia judicial no sentido material ser passível de controvérsia,


haja vista não haver obstáculos – na prática – tão rígidos à atuação dos representantes
do povo para reverter a interpretação judicial, assim como por ser mais factível e célere
a possibilidade de diálogo entre os poderes, o entendimento predominante é que no
Brasil formalmente e institucionalmente a última palavra sobre questões constitucionais
conferida à corte constitucional.

Esse arranjo de jurisdição constitucional alargado e forte, com múltiplas possibi-


lidades de acesso, instituído no Brasil, favorece fenômenos como o ativismo judicial
e a judicialização da política, que suscitam reflexões sobre os limites da legitimidade
democrática da intervenção jurisdicional. Essa expansão quanto ao exercício da juris-
dição – sobretudo quando se percebe que inúmeros temas, que tradicionalmente eram
de competência apenas dos poderes políticos, passam a entrar na agenda judicial –
induzem a grande preocupação, especialmente quando o Judiciário exerce um papel
contramajoritário, quando desborda o campo do direito e adentra indevidamente no

11 Nos Estados Unidos exige-se a aprovação da emenda constitucional por dois terços dos membros da
Câmara e do Senado e aprovação de três quartos dos estados.

12 São exemplos de emendas constitucionais aprovadas com o objetivo de superar precedentes do


Supremo Tribunal Federal estabelecidos: a EC n. 19/98, relativamente à inclusão de vantagens pessoais
no limite máximo de remuneração de servidores públicos; a EC 29/2000, sobre à admissibilidade de IPTU
progressivo; a EC 39/2002, a respeito da cobrança, por Municípios e Distrito Federal, de contribuição
para o custeio de iluminação pública; a EC n. 57/2008, acerca da convalidação das leis de criação de
municípios publicadas até 2006; a EC 58/2009, que definiu limites máximos de vereadores de acordo com
a população dos municípios. Cf.: BARROSO, op. cit, p. 96-97; BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial
versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 292-5

164 NOME DO AUTOR


campo da política ou quando abusa no exercício do poder decisório (decisionismo)13.
É inegável que “os julgadores muitas vezes derrubam ou reformulam – em definitivo –
decisões políticas gestadas nos meios político-decisórios majoritários”14

É dentro desse contexto que, nos últimos anos, surgiram propostas de reformu-
lação radical do sistema de controle de constitucionalidade, que impactam na dinâmica
de como se compreende a separação de poderes no ordenamento constitucional
brasileiro, com o objetivo de fortalecer a esfera legislativa na decisão sobre questões
constitucionais, tais como a Proposta de Emenda à Constituição 3/1115 e a Proposta
de Emenda à Constituição nº 33/11 (PEC 33/11) apresentada pelo Deputado Nazareno
Fonteles, com a subscrição de outros 219 deputados, a qual será o foco da análise no
presente artigo, para tentar compreender se esta PEC poderia democratizar o controle de
constitucionalidade e assegurar simultaneamente a proteção de direitos fundamentais.

A Proposta de Emenda à Constituição 33/11


Em linhas gerais, a PEC 33/11 tem como propósito: 1) alterar o quórum para
declaração de inconstitucionalidade de leis, exigindo-se a manifestação de quatro
quintos dos membros dos Tribunais em detrimento do quórum atual de maioria absoluta;
2) condicionar o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal
à aprovação pelo Poder Legislativo; 3) e submeter ao Congresso Nacional a decisão
sobre a inconstitucionalidade de emendas à Constituição e autorizá-lo, diante de uma
manifestação de contrariedade à decisão do Supremo, a consultar a população sobre
a controvérsia.

13 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; NUNES, Dierle. Controle
de Constitucionalidade é judicial, não político. Revista Consultor Jurídico, 2013. Disponível em <http://
www.conjur.com.br/2013-abr-30/sistema-controle-constitucionalidade-judicial-nao-politico>. Acesso em
19/05/2015.

14 BUSTAMANTE; PATRUS; op. cit., p. 796

15 A PEC 3/2011, também de autoria do Deputado Nazareno Fonteles, pretendia modificar o sistema de
controle de constitucionalidade, ao propor a alteração do inciso V do artigo 49 da Constituição para
permitir que o Congresso Nacional possa sustar atos normativos de “outros poderes” que exorbitem
do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. Isto é, tem o objetivo de incluir o Poder
Judiciário, além do Poder Executivo, na possibilidade de que o Congresso suste as decisões judiciais,
permitindo um controle legislativo sobre o Judiciário, para preservar sua competência normativa. Não é
objeto do presente trabalho a análise detida dessa proposta, mas a PEC 3/11 configura mais um exemplo
de proposta tentando fortalecer o papel do Legislativo na decisão de questões constitucionais.
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 165-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
Segundo o autor da proposição, ela se justificaria, entre outras razões, pelo excesso
de ativismo judicial por parte dos membros do Poder Judiciário, tendo em vista que,
de acordo com ele, as decisões tomadas com base nessa interpretação proativa, que
vão além do necessário para o caso concreto, careceriam de legitimidade democrática.
A preocupação do autor, presente na justificação da PEC 33, seria o fato de que “em
prejuízo da democracia, a hipertrofia do Poder Judiciário vem deslocando boa parte
do debate de questões relevantes do Legislativo para o Judiciário. (...) Estamos, de
fato, diante de um risco para legitimidade democrática em nosso país”16. Os objetivos
centrais dessa proposta seriam, para o seu autor, resgatar o valor da representação
política, da soberania popular, da dignidade da lei aprovada pelos representantes
legítimos do povo, além de reestabelecer o equilíbrio entre os poderes, fomentando
o diálogo interinstitucional entre eles e valorizando o Poder Legislativo. O filósofo do
direito Jeremy Waldron serve como referência teórica na justificação da PEC, sendo
citado expressamente por suas críticas ao controle judicial de constitucionalidade
em sua versão mais forte. Ademais, o controle de constitucionalidade canadense é
mencionado como uma alternativa de jurisdição constitucional na qual o Judiciário
não tem o monopólio da última palavra.

Após a PEC 33/11 ser admitida pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania
(CCJC), em abril de 2013, houve imediata reação da opinião pública, sobretudo a da
comunidade jurídica, sendo que muitos a consideraram flagrantemente inconstitucional
por ferir a separação dos poderes. Apesar dessa proposição não ter ido adiante ao ser
arquivada com o início da nova legislatura em 2015, e não ter voltado à tramitação17,
ela engendrou debates relevantes sobre o controle de constitucionalidade brasileiro e
reascendeu a tensão entre constitucionalismo e democracia, inerente a todas demo-
cracias que adotam alguma forma de controle judicial de constitucionalidade.

Em face de tal quadro, torna-se importante analisar detidamente cada uma das
sugestões de alterações contidas na PEC 33/11, assim como verificar se tal proposição
consistiria em um novo arranjo de separação de poderes adequado para consubstan-
ciar simultaneamente, e de forma mais adequada, os ideais de proteção a direitos

16 O inteiro teor da PEC 33 e da sua justificação encontram-se disponíveis no site da Câmara dos Deputados
e podem ser acessadas no seguinte endereço eletrônico: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
prop_mostrarintegra?codteor=876817&filename=Tramitacao-PEC+33%2F2011 >. Acesso em 10/06/2016.

17 O art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados determina que “finda a legislatura, arquivar-
se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e
ainda se encontrem em tramitação (...)”.

166 NOME DO AUTOR


fundamentais e de legitimidade democrática do controle judicial de constitucionalidade
brasileiro, consagrando um controle de constitucionalidade sem supremacia judicial.

O aumento do quórum para declaração de


inconstitucionalidade
No que concerne à mudança de quórum para declarar a inconstitucionalidade de lei
aprovada no parlamento, o quórum atual, conforme determina o art. 97 da Constituição
de 1988, é de maioria absoluta dos membros dos tribunais18, e o autor propõe a alte-
ração dele para uma maioria qualificada de quatro quintos19. No caso do Supremo
Tribunal Federal, em vez de seis ministros para a declaração de inconstitucionalidade
de uma norma, seriam necessários nove de onze. De acordo com a justificação anexa
à PEC 33/11, “a opinião de apenas seis juízes, por mais cultos que sejam, não pode
sobrepor a soberania popular, pois conhecimento jurídico não é fator de legitimação
popular”. Com a modificação sugerida, “terá de haver nítida e clara homogeneidade
no entendimento da Suprema Corte”.

Para melhor analisar essa proposta, é importante salientar a crítica do filósofo do


direito Jeremy Waldron sobre a ausência de fundamentação moral e de valor epistêmico
no uso da regra da maioria pelos tribunais20. Em primeiro lugar, esse autor critica
a razão pela qual uma maioria judicial seria preferível a uma maioria legislativa. A
mesma “estatística” e “contagem de cabeças” que colocaria em risco a tomada de
uma decisão equivocada ou “tirânica” pelo Legislativo seria equivalente ao perigo de
erro nas decisões majoritárias judiciais. Em segundo lugar, o Poder Legislativo teria
a vantagem moral, pois a justificativa da regra majoritária, no seu caso, consistiria
no respeito à igualdade política dos cidadãos que elegeram os seus representantes,
fundamentação que faltaria ao Judiciário.

18 Constituição de 1988, “Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros
do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo
do Poder Público”.  

19 PEC 33/11. “Artigo 1º. O art. 97 da Constituição Federal de 1988 passará a vigorar com a seguinte
redação: “Art. 97 Somente pelo voto de quatro quintos de seus membros ou dos membros do respectivo
órgão especial poderão os tribunais declarar inconstitucionalidade de lei ou do ato normativo do poder
público.”.

20 WALDRON, Jeremy. Five to Four: Why do Bare Majorities Rule on Courts. NYU School of Law, Public Law
Research Paper No. 12-72, 2013.
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 167-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
Sobre a insuficiência de superioridade epistêmica, Waldron aponta que o resultado
de uma maioria apertada seria mais o reconhecimento da existência do desacordo
moral também no Judiciário do que uma confiança na objetividade da verdade21. Diante
dessas críticas, não se afigura descabida, nem atentatória à separação dos poderes, a
proposta da alteração de um quórum de maioria absoluta para uma maioria qualificada.

Consoante atesta Conrado Hübner Mendes, ao analisar o potencial deliberativo


dos padrões de decisão, uma maioria qualificada pode, inclusive, incentivar mais a
deliberação e proporcionar a produção de resultados melhores22. Ademais, “o aumento
do quórum disposto na PEC, mesmo que numa instituição judicial, parece dar maior
importância à decisão do legislador diante do quadro de desacordo natural existente
na sociedade”23. Pode-se presumir que os argumentos utilizados no debate da questão
de índole constitucional teriam de ser melhores para que pudessem convencer, não
apenas a metade mais um dos magistrados, mas a maior parte deles.

Conforme afirma Thomas Bustamante, uma maioria qualificada substantiva pode


ser uma maneira de responder a objeção de Waldron contra decisões majoritárias em
cortes constitucionais24. De acordo com Bustamante, essa maioria qualificada pode ser
uma posição intermediária, que admite que a jurisdição constitucional exerça a proteção
de minorias contra maiorias que desrespeitem seus direitos, ao mesmo tempo em que
estabelece um quórum qualificado na corte de modo a evitar o risco de se substituir a
decisão do parlamento meramente por uma decisão da maioria em uma corte dividida.

Em que pese não considerarmos uma maioria qualificada para a decisão de


um tribunal violadora da Constituição e do princípio da separação dos poderes,
cumpre ponderar que a “supermaioria” de quatros quintos, proposta pela PEC 33/11,
talvez imponha um ônus demasiadamente alto para a deliberação no tribunal cons-
titucional, pois seria um quórum “excessivamente elevado, quase correspondendo à

21 Idem

22 MENDES, Conrado Hubner. Constitutional Courts and Deliberative Democracy. Oxford University Press,
2013. p. 167-8

23 BUSTAMANTE, T. R.; VILLANI, A. A. Diálogos institucionais: a PEC/33 e o discurso jurídico no Legislativo


e no Judiciário. In: Jonathan Barros Vita, Margareth Anne Leister. (Org.). Direitos fundamentais e
democracia II [Recurso eletrônico on-line]–Anais do XXII Encontro Nacional do CONPEDI / UNINOVE (São
Paulo). 1ed. Florianópolis: FUNJAB, p. 179-202, 2014.

24 BUSTAMANTE, Thomas. The Ongoing Search for Legitimacy: Can a ‘Pragmatic yet Principled’
Deliberative Model Justify the Authority of Constitutional Courts? The Modern Law Review, Vol.78(2),
pp. 372-393, 2015.

168 NOME DO AUTOR


unanimidade”25. De acordo com Conrado Mendes26, a decisão unânime estabelece um
fardo pesado para deliberar quando a instituição chega a um impasse, incentivando uma
obstrução excessiva bem como mais a barganha do que a deliberação. Isso poderia
enfraquecer o sistema de controle de constitucionalidade.

Além disso, conforme Jane Reis Pereira, “essa supermaioria também tornaria


o processo de nomeação para a Corte mais suscetível a ingerências estratégicas de
caráter político, já que o presidente da República poderia com maior facilidade modificar
o equilíbrio de forças na Corte”27. A omissão em indicar ministros poderia inviabilizar
o funcionamento do Supremo Tribunal Federal e interferir na formação do juízo de
inconstitucionalidade, reduzindo o insulamento político do tribunal.

Em nossa história temos o exemplo do ataque institucional promovido pelo


Presidente Floriano Peixoto ao Supremo Tribunal Federal, na República Velha, que
não nomeou os sucessores dos ministros que se aposentaram com o propósito de
deixar a corte desfalcada e sem quórum para decidir questões importantes.28 Alguns
anos atrás, a presidenta Dilma Rousseff demorou cerca de seis meses para indicar o
ministro Luís Roberto Barroso após a aposentadoria do ministro Carlos Ayres Britto
e, aproximadamente, nove meses para indicar o ministro Luís Edson Fachin após a
saída do ministro Joaquim Barbosa. Independente dos motivos que levaram a esse
prolongamento, o fato é que a repetição da demora na indicação de um ministro no
contexto de uma maioria de quatro quintos, com fins políticos ou não, poderia dificultar o
exercício das atribuições do tribunal constitucional. Portanto, não seria inconstitucional
tal alteração de quórum, mas talvez inconveniente, em uma perspectiva de política
constitucional, a mudança para quatro quintos.

Em face desses argumentos, em vez de quatro quintos, a exigência de uma maioria


qualificada intermediária entre a maioria absoluta e a unanimidade – como três quintos
ou dois terços dos seus membros (sete ou oito ministros de onze) – para a declaração
da inconstitucionalidade de uma norma, talvez seja um quórum mais adequado para
prestigiar a decisão tomada no Legislativo – arena democrática por excelência –,

25 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. O Supremo não é oráculo: conversas acadêmicas com Jane Reis. Os
Constitucionalistas, 2013. Disponível em http://www.osconstitucionalistas.com.br/jane-reis-o-supremo-
nao-e-oraculo. Acesso em 07/06/2013.

26 MENDES, 2013, op. cit, p. 168

27 PEREIRA, 2013, op. cit.

28 BRANDÃO, 2012, op. cit., p. 98


PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 169-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
encorajar a deliberação entre os ministros, mas sem pôr em perigo o isolamento político
do tribunal constitucional.

O condicionamento do efeito vinculante das súmulas


vinculantes ao Congresso e o aumento do quórum para
sua aprovação.
As súmulas vinculantes foram instituídas pela Emenda Constitucional n. 45/2004,
conhecida como “Reforma do Judiciário”, e reguladas pela Lei 11.417/2006, com o
objetivo de atribuir ao Supremo Tribunal Federal o poder de determinar à Administração
Pública e aos demais órgãos do Judiciário a observância obrigatória da jurisprudência
da corte em questões constitucionais. Em um contexto de elevada litigiosidade somado
a uma expressiva quantidade de demandas repetitivas, a súmula vinculante foi uma
solução encontrada para racionalizar o processo decisório bem como para contribuir
para a celeridade e eficiência na administração da justiça e para a diminuição do volume
de recursos que chegam ao Supremo Tribunal Federal.

Tal instituto visa atender, ademais, os princípios da igualdade e da segurança


jurídica, na medida em que o tribunal pode impor uma interpretação dotada de eficácia
geral e vinculante sobre a (in)constitucionalidade de uma determinada norma, coor-
denando e uniformizando o entendimento judicial sobre certo assunto, com base
em parâmetros que propiciem a isonomia e a coerência29. Tem como objeto, dessa
maneira, a eficácia, a validade ou a interpretação de normas do ordenamento jurídico.
Os requisitos e os procedimentos para sua edição estão dispostos no art. 103-A da
Constituição de 1988, consistindo, basicamente: na necessidade da decisão de 8
ministros (2/3) para sua promulgação, reiteradas decisões sobre a matéria objeto da
súmula, controvérsia judicial ou entre os órgãos judiciais e a administração pública
que esteja causando grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos
sobre questão idêntica30 31.

29 BARROSO, 2011, op. cit, p. 102-105

30 FERNANDES, Bernardo.  Curso de Direito Constitucional. 5. ed. Salvador: Editora Juspodvim, 2013.

31 Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois
terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que,
a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do
Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal,

170 NOME DO AUTOR


A súmula vinculante consiste em um exemplo da expansão da jurisdição, com
a criação de ferramentas constitucionais, no período de vigência da Constituição de
1988, que centralizaram e fortaleceram um sistema judicial de interpretação constitu-
cional. De acordo com Thomas Bustamante e Rafael Patrus32, configura-se como um
instrumento de produção normativa pelo Supremo Tribunal Federal bastante poderoso
e como uma especificidade brasileira, visto que não se encontra no direito comparado
sistemas jurídicos que outorguem a um órgão do Poder Judiciário o poder para esta-
belecer enunciados normativos gerais, abstratos e grau de vinculação assemelhados
aos produzidos pelo legislador ordinário. Essa atribuição de produzir enunciados
normativos abstratos e gerais constitui-se em uma atividade atípica do Judiciário, por
ser uma função originalmente pertencente ao Poder Legislativo.

Em uma crítica persuasiva sobre legitimidade democrática das súmulas vincu-


lantes, Lênio Streck compara-as com as medidas provisórias, sendo que ambas
representariam o fenômeno de que a “construção democrática do direito no âmbito
do parlamento vai sofrendo – progressivamente – um arrocho cada vez mais agudo, ora
pela atividade legiferante do executivo, ora pela atividade – em última análise também
legiferante – do judiciário”33. Tanto as súmulas vinculantes como as medidas provi-
sórias são manifestações da natureza atípica das funções jurisdicionais e executiva,
por possibilitarem a emissão de comandos normativos em caráter geral e abstrato,
justificados por razões de necessidade: no primeiro caso, a diminuição de demandas
repetitivas e a racionalização do judiciário; no segundo, para aumentar a eficiência da
atividade governamental.

Nos dois institutos, segundo Streck, existe a possibilidade da criação da norma e


da aplicação e execução dela na mesma função do poder estatal. No caso das súmulas

bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º A súmula terá
por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja
controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave
insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do
que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada
por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3º Do ato administrativo ou
decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao
Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão
judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme
o caso.

32 BUSTAMANTE, PATRUS, op. cit, p. 803.

33 STRECK, L. L. Súmulas, Vaguezas e Ambiguidades: necessitamos de uma “Teoria Geral dos Precedentes”?.
Direitos Fundamentais & Justiça, v. 5, p. 162-185, 2008. p. 164-165
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 171-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
vinculantes, o Supremo Tribunal Federal é onde está situada essa coincidência entre
o órgão criador das disposições normativas e o responsável pela sua concretização,
na medida em que é “o responsável pela criação dos textos sumulares e, ao mesmo
tempo, tem a competência constitucional (§ 3º do art. 103-A) de julgar as reclamações
decorrentes de atos administrativos ou jurisdicionais que estiverem em “desacordo”
com a súmula por ele editada”34. Nessa analogia entre súmulas vinculantes e medidas
provisórias, a diferença principal é que em relação às medidas provisórias há a exigência
expressa de que o Congresso Nacional delibere, aprove ou rejeite a medida, para
convertê-la ou não em lei; já no que concerne às súmulas, não existe essa previsão
formal de deliberação do órgão legislativo, em que pese este não seja vinculado pelos
efeitos da súmula, podendo legislar em contrário.

A Exposição de Motivos da PEC 33/11, no que se refere às súmulas vinculantes,


demonstra a preocupação em preservar as competências do Poder Legislativo, de modo
a evitar os “excessos legislativos” do Supremo Tribunal Federal, e de controlá-lo a fim
de verificar se tal órgão observou os requisitos necessários previstos para instituição
desse mecanismo, especialmente a exigência de reiteradas decisões sobre o assunto,
o que não teria sido cumprido em algumas ocasiões.

Dentro desse contexto, propõe: I) aumentar o quórum de decisão para aprovação


de dois terços para quatros quintos (de oito para nove dos onze ministros)35, II) reforçar
a necessidade de que a súmula mantenha identidade com os procedentes que a deram
origem36, III) criar a possibilidade de controle da súmula pelo Congresso Nacional, pela
manifestação da maioria absoluta de seus membros37. Em caso de rejeição do efeito
vinculante da súmula, ela se tornará mais uma das súmulas ordinárias do tribunal
constitucional. Para não prejudicar a agilidade da decisão, sugere-se o prazo de 90
noventa dias para a tomada de decisão pelo Congresso, com a aprovação tácita no

34 Idem, p. 165

35 PEC 33/11. “O art. 103-A da Constituição Federal de 1988 passará a vigorar com a seguinte redação:
Art. 103-A O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de quatro
quintos de seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, propor súmula [...]”

36 PEC 33/11. “[...]§ 1º A súmula deverá guardar estrita identidade com as decisões precedentes, não
podendo exceder às situações que deram ensejo à sua criação [...]”

37 PEC 33/11. [...] “§4º O Congresso Nacional terá prazo de noventa dias, para deliberar, em sessão conjunta,
por maioria absoluta, sobre o efeito vinculante da súmula, contados a partir do recebimento do processo,
formado pelo enunciado e pelas decisões precedentes. §5º A não deliberação do Congresso Nacional
sobre o efeito vinculante da súmula no prazo estabelecido no §4º implicará sua aprovação tácita. [...]”

172 NOME DO AUTOR


dia subsequente ao término do prazo em caso de não ocorrência da votação nesse
período estabelecido.

No que tange à alteração do quórum para a decisão sobre uma súmula vinculante
para quatro quintos dos membros do Supremo, os mesmos argumentos da análise no
tópico anterior se aplicam neste. É legítima a mudança para um quórum qualificado e
o próprio constituinte derivado reconheceu a importância dessa maioria substantiva
na EC 45/2004 ao instituir o quórum de dois terços dos membros para a sua decisão.
Todavia, o quórum de quatro quintos pode levar a obstrução deliberativa na corte bem
como a inviabilidade do exercício dessa competência, não sendo o mais adequado em
uma perspectiva de política constitucional.

Sobre o dispositivo que reforça que as súmulas mantenham identidade com


os precedentes que lhe deram origem, ele é, na verdade, um reforço tautológico ao
que já constitui o objeto das súmulas vinculantes, uma vez que o propósito delas é
estabelecer um enunciado normativo vinculante acerca de decisões reiteradas sobre
um assunto constitucional. Conforme Lênio Streck explica38, as súmulas vinculantes
podem contribuir para a formação de uma cultura de tradição, coerência e integridade
do direito (conforme a teoria de Ronald Dwokin). Logo, os precedentes já servem de refe-
rência para a construção do enunciado da súmula, ainda que, ressalte-se, sejam coisas
diversas, uma vez que “casos julgados e precedentes são formados para resolver casos
concretos e, no caso dos precedentes, eventualmente influenciam decisões futuras”, por
sua vez “as súmulas, ao contrário são enunciados gerais e abstratos – características
presentes na lei – que são editados visando a solução de casos futuros”39. No entanto,
conforme alerta Lênio Streck, o “precedente não cabe no enunciado da súmula”.40 Para
ele, o enunciado da súmula só alcançará sentido diante de uma situação concreta ou
de uma sucessão de casos concretos, mediante os quais se construirá uma tradição
de casos concretos que darão sentido ao vazio dos enunciados.

Em relação à possibilidade de controle legislativo das súmulas vinculantes, não


há violação ao princípio da separação dos poderes, tendo em vista que, em primeiro
lugar, elas não representam atividade jurisdicional típica. Não se constituem como
uma característica essencial do exercício da atividade judicial, sendo, na verdade,

38 STRECK, 2008, op. cit, p. 173

39 STRECK, 2008, op. cit, p. 166

40 STRECK, 2008, op. cit, p. 175


PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 173-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
um mecanismo jurisdicional exclusivo da realidade brasileira. Em segundo lugar, tal
instituto não fazia parte do desenho original do arranjo dos poderes da Constituição de
1988, mas consiste em uma inovação introduzida pelo poder constituinte derivado. Em
função disso, afigura-se plenamente possível não apenas modificar suas configurações
e requisitos, mas, inclusive, removê-los41. Trata-se mais de uma questão de conveniência
e política constitucionais do que propriamente de interpretação sobre a compatibilidade
ou não com o ordenamento constitucional.

Na prática, o efeito vinculante da súmula já não atinge o Poder Legislativo, mas


tão somente os órgãos judiciais e a administração pública. Dessa forma, o Poder
Legislativo já tem permissão para legislar em contrário ao conteúdo da súmula. A insti-
tucionalização da possibilidade de manifestação legislativa só reforça um mecanismo
de “freio e contrapeso” de caráter democrático. Haveria, com isso, a formalização da
possibilidade de fiscalização do devido exercício da atribuição de edição de comandos
normativos pelo Judiciário, pela autoridade democrática por excelência, de modo a
conter abusos, aumentando a accountability judicial.

Ademais, acrescentar-se-ia o elemento democrático que falta na equação insti-


tucional desse instrumento, como existe na possibilidade de rejeição de veto ou da
medida provisória oriundos do Poder Executivo. Além disso, esse controle legislativo
das súmulas vinculantes poderia favorecer uma prática de diálogo interinstitucional
sobre a interpretação constitucional entre os Poderes Legislativo e Judicial, de modo
que cada um com sua expertise institucional possa contribuir para a melhor leitura
da Constituição. Em face do exposto, há a chance de ganho tanto do ponto de vista
da legitimidade democrática, ao formalizar a possibilidade de que os representantes
do povo tenham a palavra final sobre as súmulas vinculantes; como do ponto de vista
epistêmico, ao aumentar a probabilidade de interação deliberativa entre os poderes, de
modo a incentivar a busca por melhores respostas sobre a interpretação constitucional.

41 PEREIRA, 2013, op. cit.

174 NOME DO AUTOR


A submissão das decisões que pronunciam a
inconstitucionalidade de emendas ao Congresso e à
consulta popular.
A terceira mudança apresentada pela PEC 33/11 foi a que despertou a maior
controvérsia e o debate mais complexo em torno dela: a respeito de quem deveria ter
a palavra final sobre o controle de constitucionalidade de emendas à Constituição.
A proposta versa sobre o acréscimo de dispositivos ao art. 102 da Constituição de
1988 – o qual define a competência do Supremo do Tribunal Federal – para impor, caso
a decisão de mérito do tribunal constitucional declare a inconstitucionalidade material
de emendas constitucionais, a necessidade de retorno obrigatório ao Poder Legislativo
para uma nova deliberação. A decisão que julgasse uma emenda inconstitucional não
teria, de imediato, efeito vinculante e eficácia contra todos (“erga omnes”), os quais
só seriam reconhecidos após a apreciação e aprovação pelo Congresso Nacional.
Em caso de manifestação contrária do Legislativo à decisão tomada pelo Supremo
Tribunal Federal, a questão deveria ser submetida à consulta popular. Para a réplica do
Congresso, exige-se o quórum de três quintos dos seus membros em sessão conjunta,
que deveria ser tomada em até noventa dias. Caso não observado o prazo para a
votação, a decisão do Supremo prevaleceria com efeito vinculante e eficácia contra
todos42.

A PEC 33/11 preconiza uma nova rodada procedimental, na qual os representantes


eleitos do povo possam apreciar outra vez a controvérsia constitucional. A autoridade
legislativa deteria, por conseguinte, a autoridade final sobre a aprovação da emenda
constitucional, apenas preponderando a autoridade judicial em caso de omissão da
autoridade legislativa. Na persistência da desavença entre a posição dos juízes e
dos representantes do povo, caberia ao próprio povo a decisão derradeira sobre a
querela constitucional. De acordo com o Deputado Nazareno Fonteles, na Exposição

42 PEC 33/11. “Art. 102. [...] § 2º-A As decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade que declarem a inconstitucionalidade material de
emendas à Constituição Federal não produzem imediato efeito vinculante e eficácia contra todos, e serão
encaminhadas à apreciação do Congresso Nacional que, manifestando-se contrariamente à decisão
judicial, deverá submeter a controvérsia à consulta popular. § 2º-B A manifestação do Congresso Nacional
sobre a decisão judicial a que se refere o §2º-A deverá ocorrer em sessão conjunta, por três quintos de
seus membros, no prazo de noventa dias, ao fim do qual, se não concluída a votação, prevalecerá a
decisão do Supremo Tribunal Federal, com efeito vinculante e eficácia contra todos. §2º-C É vedada, em
qualquer hipótese, a suspensão da eficácia de Emenda à Constituição por medida cautelar pelo Supremo
Tribunal Federal”.
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 175-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
dos Motivos da PEC 33/11, não ocorreria nenhuma supressão do poder do Judiciário
de controle de constitucionalidade de emendas, e sim a valorização do papel do Poder
Legislativo nesse processo. Além disso, para ele, incentiva-se o diálogo interinstitu-
cional e cria-se um mecanismo de controle democrático contra eventuais exorbitâncias
do Poder Judiciário.

Sem embargo, como já demonstrado acima, tal dispositivo da PEC 33/11 recebeu
manifestações contrárias à sua constitucionalidade no próprio Congresso Nacional por
considerá-lo ofensiva à cláusula pétrea de separação dos poderes expressa no art. 60,
§4º, da Constituição de 1988 por: 1) intrometer-se indevidamente em atividade típica do
Poder Judiciário; 2) interferir na competência de guardião constitucional do Supremo
Tribunal Federal definida pelo constituinte originário; 3) enfraquecer a atribuição de
protetor dos direitos fundamentais Supremo Tribunal Federal em sua função; 4) afetar a
racionalidade no debate democrático; 5) estabelecer o controle político pelo Congresso
do controle judicial de constitucionalidade, o que seria uma reminiscência autoritária
do Estado Novo43.

Nessa mesma tônica, alguns juristas criticaram essa proposta de forma veemente.
Jane Reis Pereira44 apontou que essa mudança comprometeria o papel contramajo-
ritário do Supremo Tribunal Federal, vulnerando o entrincheiramento de direitos, ao
sujeitar as decisões fundamentais presentes na Constituição às maiorias ocasionais,
o que representaria uma ruptura com o pacto constitucional originário. Para Marcelo
Cattoni, Alexandre Bahia e Dierle Nune45s, essa modificação seria inconstitucional,
tendo em vista que “não se pode restringir por meio de controle político, majoritário,
decisões em matéria constitucional do Supremo Tribunal Federal”. De acordo com
eles, a natureza do controle de constitucionalidade brasileiro é judicial e não poderia
ser política. Ademais, segundo eles, caberia à jurisdição constitucional assegurar o
devido processo legislativo, compreendendo, para isso, os direitos fundamentais como
condição de possibilidade democrática, de sorte que a proteção desses direitos poderia
ser enfraquecida com o controle proposto pela PEC 33/11.

43 Essas manifestações contrárias se deram nos próprios pareceres dos deputados vencidos na Comissão
de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.

44 PEREIRA, 2013, op. cit, 2013.

45 CATTONI DE OLIVEIRA et al, 2013, op. cit.

176 NOME DO AUTOR


Como se observa, os opositores a essa modificação sobre a autoridade no controle
de constitucionalidade de emendas partem do pressuposto de que o paradigma de
constitucionalismo adotado no Brasil é o modelo de constitucionalismo jurídico que
associa o controle de constitucionalidade forte – não apenas da legislação, mas,
inclusive, de emendas constitucionais – com a supremacia judicial, e essa caracterís-
tica pertenceria ao núcleo essencial do arranjo de separação de poderes concebido
pela Constituição de 1988, que seria imutável por ser um limite intangível ao poder
de reforma – cláusula pétrea – presente no art. 60, §4, III (Art. 60 [...] § 4º Não será
objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] III–a separação dos
Poderes). Em função disso, seriam inconstitucionais as propostas que tivessem por
objetivo mudar a autoridade formal do Poder Judiciário em decidir, finalmente, sobre
a interpretação e a validade de uma emenda constitucional.

Não obstante, é possível disputar essa premissa, conforme se demonstrará


adiante, e compreender que o sistema de separação de poderes não impõe uma
divisão de funções estanque e absoluta, mas sim, uma estrutura dinâmica de controle
recíprocos – de freios e contrapesos – para conter abusos. Ademais, o retorno da
decisão sobre inconstitucionalidade de emendas ao Poder Legislativo pode contribuir
para reconciliar a proteção de direitos fundamentais, promessa do constitucionalismo
jurídico, com a legitimidade democrática do ordenamento constitucional brasileiro,
consolidando um controle de constitucionalidade sem supremacia judicial.

Primeiramente, conforme nos lembra Virgílio Afonso da Silva46, “a Constituição


não define com clareza que cabe ao STF a última palavra sobre emendas constitu-
cionais”. De fato, não existe na Constituição, de forma literal e expressa, a previsão
da competência do Supremo Tribunal Federal de julgar a constitucionalidade de uma
reforma constitucional. Tal atribuição da corte decorreria da função dela de “guardiã
da Constituição”, prevista no caput do art. 102 da CR/88, do poder para julgar ação
direta de inconstitucionalidade de atos normativos federais (art. 102, I, a, CR/88), e
principalmente, pela necessidade de se resguardar os limites materiais ao poder de
reforma, que protegeriam a própria identidade constitucional, estatuídos nos incisos
do art. 60, §4º: I–a forma federativa de Estado; II–o voto direto, secreto, universal e
periódico; III–a separação dos Poderes; IV–os direitos e garantias individuais; dispo-
sitivo que veda emendas tendentes a aboli-los.

46 SILVA, Virgílio Afonso da. Professor da USP fala sobre a PEC 33 e embate de poderes. Revista Consultor
Jurídico, 2013b. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2013-jun-13/virgilio-afonso-silva-professor-
usp-comenta-pec-33-embate-poderes>. Acesso em 22/06/2016.
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 177-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
A tese que prepondera na doutrina e na jurisprudência brasileira é de que as
denominadas cláusulas pétreas seriam juridicamente vinculantes, cuja violação não
pode ser afastada do conhecimento dos tribunais47. Os limites materiais ao poder de
reforma seriam, dessa maneira, juridicamente sindicáveis tanto por meio do controle
de constitucionalidade abstrato como do concentrado, pois, caso contrário, tais normas
seriam compreendidas como limites meramente políticos, carecedores de força jurídica.
Constatando-se a incompatibilidade entre a emenda constitucional e a cláusula pétrea,
constituiria dever do Judiciário declarar a inconstitucionalidade da emenda. Conforme
explicam Ingo Sarlet e Rodrigo Brandão48, as justificativas desse poder se baseiam:
I) na superioridade do poder constituinte originário – por ser a expressão máxima
da soberania popular, cuja natureza é política e ilimitada – em detrimento do poder
constituinte derivado, por ser um poder constituído de natureza jurídica e limitada; II) na
impossibilidade da emenda constitucional, com o pretexto de modificar a Constituição,
destruir o seu núcleo de identidade; III) na importância de se conservar os elementos
constitucionais essenciais de maiorias transitórias. Percebe-se que a justificativa do
controle de constitucionalidade de emendas retoma alguns argumentos clássicos do
constitucionalismo jurídico, tais como a tese pioneira de Marshall de que seria uma
decorrência lógica do sistema constitucional a autoridade de um tribunal judicial para
invalidar atos incompatíveis com a Constituição, haja vista sua supremacia, bem como a
ideia de se assegurar os pré-compromissos constitucionais contra maiorias ocasionais
ou contra a tirania da maioria.

Dentro desse paradigma de constitucionalismo jurídico, o Supremo Tribunal


Federal reconhece sua competência para apreciar a constitucionalidade de emendas,
“seja em uma análise formal, do processo legislativo democrático, ou material, de
violação às cláusulas pétreas”49. O primeiro precedente remonta a 1926 (HC n. 18.178),
ainda na vigência da Constituição de 1891, no qual o Supremo avaliou a validade de uma
emenda constitucional, confirmando-a. No entanto, apenas sob a égide da Constituição
de 1988, no julgamento da ADI n. 939-7/DF, que o STF considerou inconstitucionais

47 SOUZA NETO; SARMENTO, 2013, op. cit. p. 283

48 SARLET, Ingo W.; BRANDÃO, Rodrigo. Comentário ao art. 60. In: CANOTILHO, J. J. GOMES; MENDES,
Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lênio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:
Saraiva/Almedina, 2013. p. 1130

49 MOREIRA, Ana Luísa de Navarro. We (Believe or Distrust) the People: O controle de constitucionalidade
das Emendas à Constituição e o problema da autoridade. Dissertação de Mestrado do Programa de
Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. UFMG: Belo Horizonte,
2014. p. 64

178 NOME DO AUTOR


dispositivos inseridos na reforma constitucional que instituiu o imposto provisório
sobre movimentações financeiras (IMPF), por violar a regra da anterioridade tributária
(art. 150, III, a, CR/88) e a da imunidade recíproca entre os entes federativos (art. 150,
VI) – ao ofender, respectivamente, direito e garantia individual e a forma federativa
de Estado, cláusulas pétreas –, e desde então diversas emendas constitucionais já
foram invalidadas no todo ou em parte505152. Nesse precedente, poucos ministros se
preocuparam em justificar essa possibilidade, sobressaindo-se, nesse aspecto, o voto
do ministro Celso de Melo:

É preciso não perder de perspectiva que as emendas constitucionais


podem revelar-se incompatíveis, também elas, com o texto da
Constituição a que aderem. Daí, a sua plena sindicabilidade jurisdicional,
especialmente em face do núcleo temático protegido pela cláusula de
imutabilidade inscrita no art. 60, §4º, da Carta Federal.

As denominadas cláusulas pétreas representam, na realidade, categorias


normativas subordinantes que, achando-se pré-excluídas, por decisão da
Assembleia Nacional Constituinte, do poder de Reforma do Congresso
Nacional, evidenciam-se como temas insuscetíveis de modificação pela
via do poder constituinte derivado.

50 SOUZA NETO; SARMENTO, 2013, p. 282

51 O primeiro precedente, sob a vigência da Constituição de 1988, no qual o Supremo Tribunal Federal
admitiu o controle judicial de emendas constitucionais foi na ADI 829/DF (Rel. Min. Moreira Alves,
Julg. 14.4.1993, DJ 16.09.), que declarou a constitucionalidade da EC n. 02/1992, que antecipou a
data do plebiscito sobre a forma e o sistema de governo, disposto no art. 2º do ADCT. Nela, o Ministro
Moreira Alves afirmou: “não há dúvida de que, em face do nosso sistema constitucional, é esta Corte
competente para, em controle difuso ou concentrado, examinar a constitucionalidade, ou não, de emenda
constitucional – como sucede no caso – impugnada por violadora de cláusulas pétreas explícitas ou
implícitas”.

52 Ana Luísa Moreira (2014, p. 64) elenca uma lista de casos que exemplificam a atuação do Supremo
Tribunal Federal no controle de constitucionalidade de emendas: “Na ADI nº 2.135-4/DF, o Supremo
declarou a inconstitucionalidade formal da aprovação da Emenda nº 19/98 da reforma administrativa; na
ADI nº 1946-5, julgou parcialmente procedente para atribuir à Emenda Constitucional nº 20/98, da reforma
da Previdência Social, interpretação conforme a Constituição; nos autos da ADI nº 3.128-7/DF e da ADI nº
3.105-8/DF, declarou inconstitucional parte da Emenda Constitucional nº 41/03, que ao alterar as regras
de seguridade social, impôs base de cálculo diferenciadas aos servidores e pensionistas da União, de
um lado, e dos Estados, Distrito Federal e Municípios, de outro; na ADI 3.685-8/DF, conferiu interpretação
conforme à Constituição para que as regras constitucionais da coligação partidária para as eleições que
foram alteradas pela Emenda Constitucional nº 52/06 somente fossem aplicadas após decorrido um
ano da data de sua vigência (e não, portanto, às eleições marcadas poucos meses após a publicação da
Emenda). Caso ainda mais recente foi a ADI de n. 2.356/DF, cujo objeto foi a inconstitucionalidade de
dispositivos normativos da Emenda Constitucional de n. 30/2000, sobre liquidação de precatórios”.
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 179-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
Com efeito, nesse mesmo caso, outro voto que se destacou foi o do ministro Paulo
Brossard, que, apesar de acompanhar a maioria no sentido de reputar inconstitucional
a emenda impugnada, chamou a atenção para a necessidade de haver prudência na
interpretação das chamadas cláusulas pétreas, pois existe uma grande diferença entre
o significado de abolição e alteração (a Constituição proíbe emendas tendentes a
abolir, não as de mudar os limites materiais elencados no art. 60, §4º), e ressaltando
que as normas jurídicas devem ter flexibilidade para acompanhar as mudanças que
acontecem, de forma superveniente, na sociedade e no plano institucional, conforme
se observa no seguinte trecho:

(...) o art. 60 fala em abolir, projetos tendentes a abolir, e entre uma


restrição e a abolição, uma restrição mínima e transitória e a abolição,
que é extinção, que é eliminação, vai grande e imensa distância. Abolir
não é mudar, não é alterar, ainda que, dir-se-á, de mudança em mudança
pode terminar na abolição; (...) seria imprudente atribuir caráter absoluto
a preceitos que tem de ser entendidos nos termos de sua formulação;
abolir quer dizer extinguir, não quer dizer modificar.

Esse alerta é importante porque nele está presente um cuidado com o contexto
de mudanças inerentes à democracia. Como salientam Cláudio de Souza Neto e Daniel
Sarmento53, se a dificuldade contramajoritária já se apresenta como uma preocupação
subjacente ao exercício de controle judicial de constitucionalidade da legislação,
ela seria ainda mais intensa quando esse controle é efetuado contra as reformas
constitucionais, na medida em que o quórum é muito mais elevado e o processo bem
mais rígido para se obter uma mudança constitucional, demandando a articulação
de uma ampla maioria para aprovar cada medida. Nesse ponto, torna-se importante
evidenciar que a Suprema Corte americana não reconhece a sua competência para
controlar a constitucionalidade de emendas, por entender que se trata de questão
política o processo de mudança constitucional54. Por sua vez, o Tribunal Constitucional
alemão, embora admita sua competência para fiscalizar a constitucionalidade de
reformas constitucionais, nunca exerceu tal atribuição, pois concebe que “os limites
materiais ao poder de reforma representam apenas uma proibição de revolução ou

53 SOUZA NETO; SARMENTO, 2013, op. cit, p. 283

54 BRANDÃO, Rodrigo. Direitos fundamentais, Cláusulas Pétreas e Democracia: uma proposta de


justificação e aplicação do art. 60, §4º, IV da CR/88. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador,
Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 10, 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/
revista/REDE-10-ABRIL-2007-RODRIGO%20BRANDAO.pdf>. Acesso em 22/06/2016. p. 5

180 NOME DO AUTOR


de destruição da própria Constituição”55. Percebe-se que a sindicabilidade judicial de
emendas constitucionais não é intrínseca a outros arranjos de controle jurisdicional
de constitucionalidade. Não existe correlação necessária entre supremacia judicial e
o controle de normas de natureza constitucional, como as promulgadas por reforma
constitucional.

De acordo com Ana Luisa de Navarro Moreira56 o controle de constitucionalidade


de emendas praticado pelo Supremo Tribunal Federal constitui uma usurpação judicial
da política. Para ela, o tribunal constitucional não deveria decidir com autoridade
final questões controversas a respeito dos princípios morais implícitos à proposta de
emenda constitucional, por padecer de grave déficit de legitimidade democrática. Em
um contexto democrático de desacordo moral, reconhecer a superioridade do judiciário
como intérprete final sobre os princípios morais constantes na constituição, acaba por
privilegiar a leitura judicial em detrimento da legislativa e popular.

Segundo Ana Luísa Moreira, a desconfiança das teorias (e práticas) constitucionais


que não reconhecem ou retiram a responsabilidade do povo ou dos seus representantes
como o intérprete final da constituição, enfraquecem o ideal de que o povo é a legitima
autoridade do poder, do direito e da constituição57. Em uma democracia de direitos,
na qual todos os poderes são igualmente responsáveis e estão empenhados em zelar
pela supremacia constitucional e proteger os direitos fundamentais a ela subjacentes,
o ideal é que se reconheça o povo como o legítimo portador da autoridade final pela
mudança constitucional58.

Caso contrário, um regime constitucional que aloca a palavra final sobre o poder
de reforma constitucional para a autoridade judicial pode acarretar no enfraquecimento
do ideal de soberania popular, conforme apontado pelo filósofo Jeremy Waldron sobre
os perigos ideia de supremacia judicial: a) pelo deslocamento do autogoverno do povo
para a autoridade judicial, b) pela soberania judicial na hegemonia sobre a definição

55 SARLET; BRANDÃO, 2013, op. cit, p. 1131

56 MOREIRA, 2014, p. 66

57 Idem, p. 175

58 Idem, p. 133 e p. 175


PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 181-194. Disponível em: https://doi.
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do direito, c) pela usurpação do poder constitucional pela autoridade judicial com o
poder de definir e redefinir a Constituição59.

Nesse aspecto, conforme asseveram Gilberto Bercovici e Martonio Mont’Alverne


Barreto Lima60, o Poder Judiciário e o Supremo Tribunal Federal são também poderes
constituídos como a autoridade legislativa e, portanto, submetidos aos limites da
Constituição e da lei. Não se configura uma violação à autonomia, à independência
e à capacidade de fiscalizar livremente as demais instituições republicanas a impo-
sição de um controle aos órgãos da jurisdição constitucional, senão passariam a
verdadeiros soberanos absolutos, sem nenhuma espécie de mecanismo para conter
os seus eventuais abusos.

Diante dessa perspectiva, torna-se importante reavaliar o princípio da separação


dos poderes, cláusula intangível que seria afrontada pela PEC 33/11, de acordo com
os seus opositores. O constitucionalismo liberal concebe a ideia de separação de
poderes para desconcentrar o exercício do poder, com a finalidade de evitar o abuso
dos governantes e assegurar a liberdade dos governados. Montesquieu é considerado o
teórico mais influente nessa ideia de que um governo moderado e controlado por meio
do fracionamento do poder em órgãos distintos e independentes seria indispensável
para a manutenção da liberdade e a contenção do arbítrio, de modo que o poder freie
o poder e limite as chances de opressão61. O federalista James Madison, inspirado
nele, desenvolveu essa ideia no constitucionalismo americano, instituindo a ideia
de um sistema de “freios e contrapesos” (checks and balances), no qual além da
exigência da divisão das funções estatais, acrescenta a necessidade de mecanismos
interdependentes de controles recíprocos entre os poderes62.

Dessa forma, consoante destacam Gilberto Bercovici e Martonio Mont’Alverne


Barreto Lima, nem a concepção de Montesquieu tampouco a dos federalistas, defen-
diam que poderes são separados de forma estanque, total ou absoluta ou exigiam

59 WALDRON, Jeremy. Judicial review and Judicial Supremacy. NYU School of Law, Public Law Research
Paper, No. 14-57. 2014.

60 BERCOVICI, Gilberto; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Separação de poderes e a constitucionalidade


da PEC Nº 33/2011. Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 3, p. 785-801, set./dez. 2013. p. 795

61 SARLET; BRANDÃO, 2013, op. cit., p. 1134

62 HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON; James. O Federalista. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2003. p.
317-321

182 NOME DO AUTOR


que fossem inteiramente desvinculados uns dos outros63. Na realidade, esse princípio
envolve mais a ideia de que um poder controle o outro, e de que a fiscalização recíproca
é indispensável ao sistema constitucional para evitar o abuso de qualquer um dos
poderes sobre os outros. O grande perigo não consistia no controle de todos os poderes
uns pelos outros, mas sim a ameaça derivada da sua ausência de controle, inclusive em
relação ao Poder Judiciário, que poderia representar um risco adicional à democracia
constitucional, conforme já alertava Thomas Jefferson. Por essa razão, “um maior
controle do Poder Judiciário por parte do Poder Legislativo não fere a separação de
poderes. Pelo contrário, o que se opõe a toda tradição constitucionalista de separação
dos poderes é justamente a falta de controle do Judiciário”64.

Além dessa concepção clássica de separação dos poderes, torna-se importante


salientar que o constitucionalismo contemporâneo enriqueceu esse princípio por novas
preocupações para além da contenção dos abusos do poder. Diante do paradigma
Estado Democrático de Direito, que exige uma atuação dos poderes públicos mais
enérgica em prol dos direitos fundamentais e dos interesses sociais, coletivos e difusos,
a finalidade da separação dos poderes passou a abranger a eficiência estatal e sua
vocação para salvaguardar direitos fundamentais, bem como a legitimação democrá-
tica da atuação estatal65. Em função disso, de acordo com Cláudio de Souza Neto e
Daniel Sarmento, “a cláusula pétrea da separação dos poderes deve ser pensada sem
fetichismos institucionais que inibam qualquer possibilidade de experimentalismo
democrático na busca de arranjos estruturais mais adequados aos desafios do Estado
contemporâneo”66. Desse modo, o que não pode haver é uma mudança constitucional
que tenha por objetivo uma supressão ou o esvaziamento de uma atribuição essencial
de uma autoridade estatal, que a enfraqueça desmedidamente ou concentre excessi-
vamente poderes em outra.

Uma alteração de atribuições entre os poderes, que não implique em abolição de


suas competências nem mine a autonomia e a independência de poderes, mas fortaleça
mecanismos de controle recíprocos e, ainda, reforce a legitimidade democrática da
ordem constitucional não viola o ideal de separação de poderes. Esse é o caso da PEC

63 BERCOVICI; LIMA, 2013, op. cit, p. 797

64 BERCOVICI; LIMA, 2013, op. cit, p. 798

65 SOUZA NETO, SARMENTO, 2013, op. cit., p. 305.

66 Idem
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 183-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
33/11. Com as propostas de modificações presentes nela, o Poder Judiciário continua
exercendo sua atividade típica definida, de forma expressa, pela Constituição: o controle
de constitucionalidade das leis e atos normativos com a possibilidade de invalidação.
Não somente, mas inclusive a possibilidade decorrente de verificar a compatibilidade
de emendas constitucionais, só que agora com a existência expressa de um controle
democrático – um freio e contrapeso – realizado pelo Poder Legislativo. Não se afigura
uma inferência lógica que a instituição de um controle democrático na competência de
fiscalização judicial de emendas implica a supressão, a interferência ou a intromissão
indevida na independência e na autonomia do Poder Judiciário.

A possibilidade de controle da atividade do judicial review por outro poder de índole


política não se vincula necessariamente a uma concepção autoritária, como a presente
no desenho procedimental da Constituição da ditadura do Estado Novo. O novo modelo
de constitucionalismo da Comunidade Britânica – existente no Canadá, no Reino Unido
e na Nova Zelândia –, por exemplo, prevê a possibilidade de revisão legislativa de
decisões judiciais, isto é, existe essa previsão institucional em democracias maduras
e consolidadas. Além disso, no próprio Estados Unidos da América, país de origem
da jurisdição constitucional, ainda que se argumente que a existência de emendas
constitucionais seja menos frequente, pelo seu processo ser mais rígido, o controle
da reforma constitucional não é admitido pela Suprema Corte.

Mesmo Ronald Dworkin, em sua defesa eloquente de que a corte constitucional


pode – por meio dos resultados que proporciona ao proteger as condições da demo-
cracia – contribuir para a legitimidade geral de um regime político, considera que a
democracia não faz questão de que o Judiciário detenha a última palavra sobre a
Constituição (mas, para ele, também não faz questão que não a tenha)67.

Não existe, desse modo, uma relação ontológica entre a sindicabilidade judicial
de emendas constitucionais e a democracia constitucional. O arranjo de separação de
poderes de uma democracia constitucional não exige que o Judiciário exerça, como
atividade típica, o controle judicial das reformas constitucionais, não sendo obviamente
ilegítimas, nem inconstitucionais, as mudanças aventadas pela PEC 33/11. Conforme
afirma Virgílio da Silva, decidir quem deve ter a última palavra sobre a Constituição
não é algo que decorre da própria Carta – o Poder Judiciário, o Poder Legislativo ou

67 DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana – tradução:


Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

184 NOME DO AUTOR


o povo – “trata-se mais de conveniência e oportunidade do que de mera interpretação
constitucional”68.

Depreende-se, com isso, que a PEC 33/11 pode, ao contrário, responder ao desafio
do constitucionalismo brasileiro, de reconciliar a necessidade de uma corte constitu-
cional, capaz de fomentar um debate pautado em argumentos de princípios, com o
imperativo de democratizar o direito constitucional e de introduzir mecanismos mais
ativos de participação do Poder Legislativo para contribuir na decisão final sobre os
direitos fundamentais. 69

A exigência formal de uma manifestação do Poder Legislativo subsequente à


declaração de inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, para ratificar ou se
opor à leitura judicial, conforme proposto pela PEC 33/11, pode representar a criação
de um modelo de jurisdição constitucional sem supremacia judicial, harmonizando um
controle de constitucionalidade menos forte e revigorando a legitimidade democrática
do ordenamento constitucional brasileiro ao retirar a autoridade da última palavra do
Poder Judiciário. No entanto, torna-se relevante registrar que diferente da característica
do “novo modelo”, de acordo com Stephen Gardbaum (2010, 2013), de alocar a última
palavra para uma maioria simples do Poder Legislativo, a proposta da PEC 33/11
impõe a necessidade do quórum qualificado de três quintos para o posicionamento
contrário do Poder Legislativo, isto é, apresenta um quórum mais dificultoso para a
possibilidade de reversão da decisão judicial. Outra característica distinta, ao menos
dos modelos britânico e neozelandês, é a de que a posição do Judiciário no sistema
não seria meramente interpretativa da conformidade ou compatibilidade da norma com
a Constituição, mas permanece com o poder anulatório, de declarar a invalidade da
norma que julga inconstitucional, retirando-a do ordenamento jurídico. Entretanto, os
efeitos vinculantes e erga omnes seriam postergados para depois da decisão legislativa
ou popular, os quais apenas não ocorrerão em caso de dupla contrariedade: legislativa
e popular. Além disso, o objeto da revisão do Congresso Nacional seriam apenas
as emendas constitucionais, ou seja, diversamente dos países referências do novo
modelo, no qual a possibilidade de superação formal do Poder Legislativo ocorre
também em relação à legislação, no sistema brasileiro essa revisão obrigatória seria
restrita às normas provenientes das reformas constitucionais. Contudo, permaneceria

68 SILVA, 2013, op. cit

69 BUSTAMANTE, PATRUS, 2014, op. cit., p. 813.


PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 185-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
a possibilidade de superação da interpretação judicial por intermédio de emenda
constitucional (ou mesmo leis) já existente atualmente.

Essa reforma consistiria, por conseguinte, mais em uma adaptação gradual em


consonância com o contexto histórico institucional brasileiro, com as idiossincrasias
da realidade da nossa democracia constitucional, do que uma transformação radical
rumo a um paradigma de controle de constitucionalidade fraco como existe no modelo
constitucional da comunidade britânica70. Com efeito, há um acréscimo de caráter
democrático na autoridade final do sistema, sem comprometer (ao menos, em tese) a
proteção de direitos fundamentais, o que seria o principal benefício normativo repre-
sentado por um modelo de controle de constitucionalidade sem supremacia judicial.

Tal alteração no sistema constitucional brasileiro pode proporcionar as vantagens


normativas apontadas por Stephen Gardbaum de um modelo intermediário de controle
de constitucionalidade desassociado da supremacia judicial, de potencializar tanto
as virtudes do constitucionalismo jurídico como as do constitucionalismo político e
minimizar as possíveis falhas de ambos71. Poderia ocorrer uma descentralização de
responsabilidades sobre direitos, compartilhando-as entre corte e parlamento, favore-
cendo um diálogo interinstitucional, no qual cada ator institucional pode contribuir com
suas expertises e capacidade institucional, de modo a analisar as questões constitu-
cionais sob perspectivas distintas, e a promover uma maior cooperação institucional
na interpretação sobre direitos. Desse modo, aproveita-se tanto o raciocínio moral mais
livre e heterogêneo do Poder Legislativo, baseado na multiplicidade de informações
e de orientações ideológicas, como do raciocínio baseado em princípios e no direito
posto, presente no Poder Judiciário. Essa interação entre as duas instituições pode
promover um ganho epistêmico na produção de melhores decisões sobre as questões
pertinentes a emendas constitucionais.

Além disso, o Poder Judiciário continuaria a exercer o seu papel de ponto de


checagem e de alerta sobre a proteção de direitos fundamentais no ordenamento
constitucional brasileiro, exercendo um papel de catalisador deliberativo sobre direitos
fundamentais, quebrando a inércia ou possíveis fraquezas do Legislativo nessa questão,
de modo a se reduzir a chance de proteção deficiente sobre eles e de se evitar abusos.
No entanto, em vez de exercer um veto final no sistema, o papel do Poder Judiciário

70 GARDBAUM, Stephen. The New Commonwealth Model of Constitutionalism: Theory and Practice.
Cambridge: Cambridge Univ. Press. 2013.

71 Idem

186 NOME DO AUTOR


representaria mais uma função de desaceleração sobre a decisão, para impor um ônus
deliberativo ao Poder Legislativo e de chamar a atenção sobre questões de direitos.
Na reapreciação da decisão, o Congresso Nacional teria um ônus argumentativo e
político maior, visto que teria que justificar a razão pela qual está indo de encontro à
interpretação judicial.

Ademais, no caso de desacordo entre as duas instituições, delega-se diretamente


ao povo, por meio de um mecanismo de democracia direta a autoridade final sobre a
questão crucial de constitucionalidade. Reforça-se, assim, a legitimidade democrática
do sistema, incluindo a participação popular no processo de deliberação e decisão
constitucionais, revitalizando o debate político e popular e promovendo o autogoverno
do povo, haja vista que não apenas os seus representantes como também a população
diretamente pode enfrentar as questões com base em princípios. Torna mais viva, ainda,
a ideia de Peter Häberle de uma “sociedade aberta de intérpretes da Constituição”, tendo
em vista que haveria uma democratização profunda da interpretação constitucional,
na qual todos os cidadãos que vivem a norma poderiam interpretá-la conjuntamente
e decidir sobre seu significado72. A interpretação constitucional deixaria de pertencer
exclusivamente a uma sociedade fechada, na qual, participam apenas os intérpretes
jurídicos e participantes formais do processo constitucional, para o envolvimento
do órgão legislativo, cidadãos, grupos e movimentos sociais que fazem parte dessa
sociedade aberta e pluralista.

Também é fortalecida a compreensão de “interpretação protestante”, que se traduz


na ideia de que cada cidadão é igualmente responsável pela interpretação do direito e
da Constituição, e “por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade
com os princípios”73. Ao contrário de uma “interpretação católica”, que reconhece
apenas o monopólio da autoridade judicial para definir o sentido da Constituição, a
“intepretação protestante” entende que todos os cidadãos têm legitimidade para decidir
o que significa a Constituição, isto é, todos os membros da comunidade política seriam

72 HÄRBELE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – a


contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.

73 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito: tradução Jeferson Luiz Camargo. 3 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2014
PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 187-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
coautores no processo de argumentação, deliberação e de decisão sobre o conteúdo
constitucional 74.

Essa possibilidade de introdução de uma inovação institucional de consulta


ao povo poderia representar um aperfeiçoamento democrático da ideia de diálogos
constitucionais, que, de acordo com Roberto Gargarella75, padece do defeito de alienar
juridicamente o povo do debate constitucional. Para Gargarella76, o problema das
teorias e práticas dialógicas contemporâneas é que elas partem do pressuposto de
que só o fato de alocar institucionalmente a última palavra para os parlamentos, ou
de se constatar a interação entre cortes e legislativos na resolução de controvérsias,
que o problema democrático estaria resolvido. Mesmo os legislativos, para o teórico
argentino, não representam a multiplicidade de visões e de vozes que existem nas
sociedades contemporâneas. Embora ele reconheça que um sistema no qual os
legisladores tenham a última palavra seja um aperfeiçoamento modesto, não seria
a solução, porque ainda seria um sistema de cima para baixo (top-down), manejado
pelas elites políticas e econômicas, sem controle popular. Para Gargarella, nós, o povo,
permanecemos fora da Constituição77.

Em função disso, a institucionalização de um mecanismo de democracia direta


poderia representar um aperfeiçoamento mais ambicioso em direção a inclusão
democrática do povo como parceiros e autores da interpretação constitucional. Seria
valorizado, com isso, o direito dos direitos – o direito à participação – e a igualdade

74 BALKIN, Jack. Constitutional Redemption: Political Faith in an Unjust World. Cambridge: Harvard
University Press, 2011. p. 10. Conforme Jack Balkin (2011, p. 89) explica, a ideia de interpretação
protestante, desenvolvida por Sanford Levinson (1989), se contrapõe a interpretação católica, fazendo
um paralelo com as religiões católica e as protestantes. Enquanto para os católicos a única interpretação
legítima da Bíblia é a realizada pelas autoridades da Igreja; para os protestantes, desde a Reforma
iniciada por Martin Lutero, cada fiel teria o poder de interpretar o texto sagrado a seu modo, conforme
a sua consciência. Da mesma maneira, na interpretação constitucional, o “constitucionalismo católico”
entende que deveria haver uma autoridade central para a interpretação constitucional, ao passo que
o “constitucionalismo protestante” concebe que a autoridade poderia ser múltipla: estar presente nos
demais poderes políticos, nos movimentos sociais e, inclusive, nos cidadãos individualmente.

75 GARGARELLA, Roberto. Scopes and Limits of Dialogic Constitucionalism. IN: BUSTAMANTE, Thomas;
FERNANDES, Bernado. Democratizing Constitutional Law: Perspectives on Legal Theory and the
Legitimacy of Constitutionalism. Heidelberg: Springer, 119-146, 2016. p. 138

76 Idem. p. 139-141

77 Idem, p. 142. Roberto Gargarella: “We the people” still remain outside of the Constitution, fundamentally
incapable of managing and controlling our own public affairs”

188 NOME DO AUTOR


política, tão caros a Jeremy Waldron em sua teoria democrática do direito78, não apenas
pelos canais indiretos de representação, mas especialmente pela oportunidade do
exercício direto deles pelos cidadãos.

Considerações finais
No Brasil, com a expansão da autoridade e do protagonismo do Poder Judiciário
nos 30 anos da Constituição de 1988, deslocando-se para o centro do arranjo político
para debater questões públicas relevantes, muitas vezes em detrimento dos demais
poderes políticos, fenômenos como o ativismo judicial e a judicialização da política
passaram a ser motivo de preocupação e a promover reflexões e críticas sobre os
limites democráticos da intervenção judicial. Em face dessa conjuntura, a PEC 33/11
tem como motivação o receio com a hipertrofia do Judiciário e como finalidade as
necessidades de valorizar o Poder Legislativo, de reestabelecer o equilíbrio entre os
poderes e de incentivar os diálogos interinstitucionais.

A mudança do quórum da decisão de um tribunal constitucional, de uma maioria


simples para uma maioria qualificada substantiva, poderia ser uma maneira de
responder a objeção de Waldron sobre a ausência de valor moral e epistêmico na
decisão majoritária judicial. Os argumentos utilizados para contrariar uma decisão
tomada pelos representantes do povo teriam que ser persuasivos para convencer
um número maior de juízes, o que poderia incentivar, inclusive, a deliberação interna
na corte de modo a produzir uma decisão mais qualificada. Não se substituiria uma
decisão tomada no Poder Legislativo, arena democrática por excelência, meramente
por uma corte dividida. Como notou Thomas Bustamante, um quórum qualificado ainda
possibilita que a jurisdição constitucional desempenhe seu papel de proteger direitos
fundamentais, mas evita que se troque o desacordo moral da política pelo desacordo
judicial, prestigiando, desse modo, as instituições políticas.

Por sua vez, a possibilidade de controle legislativo de súmulas vinculantes, prevista


pela PEC 33/11, reforçaria um mecanismo de controle recíproco entre poderes de
natureza democrática, na equação institucional das súmulas, que poderia promover,
inclusive, um diálogo interinstitucional entre cortes e legislativos sobre o conteúdo
das súmulas. Por consequência, poderia ocorrer tanto um ganho em uma perspectiva
da legitimidade democrática do instituto, ao conceder a palavra final formalmente aos

78 WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford University Press, 1999.


PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 189-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
representantes do povo, quanto do ponto de vista epistêmico, ao facilitar a interação
entre cortes e parlamentos na busca por melhores respostas.

A última proposta da PEC 33/11 é a inovação constitucional que poderia repre-


sentar o maior aperfeiçoamento democrático do arranjo de separação de poderes no
Brasil. Conforme exposto, a exigência da manifestação legislativa após a declaração
de inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, proposta pela PEC 33/11, não
apenas não viola o princípio da separação de poderes, como pode aperfeiçoá-lo, na
medida em que o arranjo desejável da jurisdição constitucional em uma democracia
consolidada é um que exerça o controle judicial de constitucionalidade sem supremacia
judicial, isto é, a última palavra deve pertencer a uma autoridade democraticamente
eleita, por consubstanciar melhor os ideais de proteção a direitos fundamentais e de
legitimidade democrática do ordenamento jurídico-constitucional. Além de resolver a
dificuldade contramajoritária e revigorar a legitimidade democrática do ordenamento
constitucional brasileiro, equilibraria a responsabilidade na decisão sobre direitos entre
as instituições legislativas e judiciais, de modo que cada uma, com sua expertise e
capacidade institucional possa contribuir para o processo de decisão. Dessa forma,
poderia se ter tanto um ganho substancial no quesito democrático – e, na legitimidade
intrínseca do sistema –, como também no quesito epistêmico-instrumental, na capaci-
dade de produzir resultados com qualidade, em virtude da possibilidade de interação
entre poderes nesse processo.

Em que pese a PEC 33/11 não ser inconstitucional e normativamente, inclusive,


estar de acordo com a justificação desejável de separação de poderes e de como a
jurisdição constitucional deveria exercer seu papel em uma democracia constitucional
consolidada, a análise sobre a instituição desse mecanismo no momento atual da
democracia brasileira deve ser também de política constitucional. Deve-se verificar se
o contexto histórico e cultural brasileiro já está maduro e sólido o suficiente, bem como
se satisfaz as condições substantivas de uma democracia em bom funcionamento,
especialmente, a existência de instituições legislativas funcionando razoavelmente
bem como a de uma cultura de respeito a direitos individuais e de minorias pelas
instituições políticas e pelos cidadãos.

Enfim, a mudança da estrutura de controle de constitucionalidade brasileira, tal


como aventada na PEC 33/11, deve ser discutida mais em uma perspectiva de conve-
niência e oportunidade, escolha própria da arena política, do que em uma interpretação
constitucional de validade/invalidade, mais pertinente à jurisdição constitucional em

190 NOME DO AUTOR


nosso modelo de controle de constitucionalidade forte. Seria uma avaliação própria da
política constitucional, legislativa e judicial, não cabendo ao Supremo Tribunal Federal
decidir, no campo hermenêutico, se seria compatível ou não um arranjo de separação
de poderes distinto do atual – que não extingue suas competências, mas reforça um
mecanismo de controle democrático – pelos motivos apresentados.

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PAULINO, Lucas Azevedo. Perspectivas para o controle de constitucionalidade brasileiro uma análise da proposta de mudança da
PEC nº33/11. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 193-194. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340938
194 NOME DO AUTOR
A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO
COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO
E O APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO
DO DIREITO AO SILÊNCIO: UM PEQUENO
AVANÇO EM MEIO AO RETROCESSO
Ludmila Corrêa Dutra1
Caroline Mesquita Antunes2

O homem nunca é tão dono de si mesmo quanto no silêncio: fora dele,


parece derramar-se, por assim dizer, para fora de si e dissipar-se pelo
discurso; de modo que ele pertence menos a si mesmo do que aos
outros.3

Resumo
O direito o silêncio, que é uma das vertentes do princípio nemo tenetur se
detegere, encontra-se consagrado, de forma superficial, no artigo 5º, LXIII, da
CR/88, no artigo 186, caput e parágrafo único, do Código de Processo Penal,
além de tratados internacionais de direitos humanos que foram ratificados
pelo Brasil. Apesar das diversas discussões a respeito da abrangência de sua
aplicação na prática judiciária brasileira, referido direito ainda não encontrou
sua expressão máxima, haja vista os resquícios inquisitóriais arraigados
no processo penal pátrio, o aumento da criminalidade e o punitivismo

1 Doutoranda e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
Especialista em Direito Processual pelo IEC Puc Minas. Advogada e Professora de Direito Penal e
Processo Penal. E-mail: ludmilacd@hotmail.com

2 Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Professora de
Direto Penal e Constitucional. E-mail: carolmesquita2@hotmail.com

3 DINOUART, Abade. A arte de calar (1771). Trad. Luis Filipe Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 12.
DUTRA, Ludmila Corrêa; ANTUNES, Caroline Mesquita. A proibição da condução coercitiva para interrogatório e o aprimoramento
da aplicação do direito ao silêncio um pequeno avanço em meio ao retrocesso. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo
Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo
Horizonte: IDDE, 2018. p. 195-214. Disponível em: https://doi.org/10.32445/97885671340939
emergencial presentes no Direito e na sociedade brasileira atual. Contudo,
recentimente o Supremo Tribunal Federal caminhou no sentido de aumentar
a dimensão do direito ao silêncio no Brasil, ao proibir a condução coercitiva
de imputados para participarem de interrogatório, seja policial ou judicial,
o que representa um avanço frente ao retrocesso de alguns procedimentos
penais atuais.

Introdução
O interrogatório do imputado é um procedimento que se reveste de relativa
complexidade no direito brasileiro, haja vista a possibilidade de muitas das regras
nele aplicadas serem inobservadas e a forma com que é conduzido pelas autoridades,
seja policial ou judicial, ferir direitos e garantias fundamentais, constitucionalmente
asseguradas ao acusado.

Nesse sentido, insere-se o direito ao silêncio, que, apesar de estar previsto na


Constituição da República, no Código de Processo Penal e em tratados internacionais
de direitos humanos ratificados pelo Brasil, vem sendo negligenciado pelas autoridades
estatais nos últimos anos. Sua previsão no ordenamento jurídico brasileiro é apenas
superficial, já que sua dimensão e âmbito de aplicabilidade encontram-se indefinidos, o
que dá margem a diversas interpretações, que, muitas vezes, acabam por restringir o seu
conteúdo. Ademais, na prática investigativa é comum o direito ao silêncio ser ignorado.

Essa realidade jurídica no país parece ser consequência de uma mentalidade


punitivista e inquisitória presente em algumas normas e também em alguns opera-
dores do Direito. Todavia, em meio a esse retrocesso ideológico o Supremo Tribunal
Federal parece caminhar rumo à proteção dos direitos dos acusados e alinhar-se
com as previsões constitucionais sobre o tema ao proibir a condução coercitiva dos
investigados e dos réus.

1. O direito ao silêncio como vertente do princípio


nemo tenetur se detegere
Nemo tenetur se detegere é uma expressão que decorre do latim e que pode ser
traduzida como “ninguém é obrigado a se descobrir”. Existem outros brocardos latinos

196 Ludmila Corrêa Dutra


Caroline Mesquita Antunes
que expressam a mesma ideia, como: nemo tenetur se accusare4, nemo tenetur se ipsum
accusare5, nemo tenetur se ipsum prodere6 e nemo tenetur prodere seipsum, quia nemo
tenetur detegere turpitudinem suam7.

Em síntese, a máxima nemo tenetur se detegere pode ser definida como o direito
conferido a pessoa de não produzir provas que lhe possam ser desfavoráveis e acarretar
em sua incriminação, assim, esta não pode sofrer qualquer prejuízo diante de sua
recusa ou omissão em colaborar com as autoridades na investigação ou na instrução
de um processo criminal do qual é ré.

O princípio possui ampla dimensão e, embora sua vertente mais conhecida seja o
direito ao silêncio, abrange também o direito de não confessar, de não colaborar com
a investigação ou instrução criminal, de não declarar contra si, direito de declarar o
inverídico, desde que não haja prejuízos para terceiros, direito de não apresentar provas
prejudiciais, direito de não produzir ou não contribuir ativamente para a produção de
provas contra si, direito de não ceder o corpo, seja total ou parcialmente, para produção
probatória, a inexistência do dever de dizer a verdade, entre outros que se adéquem
ao sentido expresso em seu conceito, que de acordo com Carlos Henrique Borlido
Haddad, abarca

[...] todas as ações, verbais ou físicas, capazes de contribuir para a


incriminação de alguém. A recusa em submeter-se a intervenções
corporais – colheita de sangue para exame de DNA – e a participar da
reconstituição do crime, a negativa em sujeitar-se ao exame de dosagem
etílica em delitos de trânsito, a oposição à entrega de documentos que
possam comprometer seu possuidor. Todos esses comportamentos,
por trazerem potencial lesão ao direito de defesa do acusado, estão
encobertos pela máxima.8

No ordenamento jurídico brasileiro a única vertente do nemo tenetur se detegere


que encontra previsão expressa é o direito ao silêncio, incluído como direito fundamental

4 Ninguém é obrigado a acusar-se.

5 Ninguém é obrigado a se acusar a si próprio.

6 Nenhuma pessoa pode ser obrigada a trair a si mesma em público.

7 Ninguém pode ser compelido a depor contra si mesmo, pois ninguém é obrigado à auto-incriminar-se.

8 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. O interrogatório no processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000,
p.136.

A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E O 197


APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO
no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição da República de 1988, que determina que o
preso deve ser “informado de seus direitos entre os quais o de permanecer calado”,
complementado pelo artigo 186, caput e parágrafo único, do Código de Processo Penal,
incluído em 2003 pela Lei nº 10.792, in verbis:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro


teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o
interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder
perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá


ser interpretado em prejuízo da defesa.

O artigo supra acarretou a parcial inconstitucionalidade do artigo 198 do mesmo


diploma legal, que prevê que o “silêncio do acusado [...] poderá constituir elemento para
a formação do convencimento do juiz”, o que não mais pode ser admitido em razão do
direito ao silêncio ser uma garantia individual do acusado na persecução penal, que
encontra fiança na lei maior.

As demais versões do nemo tenetur se detegere, dentre as quais, o direito a não


auto-incriminação, devem ser extraídas de outros princípios constitucionalmente asse-
gurados e diplomas internacionais ratificados pelos Brasil, como o Pacto Internacional
de Direitos Civis e Políticos, ratificado pelo Brasil em 06 de julho de 1992, por meio do
Decreto nº. 592, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ou como é mais
conhecida, Pacto São José da Costa Rica, ratificada em 06 de novembro do mesmo
ano, através do Decreto nº. 678, que o abordam em seus artigos 14, § 3º, g9 e 8º, § 2º,
g10, respectivamente.

Referidos tratados foram recepcionados pelo nosso ordenamento jurídico como


normas supralegais, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, já que
não passaram pelo procedimento previsto no art. 5º, § 3º, que foi incorporado a nossa
Constituição da República pela Emenda Constitucional nº. 45, de 2004, e que dispõe que

9 Art. 14, § 3 Durante o processo, toda a pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade,
às seguintes garantias mínimas: g) A não ser obrigada a prestar declarações contra si própria nem a
confessar-se culpada

10 Art. 8, § 2 Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não
for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade,
às seguintes garantias mínimas: g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-
se culpada.

198 Ludmila Corrêa Dutra


Caroline Mesquita Antunes
os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos serão equivalentes as
emendas constitucionais, desde que aprovadas em cada casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, por três quintos dos votos de seus membros.

Entretanto, mesmo que os aludidos diplomas legais não tratassem expressamente


do princípio nemo tenetur se detegere ou de suas vertentes, este estaria presente no
ordenamento jurídico brasileiro, por meio de interpretação extensiva do conteúdo dos
princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CR/88), do devido processo
legal (artigo 5º, LIV, CR/88) e da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, CR/88), pois
conforme determina o artigo 5º, § 2º, da CR/88, “os direitos e garantias expressos
na constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados”.

Ademais, o nemo tenetur se detegere visa proteger o acusado diante de possíveis


excessos que podem ser cometidos pelas autoridades estatais durante a persecução
criminal, ao assegurar que a integridade física e moral do cidadão sejam preservadas.

Cabe ressaltar que esta é uma garantia que vai além da figura daquele que é alvo
de uma imputação criminal, pois é destinada a qualquer pessoa que se encontre em
uma situação em que haja pretensão do Estado em apurar fatos. Para que o nemo
tenetur se detegere seja aplicado deve haver uma relação entre autoridade e indivíduo,
assim, o princípio não se restringe apenas ao interrogatório, policial ou judicial, ou ao
processo como um todo, mas é cabível em toda a persecução penal e em qualquer
outra instância não penal ou situação cotidiana que justifique o seu uso. Nesse sentido,
é válido citar Manuel da Costa Andrade, que diz:

[...] enquanto emanação normativa da dignidade humana e do livre


desenvolvimento da personalidade, o princípio ‘nemo tenetur’ não
comporta descontinuidades, sequer graduações, em função das
sucessivas fases do processo ou da intervenção das diferentes instâncias
formais. Irrestritamente válido em relação às autoridades judiciárias, terá
de sê-lo igualmente perante os órgãos de polícia criminal. Acolhendonos
à conhecida e expressiva metáfora de Radbruch, o princípio terá de
colher o respeito tanto do juiz que ‘habita o andar nobre da casa, onde
predominam formas esmeradas de tratamento’, como da polícia criminal

A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E O 199


APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO
que ocupa a ‘cave do edifício, onde a regra é o recurso a processos mais
rudes de tratamento’.11

Entretanto, no que tange ao direito ao silêncio como vertente do nemo tenetur


se detegere, o momento em que este ganha relevo é no interrogatório, seja policial ou
judicial, pois faculta ao imputado a escolha dele participar ou não.

2. O interrogatório e o direito ao silêncio


A etimologia da palavra interrogatório provém do latim interrogatorius, que deriva
do termo interrogar, do latim interrogare, cujo prefixo inter é traduzido como entre e
sufixo rogare significa pedir.

Carlos Henrique Borlido Haddad indica que o uso do vocábulo interrogatório é


equivocado, pois o termo possui “mais de um significado para expressar distintas
realidades”. Numa primeira acepção, seria o ato ou efeito de interrogar, ou seja, a
sucessão de perguntas dirigidas a alguém, em uma segunda, seria um adjetivo e
poderia ser substituido pelo termo “interrogativo”, que designa o que é próprio para
interrogar e, por fim, indica o ato em que perguntas são feitas a um acusado ou indiciado,
dependendo do momento da persecução penal em que as perguntas são realizadas e
da autoridade que as realiza.12

Para Hélio Tornaghi o “Interrogatório, por antonomásia, é a inquirição do réu.


Em sentido um pouco mais amplo é também a do indiciado, no inquérito”13. José
Frederico Marques, por sua vez, diz que o interrogatório consiste “em declarações do
réu resultantes de perguntas formuladas para esclarecimento do fato delituoso que
se lhe atribui e de circunstâncias pertinentes a este fato”14.

Adalto Dias Tristão informa que é da essência do interrogatório:

11 ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Ed., 2012,
p. 131-132.

12 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. O interrogatório no processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000,
p.25.

13 TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 357.

14 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, vol. 2, Campinas: Bookseller, 1997, p.
297.

200 Ludmila Corrêa Dutra


Caroline Mesquita Antunes
a) Ser um ato processual, b) ser presidido pelo Juiz Criminal (no interrogatório
judicial praticado para a instrução de processo criminal, na fase do inquérito é realizado
pelo Delegado de Polícia); c) realiar-se através de perguntas dirigidas ao acusado ou
ao indiciado; d) objetivar a coleta de dados acerca do fato delituoso; e e) oportunizar
que o acusado apresente a sua versão dos fatos, e querendo, deles de defenda.15

O Código de Processo Penal brasileiro aborda o interrogatório em seu capítulo III,


artigos 185 a 196, que estabelecem regras para a realização do interrogatório judicial,
mas nada falam sobre o interrogatório na fase pré-processual, cujas referências estão
expressas nos artigos 6º, I, que trata da competência da autoridade policial após
recebimento da notitia criminis e 304, caput, que dispõe sobre o interrogatório a ser
realizado após prisão em flagrante, e que, portanto, segue os ditames do interrogatório
judicial no que for possível, já que possui natureza inquisitiva.

Há, ainda, o artigo 260, do Código de Processo Penal, que possibilita a condução
coercitiva do acusado para interrogatório, já que sua inocorrência é causa de nulidade,
conforme artigo 564, III, e, do mesmo diploma legal, o que representa flagrante violação
do conteúdo do direito ao silêncio, um dos motivos que fizeram com que, recentemente
o regramento fosse objeto de revisão pelo Supremo Tribunal Federal, que, por meio
da ADPF 444, decidiu proibir a condução coercitiva do imputado para interrogatório.

Ressalta-se que, no decorrer dos últimos anos, a possibilidade da condução


coercitiva do imputado para realização do interrogatório foi objeto de diversas críticas
por parte dos estudiosos do Direito, que já haviam percebido que o procedimento estava
em descompasso com o conteúdo da Constituição da República de 1988. A título de
exemplo, colaciona-se a observação feita por Roberto Delmanto Junior em 2004:

Tampouco existe embasamento legal, a nosso ver, para a sua condução


coercitiva com fins de interrogatório, prevista no art. 260 do CPP, já que
de nada adianta o acusado ser apresentado sob vara e, depois de todo
esse desgaste, silenciar. Se ele não atende ao chamamento judicial,
é porque deseja, ao menos no início do processo, calar. Ademais, a
condução coercitiva ‘para interrogatório’, daquele que deseja silenciar,
consistiria inadmissível coação, ainda que indireta. 16

15 TRISTÃO, Adalto Dias. O interrogatório como meio de defesa. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2009, p.
81.

16 DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Inatividade no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2004, p. 192-193.

A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E O 201


APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO
A prática da condução coercitiva para interrogatório do imputado, inclusive, já
havia sido suprimida em porpostas de projeto de reforma do Código de Processo
Penal, conforme informa:

Elaborada pela comissão nomeada pela portaria 61, de 20 de janeiro


de 2000, do Ministro de Justiça – no anteprojeto que cuida dos
procedimentos, não foi prevista condução coercitiva do acusado que não
comparece ao interrogatório. No tocante ao Tribunal do Juri, a exposição
de motivos do anteprojeto destaca: “O anteprojeto permite a realização
do julgamento sem a presença do acusado que, em liberdade, poderá
exercer afaculdade de não-comparecimento como um corolário lógico
do direito ao silêncio constitucionalmente assegurado”.17

As diretrizes sobre a realização do interrogatório no Tribunal do Jurí estão


expressas no artigo 474 do Código de Processo Penal.

O interrogatório no Brasil possui natureza jurídica dúplice, sendo considerado


tanto um meio de prova, quanto um meio de defesa. Sobre o tema, Guilherme de Souza
Nucci expõe:

Em verdade, o interrogatório é fundamentalmente, um meio de defesa.

Em segundo plano, trata-se de um meio de prova.

Meio de defesa, essencialmente, porque é a primeira oportunidade que


tem o acusado de ser ouvido, garantindo a sua autodefesa, quando
narrará a sua versão do fato, podendo negar a autoria e indicar provas em
seu favor. Poderá, ainda, calar-se, sem que se possa extrair daí qualquer
prejuízo à sua defesa ou, então, é possível que assuma a prática do
delito, alegando em sua defesa alguma excludente de ilicitude ou de
culpabilidade. Por outro lado, não deixa de ser, para a lei brasileira, em
segundo lugar, meio de prova. Note-se as várias perguntas que o juiz fará
ao réu que se disponha a falar: se a acusação é verdadeira; onde estava
ao tempo da infração; se conhece as provas contra ele apuradas; se
conhece a vítima e as testemunhas; se conhece o instrumento com que
foi praticada a infração; se, não sendo verdadeira a imputação, conhece a
razão pela qual está sendo acusado; todos os demais fatos e pormenores

17 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo tenetur
se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 238.

202 Ludmila Corrêa Dutra


Caroline Mesquita Antunes
que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da
infração, além de dados sobre a vida pregressa [...].18

Dos direitos conferidos ao acusado durante o interrogatório, sobreleva-se o direito


ao silêncio, que assegura ao acusado o direito de não responder as perguntas que
lhe forem formuladas, sem que sua recusa importe em confissão ou interpretação
em seu prejuízo. Ademais, de acordo com a ADPF 444, que acabou por ampliar o
sentido da referida garantia, o acusado não está nem mesmo obrigado a participar
do interrogatório, seja ele judicial ou policial. Nesse sentido, reforça-se a noção de
interrogatório como meio de defesa, por assegurar ao acusado o poder agir de acordo
com o seu livre arbítrio.

De acordo com Maria Elizabeth Queijo,

De modo geral, o princípio nemo tenetur se detegere assegura, no


interrogatório, a liberdade moral do acusado, consistente em liberdade
de querer e poder determinar o próprio comportamento sem imposições
externas. Ou seja, além de exercer tutela sobre o risco de auto-
incriminação, o nemo tenetur se detegere resguarda também a liberdade
de autodeterminação, que integra a liberdade moral, assegurando ao
acusado a livre escolha do comportamento processual.19

É necessário ressaltar que, apesar de diversos ordenamentos jurídicos adotarem


o direito ao silêncio e o nemo tenetur se detegere, cuja dimensão é muito maior do que
aquele, que nele está contido, o âmbito de aplicação desses direitos acabam sendo
restringidos por conflitarem com regras que deitam raízes no modelo inquisitorial de
processo. As característica do direito ao silêncio, como espécie do princípio o nemo
tenetur se detegere, inserem-se no modelo acusatório de processo, pois no modelo
inquisitório não há lugar para o silêncio, já que existe uma verdade pré-concebida,
que leva o acusado a ser visto e tratado como mero objeto, sendo nele autorizado a

18 NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 163.

19 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo tenetur
se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 189.

A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E O 203


APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO
aplicação de qualquer método que o leve a confissão. Maria Elizabeth Queijo ao citar
Vittorio Grevi explica que:

[...] o nemo tenetur se detegere é um princípio de civilidade, típico do


modelo acusatório. Nele, o acusado não é mais considerado como a
pessoa que deve contribuir e “iluminar o juiz com o seu conhecimento”.
É-lhe dada liberdade para decidir se fornece ou não a sua própria
contribuição para o processo. Desse modo, a acusação não poderá
fazer uso, como regra, do conhecimento do acusado, devendo buscar
outras provas para demonstrar os fatos a ele imputados.20

Nesse contexto, o direito ao silêncio e as demais vertentes do nemo tenetur


se detegere encontram-se estritamente vinculados com outros direitos pertinentes
ao Estado Democrático de Direito, como o direito a intimidade, à liberdade moral, à
dignidade e à intangibilidade corporal.

Acontece que restam resquícios inquisitoriais no ordenamento jurídico brasileiro,


muitos deles ligados a diversos preceitos do Código de Processo Penal, de 1941, que
tem um cunho totalitário, por ser inspirado no Codice Rocco italiano de 1930, marcado
pela adoção do sistema inquisitório nas duas fases da persecutio criminis. E, mesmo
após as diversas reformas a que foi submetido, o Código de Processo Penal brasileiro
não conseguiu se adequar por completo a Constituição da República de 1988, que é
democrática e adota o modelo acusatório de processo, o que levou a formação de um
sistema híbrido.

Ademais, o aumento da criminalidade e o punitivismo emergencial acabam levando


a inobservância de direitos e garantias fundamentais do acusado, para encobrir a
incompetência dos agentes estatais no exercício da função investigativa, dentre os
quais se encontra o nemo tenetur se detegere e, portanto, o direito ao silêncio que,
se aplicados de forma ampla e irrestrita, certamente, aumentarão o trabalho dos que
exercem referida função pública.

20 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo tenetur
se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 84.

204 Ludmila Corrêa Dutra


Caroline Mesquita Antunes
3. Inobservância do conteúdo do direito ao silêncio
Sabe-se que, se por um lado tem-se direitos resguardados pela Constituição da
República, como é o caso do direito ao silêncio, por outro, o cenário jurídico atual
demonstra uma série de ofensas às garantias do imputado, que são constantemente
justificadas pelo aumento da criminalidade e pela necessidade de punir os transgres-
sores da lei penal.

Aury Lopes Jr.21 pontua que diante da imersão nesse problema há uma dificuldade
em fazer o esforço do afastamento, do estranhamento, em relação ao ritual judiciário22
brasileiro, principalmente na esfera criminal, em que se tem um processo penal primitivo
e inquisitório.

Inclusive é perceptível através da observância das exposições da mídia e das


redes sociais uma onda de punitivismo na sociedade brasileira, aqueles que professam
tais discursos buscam o endurecimento das leis, a redução da menor idade penal e o
encarceramento como resposta imediatista às mazelas sociais.

Essa realidade preocupa os constitucionalistas uma vez que o Poder Legislativo


busca responder o anseio popular com a criação de novos tipos penais (muitos deles
desnecessários) e com o aumento das penas–em um país com a terceira população
carcerária do mundo e em que quase metade dos presos são provisórios23.  Apesar
disso, ainda é comum o discurso de magistrados e operadores do Direito alegando que
a falta de punição na sociedade brasileira é a razão para o aumento da criminalidade.
Outros tantos ainda defendem a ideia de que se criou uma sociedade em que o crime
frequentemente compensa24.

É fomentado por esse anseio por punição e pela substituição do Direito pela moral
que se tem visto as garantias constitucionais serem relativizadas. O jurista Lênio Luís
Streck há muito tem apontado a celeuma dos representantes da justiça: delegados

21 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007.

22 “Ritual judiciário” na perspectiva de Antoine Garapon, na obra Bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário,
publicado pela editora Piaget.

23  Segundo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2017.

24 Conforme declarou o Ministro Luís Roberto Barroso no Habeas Corpus nº   152752:“Criamos um país
de ricos delinquentes, um sistema judicial que não funciona e faz as pessoas acreditarem que o crime
compensa”

A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E O 205


APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO
que indiciam políticos por intuição, juízes e membros do Ministério Público negando o
direito ao silêncio, entre vários outros imbróglios. Para Streck, trate-se do “espírito desta
época”, o Zeitgeist da “wäscht schnell” (lava rápido ou “a jato”) que se transformou em
uma ideologia e cujas maiores consequências recairão sobre aqueles com menores
condições de se defender 25.

Streck alerta para o retrocesso dos dias atuais em que aplicar a Constituição da
República virou um ato subversivo e revolucionário. Cumprir as garantias e princípios
constitucionais como constam na Constituição da República virou algo perigoso, já
que os juízes só são bem avaliados se atuarem enviesados pela punição.

O advogado Geoffrey Robertson, amplamente conhecido no cenário jurídico inter-


nacional, afirma que o sistema judiciário atual é “uma afronta direta aos preceitos
fundamentais do Pacto de San José da Costa Rica”, e “esvaziam as garantias constitu-
cionais da Carta brasileira de 1988”. Inclusive pelo uso ilegal das prisões preventivas,
a violação do direito de presunção de inocência, e uso desnecessário da condução
coercitiva.26

O procurador apontou o que há muito tempo juristas brasileiros alertam: o Brasil


tem um sistema jurídico primitivo. Sistema esse que tem sido instrumento de abuso
de poder através das conduções coercitivas, utilizada amplamente em todo território
nacional afrontando o direito ao silêncio do réu. E é justamente em observância ao uso
generalizado dessa medida que se extrai a relevância do presente artigo e esclarece-se
detalhadamente sobre o instituto a seguir.

4. A condução coercitiva e o direito ao silêncio


A condução coercitiva pode ser definida como um meio conferido à autoridade
competente, de fazer comperecer a ato, algum sujeito que, injustificadamente, deixou
de cumprir determinação que o convoca para prestar esclarecimentos acerca de
determinado fato. Nesse sentido, configura-se como forma de restrição a liberdade
de locomoção do indivíduo.

25 STRECK, Lênio Luiz. Disponível em <https://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FEstado-


Democratico-de-Direito%2FA-lavajatolatria-o-Carnaval-e-os-Habeas-Corpus-de-Gilmar-
Mendes%2F40%2F39177)>. Acesso em 16 de ago. de 2018.

26 Comitê internacional de Direitos Humanos da ONU aprecia denúncia sobre abuso de poder na Operação
Lavajato. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2017/11/10/comites-internacionais-vao-
analisar-abusos-da-lava-jato-entenda-o-que-pode-acontecer/>. Acesso em: 18 ago. 2018.

206 Ludmila Corrêa Dutra


Caroline Mesquita Antunes
No Brasil, a primeira manifestação do instituto se deu nas Ordenações Filipinas,
de 1603, que aqui vigeu até 1916, pelo menos no âmbito cível, cuja estrutura jurídica
resulta da reforma do Código Manuelino, de 1513, e que determinava que testemunhas
e réus recalcitrantes poderiam ser conduzidos à força pelos Oficiais de Justiça. Além
disso, o art. 95, do Código de Processo Criminal do Império, de 1932, estabelecia que:
“as testemunhas que não comparecerem sem motivo justificado, tendo sido citadas,
serão conduzidas debaixo de vara e sofrerão a pena da desobediência”.

Atualmente, o Código de Processo Penal dispõe sobre a condução coercitiva nos


artigos 201, 218, 260, 278, 411, 461 e 535, que a regulamenta em relação ao ofendido,
as testemunhas, aos acusados, e aos peritos. Contudo, faz-se ressalva ao artigo 260
do Código de Processo Penal que passou por nova interpretação pelo Supremo Tribunal
Federal, que proibiu a condução coercitiva de imputados para fins de interrogatório
a luz dos direitos constitucionalmente assegurados ao acusado, entre eles, o direito
ao silêncio.

Destaca-se que, em relação as vítimas, as testemunhas e os peritos, a medida


encontra fundamento na busca pela verdade, mesmo quando a condução coercitiva
é decretada na fase pré-processual, com fins investigatórios, já que destes é possível
exigir uma postura ativa de participação processual, quanto a prestar depoimentos ou
declarações, participar da reconstrução do crime, realizar reconhecimento de pessoas,
entre outros. No entanto, do imputado espera-se apenas uma postura passiva, já que
não está obrigado a se auto incriminar, conforme determina o nemo tenetur se detegere.

Nesse sentido, o instituto da condução coercitiva foi objeto da ADPF 395 e da


ADPF 444, esta última interposta pelo Conselho Federal da OAB perante o Supremo
Tribunal Federal no ano de 2017, com o fim de que fosse reconhecida a não recepção
pela Constituição da República de 1988 do artigo 260, do Código de Processo
Penal (Decreto-Lei n. 3.689/1941), no que concerne a sua aplicação no âmbito das
investigações criminais, ante a incompatibilidade com os preceitos fundamentais
constitucionalmente previstos.

Na presente demanda questionou-se o artigo 260 do CPP, cuja norma no âmbito


do processo judicial prevê a condução coercitiva do acusado para realização de
interrogatório e outros atos. Todavia, a previsão normativa era aplicada de maneira
a contrariar os ditames constitucionais, vez que utilizada para a constituição de atos
no curso da investigação criminal através de interpretação extensiva e afrontando o

A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E O 207


APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO
direito ao silêncio (art. 5o, inc. LXIII), o princípio do nemo tenetur se detegere, entre
outras garantias.

A Ordem dos Advogados do Brasil ressaltou a dualidade dos efeitos trazidos pela
condução coercitiva, pois possui repercussão sobre a liberdade do indivíduo, ainda que
de forma passageira, configurando uma forma de coação. Nesse sentido, Ingo Sarlet
inclui a condução coercitiva de testemunhas–e por óbvio, permite-se concluir, também
dos investigados–entre as hipóteses de restrições legais ao direito fundamental de
liberdade de locomoção.27

Além disso, o Conselho Federal ressaltou o não cabimento da condução coercitiva


sem anterior recusa no cumprimento de intimação e mais que o não comparecimento
do acusado, por si só, não enseja a determinação de condução coercitiva na fase de
investigação criminal. Isso porque a resistência do investigado em participar ativamente
de atos, segundo a OAB, é uma manifestação do seu direito a não autoincriminação,
o que não configura desobediência ou desacato, mas, sim, direito subjetivo constitu-
cionalmente expresso.

Ademais, o Presidente da Ordem ressaltou que o uso dessa medida em sede


inquisitorial representa um retrocesso à concepção do acusado como mero objeto
de prova, desprovido de garantias individuais. Pois, o seu não comparecimento é
uma manifestação do direito à ampla defesa e de que ele se resguardou ao direito ao
silêncio, optando por manifestar-se durante a fase judicial.

Diante disso, o Supremo Tribunal Federal inicialmente em sede de liminar apontou


para uma mudança de entendimento, em dezembro de 2017, através de decisão mono-
crática do relator ministro Gilmar Mendes no bojo da Ação de Descumprimento de
preceito fundamental – ADPF de nº 444/DF, vedou, em todo o território nacional: [...] a
condução coercitiva de investigados para interrogatório, sob pena de responsabilidade
disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas,
sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

Importante frisar que ao deferir a medida cautelar, o Ministro  foi imperativo ao


esclarecer que o deferimento tocava apenas às conduções coercitivas levadas a efeito

27 SARLET. Ingo, MARINONI, Luiz Guilherme, MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2ª Edição.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

208 Ludmila Corrêa Dutra


Caroline Mesquita Antunes
no âmbito da primeira fase de persecução penal, ou seja, em sede de investigações
criminais.

Apesar da restrição inicial explicitada na cautelar, o relator pontuou que a ADPF nº


395 visa, no mérito, à declaração da não recepção parcial do artigo 260, do Código de
Processo Penal, no que toca a permissão da condução coercitiva do  investigado – em
sede de investigações criminais – ou do réu – no bojo do processo judicial propriamente
dito – para a realização de interrogatório, bem como a declaração da inconstitucio-
nalidade do uso da condução coercitiva como medida cautelar autônoma, com a
finalidade de obtenção de depoimentos de suspeitos, indiciados ou acusados em
qualquer investigação de natureza criminal.

É de fato inconcebível e ilógico, em se tratando de um Estado Democrático


de Direito, que se obrigue um cidadão presumidamente inocente a comparecer, por
exemplo, diante de uma autoridade policial para ali valer-se do seu direito constitucional
ao silêncio. E como se não fosse suficiente a sua inadequação ao sistema normativo,
o instituto ainda tem sido manejado pelas autoridades públicas de modo a aumentar
os seus efeitos nocivos em prol da espetacularização do “processo penal midiático”.28

Desse modo, e em consonância com muitos doutrinadores que sustentam a


incompatibilidade da condução coercitiva com o texto constitucional, defendida, entre
outros, por Alexandre Morais da Rosa29, Michelle Aguiar, Aury Lopes Jr. 30e Delmanto
Jr.31, o Ministro Gilmar Mendes decidiu em sede de cautelar que:

[...] a condução coercitiva para interrogatório representa uma restrição


da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade, para
obrigar a presença em um ato ao qual o investigado não é obrigado a
comparecer. Daí sua incompatibilidade com a Constituição Federal.

28 CASARA, Rubens R.R. A espetacularização do processo penal. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/


portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/
bibli_bol_2006/122.12.PDF>. Acesso em 17 de ago. de 2018.

29 ROSA, Alexandre Moraes da; AGUIAR, Michele. Qual o regime da condução coercitiva no processo penal
do espetáculo?.  Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/qual-o-regime-da-conducao-
coercitiva-no-processo-penal-do-espetaculo>. Acesso em 17 de ago. de 2018.

30 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007

31 DELMANTO JR, Roberto.  Inatividade no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004, p. 192-193.

A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E O 209


APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO
Posteriormente, em decisão do Pleno que atentou para os preceitos constitucio-
nais firmou-se entendimento sobre a inconstitucionalidade da condução coercitiva, a
votação obteve seis votos contrários às conduções e cinco a favor. Os posicionamentos
favoráveis partiram dos ministros Gilmar Mendes, Rosa Weber, Dias Toffoli, Celso de
Mello, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello.

Na oportunidade, o ministro Dias Toffoli ressaltou a importância de estrita


obediência aos limites da lei para a utilização da condução coercitiva, sob pena de se
atentar contra o direito fundamental de ir e vir, e a garantia do contraditório, da ampla
defesa, e a garantia da não autoincriminação.

No mesmo sentido o ministro Lewandowski ressaltou que o direito ao silêncio,


previsto no art. 5º da CR, por si só já seria suficiente para paralisar os efeitos da
condução coercitiva do réu para interrogatório, pois, “se cria um estado psico-
lógico no qual o exercício do direito ao silencio é propositalmente dificultado.”
Frisou ainda que caso o réu seja devidamente intimado e não comparecer, outra
consequência não poderá ser extraída senão a de que preferiu simplesmente não se
apresentar.

No voto do ministro Marco Aurélio por sua vez vê-se a ponderação a respeito
do art. 260 do CPP, que segundo o jurista no que prevê expressamente a condução
coercitiva, não foi, nessa parte, recepcionado pela CF/88. O ministro alertou sobre o
perigo do punitivismo antecipado, uma vez que a medida expõe a honra de qualquer
cidadão investigado em prática criminosa, alcançando profundamente a sua dignidade
e por isso dever se tratada com maior rigor, sob pena de prejuízo à segurança jurídica.

No tocante à opinião midiática e popular, o ministro Celso de Mello  destacou


que os julgamentos do STF, para que sejam isentos, não podem expôr-se às pressões
externas; afirmou, ainda, a necessidade de se dar proteção ao devido processo legal
e que o Estado «não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se
culpados fossem”.

O relator Gilmar Mendes por sua vez enfatizou que a decisão não tem o condão
de desconstituir interrogatórios realizados até o julgamento, mesmo que o interrogado
tenha sido coercitivamente conduzido para o ato. Isto porque estaria se reconhecendo
a inadequação do tratamento dado ao imputado, e não do interrogatório em si. 

210 Ludmila Corrêa Dutra


Caroline Mesquita Antunes
Para a maioria dos ministros, nos termos do voto do relator o método representa
restrição da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade e por isso
deve ser esquecido. Declarado inconstitucional.

Considerações finais
Diante de todo o expoxto, conclui-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal se
mostrou correta, pois apontou no sentido de aumentar a dimensão do direito ao silêncio
no Brasil, ao deixar a conveniência do acusado e de seu defensor o comparecimento ao
interrogatório, seja policial ou judicial, o que representa um avanço frente ao retrocesso
de alguns procedimentos penais da atualidade.

É certo que o novo entendimento afasta a obrigatoriedade do imputado na parti-


cipação de um procedimento que pode se mostrar degrante, porquanto manter-se em
silêncio enquanto perguntas lhe são dirigidas pode causar constrangimento e na seara
do jurí influenciar até mesmo um julgamento, o que vai contra o conteúdo do direito
ao silêncio. Ademais, a condução coercitiva quando exercida contra alguém que está
sendo acusada do cometimento de um crime revela-se como forma de coação e exerce
intimidação para que o imputado participe ativamente do interrogatório e responda às
indagações que lhe forem formuladas.

Nesse sentido, proibir a condução coercitiva de imputados para fins de interroga-


tório, aproxima o processo penal brasileiro do modelo acusatório e o concilia com os
ideais constitucionais, já que a possível consequência do não comparecimento para
interrogatório, como exercício do direito ao silêncio, será a não apresentação da versão
dos fatos pelo acusado, que deixará de proveitar a oportunidade que lhe é ofertada
para exercer sua autodefesa.

A observância do contéudo do direito ao silêncio na realização de um interrogatório


policial ou judicial representa respeito à dignidade do imputado e a demonstração de
que as provas de sua culpabilidade devem ser colhidas sem a sua cooperação, já que
não pode mais ser considerado como objeto na atual feição do processo penal, mas sim
como sujeito de direitos. Assim, se afere que o nemo tenetur se detege, em toda a sua
extensão, é um direito do cidadão diante do poder estatal, já que age como limitador
da atividade investigativa na busca pela verdade dos fatos na persecução penal.

Apesar de o Código de Processo Penal brasileiro ter um claro viés inquisitorial,


suas normas devem ser interpretadas à luz da Constituição da República e do Estado

A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E O 211


APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO
Democrático de Direito, de forma que nada justifica a lesão a direitos e garantias
fundamentais asseguradas aos cidadãos, nem mesmo o aumento da criminalidade e
o punitivismo emergencial.

Referências
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212 Ludmila Corrêa Dutra


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A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E O 213


APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO
214 Ludmila Corrêa Dutra
Caroline Mesquita Antunes
O QUÓRUM CONSTITUCIONAL
E SEU REFLEXO NO PROCESSO
LEGISLATIVO MUNICIPAL
Rafael Guimarães Abras Oliveira1

Resumo
Como regra geral, o art. 47 da Constituição Federal definiu o quórum de
maioria de votos, presentes a maioria absoluta de seus membros, para deli-
beração no Congresso Nacional. A ideia é simples: dinamizar o processo
legislativo e elevar apenas o quórum para questões de suma importância.
Todavia, tal regra constitucional vem sendo, ultimamente, afastada ou
evocada quando se tem em vista sua repercussão nas Leis Orgânicas
Municipais, na medida em que, em muitas delas, é comum o quórum de dois
terços ou três quintos para tratar de temas específicos, sem correspondência
constitucional. O dilema entre a independência federativa na elaboração de
normas de auto-organização e a obediência ao princípio da simetria induz ao
questionamento da (in) constitucionalidade desse tipo de quórum em face
da Constituição Federal, revelando entendimentos cambiantes.

Introdução
“Quorum vos unum esse volemus” – “dos quais queremos que vós sejais um”.
Assim eram recebidos os novos membros na assembleia das centúrias romanas:
reunidos, representando uma parte, deixavam de ser parte para compor e se orientar
como um todo. Quorum, palavra do latim, genitivo masculino plural do pronome rela-
tivo qui, quae, quod, que se traduz “dos quais”, especialmente invoca uma questão

1 Graduado em Direito (UFMG) e Filosofia (PUC-MG), como mestrado em Filosofia (UFOP) e em Direito
Constitucional (UFMG).
OLIVEIRA, Rafael Guimarães Abras. O quórum constitucional e seu reflexo no processo legislativo municipal. In: PEREIRA, Rodolfo
Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã:
debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 215-234. Disponível em: https://doi.org/10.32445/978856713409311
central na organização social: a proporção quantitativa necessária para se dizer capaz
de formar, reformar ou estabelecer uma unidade.

Atualmente, entende-se por quórum tanto o número mínimo de presentes para


estabelecer a deliberação quanto o número mínimo de votos para aprovar o objeto
da deliberação. O quórum, portanto, tem duas acepções distintas e concomitantes:
enquanto meio, para a abertura da reunião, e enquanto fim, para deliberar sobre o objeto
da reunião. Consoante terminologia de J. Cretella Jr., “a apreciação suscita problemas
de quórum ‘para deliberação’ e ‘para aprovação’”2.

O quórum é calculado tanto sobre o total de membros quanto sobre o total de


presentes e “se traduz em expressões fracionárias (2/3, 1/3, 3/5, etc.) ou expressões
compreensivas de conceitos que o legislador pressupõe conhecidos (maioria absoluta,
maioria relativa, maioria dos presentes, etc.)”3. O quórum se torna um dos principais
instrumentos da arquitetura constitucional. Através dele definem-se quais matérias
terão valorações distintas, quais temas demandam mais freios e contrapesos e critérios
mais rígidos para modificações e inovações – o quórum reflete as escolhas constitu-
cionais, sendo o quociente da democracia.

Mas, por que o método majoritário seria o mais adequado para, diante de opiniões
múltiplas e dissonantes, apontar o caminho a ser percorrido? Quando uma fração se
torna suficiente para, não apenas refletir a preferência da maioria, mas tornar algo válido
para toda a sociedade? E, não menos importante, haveria um limite ou uma fração
numérica capaz de referenciar o que seria um quantum legitimamente posto e o que
configuraria um abuso da necessidade da maioria, como se percebe na exigência de
quóruns de 2/3 (dois terços), 3/5 (três quintos) ou 4/5 (quatro quintos)?

Em relação à primeira pergunta, Jeremy Waldron é quem dá especial importância


ao princípio majoritário na democracia e defende que, diante do que ele chama de
circunstâncias da política, a regra da maioria, ao dar igual peso aos indivíduos, prima

2 CRETELLA JR, José. Comentários à Constituição de 1988. Vol. 5–arts. 38 a 91 -, Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1991, p 2.755.

3 GRECO, Marco Aurélio. Processo de Elaboração Legislativa Municipal–Incompatibilidade entre Regime


de Prazos e Quórum Qualificado para Aprovação de Leis. Revista de Direito Público, São Paulo, RT, ano IV,
vol. 17, jul/set, 1971, pág. 264.

216 NOME DO AUTOR


pela igualdade4 e equidade. Se “há muitos de nós, e nós discordamos sobre justiça5”,
é necessário que sobre algum tema se tenha uma decisão e que essa decisão dê igual
valor às múltiplas e dissonantes opiniões, de modo que, o procedimento via princípio
majoritário, sem entrar nos juízos de valores, ideologias e percepções da realidade
diversas dos diferentes membros da comunidade, passe significar a legitimidade e
igualdade política. Como leciona Lucas Azevedo Paulino, “é uma métrica que reconhece
o status de cada cidadão como igual, considerando de forma equivalente cada indivíduo
que possui uma diferente opinião, configurando-se, dessa maneira, em uma métrica
da equidade”6.

Mas, o princípio majoritário, enquanto pressuposto necessário e inevitável do


regime democrático, pode ter diferentes níveis, conforme pré-estabelecido consti-
tucionalmente, de acordo, por exemplo, com as matérias abordadas. Bem verdade
que a Constituição não pode engessar a discussão dos debates, cristalizando enten-
dimentos e impedindo a superação dos mesmos. Assim, como regra geral, o art. 47
da Constituição Federal define o quórum de maioria de votos, presentes a maioria
absoluta de seus membros, para deliberação no Congresso Nacional. A ideia é simples:
dinamizar o processo legislativo e apenas elevar o quórum para questões de suma
importância. Por sua vez, em relação a determinados temas a Constituição estabelece
os seguintes quóruns especiais:

a) o quórum de dois terços para votação da lei orgânica (art. 29, caput e art. 32,
caput) e para instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da
República e os Ministros de Estado (art. 51, I);

b) o quórum de três quintos, para emendas constitucionais (art. 5º, § 3º e art.


60, §2º);

c) o quórum da maioria absoluta, para vetos (art. 66, §4º), leis complementares
(art. 69), abertura de créditos suplementares ou especiais (art. 167, III), aprovação e
exoneração do Procurador Geral da República (art. 52, XI c/c art. 128), perda de mandato

4 BUSTAMANTE, Thomas. On the Difficulty to Ground the Authority of Constitutional Courts: Can Strong
Judicial Review be Morally Justified? IN: BUSTAMANTE, Thomas; FERNANDES, Bernardo. Democratizing
Constitutional Law: Perspectives on Legal Theory and the Legitimacy of Constitutionalism. Heidelberg:
Springer, p.-29-69, 2016.

5 WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. New York: Oxford University Press, 1999, p. 1.

6 PAULINO, Lucas Azevedo. Jurisdição Constitucional sem supremacia judicial: entre a legitimidade
democrática e a proteção de direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 63.

O QUÓRUM CONSTITUCIONAL E SEU REFLEXO NO PROCESSO 217


LEGISLATIVO MUNICIPAL
parlamentar ( art. 55, §2º), convocação extraordinária (art. 57, §6º, II), repropositura
de projeto com matéria prejudicada ( art. 67), escolha de ministros e conselheiros (art.
101, § único; art. 103-B, §2º; art. 104, § único; art. 111-A; art. 130-A), estado de defesa
e estado de sítio (art. 136, §4º e art. 137, § único), alíquotas do ICMS (art. 155, §2º);

d) o quórum de dois quintos, sobre a não renovação da concessão ou permissão


para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens (art. 223, §2º).

Nota-se, portanto, a preocupação constitucional em viabilizar o processo legisla-


tivo, resguardando apenas determinados assuntos, cuja importância passa obedecer
a certa peculiaridade pré-compromissada constitucionalmente.

Tendo em vista tais disposições, surge a seguinte pergunta: se a regra constitu-


cional é a maioria simples, seria possível aos demais entes federados estabelecerem
quóruns distintos dos constitucionalmente estabelecidos? Entre a independência
federativa na elaboração de normas de auto-organização e a obediência constitucional
ao princípio da simetria, onde se inclinaria a questão acerca do quórum?

A doutrina de Raul Machado Horta


Quando a discussão gira em torno da relação entre o poder constituinte derivado7
e seus limites em face ao princípio da simetria, assume relevo a doutrina de Raul
Machado Horta. No estudo do modelo federalista, o constitucionalista mineiro identifica,
na Constituição Federal, as normas centrais, as quais se estendem à organização dos
entes federados e não apenas à União, devendo ser necessariamente reproduzidas nas
Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas.

As normas constitucionais federais, que, transpondo o objetivo primário


de organizar a Federação, vão alcançar o ordenamento estadual, com
maior ou menor intensidade, demonstram a existência de uma forma

7 Embora incontestavelmente aceita-se o poder derivado decorrente conferido pelo poder originário
constituinte aos Estados-membros, quando o tema toca sobre a existência do poder constituinte
derivado decorrente do Distrito Federal, e, sobretudo, dos Municípios, há extensa controvérsia doutrinária
e jurisprudencial. No entanto, não se questiona aqui os limites do poder derivado decorrente e sim
presume-se que a simetria prescreve determinados paradigmas a serem obrigatoriamente obedecidos
por todos os entes federados.

218 Rafael Guimarães Abras Oliveira


especial de normas na Constituição Federal, que denominamos normas
centrais8.

As normas centrais foram classificadas por Raul Machado Horta em quatro


categorias: princípios constitucionais, princípios desta Constituição ou princípios esta-
belecidos, normas de competência deferidas aos Estados e normas de preordenação.

Os princípios constitucionais são aqueles cuja violação possibilitam a intervenção


federal, são os famosos princípios sensíveis, elencados no art. 34, inciso VII, da CF/88.
Forma republicana, sistema representativo e regime democrático; direitos da pessoa
humana; autonomia municipal; prestação de contas da administração pública, direta
e indireta.

Por sua vez, os “princípios desta Constituição” ou princípios estabelecidos podem


ser qualificados como limitações ao constituinte decorrente, que demandam interpre-
tação sistemática para serem identificados9. Raul Machado Horta dá como exemplos os
fundamentos e objetivos da República, os direitos e garantias individuais, os princípios
e diretrizes de organização da ordem social, econômica e administrativa.

Em terceiro lugar, o autor elenca as normas de competência deferidas aos Estados,


tais como as competências comuns (art. 23), concorrentes (art. 24) e privativas (por
exemplo, art. 155), definidas no corpo constitucional.

Por fim, as normas de preordenação versam, sobretudo, sobre pressupostos de


organização político-administrativa. Temas como mandato, remuneração dos agentes
políticos, regras sobre os servidores públicos e suas garantias, normas básicas para os
dez primeiros anos da criação de um novo Estado (art. 235), pertencem a tal categoria.

Em um estudo anterior, na década de 1960, Raul Machado Horta menciona


também as chamadas normas de imitação, as quais “exprimem a cópia de técnicas
ou de institutos, por influência da sugestão exercida pelo modelo superior10”. Seriam
normas instituídas pela vontade espontânea do ente federado, que adere à simetria
da organização da União por voluntariedade e não por obrigação.

8 HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 333.

9 FONTELES, Samuel Sales. O Princípio da Simetria no Federalismo Brasileiro e a sua Conformação


Constitucional. IN: Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 2, p.
119–140, jul./dez., 2015.

10 HORTA, Raul Machado. A autonomia do estado-membro no direito constitucional brasileiro. Belo


Horizonte: Santa Maria, 1964, p. 193.

O QUÓRUM CONSTITUCIONAL E SEU REFLEXO NO PROCESSO 219


LEGISLATIVO MUNICIPAL
A natureza do quórum
Seria o quórum uma norma central ou uma norma de imitação, consoante à
doutrina de Machado Horta?

Historicamente, o processo legislativo tem status de princípio constitucional. A


Carta de 1967, com as alterações da Emenda n.º 1, de 17/10/69, expressamente elevou
o processo legislativo à condição de princípio constitucional, conforme se depreende
do seu art. 13:

Art. 13. Os Estados organizar-se-ão e reger-se-ão pelas Constituições e


leis que adotarem, respeitados, dentre outros princípios estabelecidos
nessa Constituição, os seguintes:

I–os mencionados no item VII do artigo 1011;

II–a forma de investidura nos caros eletivos;

III–o processo legislativo;

IV–a elaboração do orçamento, bem como a fiscalização orçamentária


e a financeira, inclusive a da aplicação dos recursos recebidos da União
e atribuídos aos municípios;

V–as normas relativas aos funcionários públicos, inclusive a aplicação,


aos servidores estaduais e municipais, dos limites máximos de
remuneração estabelecidos em lei federal;

VI–a proibição de pagar a deputados estaduais mais de oito sessões


extraordinárias.

VII–a emissão de títulos da dívida pública de acôrdo com o estabelecido


nesta Constituição;

VIII–a aplicação aos deputados estaduais do disposto no artigo 35 e


seus parágrafos, no que couber; e

11 Art 10–A União não intervirá nos Estados, salvo para: VII–assegurar a observância dos seguintes
princípios: a) forma republicana representativa; b) temporariedade dos mandatos eletivos, limitada a
duração destes à dos mandatos federais correspondentes; c) proibição de reeleição de Governadores e
de Prefeitos para o período!mediato; d) independência e harmonia dos Poderes; e) garantias do Poder
Judiciário; f) autonomia municipal; g) prestação de contas da Administração.

220 Rafael Guimarães Abras Oliveira


IX–a aplicação, no que couber, do disposto nos itens I a III do artigo
114 aos membros dos Tribunais de Contas, não podendo o seu número
ser superior a

ete.

§ 1º Aos Estados são conferidos todos os podêres que, explícita ou


implìcitamente, não lhes sejam vedados por esta Constituição.

Seguindo tal linha histórica de interpretação, tanto antigamente quanto atualmente,


os Tribunais de Justiça e o próprio Supremo Tribunal Federal já declararam incons-
titucionalidade de Lei Orgânica que, afastando-se “das linhas mestras do processo
legislativo, estabelecidas na Constituição”, exigia quórum de 2/3 (dois terços) para
aprovação de matérias compreendidas na sua função legislativa ordinária:

PROCESSO LEGISLATIVO. CONSOANTE JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO


TRIBUNAL FEDERAL,  OS ESTADOS NÃO SE PODEM AFASTAR DAS
LINHAS MESTRAS DO PROCESSO LEGISLATIVO, ESTABELECIDAS
NA CONSTITUIÇÃO.  É INCONSTITUCIONAL, PORTANTO, A LEI
ORGÂNICA DOS MUNICÍPIOS DO ESTADO DO PARANA,  NO PONTO
EM QUE EXIGE “QUORUM” DE DOIS TERCOS PARA A APROVAÇÃO,
PELAS CÂMARAS MUNICIPAIS, DE MATERIAS COMPREENDIDAS NA
SUA FUNÇÃO LEGISLATIVA ORDINARIA, COM EXCLUSAO DAQUELA
RELATIVA A PROPOSTA DE TRANSFERENCIA DA SEDE DO MUNICÍPIO.
REPRESENTAÇÃO JULGADA PROCEDENTE, EM PARTE.(Rp 1010,
Relator(a):  Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, Tribunal Pleno, julgado em
06/09/1979, DJ 26-10-1979 PP-08043 EMENT VOL-01150-01 PP-00032
RTJ VOL-00091-02 PP-00402

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE–REGIMENTO INTERNO


DA CÂMARA MUNICIPAL–PROCESSO LEGISLATIVO–OBSERVÂNCIA
OBRIGATÓRIA–PRINCÍPIO DA SIMETRIA–APROVAÇÃO DE PROJETOS
DE RESOLUÇÕES–QUÓRUM QUALIFICADO–INCONSTITUCIONALIDADE
FORMAL–REPRESENTAÇÃO ACOLHIDA. Os Estados-membros e os
Municípios ao disporem sobre o processo legislativo devem seguir
as balizas previstas na Constituição da República, em atenção ao
princípio da simetria, por isso revelam-se inconstitucionais normas do
Regimento Interno da Câmara Municipal que exigem quórum qualificado
para deliberar sobre matérias que devem ser tratadas pela regra da

O QUÓRUM CONSTITUCIONAL E SEU REFLEXO NO PROCESSO 221


LEGISLATIVO MUNICIPAL
maioria simples.  (TJMG -  Ação Direta Inconst  1.0000.17.033636-
6/000, Relator(a): Des.(a) Edilson Olímpio Fernandes, ÓRGÃO ESPECIAL,
julgamento em 11/04/2018, publicação da súmula em 16/04/2018)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE–DISPOSITIVO DO


REGIMENTO INTERNO QUE ESTABELECE QUÓRUM QUALIFICADO
PARA A APROVAÇÃO DE EMPRESTIMOS–VIOLAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA SIMETRIA–INCOSTITUCIONALIDADE VERIFICADA 
O ato normativo impugnado, artigo 149, inciso VI, do 
Regimento Interno da Câmara Municipal de Carandaí, MG, estipulou
o quórum de 2/3(dois terços) de seus membros para aprovação de
empréstimos, operações de crédito e acordos externos de qualquer
natureza. A exigência prevista no dispositivo atacado, quórum qualificado,
vai de encontro as previsões constantes nas Constituições Federal e
Estadual. Verifica-se, na hipótese, a flagrante inconstitucionalidade face
à inobservância do princípio da simetria. V.v.: Diferentemente do que
sucedeu no ordenamento constitucional anterior, o processo legislativo
não constitui princípio estabelecido na Constituição da República de 1988
de obrigatório atendimento pelos Estados-membros e pelos municípios,
razão pela qual o art. 146, inc. VI, do Regimento Interno da Câmara
Municipal de Carandaí, ao tratar do “quorum” necessário para aprovação
de lei autorizativa de empréstimos–matéria afeta ao interesse local -,
não ofende a norma da simetria preconizada no art. 172 da Constituição
do Estado.  (TJMG -  Ação Direta Inconst  1.0000.15.088754-5/000,
Relator(a): Des.(a) Rogério Medeiros, ÓRGÃO ESPECIAL, julgamento
em 24/08/0017, publicação da súmula em 22/09/2017)

Que o Município, ente federado com poder organizatório, deve obedecer aos limites
e princípios da Constituição da República e os da Constituição do seu próprio Estado;
que, embora seja autônomo, “autonomia não significa apropriação de liberdade ilimitada
no e para dispor normativa e organizacionalmente sobre os poderes municipais”12; que
é necessária a observância do princípio da simetria, sendo a Constituição da República
a única legitimada a estabelecer o quantum necessário para efetivar a soberania
popular; que absorção desses preceitos constitucionais pelas constituições estaduais
e leis orgânicas é compulsória, sendo normas de reprodução obrigatória e atuando

12 CASTRO, JOSÉ NILO DE. Direito Municipal Positivo. 7.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 146.

222 Rafael Guimarães Abras Oliveira


como verdadeiras cláusulas pétreas, na medida em que estão imunes a tentativas
de supressão ou reforma por parte das Assembleias Legislativas ou das Câmaras
Municipais. Eis os principais argumentos elencados pela jurisprudência, a qual ainda
classifica o processo legislativo – e consequentemente a fixação do quórum – como
princípio constitucional.

Todavia, para uns, o quórum sendo matéria afeita ao processo legislativo, com a
Constituição de 1988 não constitui mais princípio constitucional ou norma de preorde-
nação de observância obrigatória por parte dos Estados-Membros e dos Municípios.
Segundo os defensores dessa posição, a CF/88 eliminou a excessiva centralização do
ordenamento constitucional anterior, de forma que a autonomia dos entes federativos
seria uma autonomia controlada – cada qual teria, dentro de limites razoáveis, mas
não previamente fixados, a liberdade na instituição de sua organização administrativa
e, consequentemente, no processo legislativo estadual e municipal.

Diante da tradicional jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que reconhece,


desde o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 216/PB, relatada pelo
Min. Celso de Mello, a simetria entre o processo legislativo da União e o dos Estados
e Municípios, Manoel Gonçalves Ferreira Filho refuta:

Certamente, o art. 25 da Lei Magna em vigor manda que os Estados, ao


organizarem-se, observem os ‘princípios’ da Carta federal. Entretanto,
não os enuncia. No Direito anterior, por força do art. 200 da Emenda
Constitucional n. 1/69, era expresso ser o processo legislativo federal
incorporado ao direito estadual, e, por via reflexa, ao direito municipal.

Ora, gozando os Estados de autonomia, sendo as exceções de se


interpretarem restritivamente, parece descabido o posicionamento da
Suprema Corte. Com efeito, não se atina com a razão de ser a cópia do
processo legislativo federal um ‘princípio’ obrigatório para os Estados.

Quando muito se poderia ver como ‘princípio’ a necessidade de deliberação


da Assembléia Legislativa sobre os projetos de lei, evitando-se o modelo
da Constituição castilhista do Rio Grande do Sul, ao tempo da primeira
República. Assim, não haveria por que os Estados ficarem presos ao
modelo federal13.

13 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Do processo legislativo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 253.

O QUÓRUM CONSTITUCIONAL E SEU REFLEXO NO PROCESSO 223


LEGISLATIVO MUNICIPAL
Votos vencidos, como o voto do Ministro Menezes Direito, no julgamento da ADI
n.º 2.872/PI (sob a relatoria do Ministro Eros Grau, publicado no DJe de 05/09/2011),
também reforçam que, acerca do processo legislativo, o princípio da simetria poderia
ser mitigado:

Também eu entendo que o princípio da simetria deve comportar


modulação. É que não se pode deixar a liberdade dos estados-
membros limitada no regime federativo quando divergem das regras da
Constituição Federal naqueles pontos em que se não configura nenhuma
violação de direito público vinculado à realização do ideal social e da
organização estatal. Veja-se, assim, que, por exemplo, é pertinente a
aplicação do princípio da simetria naqueles múltiplos casos em que
se invade a competência privativa do Poder Executivo com relação à
produção legislativa parlamentar. É que nestes casos existe, sem dúvida,
uma questão fundamental para a organização do estado, qual seja, a
necessidade de preservar-se indissolúvel na federação o princípio basilar
da separação de poderes.

(...)

O tema da autonomia dos estados-membros no plano de suas


constituições e mesmo da legislação ordinária ou complementar vai
exigir em algum momento que esta Suprema Corte repense a orientação
estrita que vem adotando. É que em muitos casos, como em matéria
de saúde pública ou de educação, há peculiaridades que devem ser
respeitadas e que, por isso, não podem ficar sob o padrão da simetria
com disposição da Constituição Federal.

(...)

Mas isso não quer dizer, pelo menos na minha avaliação, que não possa
o constituinte estadual impor que seja adotada espécie normativa
prevista no processo legislativo federal. A exigência que se faz na
Constituição Federal diz especificamente com a legislação federal, não
com a legislação estadual. Não me parece razoável que esse princípio da
simetria chegue ao ponto de inviabilizar a opção do constituinte estadual
sobre uma das espécies normativas disponíveis na Constituição Federal.
Em que essa opção violentaria a organização nacional? Em que essa
opção atacaria algum princípio sensível do estado nacional organizado

224 Rafael Guimarães Abras Oliveira


sob a forma federativa? Em nada, absolutamente nada. Ao contrário,
estreitando o princípio da simetria, que é construção jurisprudencial,
dar-se-á mais sentido e força à federação brasileira, forma de estado
escolhida pelo constituinte desde a proclamação da República.

Então, para Menezes Direito, por exemplo, poderiam ser simétricas as Constituição
Estaduais e Leis Orgânicas que fixam quórum qualificado seguindo preceitos cons-
titucionais, como é o caso de temas afeitos à lei complementar, para determinadas
matérias que se revestem de maior importância, consoante o destaque regional ou local.
O princípio da simetria comportaria atenuações tais que, no caso das Leis Orgânicas,
possibilitaria delimitar e escolher as matérias para o quórum de maioria absoluta, sem,
contudo, exceder nesta capacidade de auto-organização. Se a Constituição prevê a regra
do art. 47, da maioria dos votos, prevendo as exceções constitucionais, a Lei Orgânica,
pela flexibilização da simetria, apenas poderia contar com três tipos de quórum: o de
dois terços, previsto apenas para alteração da Lei Orgânica, conforme o caput do art.
29 da CF/88; o que demanda o voto da maioria absoluta dos membros, cuja matéria
esteja previamente delimitada na própria Lei Orgânica; e, por fim, a regra da maioria
simples, constitucionalmente assentada. Jurisprudências recentes reconhecem tal
perspectiva, como é o caso do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROCESSO LEGISLATIVO.


PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA DA MAIORIA. POSTULADO DA SIMETRIA.
FLEXIBILIZAÇÃO. Em relação ao quórum de deliberação parlamentar, vige
no sistema constitucional brasileiro o princípio da suficiência da maioria
(art. 47, CF/88, e art. 51, CE/89), que, com fundamento no postulado
da simetria (art. 29, CF/88, e art. 8º, CE/89), deve ser transplantado
para o processo legislativo municipal. Assim, em princípio, Lei Orgânica
Municipal não pode exigir quórum qualificado para a aprovação de
projeto de lei local, nas hipóteses em que a Constituição Estadual, por
simetria à Carta Federal, não o faz. Possibilidade de flexibilização da
exigência. Permissão a que os Municípios contemplem a previsão de
leis complementares sobre matérias de especial relevância, análogas–e
não exatamente idênticas àquelas previstas nas Constituições Federal
e Estadual, a exemplo do Plano Diretor, Código de Obras e Edificações
e Código Administrativo. Ação direta julgada parcialmente procedente,
para declarar a inconstitucionalidade dos arts. 59, incisos I a VII, e § 2º,
alínea b; 60, caput e incisos I a IV; e 77, inciso VII, e §§ 1º e 2º, todos

O QUÓRUM CONSTITUCIONAL E SEU REFLEXO NO PROCESSO 225


LEGISLATIVO MUNICIPAL
da Lei Orgânica Municipal de Lagoa Vermelha, por infração aos artigos
8º, 51 e 59, da CE/89, e artigos 29, 47 e 69 da CF/88. Unânime.” (Ação
Direta de Inconstitucionalidade Nº 70010237014, Tribunal Pleno, Tribunal
de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 11/04/2005)
(70010237014 RS, Relator: Maria Berenice Dias, Data de Julgamento:
11/04/2005, Tribunal Pleno, Data de Publicação: Diário da Justiça do
dia 03/06/2005).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. É inconstitucional o §


1º do artigo 21 da Lei Orgânica do Município de Gramado, ao exigir
o quórum de 2/3 para a votação das matérias que enumera. Para a
obtenção do Plano Diretor bastaria queen absoluta; As demais matérias
são elencadas, bastaria maioria, daí uma inconstitucionalidade frente
à Carta Estadual, pois é a única exceção do princípio da suficiência
da maioria.Precedentes deste Tribunal: ADIn 598478543 (Revista de
Jurisprudência do TJRGS, 213/53) e 70001165828 Doutora de José
Nilo de Castro, Hely Lopes Meirelles e J. Cretella Jr.AÇÃO JULGADA
PROCEDENTE. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70003697398,
Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cacildo de Andrade
Xavier, Julgado em 09/08/2004

Mas até que ponto a escolha das matérias para o quórum qualificado extrapolaria
a discricionariedade de auto-organização e significaria uma mera arbitrariedade? E
não haveria uma incoerência do ordenamento jurídico ao, de um lado decidir que
determinado município cujo quórum da Lei Orgânica foi declarado inconstitucional
deve se ajustar à regra Constitucional da maioria simples, de outro, observar inerte o
mais variado quórum visto, principalmente, nos grandes municípios?

O quórum nas Lei Orgânicas


Nos grandes municípios brasileiros, as suas Leis Orgânicas estabelecem um
festival de quóruns para aprovação, sendo rara a obediência ao artigo 47 insculpido
na Constituição Federal. Dois fenômenos são facilmente observados: o primeiro, a
instauração de quóruns assimétricos constitucionalmente, como é o caso do quórum
de 3/5 (três quintos) para os municípios; o segundo e, especialmente, a banalização do
quórum de 2/3 (dois terços) para dificultar a aprovação de matérias das mais diversas.

226 Rafael Guimarães Abras Oliveira


As Leis Orgânicas definem as matérias que consideram ser relevantes a ponto
de demandar a maioria absoluta14, reproduzindo, simetricamente, o sistema das leis

14 A Lei Orgânica de Florianópolis: Art. 61–As leis complementares serão aprovadas e alteradas pelo voto
favorável da maioria absoluta dos membros da Câmara. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº
01/90) § 1º Excetuam-se da regra de votação prevista no caput deste artigo as leis complementares
que disponham sobre o Plano Diretor e suas respectivas alterações, as quais, em ambos os casos,
serão aprovadas pelo voto de dois terços dos membros da Câmara. (Redação dada pela Emenda à Lei
Orgânica nº 19/2007) § 2º Além de outros casos previstos nesta Lei Orgânica, serão complementares
as leis que dispuserem sobre: (Parágrafo Único renumerado pela Emenda à Lei Orgânica nº 19/2007)
I–Código Tributário do Município; (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90) II–Plano
Diretor do Município; (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90) III–Plano de Transportes
Urbanos; (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90) IV–Lei de Parcelamento do Solo;
(Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90) V–Código de Obras e Edificações; (Redação
dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90) VI–Código de Posturas; (Redação dada pela Emenda à Lei
Orgânica nº 01/90) VII–Regime de cargos e empregos públicos, e as diretrizes para a elaboração do
Plano de Carreira. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 10/2003) VIII–Atribuições do Vice-
Prefeito e Secretários ou diretores equivalentes; (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90)
IX–Guarda Municipal, sua instituição e organização; (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº
01/90) X–Organização e reformulação do sistema municipal de ensino; (Redação dada pela Emenda à
Lei Orgânica nº 01/90) XI–Plebiscito e referendo. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 01/90)

Lei Orgânica de Curitiba: Art. 47. A discussão e a votação da matéria constante da ordem do dia serão
realizadas com a presença da maioria absoluta dos membros da Casa. § 1º O voto será público, salvo as
exceções previstas em Regimento. § 1º O voto será público e aberto, exceto nas deliberações referentes
as penalidades aos Vereadores e ao Prefeito e na apreciação de vetos, para as quais será secreto.
(Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica n° 08, de 17 de novembro de 2001) § 2º Dependerá de voto
favorável de dois terços dos membros da Câmara: I–a deliberação sobre as contas do Município contra
o parecer prévio do Tribunal de Contas. II–a destituição de componente da Mesa. III–a representação
contra o Prefeito Municipal. IV–a aprovação de emenda à Lei Orgânica. V–a aprovação de proposta
para mudança do nome do Município. VI–a aprovação do Regimento Interno da Câmara Municipal.
VII -o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado. VII–a aprovação do Plano Diretor de Curitiba.
(Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica n° 15, de 20 de dezembro de 2011) § 3º Dependerá de voto
favorável da maioria absoluta dos membros da Câmara: I–a rejeição do veto prefeitural. I–a rejeição
do veto do Prefeito. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica n° 15, de 20 de dezembro de 2011)
II–a mudança de local de funcionamento da Câmara Municipal. III–a aprovação de leis complementares

Lei Orgânica de São Paulo: Art. 40–A discussão e votação de matéria constante da Ordem do Dia só
poderá ser efetuada com a presença da maioria absoluta dos membros da Câmara. § 1º–A aprovação
da matéria em discussão, salvo as exceções previstas nesta Lei Orgânica, dependerá do voto favorável
da maioria dos Vereadores presentes à sessão. § 2º–Os projetos de lei e a aprovação e alteração do
Regimento Interno serão apreciadas em 2 (dois) turnos de discussão e votação. § 3º–Dependerão do
voto favorável da maioria absoluta dos membros da Câmara a aprovação e as alterações das seguintes
matérias: I–matéria tributária; II–Código de Obras e Edificações e outros Códigos; III–Estatuto dos
Servidores Municipais; IV–criação de cargos, funções e empregos da administração direta, autárquica
e fundacional, bem como sua remuneração; V–concessão de serviço público; VI–concessão de direito
real de uso; VII–alienação de bens imóveis; VIII–autorização para obtenção de empréstimo de particular,
inclusive para as autarquias, fundações e demais entidades controladas pelo Poder Público; IX–lei de
diretrizes orçamentárias, plano plurianual e lei orçamentária anual; X–aquisição de bens imóveis por
doação com encargo; XI–criação, organização e supressão de distritos e subdistritos, e divisão do
território do Município em áreas administrativas; XII–criação, estruturação e atribuição das Secretarias,
Subprefeituras, Conselhos de Representantes e dos órgãos da Administração Pública; XIII–realização

O QUÓRUM CONSTITUCIONAL E SEU REFLEXO NO PROCESSO 227


LEGISLATIVO MUNICIPAL
complementares da CF/88. Geralmente, matérias como plano diretor, código tributário,
criação de cargos, empregos e funções públicas, estatuto dos servidores, demandam
uma maioria qualificada. No entanto, na maior parte dos casos, para a aprovação desse
tipo de matéria é exigido o quórum de dois terços.

A Lei Orgânica de Belo Horizonte, por exemplo, elenca uma série de matérias
que dependem do voto favorável de dois terços dos membros da Câmara: o plano
diretor; o parcelamento, a ocupação e o uso do solo; o código tributário; empréstimos,
concessões de isenções, incentivos, benefícios fiscais e gratuidades nos serviços
públicos de competência do Município. E como se não bastasse, a rejeição do veto
sobre tais matérias segue o anômalo quórum de 3/5 (três quintos)15. Quanto a esse

de operações de crédito para abertura de créditos adicionais, suplementares ou especiais com


finalidade precisa; XIV–rejeição de veto; XV–Regimento Interno da Câmara Municipal; XVI–alteração de
denominação de próprios, vias e logradouros públicos; XVII–isenções de impostos municipais; XVIII–todo
e qualquer tipo de anistia; XIX–concessão administrativa de uso. (Acrescentado pela Emenda 11/91) §
4º–Dependerão do voto favorável de 3/5 (três quintos) dos membros da Câmara as seguintes matérias:
I–zoneamento urbano; II–Plano Diretor; III–Zoneamento geo-ambiental. (Acrescentado pela Emenda
20/01) § 5º–Dependerão do voto favorável de 2/3 (dois terços) dos membros da Câmara a aprovação
e alterações das seguintes matérias: I–rejeição do parecer prévio do Tribunal de Contas, referido no
art. 48, inciso I; II–destituição dos membros da Mesa; III–emendas à Lei Orgânica; IV–concessão de
título de cidadão honorário ou qualquer outra honraria ou homenagem; V–moção de censura pública
aos secretários e subprefeitos referida no inciso XXII do art. 14. (Acrescentado pela Emenda 08/91)

Lei Orgânica de Vitória: Art. 87 Dependem do voto favorável: I–da maioria absoluta dos membros da
Câmara, a aprovação, revogação e alterações de: a) Lei Orgânica dos órgãos municipais; b) Regimento
Interno da Câmara  Municipal; a) criação de cargos e fixação de vencimento de servidores. II–de
três quintos dos membros da Câmara a autorização para: a) concessão de serviços públicos;
b) concessão de direito real de uso de bens imóveis; c) alienação de bens imóveis; d) aquisição de bens
imóveis por doação com encargo; e) outorga de títulos e honrarias; f) contratação de empréstimos de
entidades privadas; g) lei do sistema tributário municipal; h) estatuto do Magistério Público; i) estatuto
dos funcionários públicos do Município; j) códigos de obra, postura, sanitário e de polícia administrativa
e plano diretor urbano; (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 7/1995) k) realização de plebiscito
ou referendo. III–de dois terços dos membros da Câmara: a) rejeição do parecer prévio do Tribunal de
Contas; b) Revogada. (Revogada pela Emenda à Lei Orgânica nº 14/2000) c) realização de sessão secreta.

Lei Orgânica de Salvador: Art. 39. Somente pelo voto de, no mínimo, 2/3 (dois terços) dos membros da
Câmara consideram-se aprovadas as deliberações sobre: 21 I–destituição de componentes da Mesa;
II–aquisição de bens por doação ou legados, ambos se com encargos ou ônus para o Município; III–
suspensão, extinção ou exclusão de crédito tributário; IV- isenção de impostos municipais; V–mudança
de local de funcionamento da Câmara, comprovado o impedimento de acesso ao recinto do Paço
Municipal; VI–modificação territorial do Município; VII–cassação do mandato de Vereador; VIII–alteração
desta Lei; IX–alienação de bens imóveis; X–rejeição de Parecer Prévio do Tribunal de Contas.

15 Art. 92. § 5º–A Câmara, dentro de trinta  dias, contados do recebimento da comunicação
do veto,  sobre ele decidirá, em votação nominal, e sua  rejeição só ocorrerá pelo voto:
I–de três quintos de seus membros, quando a  matéria objeto da proposição de lei depender de  aprovação
por dois terços;

228 Rafael Guimarães Abras Oliveira


aspecto, o próprio STF chegou a decidir que a apreciação do veto exige apenas o voto
da maioria absoluta:

Se para a apreciação do veto é exigido o voto da maioria absoluta


(CF, art. 66, § 4º) e o seu exame ocorreu na vigência da atual ordem
constitucional, não poderia a Assembleia Legislativa valer-se daquele
fixado na anterior Carta estadual para determiná-lo como sendo o de
2/3. O modelo federal é de observância cogente pelos Estados-membros
desde a data da promulgação da Carta de 1988.

[Rcl 1.206, rel. min. Maurício Corrêa, j. 22-8-2002, P, DJ de 18-10-2002.]

Por sua vez, a Lei Orgânica de Porto Alegre16 chega a exigir o quórum de dois
terços para alteração de denominação oficial de próprios, vias e logradouros e para
concessão de títulos de cidadão honorário do Município. Ou seja, tais matérias exigem
mais que a deliberação sobre empréstimos, isenções ou o plano diretor – o que denota
certa arbitrariedade e exagero do quantum para aprovação.

Em Recife17, a alteração da Lei Orgânica vem a ser por meio de 3/5 (três quintos)18
dos membros e não 2/3 (dois terços) como prescreve o preceito constitucional inscul-
pido no caput do art. 29. Flagrante se tornam os exageros e casuísmos dispostos em
milhares de Leis Orgânicas dos milhares de municípios.

16 Lei Orgânica de Porto Alegre: Art. 82 - A Câmara Municipal deliberará pela maioria dos votos, presente
a maioria absoluta dos Vereadores, salvo as exceções previstas nesta Lei Orgânica e nos parágrafos
seguintes: § 1º–Dependerá de voto favorável da maioria absoluta dos membros da Câmara Municipal
a aprovação das seguintes matérias: I–leis complementares; II–seu Regimento; III–criação de cargos,
funções ou empregos públicos, aumento da remuneração, vantagens, estabilidade e aposentadoria
dos servidores; IV–alteração da denominação de próprios, vias e logradouros públicos; V–obtenção de
empréstimo de particular; VI–concessão de serviços públicos; VII–concessão de direito real de uso;
VIII–alienação de bens imóveis; IX–aquisição de bens imóveis por doação com encargo. X–conselhos
municipais. § 2º–Dependerá de voto favorável de dois terços dos membros da Câmara Municipal a
aprovação das seguintes matérias: I–rejeição de parecer prévio do Tribunal de Contas; II–cassação do
mandato do Prefeito ou do Vice-Prefeito e destituição de componentes da Mesa; III–alteração dos limites
do Município; IV–alteração da denominação oficial de próprios, vias e logradouros; V–concessão de
títulos de cidadão honorário do Município.

17 Embora a Lei Orgânica de Recife estabeleça tal casuísmo, é uma das poucas que não abusa do quórum
qualificado. Consoante seu art. 26, apenas a matéria relativa à diretrizes gerais de política urbana e do
plano diretor e à organização da Procuradoria Geral do Município demanda o quórum qualificado.

18 Art. 25 § 1º–A proposta será discutida e votada em dois turnos, com interstício mínimo de 10 (dez) dias,
considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, 3/5 (três quintos) dos votos dos membros da Câmara
Municipal ( Alterado pela Emenda nº 07/98).

O QUÓRUM CONSTITUCIONAL E SEU REFLEXO NO PROCESSO 229


LEGISLATIVO MUNICIPAL
Que o Brasil é um país continental e que cada Município conserva suas peculia-
ridades, sendo imperativo tratar temas desiguais para comunidades que carregam
valores distintos – eis um dos principais argumentos para a defesa das diferenciações
temáticas nas Leis Orgânicas. No entanto, é preciso enfatizar que a Constituição apenas
flexibiliza o princípio da simetria quando se trata de matérias relativas a leis complemen-
tares. Só é possível, repete-se, três tipos de quórum de aprovação para os municípios:
2/3 (dois terços) somente para alteração da Lei Orgânica; a maioria absoluta dos
membros, para matérias de suma importância insculpidas na Lei Orgânica; e a regra
da maioria simples. O que ultrapassar disso não respeita os ditames constitucionais,
nem mesmo com a teoria da flexibilização do princípio da simetria.

Assim, tornar necessário o quórum de dois terços para a modificação do plano


diretor ou para alienação de bens públicos ou autorização para empréstimos mostra-se
uma exigência abusiva. Não em vão os tribunais vem decidindo pela inconstituciona-
lidade de tais dispositivos.

Considerações finais
Parece não haver sentido em deixar a disposição sobre o quórum, em suas frações
de múltiplas possibilidades, ao bel-prazer dos caprichos dos entes federados. Imagine,
por exemplo, uma derrubada de veto por cinco sextos ou um quórum de seis sétimos
para alterar a Lei Orgânica ou a Constituição Estadual. A liberdade da auto-organização
abriria margem para a própria condenação da atividade legislativa.

Quóruns desarrazoadamente elevados passam a exigir que a vontade dos parla-


mentares municipais seja praticamente uníssona, o que demanda arranjos elaborados
para coordenar tantas vontades de forma única. Enrijecido, o processo legislativo
dificilmente conseguiria o dinamismo necessário para tentar resolver os problemas
quotidianos. Por isso, geralmente, prefeituras de pequenos municípios demandam
a questão da inconstitucionalidade de tais dispositivos abusivos acerca do quórum
para aprovação: quando se torna necessário contrair empréstimos ou aprovar o plano
diretor, é fatal o atraso nas deliberações justamente por não conseguir conquistar a
maioria dos votos dos edis, que em grande parte das vezes, estrategicamente, travam
as pautas ou inviabilizam propositalmente a Administração Pública a fim de articular
seus interesses próprios.

230 Rafael Guimarães Abras Oliveira


De outro lado, paradoxalmente, o Poder Executivo nos municípios de grande porte
se beneficia do enrijecimento do quórum, que dificulta a aprovação de proposições de
iniciativas de parlamentares. Tornar-se mais fácil administrar os interesses individuais
de um número elevado de vereadores, formando a maioria e anulando os opositores e
suas propostas para o município. É preciso lembrar que, historicamente – Victor Nunes
Leal19 que o diga – o Poder Legislativo municipal, e até mesmo o Poder Legislativo
estadual, em alguns Estados brasileiros, de certa forma se submete à força tradicional
do Poder Executivo, a qual, nesse contexto, sabe manejar melhor que os edis os quóruns
abusivos.

Há quem diga que tais elevados e banalizados quóruns de dois terços ou três
quintos, supostamente, resguardam o município de uma modificação por parte de
uma maioria absoluta social e historicamente despreparada, atécnica e sem preparo –
representantes do povo que não sabem manejar a máquina pública tampouco entender
a complexidade de se administrar um ente federado. Por outro lado, tal perspectiva
também fomenta um “Executivo de coalizão20”, que, para conseguir imprimir suas
propostas, negocia cabedais municipais, substituindo a enxada pela burocracia, o
coronelismo pelo clientelismo e, diante de um quadro heterogêneo de representação
e interesses, busca agregar para processar as pressões e permitir a governabilidade.

E ao Poder Judiciário, aceitando a premissa da auto-organização e a livre estipu-


lação dos quóruns, quando acionado poderia decidir que não, que o quórum de nove
décimos é inconstitucional, porém o de três quintos não o é? De modo que, por qual
medida o medidor analisaria senão por meio da Constituição? Assim, mostram-se
coerentes, na maior parte dos casos, as decisões que declaram a inconstitucionalidade
dos quóruns abusivos nas Leis Orgânicas. No entanto, assimétrica é a aceitação desse
tipo de quórum nas grandes capitais, em que, como não é acionado o Poder Judiciário,
perdura esse tipo de prática e arranjos flagrantemente antirrepublicanos.

Aqui, por fim, cabe uma provocação quanto à incoerência e inconsistência de


certo entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal. Se o STF consolidou o
entendimento de que o processo legislativo é norma de reprodução obrigatória, não
parece republicano considerar a eleição das Mesas do Poder Legislativo uma mera

19 LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

20 ABRANCHES. Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional


brasileiro. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, 1998.

O QUÓRUM CONSTITUCIONAL E SEU REFLEXO NO PROCESSO 231


LEGISLATIVO MUNICIPAL
norma de organização interna, dissociando poder legislativo do processo legislativo.
Explica-se: a ADI nº 792 declarou a constitucionalidade de norma da Constituição
de Rondônia, que estabelece a possibilidade de reeleição na Mesa da Assembleia
Legislativa do Estado. Essa norma, apesar de contrariar o art. 57 § 4° da CR/88, não
foi declarada inconstitucional. Nesse caso o STF entendeu que não havia usurpação
da Constituição da República, não devendo ser desenvolvida a lógica da simetria21.

Tudo bem que o princípio da simetria não pode ser entendido e interpretado de
forma absoluta e que ele, como “norte” vinculante, pode ser relativizado (excepcionado)
em algumas situações22. Mas não pode a sua flexibilização servir de medidor político,
coadunando com a possibilidade de se instaurarem verdadeiras monarquias no Poder
Legislativo por meio de presidências sucessivas indeterminadamente.

Fato é que a Constituição deve servir de paradigma para evitar Constituições


Estaduais e Leis Orgânicas assimétricas, as quais, sob o manto da autonomia para a
auto-organização, constroem verdadeiras barreiras arbitrárias para o exercício saudável
e eficiente do processo legislativo. É razoável a flexibilização do princípio da simetria
quando efetivada através da indicação de um rol das matérias mais importantes para os
municípios, que devem ser deliberadas e aprovadas como matéria de lei complementar.
No entanto, tal rol não pode ser abusivo, estendendo a ponto de contemplar quase
todas as matérias possíveis. Do mesmo modo, mostra-se inviável a instauração de
quóruns que extrapolem o modelo constitucional fixado para o Municípios – dois
terços somente para alterar a Lei Orgânica, maioria absoluta para leis complementares
e maioria simples.

Assim, não resta dúvida que os Municípios são entes federados autônomos e têm
certa autonomia para auto-organização, mas não podem se sobrepor ao que prescreve

21 Na ocasião, apenas os Ministros Marco Aurélio e Néri da Silveira atentaram para a necessidade de
respeitar à simetria por se tratar de composição de Poder e por essa composição obedecer aos preceitos
republicanos. Em seu voto, o Ministro Néri da Silveira argumentou: “Assim como os governadores não
podem ser reeleitos – à semelhança do Presidente da República, do Presidente da Câmara dos Deputados
e do Presidente do Senado Federal, em decorrência da regra expressa da Constituição – a reeleição está
vedada tanto para o Poder Executivo quanto para o Poder Legislativo. Não vejo por que o Governador e
o Presidente do Tribunal de Justiça não podem ser reeleitos e o Presidente da Assembleia Legislativa
pode. (...) Sobre ser saudável o princípio da renovação do comando das Casas Legislativas, assim como
entendo ser saudável a renovação do comando da Administração Federal e do comando dos Tribunais,
peno que, no caso concreto, nada está a justificar que permaneça a regra local que admite a reeleição de
Presidente da Assembleia Legislativa”.

22 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. ampl. E atual.–Salvador.
JusPODIVM, 2017.p. 915

232 Rafael Guimarães Abras Oliveira


a Constituição Federal. Não existe liberdade absoluta ou plenitude legislativa ao legis-
lador municipal. O que deve prevalecer é a conformação às limitações constitucionais
e sua observância, e consequentemente, a busca da independência e da harmonia entre
os Poderes Executivo e Legislativo dentro de tais limites.

Referências
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institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1,
1998.
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CRETELLA JR, José. Comentários à Constituição de 1988. Vol. 5–arts. 38 a 91 -, Rio
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WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. New York: Oxford University Press, 1999.

O QUÓRUM CONSTITUCIONAL E SEU REFLEXO NO PROCESSO 233


LEGISLATIVO MUNICIPAL
234 Rafael Guimarães Abras Oliveira
A RESTRIÇÃO DO ALCANCE
DO FORO POR PRERROGATIVA
DE FUNÇÃO E OS LIMITES DA
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Suellen Moura1
Marja Mangili Laurindo2

Resumo
O presente artigo pretende analisar criticamente a decisão do Supremo
Tribunal Federal que restringiu o alcance do foro por prerrogativa de função
como exemplo que reforça a preocupante e contestável expansão da auto-
ridade da Corte em detrimento do Poder Legislativo. Nos 30 anos da Carta,
a problemática parece contemplar um Tribunal Constitucional que atua
como legislador ativo, definindo o sentido e o alcance de uma prerrogativa
parlamentar lastreada em uma interpretação que extrapola os limites das
próprias normas constitucionais.

INTRODUÇÃO
O Supremo Tribunal Federal decidiu unanimemente, em maio de 2018, por
uma interpretação restritiva do art. 102, I, “b”, da Constituição Federal. Os ministros

1 Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina –


PPGD/UFSC. Bolsista CAPES. Pós-graduada em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de
Direito Constitucional – ABConst. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina – UEL.
Pesquisadora no Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político – PPGD/UFSC. Contato: spmoura14@
gmail.com.

2 Doutoranda e Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa


Catarina – PPGD/UFSC. Bolsista CAPES. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Contato: marjamangili@gmail.com.
MOURA, Suellen; LAURINDO, Marja Mangili. A restrição do alcance do foro por prerrogativa de função e os limites da interpretação
constitucional. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.).
30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 235-258. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/978856713409310
entenderam que parte das funções que desfrutam do direito do foro privilegiado,
mais especificamente Deputados e Senadores, devem mantê-lo, porém de maneira
restrita: enquanto a Constituição determina que ao Supremo Tribunal Federal compete
processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, os membros do
Congresso Nacional, afirmou-se a necessidade de restringir o entendimento corrente
para somente os casos em que o crime ocorra durante o exercício mandato e esteja a
ele diretamente relacionado3.

Tal entendimento parte, segundo o relator da Questão De Ordem na Ação Penal


937, Min. Luis Roberto Barroso, da “disfuncionalidade” de tal direito. Prevê-se que a nova
interpretação encaminhe cerca de 90% dos processos que atualmente tramitam no STF
para instâncias judiciais de primeiro grau. Para Barroso, além dos pontos pragmáticos
concernentes à celeridade dos processos e efetividade do sistema punitivo, o foro
por prerrogativa feriria “princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e
república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes
públicos [...]”.4

A partir disso, faz-se necessária uma leitura analítica e crítica do texto constitu-
cional e do fundamento das decisões relativas à problemática do foro por prerrogativa
de função contidas naquela Questão de Ordem, sobretudo no que se refere às garantias
constitucionais estabelecidas aos congressistas e também aos fundamentos políticos
democráticos ensejados pela Constituição Federal de 88.

Dessa forma, o artigo pretende esclarecer: (i) quais as implicações da inter-


pretação realizada pela Corte das normas constitucionais atinentes à prerrogativa
parlamentar; (ii) porque transferir a legiferação para o judiciário tem o condão de
transferir os tipos de justificação deliberativas que entram na escolha de políticas

3 Além disso, a Questão de Ordem fixou as seguintes teses: (ii) após o final da instrução processual, com
a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para
processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro
cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo; (iii) essa nova linha interpretativa
deve se aplicar imediatamente aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados
e decisões proferidas pelo STF e pelos demais juízos com base na jurisprudência anterior, conforme
precedente firmado na Questão de Ordem no Inquérito 687 (Rel. Min. Sydney Sanches, j. 25.08.1999);
(iv) embora se viesse interpretando a literalidade desse dispositivo no sentido de que o foro privilegiado
abrangeria todos os crimes comuns, é possível e desejável atribuir ao texto normativo acepção mais
restritiva, com base na teleologia do instituto e nos demais elementos de interpretação constitucional.

4 QUESTÃO DE ORDEM na Ação Penal 937/Rio de Janeiro. Rel. Min. Luis Roberto Barroso. Autor: Ministério
Público Federal. Réu: Marcos da Rocha Mendes. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/voto-
barroso-foro-especial.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2018.

236 Suellen Moura


Marja Mangili Laurindo
alternativas, trazendo dificuldade de controle; (iii) porque decisões como esta ofende
o separação de poderes e o princípio democrático, causando insegurança jurídica e
afetando diretamente a democracia representativa.

1. O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NO DIREITO


BRASILEIRO
Criado com o objetivo de proteger determinados cargos – e não determinadas
pessoas – o foro privilegiado parte do pressuposto de que tribunais superiores seriam
mais aptos a julgarem, com maior independência, autoridades como parlamentares:
politicamente, tal instrumento diminuiria a possibilidade de que os julgamentos fossem
regidos por disputas locais por poder. Sua instrumentalidade, portanto, parte do pres-
suposto liberal de proteção às instituições estatais, como a função legislativa, de
possíveis atividades políticas judiciais. Trata-se, destarte, de questão política de maior
importância, como salienta Koerner: “a sua extensão aos parlamentares modificava
seu significado de uma prerrogativa de classe para o de uma proteção à representação
popular.”5

Previsto no artigo 53, §1º, da Constituição Federal de 1988, o foro privilegiado,


também chamado foro de função, é uma prerrogativa dada a determinadas pessoas,
como deputados e senadores, de serem julgados por determinados tribunais, como o
Supremo Tribunal Federal. Desta forma, além da competência de tribunal constitucional
e de recurso de última instância, o STF também está destinado a processar e julgar
penalmente aquelas autoridades políticas pelas práticas de crimes comuns, conforme
o artigo 102, I, “b”, da Constituição Federal6.

Por “crimes comuns” entende-se quaisquer tipos de infração penal eventualmente


atribuídas aos parlamentares – que aqui serão objeto de análise –, ainda que se fale
em contravenções, crimes eleitorais ou dolosos contra a vida.

5 KOERNER, Andrei. Judiciário e moralização da política: três reflexões sobre as tendências recentes no
Brasil. In: Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 3, set./dez, 2013, p. 705. Disponível em: <http://periodicos.unifor.br/
rpen/article/viewFile/2807/pdf>. Acesso em: 5 ago. 2018.

6 “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I–processar e julgar, originariamente: [...] b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o
Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da
República;”

A RESTRIÇÃO DO ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E 237


OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Em função disso, inquéritos policiais contra congressistas devem ser instaurados
diante do Supremo Tribunal Federal, a quem caberá analisar fatos e provas, bem como
ordenar providências para apuração e julgamento dos dados probatórios.

A prerrogativa de função tem início com a diplomação e fim com o término do


mandato do agente (conforme art. 53, §1º da CF), isto é, o fim do mandato é também o
fim da prerrogativa, o que quer dizer que também a competência do Supremo Tribunal é
exaurida: neste caso, os processos que ainda estejam em curso com o fim do mandato
parlamentar devem ser remetidos à justiça comum para prosseguimento, sem prejuízos
dos atos processuais anteriores. O contrário também é válido: processos iniciados
antes da diplomação são remetidos concomitantemente a ela às instâncias compe-
tentes de acordo com a função a ser exercida.

Constitucionalmente, desde 1824 há previsão para julgamento diferenciado em


atenção à função exercida. Além de prever, em seu art. 99, que o Imperador não estaria
sujeito a responsabilidade alguma, em seu art. 47 se estabelecia que ao Senado Imperial
cabia o conhecimento dos delitos individuais cometidos pelos membros da família
real, pelos ministros e conselheiros de Estado, bem como de deputados e senadores
no período de legislatura; ao Supremo Tribunal de Justiça cabia a função de julgar os
“delictos e erros do officio” cometidos por ministros, empregados no corpo diplomático
e presidentes das províncias.

Em 1891, a primeira constituição republicana determinava, em seu art. 59, inciso I,


alínea “a”, garantia ao presidente e aos ministros do Estado serem julgados por crimes
comuns pelo Supremo Tribunal Federal. O presidente só seria submetido a processo
e julgamento depois que a Câmara, perante o Supremo Tribunal Federal, declarasse a
acusação de crimes comuns procedente, e o Senado fizesse o mesmo em crimes de
responsabilidade7.

A Constituição de 34, em seu art. 113, bem como tribunais de exceção: “Não haverá
foro privilegiado nem tribunaes de excepção; admittem-se, porém, juízos especiaes em

7 Ainda que as Constituições de 1824, que dispunha, em seu art. 179, XVII, que “À excepção das Causas,
que por sua natureza pertencem a Juízos particulares, na conformidade das Leis, não haverá foro
privilegiado, nem commissões especiaes nas causas cíveis, ou crimes”, e de 1891, que dispunha “À
excepção das causas, que, por sua natureza, pertencem a juízos especiaes, não haverá foro privilegiado”,
percebe-se que a proibição do foro privilegiado nas Constituições brasileiras é despicienda, do ponto de
vista da teoria processual, já que a previsão de juízos especiais em razão da matéria não configura foro
privilegiado, porquanto este é fixado com base em critérios pessoais e não materiais. Tal proibição tinha
por intuito enfatizar que somente a “natureza da causa”, e não a qualidade da parte, poderia servir de
critério para definição da competência de juízos especiais.

238 Suellen Moura


Marja Mangili Laurindo
função da natureza das causas”. Embora as Constituições vedassem o foro privilegiado,
o faziam apenas em função da natureza das causas, e não com relação à qualidade
das partes.

Se em 37 omitiu-se tal instituto, em 1946 foi previsto amplamente para vários


cargos nas situações de crimes comuns e de responsabilidade a serem julgados pelo
Supremo Tribunal Federal8.

Surpreendentemente, a Constituição de 67 trouxe também a garantia do foro


privilegiado. Estabelecia em seu art. 114, I, a e b, que ao Supremo Tribunal Federal
competia processar e julgar originariamente nos crimes comuns e de responsabilidade
autoridades como o presidente da república, ministros, juízes federais, dentre outras
autoridades estatais.

8 “A Constituição democrática de 1946, celebrada como um dos maiores marcos da trajetória constitucional
do Brasil, deu ao Senado Federal a competência para julgar o Presidente da República nos crimes de
responsabilidade (se admitida a acusação pela Câmara dos Deputados) e os Ministros de Estado nos
crimes da mesma natureza conexos com os daquele, bem como processar e julgar os Ministros do
Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República, nos crimes de responsabilidade (art. 62,
I e II). Nos crimes comuns, o Presidente da República seria submetido a julgamento perante o Supremo
Tribunal Federal, também se admitida a acusação pela Câmara dos Deputados (art. 88). Quanto ao
Supremo Tribunal Federal, competia-lhe processar e julgar originariamente o Presidente da República
nos crimes comuns, bem como os seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República nos crimes
comuns; os Ministros de Estado, os juízes dos Tribunais Superiores Federais, dos Tribunais Regionais
do Trabalho, do Tribunais de Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, os Ministros
do Tribunal de Contas e os Chefes de missão diplomática de caráter permanente, assim nos crimes
comuns como nos de responsabilidade, ressalvado, quanto aos Ministros de Estado, a os crimes conexos
com os do Presidente da República (art. 101, I, a, b e c). No âmbito estadual, competia privativamente
ao Tribunal de Justiça processar e julgar os Juízes de inferior instância, nos crimes comuns e nos de
responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral, quando se tratasse de crimes eleitorais.”
(FILHO, 2016, p. 7).

A RESTRIÇÃO DO ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E 239


OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
A Constituição de 88, preocupada em garantir liberdade às funções democráticas,
expandiu de maneira expressiva o rol de casos protegidos pelo foro privilegiado910.
Limitou, dentro de seu marco democrático, tal privilégio pela proibição, no art. 5º inciso
XXXVII, da criação de juízos ou Tribunais de Exceção e, no mesmo artigo, inciso LIII,
pela aplicação do princípio do Juiz Natural: não há que se falar na criação excepcional
de novos casos de foro privilegiado além das já previstas pelo texto constitucional.

É possível observar que a tendência de proteção às categorias abarcadas pelo


privilégio aumentou precisamente durante a transição de períodos ditatoriais para
democráticos, como ocorreu entre as Constituições de 1934 e 1946, como também
após a Ditadura Militar, pelo fortalecimento do foro privilegiado e as imunidades parla-
mentares na Constituição de 1988. Em ambos os casos, a preocupação permanecia
sobre as garantias à representação política.

Como consequência, o foro privilegiado inclui, segundo dados da Consultoria


Legislativa do Senado, um total de 54.990 pessoas. Sob o argumento de que acúmulo

9 “Hoje, por determinação da Constituição Federal ou de leis que dela decorrem, possuem foro especial por
prerrogativa de função o Presidente e o Vice-Presidente da República; os membros do Congresso Nacional;
os Ministros do Supremo Tribunal Federal; o Procurador-Geral da República; os Ministros de Estado; os
Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; os membros dos Tribunais Superiores, os do
Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente; as autoridades
ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, em
caso de habeas corpus; os Governadores dos Estados e do Distrito Federal; os desembargadores
dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal; os membros dos Tribunais de Contas dos
Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e
do Trabalho; os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios; as autoridades federais
da administração direta ou indireta, em caso de mandado de injunção; os juízes federais, incluídos os da
Justiça Militar e da Justiça do Trabalho; os membros do Ministério Público da União; os juízes estaduais
e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público estadual; os Prefeitos; os
oficiais generais das três Armas (Lei 8.719, de 1993, art. 6º, I); e os juízes eleitorais, nos crimes eleitorais
(Código eleitoral, art. 29, I, d).” (FILHO, 2016, p. 8-9).

10 Segundo Koerner: “A regra segundo a qual os ocupantes de determinados cargos têm direito a foro
especial para serem julgados por tribunais superiores faz parte de nossa história. Adotada desde a
Constituição de 1824 e preservada pela de 1891, as Constituições posteriores ampliaram os ocupantes
de cargos beneficiados por ela. Mesmo no regime militar, ampliou-se o seu alcance, com o objetivo de
tornar mais expeditas as punições a parlamentares e ocupantes de cargos públicos20. A Constituição
de 1988 ampliou os cargos que eram beneficiados pelo foro privilegiado, compreendendo, em 1999, os
comandantes militares (art. 102, I, c, com redação dada pela EC n° 23, de 1999). Quanto às imunidades
parlamentares, a Constituição combinou a necessidade de licença da Casa para o início do processo
em qualquer crime e o foro privilegiado no STF. Em 2001, a regra foi modificada, para permitir que o STF
pudesse iniciar o processo, que seria aprovado (art. 52, § 3°, com redação dada pela EC n° 35, de 2001).”
KOERNER, Andrei. Judiciário e moralização da política: três reflexões sobre as tendências recentes no
Brasil. In: Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 3, set./dez, 2013, p. 704. Disponível em: <http://periodicos.unifor.br/
rpen/article/viewFile/2807/pdf>. Acesso em: 5 ago. 2018.

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Marja Mangili Laurindo
de funções do STF, a Questão De Ordem na Ação Penal 937 traz a proposta de alteração
de interpretação dos dispositivos constitucionais. Conforme defende Barroso, relator de
tal Questão, uma interpretação restritiva de tal instituto permitiria que cerca de 90%11
dos processos e investigações criminais que estão em andamento no STF iriam para
outras instâncias judiciais.

Os argumentos pelo fim do foro de função aos parlamentares para casos que
não estejam diretamente ligados ao seu exercício passam, segundo Barroso, pela
“disfuncionalidade” do instituto, já que “o Supremo Tribunal Federal não tem sido capaz
de julgar de maneira adequada e com a devida celeridade os casos abarcados pela
prerrogativa”12, sobrecarregando e tornando lenta as tramitações processuais, adiando
julgamentos e condenações, o que leva à impunidade; em um segundo momento,
Barroso defende a necessidade do duplo grau de jurisdição, ainda que não seja um
princípio constitucional expresso, afirma.

Diante disso, é preciso falar do “espaço para a redefinição do papel do Judiciário


na competição política e a mobilização passou a visar a promoção de valores subs-
tantivos pelas decisões judiciais.”13. Mais especificamente, como o discurso sobre o
combate à corrupção, tão presente em julgamento de causas relativas às prerrogativas
parlamentares, tem avançado do âmbito das regras eleitorais e propriamente das regras
de administração pública para direitos como os estabelecidos pelo art. 53 da CF.

Curiosamente,

O foro especial era associado a privilégio de classe, sendo a “classe


política” a beneficiária de imunidades associadas a suas oportunidades
diferenciais de acesso aos cargos públicos. Um dos pontos da luta
contra a corrupção era o combate ao foro privilegiado. Com o início do
governo Lula, inverteram-se as posições dos principais contendores
políticos no governo e na oposição. O escândalo do mensalão deu novos

11 Conforme dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV). BETIM, Felipe. STF abre caminho para limitar foro
privilegiado de deputados e senadores. El país, São Paulo, 24 nov. 2017. Disponível em: <https://brasil.
elpais.com/brasil/2017/11/23/politica/1511464819_756831.html>. Acesso em: 5 ago. 2018.

12 QUESTÃO DE ORDEM na Ação Penal 937/Rio de Janeiro. Rel. Min. Luis Roberto Barroso. Autor: Ministério
Público Federal. Réu: Marcos da Rocha Mendes. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/voto-
barroso-foro-especial.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2018.

13 KOERNER, Andrei. Judiciário e moralização da política: três reflexões sobre as tendências recentes no
Brasil. In: Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 3, set./dez, 2013, p. 704. Disponível em: <http://periodicos.unifor.br/
rpen/article/viewFile/2807/pdf>. Acesso em: 5 ago. 2018.

A RESTRIÇÃO DO ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E 241


OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
contornos à luta contra a corrupção. O próprio STF foi investido da
punição dos acusados. O foro privilegiado deixou de ser um obstáculo
e passou a ser um ponto de apoio para os movimentos de combate à
corrupção. Na AP n° 470, contrariando suas decisões anteriores e apesar
das divergências jurisprudenciais, o STF assumiu para si o encargo
de examinar o caso em sua integridade e julgar todos os acusados.
O acolhimento pode ser visto não tanto como uma aliança da maioria
dos ministros do STF com a oposição, mas como uma permeabilidade
sua a demandas de moralidade e sensibilidade dos movimentos da
opinião pública, associada à aceitação de usar uma gama mais ampla
de técnicas jurídicas, mesmo em campos mais estritos, como o do
Direito e processo penal. Não é que se tornem pragmáticos, mas usam
de forma mais aberta argumentos pragmáticos e a adaptação/moldagem
de técnicas jurídicas.14

A despeito de que o argumento de que a diferenciação aqui estudada encontre


sustentação concepção de que a dignidade e relevância da função ou cargo exercido
demandam julgamento por órgãos de instância mais elevada15, a questão, hoje, parece
ser que a então justificativa de que tal foro serviria para resguardar os parlamentares
de possíveis pressões políticas da primeira instância do judiciário (uma vez que, em
tese, as decisões em colegiado, advindas de magistrados experientes da alta hierarquia
jurídica, seriam menos suscetíveis às instabilidades políticas) já não parece ser tão
acertada.

2. CASO CONCRETO: O ESTATUTO DOS CONGRESSISTAS E


A DECISÃO QUE RESTRINGIU O ALCANCE DO FORO POR
PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
O Estatuto dos Congressistas contempla as garantias constitucionais inerentes
ao exercício da função parlamentar, dispostas no art. 53 a 56 da Constituição Federal,
e tem por finalidade a proteção da independência do Poder Legislativo em relação aos

14 Ibidem, p. 706.

15 FILHO, Newton Tavares. Foro privilegiado: pontos positivos e negativos. Consultoria Legislativa, Brasília,
2016. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/a-camara/documentos-e-pesquisa/estudos-e-notas-
tecnicas/areas-da-conle/tema6/2016_10290_foro-privilegiado-pontos-positivos-e-negativos.

242 Suellen Moura


Marja Mangili Laurindo
outros poderes e à sociedade. Nesse sentido, visa ao desenvolvimento do princípio da
separação dos poderes, seguindo a lógica do Estado Democrático de Direito. O foro
por prerrogativa de função se insere na imunidade formal em relação ao processo, que
consiste na possibilidade de sustação da ação penal contra deputado ou senador por
crime praticado após a diplomação.

O foro por prerrogativa de função está disposto no art. 53, §1º, da CF/88 que
dispõe que os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos
a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal. Inserindo-se, também, a aplicação do
art. 102, I, b, da CF que prescreve que compete ao Supremo Tribunal Federal, precipua-
mente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, nas
infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros
do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República.

Essa prerrogativa sofreu alteração pelo constituinte reformador em dezembro de


2001, em virtude da Emenda Constitucional 35/2001, cujo diploma inseriu modificações
no texto original da Constituição Federal de 1988. Anteriormente, a Carta previa que o
Supremo Tribunal Federal não poderia receber a denúncia ou a queixa-crime sem ter a
autorização da respectiva Casa para iniciar a ação penal. Com a modificação introduzida
pela EC 35/2001, o STF não mais precisa pedir autorização para a Casa para iniciar
ação penal, podendo receber a denúncia ou queixa-crime e iniciar a ação penal.16

Até maio do corrente ano, alguns posicionamentos – não sem controvérsias


– estavam sedimentados na Corte: (i) autorização do STF para indiciamento de depu-
tados e senadores (foro por prerrogativa de função)17; (ii) os crimes acobertados
pela imunidade correspondem aos crime praticados após a diplomação, sendo que,
para crimes praticados antes, apenas ocorre o deslocamento de competência para
o STF; (iii) no caso de concurso de pessoas, pode ocorrer a sustação da ação penal,
ocorrendo o desmembramento, ou a não sustação da ação penal, quando a análise é
realizada pelo STF a partir de cada caso concreto18; (iv) é competência do STF decidir
sobre o desmembramento de investigações, de modo que se o indiciamento iniciar

16 GONÇALVES, Bernardo. Curso de Direito Constitucional,–9. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM,
2017, p. 989.

17 Em 2007, o STF anulou indiciamento realizado pela PF contra o senador Aloísio Mercadante.

18 O STF vinha se posicionando das duas maneiras, ora declinando da competência e não desmembrando,
à exemplo do caso do “Mensalão”, ora desmembramento com base na conveniência da instrução
processual, à exemplo da Operação “Lava-Jato”–Inq 3515 AgR/SP 12/02/2014.

A RESTRIÇÃO DO ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E 243


OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
em primeira instância mas houver indício de delito praticado por autoridade com foro
no STF, paralisam-se os atos de investigação e remete-se tudo ao STF; (v) o crime
deve ser praticado no iter do mandato, sendo que, após o fim do mandato, em tese, há
deslocamento de competência para a instancia originária, aproveitando-se todos os
atos realizados; (vi) em tese, a renúncia do cargo é acompanhada do deslocamento
de competência19.

No entanto, em recente decisão a Corte restringiu o alcance do foro por prerro-


gativa de função conferido aos parlamentares. O caso concreto foi uma Questão de
Ordem na Ação Penal 937, do Rio de Janeiro, de relatoria do Min. Luís Roberto Barroso,
em que figura como réu o Deputado Federal Marcos da Rocha Mendes. Nesta decisão,
de maio de 2018, o STF dá nova interpretação – restritiva – da prerrogativa de foro,
comumente chamada de foro privilegiado.

A Ação Penal 937 trata do caso do ex-deputado federal Marcos da Rocha Mendes,
acusado de corrupção eleitoral (compra de votos) quando era candidato à prefeitura de
Cabo Frio/RJ, em 2008. Como Marcos Mendes foi eleito prefeito, o caso começou a ser
julgado no Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), onde a denúncia foi
recebida em 2013. Com o fim do mandato, o caso foi encaminhado à primeira instância
da Justiça Eleitoral.20

Em 2015, como era o primeiro suplente do partido para a Câmara dos Deputados
e diante do afastamento de titulares, Marcos da Rocha Mendes passou a exercer o
mandato de deputado federal, levando à remessa dos autos ao STF. Eleito novamente
prefeito de Cabo Frio, em 2016, renunciou ao mandato de deputado federal quando
a ação penal já estava liberada para ser julgada pela Primeira Turma do Supremo.21

19 Ex: Caso Cunha Lima (2007) – a competência foi deslocada. Mas o STF modificou posicionamento
no caso do Deputado Federal de Rondônia Natan Donadon em 2010, mantendo sua competência para
processo e julgamento sob argumento de fraude processual, abuso de direito e “burla” da Constituição.
Outra inversão jurisprudencial aconteceu conforme os Informativos n. 525 e 734 do STF. O primeiro
consiste no caso do Deputado Federal militar em que o julgamento fora iniciado com foro, mas no pleito
seguinte o deputado não foi reeleito e o processo foi mantido no STF. No segundo caso, o julgamento
fora iniciado sem foro e o candidato se elegeu no pleito seguinte; neste caso, não houve anulação do
julgamento do TJ, invalidando os atos subsequentes.

20 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Restrição a foro por prerrogativa de função na pauta desta quarta-
feira (2). Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=377039>.
Acesso em: 05 ago. 2018.

21 Ibidem.

244 Suellen Moura


Marja Mangili Laurindo
A partir das mudanças de foro para julgar o processo contra Marcos Mendes e o
risco de prescrição da pena, o relator decidiu remeter uma questão de ordem ao Plenário
sobre a possibilidade de se restringir a adoção do foro especial por prerrogativa de
função aos crimes cometidos em razão do ofício e que digam respeito estritamente
ao desempenho daquele cargo. O relator entende que o caso deveria voltar à primeira
instância, que já havia finalizado a instrução processual, uma vez que o réu não é mais
detentor de foro por prerrogativa de função no STF.22

A questão de ordem fixou as seguintes teses: (i) o foro por prerrogativa de função
aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às
funções desempenhadas; (ii) após o final da instrução processual, com a publicação
do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para
processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público
vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo;
(iii) essa nova linha interpretativa deve se aplicar imediatamente aos processos em
curso, com a ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e
pelos demais juízos com base na jurisprudência anterior, conforme precedente firmado
na Questão de Ordem no Inquérito 687 (Rel. Min. Sydney Sanches, j. 25.08.1999).

De acordo com o Min. Luís Roberto Barroso, “embora se viesse interpretando a


literalidade desse dispositivo no sentido de que o foro privilegiado abrangeria todos
os crimes comuns, é possível e desejável atribuir ao texto normativo acepção mais
restritiva, com base na teleologia do instituto e nos demais elementos de interpretação
constitucional”. Na sequência, ressalta que se trata da chamada “’redução teleológica’
ou, de forma mais geral, da aplicação da técnica da ‘dissociação’, que consiste em
reduzir o campo de aplicação de uma disposição normativa a somente uma ou algumas
das situações de fato previstas por ela segundo uma interpretação literal, que se dá para
adequá-la à finalidade da norma”. Nessa operação, “o intérprete identifica uma lacuna
oculta (ou axiológica) e a corrige mediante a inclusão de uma exceção não explícita
no enunciado normativo, mas extraída de sua própria teleologia”. Como resultado, “a
norma passa a se aplicar apenas a parte dos fatos por ela regulados.” Por fim, sublinha
que “a extração de ‘cláusulas de exceção’ implícitas serve, assim, para concretizar o
fim e o sentido da norma e do sistema normativo em geral”.23

22 Ibidem.

23 QUESTÃO DE ORDEM na Ação Penal 937/Rio de Janeiro. Rel. Min. Luis Roberto Barroso. Autor: Ministério
Público Federal. Réu: Marcos da Rocha Mendes. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/voto-

A RESTRIÇÃO DO ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E 245


OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Diante do exposto, alguns questionamentos podem ser lançados do ponto de vista
da dogmática constitucional, da teoria constitucional e da teoria política.

3. ANÁLISE CRÍTICA DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL


FEDERAL
Conforme preleciona o art. 102, caput, da CF, ao STF cabe a guarda da Constituição
– e esse é um fundamento constantemente reforçado na Questão de Ordem objeto de
análise. Analisando detidamente o diploma constitucional, não há norma constitucional
que atribui ao Supremo Tribunal Federal a competência de restringir, por qualquer
motivo, a imunidade formal em relação ao processo. Ainda que interpretação similar
venha sendo dada à imunidade material – que, diga-se de passagem, também sofreu
sucessivas inversões jurisprudenciais, tal argumento não deve – ou não deveria figurar
como fundamento legítimo para restringir o alcance de uma garantia constitucional.

O art. art. 53, §1º, da CF/88, é claro ao afirmar que deputados e senadores, desde
a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal
Federal. Correlacionado a esta disposição normativa, o art. 102, I, b, da CF/88, também
dispõe expressamente ao contrário, ou seja, que o STF é competente para julgar e
processar originariamente os membros do Congresso Nacional. Não há qualquer outra
norma constitucional que autorize a interpretação conferida pela Corte. Por que então
é razoável a defesa de que a nova interpretação restritiva conferida tem o condão de
assegurar a Constituição?

A questão que se coloca frente a essa ausência de respaldo constitucional é


precisamente quanto à existência de desacordos sobre qual o sentido e o alcance de
uma norma constitucional e a necessidade percebida por todos de um curso de ação
comum. É nessa esteira que Jeremy Waldron propõe a necessidade de procedimentos
decisórios legítimos como uma resposta ao problema moral da discordância. Para o
autor, a resposta mais apropriada é que deveríamos remar para a questão da legitimi-
dade, havendo ou não discordância.

O ponto não consiste precisamente em nos livrarmos das questões de direitos;


mesmo que indivíduos de uma sociedade discordem sobre direitos eles precisam ter
uma base comum de ação quando for necessário agir. E isso não quer dizer que não

barroso-foro-especial.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2018.

246 Suellen Moura


Marja Mangili Laurindo
existirão discordâncias ou que sempre boas decisões serão tomadas, mas sim que
essas decisões, que podem não ser exatamente as mais corretas, se pautarão por um
procedimento decisório legitimo.24 Seguindo esse entendimento, questões como esta
deveriam ser decididas e debatidas pelos representantes e a sociedade em conjunto, por
meio de instrumento previsto constitucionalmente, como a possibilidade de proposta
de uma PEC, a exemplo da EC 25/2001. Esta, inclusive, citada pelo Min. Luis Roberto
Barroso em seu voto na Questão de Ordem.25

Ademais, a mudança severa da Corte quanto à garantia parlamente deixa em


aberto outras questões como o processo e julgamento das autoridades com prerro-
gativa de foro no STF como Presidente da República, o Vice-Presidente, os próprios
Ministros e o Procurador-Geral da República. Vale ressaltar, todavia, que a Corte Especial
do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu, em 20 de junho deste ano, com base
na decisão do STF, que o foro por prerrogativa de função no caso de governadores e
conselheiros de tribunais de contas ficará restrito a fatos ocorridos durante o exercício
do cargo e em razão deste.26

A alocação do poder de legislar, ou seja, o poder de instituir normas gerais de


aplicação prospectiva, é o ponto nevrálgico do debate acerca da judicialização da
política e da politização de tribunais. Em uma República, o poder de legislar deve
ser exercido pelo povo, direta ou indiretamente, sendo o o poder para e pelo povo a
principal fonte de direcionamento e de legitimidade em um governo democrático. Essa
é a concepção que no ordenamento jurídico brasileiro corresponde à soberania popular,

24 Jeremy Waldron, A Essência da Oposição ao Judicial Review. In BIGONHA, Antonio Carlos Alpino e
MOREIRA, Luiz. Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 118.

25 Veja-se o trecho da exposição de motivos: “Sob pena de comprometimento do exercício do mandato e


da própria representação política, o instrumento da imunidade parlamentar não pode produzir efeitos
retroativos, em relação a fatos praticados pelo detentor do mandato quando ainda não investido da
condição de autoridade com jurisdição nacional, que constitui a justificativa constitucional da atribuição
de tal prerrogativa. (...) A possibilidade ora apresentada, com a presente emenda constitucional, de que
a Justiça possa prosseguir seu curso, sem obstáculos ou impedimentos, a apuração da regularidade da
conduta daqueles que foram investidos em mandatos eletivos, no período antecedente a tal investidura,
restabelece o conceito de igualdade, suprimindo privilégios odiosos, que a consciência democrática
repudia”.

26 STJ. Foro para governadores e conselheiros é restrito a fatos relacionados ao cargo. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/
Foro-para-governadores-e-conselheiros-%C3%A9-restrito-a-fatos-relacionados-ao-cargo>. Acesso em: 06
ago. 2018.

A RESTRIÇÃO DO ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E 247


OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
insculpida no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal de 198827. Assim, o
Poder Legislativo integra uma instituição representativa que, de acordo com a teoria
republicana, exercita justificadamente o poder de legislar.

Contudo, é possível que esse poder de legiferação se realoque entre instituições


governamentais, diferindo-se quanto à forma institucional que irá assumir de um poder
para outro. Há razões pelas quais certos tipos de leis deveriam ser debatidas e formu-
ladas em um legislativo, assim como há razões para que outras o sejam em órgãos
administrativos ou em tribunais. A ressalva a ser feita é de que “tipos diferentes de
legislação substantiva parecem exigir tipos diferentes de razões ou justificações”28.
Assim, “transferir a legiferação para tribunais e órgãos governamentais, quanto a essas
questões, tem o sentido de alterar os tipos de considerações – os tipos de justificações
deliberativas – que entram na escolha de políticas alternativas”29.

Quando tribunais participam da legiferação essa atividade fica sensível a fatores


políticos estruturais30 que podem ser modelados de forma explícita ou implícita. As
condições estruturais favoráveis à legislação judicial são igualmente favoráveis à
regulamentação judicial da conduta de candidatos, autoridades eleitas e nomeações.
Nesse sentido, é possível que “juízes desempenhem um papel policiador sobre políticos
mesmo quando as condições estruturais para o estabelecimento de políticas pelo
judiciário não sejam propícias”, ou seja, “os políticos podem, por exemplo, admitir que

27 Art. 1º, Parágrafo único, CF: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

28 FEREJOHN, John. Judicializando a Política, Politizando o Direito. In: MOREIRA, Luiz (Org.). Judicialização
da Política. São Paulo: 22 Editorial, 2012, p. 68.

29 Ibidem, p. 68.

30 Como exemplos no contexto brasileiro, destacam-se: a promulgação da Constituição Federal de 1988;


a universalização do acesso à justiça; a estrutura tripartite de organização dos poderes do Estado;
a existência de uma Carta Constitucional com textura aberta, normas programáticas e cláusulas
indeterminadas; a crise do paradigma formalista de interpretação inspirado nas premissas do
positivismo jurídico; a ampliação do espaço reservado ao Supremo Tribunal Federal; a permissão por
parte da Constituição de 1988 para que o Poder Executivo edite medidas provisórias; a ampliação do
rol dos legitimados ativos a propor a ação direta de inconstitucionalidade; a veloz modificação da base
econômica do Brasil; a existência de novas forças sociais representadas por importantes movimentos,
organizações e grupos sociais; o agravamento da crise econômica nas últimas décadas do século XX,
a ineficácia da política macroeconômica do país e a consequente explosão da crise social; a hipertrofia
legislativa; a desproporcionalidade da representação política e a crescente ineficácia do sistema político-
decisório. VERBICARO, Loiane Prado. Um estudo sobre as condições facilitadoras da judicialização da
política no brasil. In: Revista Direito GV, jul.-dez. 2008, São Paulo, pp. 389-406.

248 Suellen Moura


Marja Mangili Laurindo
têm interesse em recorrer a terceiros mais ou menos independentes para que as regas
do jogo sejam seguidas de forma limpa.”31

O caráter político está inevitável e justificadamente associado ao poder de legislar.


Assim, a política partidária contenciosa está inevitavelmente associada ao exercício
do poder legiferante e, portanto, um tribunal, ao exercer a função de legislador positivo,
não está imune à pressões políticas. Quando normas gerais são criadas é possível
que haja discordância sobre seu conteúdo e esse impasse não está adstrito às partes
litigantes apenas. A disputa entre a divergência de entendimentos sobre o conteúdo
de uma norma “é intrinsecamente política no sentido de que a escolha de uma norma
ou interpretação em detrimento de outra deve ser justificável de alguma forma para
aqueles que são afetados por tal norma”32.

Conforme preleciona John Ferejohn, quando os tribunais podem tomar decisões


com consequências politicas e mais ou menos finais, qualquer um com interesse nessas
decisões tem motivo para expressar esses interesses na forma de argumentos jurídicos
persuasivos. E aqueles interessados em decisões judiciais tem motivos para buscar
influências e, se possível, controlar nomeações para os tribunais e outras instituições
jurídicas33. Nesse sentido, judicialização da política tende a produzir a politização dos
tribunais. Consequentemente, “a tomada de decisão judicial tende a tornar-se política
conduzida por outros meios”34. Portanto, o poder de legislar deve estar submetido à
contestação e à deliberação política daqueles a quem as normas afetam. A configuração
da política judicial, contudo, é e deve em certos pontos ser diferente daquela que
circunda os poderes políticos.

A politização de tribunais e o deslocamento da autoridade do sistema represen-


tativo para o judiciário não é um processo recente e compreende uma consequência
do avanço das denominadas constituições rígidas, com sistemas de controle de
constitucionalidade, de origem norte americana. Contudo, a expansão da autoridade
judicial é mais perceptível quando da adoção de constituições mais ambiciosas. Ou
seja, as constituições contemporâneas são desconfiadas do legislador, confiando ao
judiciário a função de guardião da constituição e ao legislativo e ao executivo apenas

31 FEREJOHN, John. Op. cit., p. 69.

32 Ibidem, p. 77.

33 FEREJOHN, John. Op. cit., p. 69.

34 Ibidem, p. 91.

A RESTRIÇÃO DO ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E 249


OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
a função de implementação da vontade constituinte.35 Sendo assim, um contexto de
ativismo judicial exacerbado levanta questões de separação de poderes, de segurança
jurídica e violações ao princípio democrático.

Como bem assevera Jeremy Waldron, quando expõe as concepções de John


Manning sobre a separação de poderes na Constituição dos Estados Unidos, sepa-
ração de poderes, assim como o princípio democrático e o The Rule of Law, embora
não estejam expressamente previstos na Carta dos Estados Unidos como princípios
autônomos, permanecem como a pedra de toque para avaliar a operação dos arranjos
constitucionais norte-americanos, uma vez que a democracia integra parte indispen-
sável da melhor teoria de governança dos Estados Unidos, assim como o Estado de
Direito está permeado no espírito da Constituição.36

Similarmente, da Constituição Federal de 1988 é possível extrair o princípio da


separação de poderes, o princípio democrático e o princípio da segurança jurídica
de diversos dispositivos que, mesmo não sinalizados expressamente, direcionam e
legitimam todo o ordenamento jurídico brasileiro. Conforme preceitua Celso Antônio
Bandeira de Mello, o princípio da segurança jurídica não está radicado em um dispositivo
constitucional específico, ou seja, “é da essência do próprio Direito, notadamente de
um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional
como um todo”37. Portanto, os valores de democracia38, de separação de poderes39 e

35 “Diferentemente das constituições liberais, que estabeleciam poucos direitos e privilegiavam o desenho
de instituições políticas voltadas a permitir que cada geração pudesse fazer as suas próprias escolhas
substantivas, por intermédio da lei e de políticas públicas”. VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. In:
Revista Direito GV. São Paulo, p. 441-464, jul-dez 2008, p. 443.

36 “There is no principle of democracy in the U.S. Constitution. (True, we can infer the importance of certain
democratic considerations from Article I, 2.1, and also from the Fifteenth, Nineteenth, Twenty- Fourth,
and Twenty- Sixth Amendments, but the principle of democracy itself cannot be regarded as legally
enshrined.) Nevertheless, democracy is an indispensable part of our best theory of governance, and it
would be wrong to forego any interest in it simply on account of its lacking explicit legal status in the
text of the Constitution. Th e same is true of the rule of law. Although the framing of the U.S. Constitution
was permeated by the spirit of the rule of law, still the rule of law is not presented in the Constitution as a
free- standing principle and cannot be judicially enforced as such”. WALDRON, Jeremy. Political Political
Theory: essays on institutions. Cambridge: Harvard Univeristy Press, 2016, p. 47.

37 MELLO, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, 28 ed. São Paulo: Malheiros,
2011, p. 123.

38 O Princípio Democrático está disposto na Constituição Federal de 1988 em três situações distintas, quais
sejam, no Preâmbulo, no art. 1º e no art. 3º.

39 A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 2º, consagra o Princípio da Separação de Poderes no
Estado brasileiro ao dispor que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo,

250 Suellen Moura


Marja Mangili Laurindo
de segurança jurídica40 são compromissos constitucionais assumidos pelo povo como
importantes e que, portanto, iluminam a Constituição Federal de 1988.

A separação de poderes na concepção de Jeremy Waldron corresponde a uma


separação qualitativa das diferentes funções do governo, separação esta que se dife-
rencia do princípio do poder disperso – que é a ideia de evitar a concentração de poder
em uma só pessoa ou um só grupo – e do princípio do checks and balances – que
é a ideia de que o exercício do poder de um deve ser verificado e balanceado pelos
outros. O ponto a ser analisado é que a distinção entre legislativo, executivo e judiciário
não foi pensada no intuito de estabelecer a existência de instituições que pudessem
contrabalancear umas às outras. Dessa forma, a distinção dos poderes no que se
refere ao princípio da separação de poderes “é nos dada como uma teoria articulada
de governança que distingue essas funções pelo o que elas são, não pelo que elas
podem fazer para segurar um ao outro em xeque”.41

Dessa forma, o princípio da separação de poderes identifica a integridade de cada


um dos diferentes poderes ou funções (a dignidade da legislação, a independência
das Cortes e a autoridade do executivo) e considera o valor articulado dos modos de
governança. Se a independência do poder judiciário é considerada como um princípio
distintivo do constitucionalismo moderno, o esforço de Jeremy Waldron está em incen-
tivar uma solicitude semelhante pela dignidade da legislação. Obrigar o respeito pela
integridade de cada uma dessas três operações de governo é importante precisamente
porque elas precisam se encaixar no esquema articulado geral de governança. As três
funções do governo, cada uma em sua integridade distintiva, devem ser inseridas em
um esquema comum de governo que permita às pessoas confrontar o poder político
de maneira diferenciada.42

o Executivo e o Judiciário.

40 Consubstanciado na definição das autoridades competentes, dos atos a serem editados, dos conteúdos
a serem regulados, dos procedimentos devidos, das matérias a serem tratadas, como forma de
potencializar os ideais de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade normativas. Exemplos:
processo legislativo, devido processo legal, supremacia da lei, reserva de lei, anterioridade da lei,
vigência da lei, incidência da lei, retroatividade e ultra-atividade da lei, repristinação da lei, lacunas da
lei, legalidade administrativa (artigo 37, caput, CF/88), legalidade penal (artigo 5º, inciso XXXIX, CF/88) e
legalidade tributária (artigo 150, inciso I, CF/88).

41 WALDRON, Jeremy. Political Political Theory: essays on institutions. Cambridge: Harvard Univeristy
Press, 2016, p. 51.

42 Ibidem, pp. 52-53.

A RESTRIÇÃO DO ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E 251


OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
O princípio constitucional democrático estabelece para a democracia uma
dimensão substancial (legitimidade) e outras duas procedimentais (legitimação). A
legitimidade refere-se à concretização dos direitos fundamentais em todos os seus
matizes; já a legitimação, diz respeito à eleição dos representantes (democracia
representativa) e às formas procedimentais de exercício do poder que permitem a
participação e o controle popular (democracia participativa).

Quando tribunais atuam como legisladores positivos, tanto os aspectos de legiti-


midade quanto de legitimação são severamente fragilizados. Se, como assinala Roberto
Gargarella e Jeremy Waldron, as duas circunstâncias básicas da política correspondem
à existência de desacordo e a necessidade percebida por todos de um curso de ação
comum, “é importante que as comunidades tomem suas decisões em determinado
foros, utilizando procedimentos que se mostrem respeitosos com os desacordos e
que permitam que as vozes sejam escutadas em um debate sobre o qual deveria ser
a solução a um problema comum”.43

Assim, o valor político que se associa de forma mais naturalmente com o


Parlamento e com a autoridade de seu produto (a legislação) é o da legitimidade
democrática. Primeiramente, porque o Legislativo compreende o corpo mais eletivo
e responsável; composto por membros que são eleitos pelo povo, os representantes
podem ser substituídos na medida em que suas propostas ou atuação política se
afastem dos interesses dos representados.44 Quando a Corte interfere no equilíbrio do
poder político do Legislativo, a legislação de um corpo não eleito triunfa, ilegitimamente,
sobre a legislação de uma instituição eleita.45

Em segundo lugar, o Legislativo é identificado como um corpo legiferativo que


incorpora a dedicação pública para fazer e mudar a lei. Os tribunais, por sua vez, não são
configurados publicamente com as estruturas, recursos e pessoal que são necessários

43 WALDRON, Jeremy. Derecho y desacuerdos. Traducción José Luis Martí y Águeda Quiroga. Madrid:
Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., 2005, p. XVIII.

44 WALDRON, Jeremy. Political Political Theory: essays on institutions. Cambridge: Harvard Univeristy
Press, 2016, p. 125, (tradução nossa).

45 “In democratic states most government officials achieve legitimacy by acknowledging their political rule
and claiming subordination to the people through elections or responsibility to those elected. Judges,
however, claim legitimacy by asserting that they are non-political, independent, neutral servants of ‘the
law’. Alone among democratic organs of government, courts achieve legitimacy by claiming they are
something they are not.” SHAPIRO, Martin; SWEET, Alec Stone. On Law, Politics, and Judicialization. New
York: Oxford University Press, 2002, p. 03.

252 Suellen Moura


Marja Mangili Laurindo
para um papel legislativo. Da mesma forma, porque os membros decisórios de uma
Corte não são oficialmente entendidos como legisladores, não são avaliados por esse
papel no momento da sua nomeação ou seleção.46

Um terceiro e importante ponto refere-se à transparência. A ideia de legislação


incorpora um compromisso com a legislação explícita, um compromisso de princípio
com a ideia de que, em geral, é bom – se a lei deve ser feita ou alterada – que ela seja
em um processo público dedicado a essa tarefa. A ideia de legislação consiste na
consciência de que a legitimidade de nossas instituições legais e políticas não deve
depender de qualquer má compreensão entre as pessoas sobre como essa sociedade
está organizada.47

A transparência é um princípio muito importante para a democracia. Se o povo


sabe onde as leis são feitas, então a atenção estará voltada para essa instituição. E
isso afeta a forma como os cidadãos cumprem seus poderes participativos. Ou seja,
um espaço como o de uma Corte Constitucional pode ser politicamente mais promissor
para um determinado grupo ou outro48, mas isso é apenas porque menos cuidados foram
tomados com as condições de legitimidade da legislação nesse fórum (precisamente
porque não se pensou ser oficialmente um fórum para legislar).

Um quarto ponto que identifica que a sujeição do legislativo ao judiciário representa


uma ofensa à valores democráticos diz respeito ao caráter representativo – quantitativo
e qualitativamente. O Legislativo, ao contrário de uma Corte Constitucional, compreende
centenas (em alguns casos, milhares) de indivíduos. Diferentes pessoas trazem dife-
rentes perspectivas para enfrentar as questões em discussão, e quanto mais pessoas
houver, maior será a riqueza e a diversidade de pontos de vista. “Quando diversas
perspectivas são unidas em um processo coletivo de tomada de decisão, os recursos
informativos são muito maiores do que os que atendem a tomada de decisão de
qualquer indivíduo”.49 Assim, o Legislativo não é somente uma instituição democrática,

46 Elas não são publicamente fornecidas com as estruturas, recursos e pessoal necessários para um
papel legislativo. Eles têm que estar juntos para a legislação a partir dos escritos que consideram ser a
razão para o cumprimento do cumprimento das leis existentes e a solução de controvérsias. WALDRON,
Jeremy. Political Political Theory: essays on institutions. Cambridge: Harvard Univeristy Press, 2016, p.
126.

47 Cf. WALDRON, Jeremy. Op. cit., p. 127, (tradução nossa).

48 Para aprofundamento, consultar SHAPIRO, Martin; SWEET, Alec Stone. On Law, Politics, and
Judicialization. New York: Oxford University Press, 2002.

49 WALDRON, Jeremy. Op. cit., p. 132, (tradução nossa).

A RESTRIÇÃO DO ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E 253


OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
transparente ou com grandes assembleias, é também representativo. A acusação contra
o poder judicial não é apenas que seja isolada da responsabilidade pública, mas que
não possui as credenciais representativas necessárias como o Legislativo.

A fraqueza de credenciais democráticas de um tribunal surge da própria ideia


de legislação, que “fornece um brilho específico sobre o caráter demonstrativo de
parlamentos, congressos e assembleias que se relacionam com sua legitimidade
democrática, ao importante princípio da franqueza institucional e transparência na
política”50.

Transferir significativamente a legiferação para tribunais afeta a democracia


representativa. A noção de democracia como diarquia desenvolvida por Nadia Urbinati
demonstra que existem duas esferas da representação que são diferentes, mas se
influenciam que é o processo de tomada de decisão e a opinião do povo. “Embora a
democracia não nos dê a certeza de excelentes ou boas decisões ela nos dá a certeza
de podermos reformular ou mudar todas as decisões sem questionar ou revogar a
ordem política; isto é, sem perder nossa liberdade”51. Nesse sentido, as eleições são
um meio para um fim, um governo da opinião, um governo que reage à opinião pública
e que é responsável por ela. Transferir essa atividade para o judiciário tem o condão
de alterar a forma como a opinião pública é formada e como o cidadão se comporta
com instituições representativas.

Em termos de legitimação, Nadia Urbinati discute a pertinência da representação,


destacando-a como forma capaz de congregar duas facetas importantes – e também
dois momentos distintos – da deliberação: a participação e a representação, as quais
“constituem o continuum da ação política nas democracias modernas”52. Se é possível
estarmos divididos, ou seja, se admitimos que as instituições políticas podem lidar com
os conflitos e que estes podem ser estruturados, regulados e contidos; que as regras
puramente processuais podem ser eficazes no tratamento dos conflitos sem recorrer
à força; que a oposição política pode melhorar a qualidade das decisões coletivas; e
que escolher os governos através de eleições competitivas constitui a única forma de

50 WALDRON, Jeremy. Op. cit., p. 129, (tradução nossa).

51 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 06.

52 URBINATI, Nadia. Representação como advocacy. Tradução de Sieni Maria Campos. In Política &
Sociedade – Revista de Sociologia Política, v. 9, n. 16, abr. 2010, p. 54.

254 Suellen Moura


Marja Mangili Laurindo
promover a liberdade política em sociedades divididas53, e que a todo esse conjunto
de fatores vincula-se um caráter político e democrático54, a transferência de decisões
políticas para tribunais enfraquece a democracia.

Para Urbinati, democracia constitui

[...] um governo por meio da opinião e a democracia representativa como


a forma que melhor corporifica o sistema diárquico, um sistema no qual
“a decisão” (na linguagem da teoria da soberania os procedimentos e
instituições que regulam a elaboração das leis) e “opinião” (o domínio
extrainstitucional da formação do julgamento político) se influenciam
mutuamente, cooperam entre si ou entram em conflito sem, contudo,
fundir-se.55

A noção de representação discutida por Nadia Urbinati envolve um processo


abrangente de filtragem, refinamento e mediação da formação e da expressão da
vontade política, moldando o objeto, o estilo e os procedimentos da competição política.
A distância entre os momentos de fala e decisão permite um escrutínio crítico enquanto
protege os cidadãos do assédio de palavras e paixões que a política engendra. As
estruturas de representação, portanto, fornecem processos para a formação de juízo
e para o engajamento deliberativo de juízos tanto entre o povo quanto entre seus
representantes.56

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A decisão aqui estudada é apenas uma dentre tantas outras que toca o muito
sensível ponto sobre a atuação das instituições estatais brasileiras, em especial o
Judiciário.

53 Cf. PRZEWORSKI, Adam. Divided We Stand? Democracy as a Method of Processing Conflicts. In:
Scandinavian Political Studies, vol. 34, n. 2, 2011, pp. 168-182.

54 WALDRON, Jeremy. Political Political Theory: essays on institutions. Cambridge: Harvard Univeristy
Press, 2016.

55 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 06.

56 URBINATI, Nadia. Representação como advocacy. Tradução de Sieni Maria Campos. In: Política &
Sociedade – Revista de Sociologia Política, v. 9, n. 16, abr. 2010, p. 55.

A RESTRIÇÃO DO ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E 255


OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Se a Constituição de 88 surgia como uma resposta de resistência à Ditadura
Militar, cujos anseios republicanos carregaram, em seus artigos, os órgãos públicos de
preceitos liberais representativos, atualmente pode-se pensar qual é o papel do Poder
Judiciário na manutenção desses mesmos preceitos.

A história do Brasil nos aponta os modos que constituem a relação entre aquilo
que é público e privado. Herdeiro da prática do “favor”, movido pelo jeitinho, também o
Judiciário, apesar de ter sido programado para atender aos interesses públicos, padece
da falta de controle que não seja aquele que faz sobre si mesmo.

Embora até maio de 2018 os art. 53 e 102 fossem interpretados literalmente, isto
é, no sentido de que o foro privilegiado abrangeria todos os crimes comuns, o STF
entendeu, pelos motivos já tratados, que uma acepção mais restritiva seria cabível. Com
o intuído de submeter a constituição à realidade, e não o contrário, tratou de promover
uma “redução teleológica” do texto constitucional. Reduziu, desta forma, o campo de
aplicação de uma disposição normativa a somente uma ou algumas das situações de
fato previstas por ela segundo uma interpretação literal.

Conforme preleciona o art. 102, caput, da CF, ao STF cabe a guarda da Constituição
– e esse é um fundamento constantemente reforçado pelo Ministro em seu voto. Não
existe norma constitucional que atribui ao STF a competência de restringir, por qualquer
motivo, a imunidade formal em relação ao processo. Não existe norma constitucional
que, correlacionada ao art. 53, § 1º, da CF/88, autorize e justifique a nova interpretação.
Existe, por outro lado, disposição do art. 102, I, b, da CF, que expressa justamente
aquilo que se quis negar: o STF é competente para julgar e processar originariamente
os membros do Congresso Nacional.

Essa decisão, juntamente com as demais decisões atinentes às prerrogativas


parlamentares, dá eco as várias teorizações sobre a judicialização da política e expressa
a interferência do STF na política nacional. É questionável a preferência por uma
interpretação distorcida, que altera o sentido do texto constitucional, em detrimento de
ações que incluam os representantes políticos e a sociedade em conjunto, a exemplo
do que ocorreu com a EC 25/2001.

A transferência dessa competência às instâncias de primeiro grau só amplia as já


crescentes judicialização da política e insegurança jurídica, acentuando a fragmentação
de instituições políticas.

256 Suellen Moura


Marja Mangili Laurindo
Se há, hoje, um lugar de grande privilégio no Brasil, é o do Supremo Tribunal
Federal. Uma série de decisões como a da Questão de Ordem da Ação Penal 937
apontam para isso: detentor da competência para emitir a interpretação correta do texto
constitucional, usa-se de seu poder para conferir sentidos completamente distintos
daqueles preconizados em princípio, restringindo direitos não apenas dos represen-
tantes eleitos mas também anulando diretamente qualquer possibilidade de política
popular ao eleger-se, com amparo midiático, como representante argumentativo dos
interesses da nação. Como bem afirma Jessé de Souza, no fim, “O que une e irmana
a todos é o ódio comum ao sufrágio universal e seus efeitos. Daí a necessidade de
criminalizar diariamente a política.”57

Referências
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GONÇALVES, Bernardo. Curso de Direito Constitucional,–9. ed. rev. ampl. e atual.
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57 SOUZA, Jessé. O “republicanismo” da esquerda e o Estado de Exceção. Carta Capital, 22 maio 2018.
Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/politica/o-201crepublicanismo201d-da-esquerda-
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A RESTRIÇÃO DO ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E 257


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258 Suellen Moura


Marja Mangili Laurindo
A PROMESSA DEMOCRÁTICA: UM
BALANÇO DAS PROPOSTAS DE
INICIATIVA POPULAR LEGISLATIVA
NA ASSEMBLEIA NACIONAL
CONSTITUINTE E NOS 30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO DE 1988
Suellen Moura1
Thiago Burckhart2

Resumo
A Constituição cidadã de 1988 marcou história no constitucionalismo
brasileiro por ter sido redigida com uma expressiva participação popular reali-
zada por diversos instrumentos. A promessa democrática resultante deste
processo encontrou uma série de entraves, problemas e dificuldades ao longo
dos 30 anos de sua implementação. A falta de confiança nas instituições
políticas é um dos elementos que marcam a crise da democracia representa-
tiva e demonstra as contradições da promessa democrática. Nesse sentido,
o objetivo deste capítulo é de realizar um balanço da participação popular,
por meio de iniciativas legislativas, na Constituinte de 1988 e no período de

1 Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – PPGD/


UFSC. Bolsista CAPES. Pós-graduada em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito
Constitucional. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Pesquisadora no Grupo de
Pesquisa em Constitucionalismo Político – PPGD/UFSC. Contato: spmoura14@gmail.com.

2 Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa


Catarina, UFSC. Bolsista CAPES. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político,
GConst-UFSC. Pesquisador do Centro Didattico Euroamericano Sulle Politiche Costituzionali (Cedeuam,
Itália-Brasil). Email: thiago.burckhart@outlook.com
MOURA,Suellen; BURCKHART, Thiago. A promessa democrática um balanço das propostas de iniciativa popular legislativa na
assembleia nacional constituinte e nos 30 anos da constituição de 1988. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo
Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo
Horizonte: IDDE, 2018. p. 259-284. Disponível em: https://doi.org/10.32445/978856713409311
vigência da Constituição de 1988, apontando as potencialidade e fragilidades
político-institucionais desses processos. Conclui-se, em síntese, que há a
necessidade de construir uma cultura política essencialmente democrática no
país. O capítulo divide-se em duas partes: I – A Constituinte e a construção
da promessa democrática; II – Iniciativa popular e direito de participação.

Introdução
O ideário democrático passou a fazer parte mais consistentemente do discurso
político logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, a democracia contem-
porânea passou a ser gestada logo após o fim da ditadura militar, tendo por um de
seus maiores símbolos a Assembleia Nacional Constituinte que resultou na elaboração
da Constituição de 1988. A Assembleia Nacional Constituinte, portanto, se insere na
dinâmica de construção política e jurídica de uma promessa democrática, assentada
numa concepção substancial de democracia que corresponde à positivação e efetivação
de novos direitos, tendo sido reconhecida a participação popular como elemento
fundamente da soberania popular.

Nesse sentido, a Assembleia Nacional Constituinte contou com a participação


de grande parte da sociedade civil organizada, no qual a população pôde participar, e
interferir no jogo político, de forma direta por meio da elaboração de emendas popu-
lares. A promessa democrática densificou-se com a possibilidade de iniciativa popular
de leis prevista no então novo texto constitucional, no qual a população também
pode redigir propostas de lei e encaminhar para os respectivos órgãos legislativos
para trâmite interno e deliberação. Ao longo de 30 anos de vigência da Constituição,
entretanto, a participação popular por meio deste instrumento encontrou uma série de
entraves político-institucionais, que resultou no dado de que apenas 4 projetos foram
aprovados nas instâncias políticas nacionais, em processos contudo relativamente
contraditórios, o que demonstra uma fragilidade político-institucional para lidar com
a participação cidadã.

Este capítulo tem por objetivo fornecer subsídios teóricos pare refletir sobre a
construção da promessa democrática no Brasil por meio da Constituição de 1988.
Para tanto, será realizado um balanço da participação popular realizada por meio
das propostas de iniciativa popular legislativas no âmbito da Assembleia Nacional
Constituinte e ao longo dos 30 anos de vigência do texto constitucional. O estudo

260 NOME DO AUTOR


insere-se no campo do direito constitucional, colmando elementos de história cons-
titucional e de sociologia jurídica e divide-se em duas partes: I – A Constituinte e a
construção da promessa democrática; II – Iniciativa popular e direito de participação.

1. A CONSTITUINTE E A CONSTRUÇÃO DA PROMESSA


DEMOCRÁTICA
Historiadores, cientistas políticos e antropólogos da política dos mais variados
espectros políticos concordam que a segunda metade do século XX foi marcada pela
ascensão de um ideal: a democracia3. Desde então, países de todo o globo passaram-se
a autodenominarem-se como “democráticos” em seus textos constitucionais. A demo-
cracia, então, deixa de ser uma categoria pejorativa, para se posicionar na centralidade
do debate político-institucional. A construção das democracias, nesse contexto, deu-se
em dois momentos. O primeiro deles, a partir da elaboração de novos textos constitu-
cionais que previam formalmente a democracia enquanto regime político. E o segundo
a partir de uma construção paulatina no campo político-cultural, na medida em que a
democracia também pode ser compreendida como uma cultura. Essas duas dimensões,
todavia, são interdependentes.

O historiador britânico Eric Hobsbawn aponta que a democracia tornou-se uma


palavra pela qual demonstra “entusiasmo”. De acordo com ele, “hoje [...] é impossível
encontrar, com exclusão de algumas teocracias islâmicas e monarquias hereditárias
asiáticas, qualquer regime que não renda homenagens oficiais, constitucionais e
editoriais a assembleias e presidentes pluralmente eleitos”, de modo que os Estados
que não possuem esse atributo são oficialmente considerados “inferiores” aos outros4.
Pela primeira vez na história, a “República Democrática, constitucional, representa-
tiva e moderna” torna-se verdadeiramente um “modelo” de Estado e regime político
dominante5.

3 Para aprofundamentos, ver: SARTORI, Giovanni. Democrazia: cosa è? Roma: Rizzoli Libri, 2006; MIGUEL,
Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora UNESP, 2014; DAHL,
Robert. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora da UnB, 2001; PATEMAN, Carole.
Participação e teoria democrática. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

4 HOBSBAWN, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 97.

5 “Com efeito, na oratória política do nosso tempo, que em sua quase totalidade pode ser descrita, nas
palavras do grande Leviatã de Thomas Hobbes, como “discurso insignificante”, o termo “democracia”
tem como significado esse modelo-padrão de Estado; e isso significa um Estado constitucional, que
oferece a garantia do império da lei e de vários direitos e liberdades civis e políticas e é governado

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 261


Em efeito, o processo de difusão universal do ideal “democrático” plasmou-se na
produção de novos textos constitucionais em diversas partes do mundo6–inclusive em
países que não tinham tradição de Constituições escritas, como é o case de vários
Estados asiáticos. A Constituição passou a ser dotada de um valor simbólico, para além
de sua conotação restritamente político-jurídica7. Isso porque o processo elaborativo
das novas Constituições8, por meio de Assembleias Constituintes participativas – pelo
menos nos países latino-americanos e europeus – se posicionam no cerne do redesenho
dos respectivos Estados, da reconfiguração dos direitos fundamentais numa dimensão
progressiva e da inclusão do ideário democrático como promessa, potencialidade e
possibilidade.

1.1. A Constituinte de 87-88 como ressignificação do campo Político no


Brasil: participação e cidadania
Nesse sentido, a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 pode ser
compreendida como o símbolo do processo de ressignificação da política tanto na
sua dimensão institucional, quanto no campo político como um todo 9. Isso porque
tratou-se do processo constituinte com a maior participação popular da história do
constitucionalismo brasileiro. Os trabalhos iniciaram no dia 1º de fevereiro de 1987. No
discurso de instalação, realizado pelo Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal,
José Carlos Moreira Alves, relata-se que “[...] em momentos como este, reacendem-se

por autoridades, que devem necessariamente incluir assembléias representativas, eleitas por sufrágio
universal e por maiorias numéricas entre todos os cidadãos, em eleições realizadas a intervalos regulares
entre candidatos e/ou organizações que competem entre si. Os historiadores e os cientistas políticos
podem recordar-nos, e com razão, de que esse não é o significado original de democracia e de que com
certeza não é o único”. HOBSBAWN, Eric. Globalização, democracia e terrorismo, p. 98.

6 Para aprofundamentos, ver: ACKERMAN, Bruce. The rise of world constitutionalism. Yale Law School,
1997.

7 HÄBERLE, Peter. Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura. Madrid: Tecnos, 2000.

8 Para uma análise crítica, ver: ELSTER, Jon. Forças e mecanismos no processo de elaboração da
constituição. In BIGONHA, Antonio Carlos Alpino; MOREIRA, Luiz (orgs). Limites do Controle de
Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

9 Nesse sentido, utiliza-se a distinção realizada por Chantal Mouffe entre “político” e “política”. De acordo
com a autora, o termo “político” se refere a uma dimensão maior, marcada pelas relações de poder em
uma sociedade. Já o termo “política” designa a política institucional realizada no âmbito de cada Estado.
Cfe. MOUFFE, Chantal. El retorno de lo político: comunidade, ciudadanía, pluralismo, democracia radical.
Buenos Aires: Paidós, 1999.

262 Suellen Moura


Thiago Burckhart
as esperanças e, de certa forma, devaneios utópicos”10 de um povo que havia recém-
-saído de um regime militar ditatorial e que exigia a concretização da democracia e
da cidadania enquanto ideais a serem preservados e fomentados por um novo texto
constitucional, fundante de um novo Estado11.

A Assembleia Nacional Constituinte, portanto, não pode ser compreendida como


uma medida política “ofertada” à sociedade brasileira por alguns parlamentares compro-
metidos com a redemocratização do país. A decisão de convocação da Assembleia
respondeu a um amplo movimento social, que recolheu experiências e iniciativas por
todo o país, mobilizando entidades e pessoas as mais diversas12. Trata-se da primeira
vez na história do país em que a produção de uma Constituição propiciou uma oportu-
nidade inédita de participação política ao povo brasileiro, haja vista que “em nenhuma
das constituições brasileiras anteriores houve a participação da sociedade como na
elaboração da Constituição de 1988”13.

Nesse sentido, João Baptista Herkenhoff afirma que a convocação e funciona-


mento da Constituinte foram uma “vitória da opinião pública”. Isso porque houve em
todo o território nacional um grande esforço de participação popular, “não apenas
antes e durante a elaboração da Constituição Federal, como também antes e durante
o processo de votação das Constituições estaduais”. Nas palavras do autor, esse
período “foi riquíssimo para o crescimento da consciência política do povo brasileiro”14,

10 ALVES, José Carlos Moreira. Discurso de instalação da Assembleia Nacional Constituinte. Revista
Ciência Jurídica, v. 3, n. 26, p. 33-39, mar/abr. 1989, p. 08.

11 O período anterior à abertura democrática e à instauração da Assembleia Nacional Constituinte pode


ser entendido como “período de crise”, assim “A crise profunda, em que se debatia o Estado brasileiro,
nas décadas de setenta e oitenta, tinha sua origem na ruptura das tendências populares para um regime
democrático de conteúdo social, que se delineava fortemente sob a Constituição de 1946. Ao opor-se a
essa tendência, o regime instaurado em 1964 provocou grave crise de legitimidade, ao impor um sistema
constitucional desvinculado da fonte originária do poder, que é o povo. As constituições daí resultantes,
por consubstanciarem uma ordenação autoritária, romperam o sistema de equilíbrio, ou seja: a) equilíbrio
entre o poder estatal e os direitos fundamentais do homem; b) equilíbrio entre poderes, especialmente
entre os poderes legislativo e executivo; c) equilíbrio entre o poder central e os poderes regionais e
locais.” SILVA, José Afonso da. O processo de formação da Constituição de 1988. In: LIMA, João Alberto
de Oliveira. A gênese do texto da Constituição de 1988. Brasília: Senado Federal, 2013, p. XX.

12 VERSIANI, Maria Helena. Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão. Revista Democracia Viva, n.
40, setembro de 2008.

13 SENADO FEDERAL. Jornal da Constituinte. Brasília, de 29 de outubro a 8 de novembro de 2013, p. 01.

14 HERKENHOFF, João Baptista. Gênese dos Direitos Humanos. 2. ed. Aparecida, SP: Santuário, 2002.

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 263


que pôde – pela primeira vez na história do país – participar efetivamente e em de um
processo constituinte15.

O processo de escrita da nova Constituição contou, portanto, com a participação


de uma série de movimentos sociais que tiveram, em grande medida, suas pautas
reivindicativas atendidas pelo novo texto constitucional, dessa forma:

O movimento cívico que conduziu aos trabalhos da Assembleia Nacional


Constituinte, há mais de vinte anos, foi o grande marco democrático da
história recente do país. Em seus corredores e galerias, o Congresso
recebeu a presença ativa da população, que, nas manifestações de rua
e em seus movimentos sociais, despertada para as possibilidades de
realização propiciadas pela democracia.16

Como assinala José Murilo de Carvalho, o esforço de reconstrução do país posi-


cionou a palavra “cidadania” na centralidade dos debates políticos, de modo que “a
cidadania, literalmente, caiu na boca do povo”17, substituindo o próprio povo na retórica
política. Havia, naquele momento, um genuíno entusiasmo em prol da positivação de
novos direitos e garantias, como muito bem descreve o documentário intitulado “Cartas
ao País dos Sonhos” organizado pela TV Senado e dirigido por Renata de Paula, e que
analisa a participação popular na Assembleia Constituinte18.

Logo no dia 1º de fevereiro de 1987, quando da instauração da Constituinte, cerca


de 50 mil pessoas ocuparam os gramados de Brasília. Organizados principalmente pelas
centrais sindicais e pelo movimento sem-terra, as milhares de pessoas se uniam em
torno de um extenso rol de reivindicações, dentre elas, a reforma agrária, liberdade e
autonomia sindical, salário mínimo real, revogação das leis de exceção (lei de Greve, lei
de Imprensa, lei de Segurança Nacional), democratização dos meios de comunicação,

15 “Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de
trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de
estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e
autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.” Trecho do discurso de Ulysses Guimarães na
promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988.

16 CHINAGLIA, Arlindo. A reconquista da cidadania. In. BACKES, Ana Paula; AZEVEDO, Débora Bithiah de. A
sociedade no parlamento: imagens da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Brasília: Câmara
dos Deputados, 2008, p. 09.

17 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002, p. 7.

18 DE PAULA, Regina. Documentário Cartas ao País dos Sonhos. Brasília: TV Senado, 2013.

264 Suellen Moura


Thiago Burckhart
estabilidade de emprego, ensino público e gratuito em todos os níveis, e, dentre outras,
eleição direta para Presidente da República19.

Tratou-se de uma mobilização que abarcou inúmeros grupos sociais (mulheres,


povos indígenas, movimentos em prol das crianças e adolescentes, movimentos em prol
dos direitos dos idosos, movimentos em prol dos direitos de deficientes físicos, dentre
outros) que puderam entrar em diálogo direto com as representações que estavam
na Assembleia Constituinte e, a partir disso, reivindicar o reconhecimento político e a
projeção jurídica de suas causas. Observa-se, portanto, uma abertura da participação
popular logo após a dinâmica de queda de um regime autoritário.

Entre novembro de 1986 e setembro de 1988 é possível de se identificar 225


eventos diferentes de ações coletivas relacionadas ao processo constituinte, ou seja,
uma média mensal de 9,78 mobilizações sociais em torno da ANC durante seu funciona-
mento20. Esses dados permitem conceber a dinâmica de participação ao longo da ANC
e o modo pelo qual a sociedade buscava projetar juridicamente uma série de anseios
sociais negados nos últimos vinte anos. Uma dinâmica das mobilizações representada
por meio de gráfico é possível de ser analisada abaixo21:

19 Paráfrase de BRANDÃO, Luis Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte


de 1987-1988: entre a política institucional e a participação popular. Dissertação de Mestrado em
Sociologia. Universidade de São Paulo, 2011.

20 BRANDÃO, Luis Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988:


entre a política institucional e a participação popular, Op. Cit., p. 80.

21 Gráfico extraído de: BRANDÃO, Luis Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte
de 1987-1988: entre a política institucional e a participação popular, Op. Cit., p. 82.

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 265


O cenário político de abertura para manifestações e participação social ao longo da
Constituinte “não foi constante e tampouco uniforme”. Luiz Coelho Brandão aponta que
os obstáculos à mobilização não foram poucos: o palco principal era o inóspito planalto
central; a mobilização social após a ditadura militar foram marcadas por momentos de
abertura e de fechamento, tendo em vista que ainda não havia ocorrido uma profunda
ruptura com a ordem anterior. Apesar do crescimento das mobilizações dos últimos
anos da ditadura, Coelho Brandão afirma que ainda era incipiente e baixo o grau de
organização de grande parte dos movimentos sociais que surgiram nas periferias das
principais cidades em torno da luta e dos processos de reivindicação pelas condições
básicas de existência, que compunha um vasto leque de direitos sociais. Assim, as
pautas reivindicativas “de grupos temáticos que apenas começavam a atuar como
movimentos nacionais ainda não estavam amadurecidas interna e externamente; com
isso, a identidade e os quadros interpretativos de muitos movimentos ainda estavam
em processo de formação”22.

Como José Afonso da Silva afirma, o processo de elaboração do texto que resultou
na Constituição de 1988 foi permeado por uma dinâmica de embate entre conservadores
e progressistas. Tanto a Comissão Afonso Arinos (Comissão Provisória de Estudos
Constitucionais) como a Assembleia Nacional Constituinte, como um todo, eram
compostas de maioria conservadora que entraram em constante embate com a minoria
progressista. No entanto, foram produzidos resultados razoavelmente progressistas23
ao longo da Assembleia Constituinte. Os conflitos também se mostraram presentes
nos processos de crise da Constituinte, como foi o caso do “Centrão”, a inatividade
da Comissão e Sistematização em 1987, a interrupção dos trabalhos da Constituinte
entre 18.11.1987 a 28.1.1988, o processo de realização de acordos políticos, dentre
outros24. No entanto, prevaleceu na Assembleia Nacional Constituinte, como resultado,
a elaboração de um documento essencialmente progressista que primou pela cidadania
enquanto fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso II), e pela forma
democrática, inscrita na noção de “Estado democrático de direito” (art. 1º, caput),

22 BRANDÃO, Luis Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988:


entre a política institucional e a participação popular, Op. Cit., p. 81.

23 SILVA, José Afonso da. O processo de formação da Constituição de 1988. In: LIMA, João Alberto de
Oliveira. A gênese do texto da Constituição de 1988. Brasília: Senado Federal, 2013, p. XXIV – XXV.

24 Para aprofundamentos sobre as dinâmicas da Constituinte, bem como sobre o processo de modernização
do direito, ver: KOERNER, Andrei; FREITAS, Lígia Barros de. “O Supremo na Constituinte e a Constituinte no
Supremo”. Lua Nova, São Paulo, 88: 141-184, 2013; e, QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. A modernização do
direito penal brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

266 Suellen Moura


Thiago Burckhart
rompendo com o passado recente e assegurando a participação de grande setores da
sociedade em seu procedimento, o que lhe confere ainda mais grau de legitimidade
popular.

Tal participação ocorreu sobretudo por meio das chamadas “emendas populares”25.
Assegurado pelo art. 24 do Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte,
as emendas teriam que ser subscritas por pelo menos trinta mil eleitores, em listas
organizadas por, no mínimo, três entidades associativas legalmente constituídas,
responsáveis pela idoneidade das assinaturas. Ao todo foram recebidas 122 emendas
populares, apresentadas à Comissão de Sistematização. Elas foram marcadas por
uma heterogeneidade temática, variando de termas desde esportes até desarmamento
nuclear, além de uma heterogeneidade de entidades responsáveis, o que demonstra a
pluralidade de atores e perspectivas que tentaram influenciar o processo político na
Constituinte –entidades sindicais, associações profissionais, técnicas, científicas ou
acadêmicas; entidades religiosas; entidades patronais ou empresariais; entidades civis
(defesa dos direitos humanos, consumidor, de minorias, de mulheres, associações de
moradores, entidades estudantis, etc.) e instâncias ou entidades ligadas aos poderes
executivo ou legislativo (associações de municípios, câmaras de vereadores, assem-
bleias legislativas, prefeituras, dentre outros).

Através das emendas populares também foram incluídos mecanismos de parti-


cipação popular na Constituição de 1988. Houveram três emendas populares que
previam a inclusão de iniciativa popular legislativa, que estavam direcionadas para
o próprio desenvolvimento do processo democrático e do exercício da cidadania. As
emendas populares PE00021-1, PE00022-9 e PE00056-3, conduzidas respectivamente
pelo Plenário Pró-Participação Popular de São Paulo, Movimento Gaúcho da Constituinte
e Comitê Pró-Participação Popular na Constituinte de Minas Gerais somaram juntas
379.076 assinaturas.

Das 122 emendas populares formalmente apresentadas, apenas 83 preen-


cheram os requisitos do artigo 24 do RIANC e tramitaram normalmente, contando,
inclusive, com suas defesas em plenário, por representantes das entidades que se
responsabilizaram pela coleta das assinaturas26. Destas emendas, apenas dezenove

25 Para aprofundamento, ver: MICHELS, Carlos. Cidadão constituinte: a saga das emendas populares. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

26 CARDOSO, Rodrigo Mendes. A iniciativa popular legislativa da Assembleia Nacional Constituinte


ao regime da Constituição de 1988: um balanço. Dissertação de Mestrado em Direito. Pontifícia

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 267


receberam, na Comissão de Sistematização, parecer favorável pela sua aprovação,
total ou parcial, vindo a integrar os dispositivos da Constituição Federal de 1988.
Entre os temas tratados por essas emendas estavam: reforma agrária, saúde pública,
direitos trabalhistas, cooperativismo, livre iniciativa, populações indígenas, ciência
e tecnologia, manutenção de entidades profissionalizantes, e uma série de direitos
coletivos e individuais. As emendas populares que tratavam da inclusão da iniciativa
popular de leis no texto final da Constituição receberam pareceres desfavoráveis na
Comissão de Sistematização, com exceção da emenda PE00063-6, que admitia, entre
seus dispositivos, a iniciativa popular no âmbito municipal.

1.2. Um projeto de país em construção democrática


A Assembleia Nacional Constituinte de 87-88 pode ser compreendida como o
ensaio de um projeto de construção democrática. A história da democracia brasileira
é marcada por um baixo ou baixíssimo nível de participação popular nas decisões
políticas tomadas institucionalmente27, de modo que Bouventura de Sousa Santos
denomina as democracias latino-americanas como de “baixíssima” intensidade28.
Nesse sentido, o processo de democratização do país, que teve a Assembleia Nacional
Constituinte como resultado inexorável, abriu o caminho para novas experimentações
democráticas, dentre elas a participação no bojo deste mesmo processo.

A ANC pode ser entendica, nesse contexto, como a construção de uma promessa
democrática que redefine os limites até então estabelecidos do que era – e do que podia
ser – a democracia e a cidadania. O desenho de Estado estabelecido na Constituição
ampliou a possibilidade efetiva da construção de um novo modelo de sociedade,
baseado e fundado na cidadania. As emendas populares, por terem sido um mecanismo
de participação popular bem sucedido, demonstram empiricamente a vontade popular
por mudanças estruturais na ordem da política estatal, indicado pela homogeneidade
de temáticas incluídas nas propostas recebidas.

Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2011, p. 130.

27 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. Op. Cit.

28 Cfe. SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Democratizar a democracia: os caminos da democracia


participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

268 Suellen Moura


Thiago Burckhart
Apesar de suas fragilidades, que não foram poucas ao longo de praticamente
dois anos, a ANC foi um passo importante na construção de um projeto democrático
com base cidadã.

2. INICIATIVA POPULAR E DIREITO DE PARTICIPAÇÃO


O constituinte de 88 inseriu a possibilidade de iniciativa popular na Constituição
Federal dentro do título reservado aos direitos fundamentais, no Capítulo IV, cujas
normas regulamentam as condições para o exercício dos direitos políticos (arts. 14 a
17). Esses direitos objetivam disciplinar a participação dos cidadãos na vida política
do país, e compreende um sentido mais amplo do que os atos de votar e ser votado ou,
ainda, de se filiar a partidos políticos: a participação popular integra o pleno exercício
da cidadania e, portanto, constitui pressuposto básico da democracia.29

O princípio constitucional democrático estabelece para a democracia duas


dimensões que estão ligadas às noções de legitimidade e legitimação. A dimensão
substancial (legitimidade) é orientada para a concretização dos direitos fundamentais;
enquanto a dimensão formal (legitimação) diz respeito ao processo de eleição de
representantes, na forma da democracia representativa, e às formas de exercício de
poder que contemplam a participação e o controle popular, na forma de democracia
participativa. A iniciativa popular integra, pois, as formas de exercício da democracia
participativa, na medida em que enuncia que a soberania popular será exercida pelo
sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos
da lei, mediante plebiscito, referendo ou iniciativa popular (art. 14, CF/88).

A soberania popular constitui, assim, o fundamento para o exercício de partici-


pação popular. Como salientado por Nadia Urbinati, na soberania pré-democrática
somente a categoria da decisão integrava a definição do poder soberano; em uma
democracia, o processo da tomada de decisão tem uma inevitável relação com a
opinião do povo. Assim, “a tarefa de procedimentos democráticos se desdobra em
duas: permitir aos cidadãos jogar o jogo político e participar, direta e indiretamente, da
tomada de decisões, e exigir e confiar que o jogo é honesto, pois se desenrola de acordo
com regras e em condições iguais para todos, a todos tratando de forma igualitária.”30

29 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 186.

30 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 06.

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 269


Uma atribuição de soberania popular consiste em uma questão de juízo. Ou seja,
é preciso avaliar quais são as decisões que contam no sistema constitucional e qual
a relevância dessas decisões, desenhando hipóteses dos efeitos dessas decisões
nas práticas constitucionais, especialmente porque são aceitáveis pela maioria dos
membros da sociedade. Nesse sentido, direitos políticos implicam uma ação coletiva,
como frisava Karl Marx, não só pela forma que são estabelecidos e garantidos, mas
também pela forma em que são entendidos e exercidos. Logo, é evidente que há um
elemento coletivo na forma em que são entendidos os direitos do cidadão, sendo “el
derecho a participar” o termo utilizado para descrevê-lo.31

2.1. Direito de participação: o direito dos direitos


De acordo com Jeremy Waldron, “participar é compartilhar ou participar de uma
ação, algo que necessariamente supõe que um não é a única pessoa que compartilha ou
participa na atividade em questão”32. Compartilhar na participação se refere, então, “ao
fato de que todo indivíduo reclama o direito de participar em um governo da sociedade,
na mesma medida em que participam o resto dos indivíduos”. Ou seja, “a forma em que
se realiza essa demanda – um direito de participação – reconhece por si mesma que
a sua não é a única voz na sociedade, que referida voz não deveria contar mais que a
voz de qualquer outro portador de direitos no processo político”.33

Ao discorrer sobre esse direito, o autor elucida a participação como o direito dos
direitos, não exatamente por ser um direito moralmente superior, mas, precisamente,
porque consiste em um direito apropriado no caso em que os indivíduos divergem
sobre os direitos que possuem. Aludindo à concepção de Karl Marx sobre ser o direito
de participação um direito negativo34, o autor traça uma via alternativa de encarar esse

31 WALDRON, Jeremy. Derechos y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 281, (tradução nossa).

32 Ibidem, p. 281.

33 Ibidem, p. 281.

34 Karl Marx dividiu direitos do homem de direitos do cidadão, estabelecendo, em síntese, que o primeiro é
o direito do homem egoísta, separado dos demais homens da sociedade e, o segundo, direitos políticos
que só podem ser exercidos em comunidade com outros homens. Nesse sentido, Waldron defende que
o direito de participação não constitui um direito negativo, pois o direito ao voto, por exemplo, não pode
ser garantido pela legislação – esta apenas impõe limites ao governo executivo. Ainda, também não
consiste em uma liberdade negativa para expressar uma preferência por um político favorito. O direito
ao voto vai além e requer muito mais que uma abstenção; requer instituições e operações de sistemas
administrativos, mão-de-obra, recursos, pessoal para executar ações do governo, etc. WALDRON, Jeremy.
Derechos y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 279, (tradução nossa).

270 Suellen Moura


Thiago Burckhart
direito, considerando sua convergência para um direito positivo. Ora, “se os indivíduos
possuem deveres de cooperação em sociedade, se esses deveres são melhor cumpridos
quando dirigidos pelo Estado ao invés de individualmente e se os deveres dos indivíduos
são os que orquestram a máquina do governo, então os indivíduos possuem o direito
de decidir sobre os mecanismos de decisão que os controlam.”35

Os direitos políticos implicam, assim, em uma ação coletiva, em que o elemento


popular deve ser decisivo e não apenas um elemento democrático em um regime misto.
Em um viés de justiça comparativa, o direito de participação deve ser avaliado por uma
descrição do que está em jogo no exercício do poder político. Waldron exemplifica
com a seguinte situação: um determinado indivíduo possui um sentido de justiça e
tem o necessário para participar das decisões em que seus direitos e dos demais
estão em jogo; se este indivíduo é excluído da decisão ele se sentirá menosprezado,
não só porque sua noção de justiça não foi considerada, mas também porque não
foi considerada em relação a direitos seus que estão em jogo.36 Isso quer dizer que
eleger, monitorar, criticar e influenciar de qualquer outra forma os legisladores, e até
mesmo opor-se a eles integra o exercício do direito de participação, de modo que este
indivíduo ou grupo, assim como os demais, deve ser tratado como igual nos assuntos
que afetam seus interesses, seus direitos e suas obrigações.

A democracia, sobretudo quando implementada por eleições e representação, não


pode ignorar o que pensam e dizem os cidadãos quando atuam na sociedade e não
como eleitores, quando não se manifestam por intermédio da decisão (ou seus votos),
mas por meio de sua opinião. Nessa perspectiva, destaca Nadia Urbinati:

Os cidadãos formam suas opiniões e criticam quem detém o poder; sua


expressão de ideias pública e livremente é a condição para a elaboração
e mudança de todas as decisões. Essa é uma forma de participação ou
cidadania ativa na democracia representativa, embora não se converta
diretamente em leis e não possa exercer autoridade. Os cidadãos assim
usam todos os meios de informação e comunicação disponíveis, de
maneira a manifestar sua presença – algo que não é menos valioso

35 Ibidem, p. 280, (tradução nossa).

36 Cf. WALDRON, Jeremy. Derechos y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 285, (tradução nossa).

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 271


que os procedimentos e as instituições, apesar de carecer de poder de
comando.37

Projetos de iniciativa popular têm o condão de incorporar, pois, esse compromisso


democrático de um governo com base na opinião, ou seja, um fórum público que
mantém o poder do estado aberto às críticas, seja porque a lei assim o exige, sob os
olhos do povo, seja porque ele não pertence a ninguém. Assim, considerando que “o
fórum de opinião se destina a difundir informação, checar e monitorar instituições,
expressar dissensão pública e crítica, e observar o que os políticos fazem”38, o direito
de participação constitui, além de um direito fundamental, um instrumento importante
de exercício de cidadania, salutar para o aprimoramento da democracia.

2.2. Projetos de iniciativa popular no Brasil


A Lei 9.709, de 18 de novembro de 1988, disciplina a execução do disposto nos
incisos I, II e III do art. 14 da Constituição Federal. A iniciativa popular consiste na
apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, 1%
do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de
0,3 % dos eleitores de cada um deles (art. 13). O projeto de lei de iniciativa popular
deverá circunscrever-se a um só assunto e não poderá ser rejeitado por vício de forma,
cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção
de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação. A Câmara dos
Deputados, verificando o cumprimento das exigências estabelecidas no art. 13 e
respectivos parágrafos, dará seguimento à iniciativa popular, consoante as normas
do Regimento Interno (art. 14).

Observando-se as regras estabelecidas pela respectiva lei, os quatro projetos de


iniciativa popular que se tornaram leis desde 1988 consistem na Lei 8.930/ 1994 – o
caso Daniella Perez; Lei 9.840/1999 – combate à compra de votos; Lei 11.124/2005 –
Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social; e Lei Complementar 135/2010 – a
Lei da Ficha Limpa. Os projetos aprovados no Congresso chegaram ao Legislativo
cumprindo os requisitos exigidos pela lei e ostentavam mais de 1 milhão de assinaturas

37 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 07.

38 Ibidem, p. 07.

272 Suellen Moura


Thiago Burckhart
de cidadãos comuns; contudo, todos foram “adotados” por parlamentares, que se auto
apresentaram como autores.

A Lei 8.930/1994, originalmente a Lei de Crimes Hediondos (8.072, de 1990) foi


apresentada em 09/09/1993, constando no Portal do Senado Federal39 como Projeto
de Lei da Câmara n° 113, de 1994, de autoria da Câmara dos Deputados, iniciativa da
Presidência da República. O nº na origem (PL 4146/1993) consta no portal da Câmara
dos Deputados40, que apresenta o projeto como de autoria do Poder Executivo. Essa lei
dá nova redação ao art. primeiro da Lei 8072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre
os crimes hediondos, nos termos do art. quinto, inciso XLIII, da Constituição Federal,
caracterizando chacina realizada por esquadrão da morte como crime hediondo. O
projeto apresentado nos termos do § 2º do artigo 61 da Constituição Federal para
tramitar como projeto de iniciativa popular, chamado “Daniela Perez ou Gloria Perez”. 41

A Lei originariamente não previa em seu rol o crime de homicídio qualificado que
trata de crimes de maior gravidade, cujo delito compreende a incidência da intenção de
matar aliado a algum fator que tornou o crime ainda mais grave (motivo fútil ou torpe,
meios cruéis, acobertamento de outro crime e dificultação de defesa). Em dezembro de
1992, a atriz Daniella Perez, filha da autora de telenovelas Glória Perez, foi brutalmente
assassinada por Guilherme de Pádua, e sua esposa, Paula Nogueira Thomaz. Daniela
era protagonista de uma novela da Rede Globo naquele ano, motivo pelo qual o episódio
causou profunda comoção popular. Além disso, a mãe da atriz denunciou as “regalias”
a que os autores do crime tinham direito, ou seja, mesmo sendo acusados de homicídio
qualificado, os acusados tiveram direito a fiança e, quando condenados, cumpriram
parte da pena em regime semiaberto.

O segundo projeto emplacou a Lei 9.840/1999 que dispõe sobre o combate


à compra de votos. O Projeto de Lei da Câmara n° 45, de 1999 (Nº na origem PL
1517/1999), teve registro de autoria da Câmara dos Deputados com iniciativa do

39 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n. 113, de 1994. Dá nova redação ao art. Primeiro da Lei 8072,
de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. Quinto, inciso XLIII,
da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/
web/atividade/materias/-/materia/22214, Acesso em 01 ago. 2018.

40 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=219155>.


Acesso em: 01 ago. 2018.

41 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=219155..


Acesso em: 01 ago. 2018.

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 273


Deputado Federal Albérico Cordeiro (PTB/AL) e outros.42 Transformado na Lei Ordinária
9840/1999, foi apresentado em 18/08/1999 e tinha o objetivo de modificar a Lei nº
9.504, de 30 de setembro de 1997 e alterar dispositivos da Lei nº 4.737, de 15 de
julho de 1965–Código Eleitoral, incluindo a possibilidade de cassação do registro do
candidato que doar, oferecer ou prometer bem ou vantagem pessoal em troca do voto
(crime de compra de votos).43

De acordo com o projeto, a Iniciativa Popular de Lei foi promovida e patrocinada


pela Comissão Brasileira Justiça e Paz–CBJP, da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil – CNBB, com o apoio de mais de trinta entidades nacionais, cujos nomes estão
indicados na Justificativa que acompanha o Projeto. Inúmeras outras entidades, de
caráter nacional, regional ou local, associaram-se à Iniciativa posteriormente ao seu
lançamento. A apresentação de um Projeto de Lei visando combater a corrupção elei-
toral constituiu a terceira etapa de um plano elaborado pela CBJP para dar continuidade
à Campanha da Fraternidade da CNBB de 1996, cujo tema foi “Fraternidade e Política”.
Segundo a CBJP, a reflexão feita durante essa Campanha identificou na “compra” de
votos de eleitores uma das maiores distorções da democracia brasileira, como uma
prática que explora a pobreza e a miséria e desvirtua os resultados eleitorais.44 No
documento de tramitação do projeto, a apresentação realizada pelo então presidente
da Câmara dos Deputados, Michel Temer, assim dispõe:

No dia 10 de agosto de 1 999 recebi na Câmara dos Deputados


representantes da Sociedade Civil – CNBB, OAB, CUT, Força Sindical
entre tantas outras. Elas traziam mais de um milhão de assinaturas
de eleitores em apoio a Projeto de Iniciativa Popular no combate
a corrupção eleitoral. É um dia que trago na memória, marcado não
apenas pelo conteúdo do projeto mas sua forma: a iniciativa popular,
a legítima pressão de diversos setores da sociedade ao lado de seus
representantes no Congresso Nacional. As assinaturas representavam

42 SENADO FEDERAL. Projeto de Lei da Câmara n° 45, de 1999–LEI DA CORRUPÇÃO ELEITORAL. Disponível
em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/41854>. Acesso em: 01 ago.
2018.

43 CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 1517/1999. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/


fichadetramitacao?idProposicao=38166. Acesso em: 01 ago. 2018.

44 Ibidem, p. 13.

274 Suellen Moura


Thiago Burckhart
cada canto deste País e reforçavam dentro das nossas instituições
políticas os anseios e aspirações do eleitorado.45

O terceiro projeto, que originou a Lei 11.124/2005, do Fundo Nacional de Habitação


de Interesse Social, corresponde ao Projeto de Lei da Câmara n° 36, de 2004 (Nº na
origem: PL 2710/1992), registrado como autoria da Câmara dos Deputados, por inicia-
tiva do Deputado Federal Nilmário Miranda (PT/MG)46. Apresentado em 19/01/1992,
o Projeto de Lei dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social–
SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social–FNHIS e o seu Conselho
Gestor. Conforma informações de tramitação, o projeto apresentado nos termos do
§ 2º do artigo 61 da Constituição Federal, que trata de iniciativa popular de lei, sob
o patrocínio do movimento popular de moradia.47 Foi apresentado à Câmara Federal
pelo Movimento Popular por Moradia, com mais de 1 milhão de assinaturas, no ano de
1992. Entre 1997 e 2001, foi aprovada de maneira unânime em todas as comissões da
Câmara. Entretanto, ainda esperou até 2005 para ser sancionada.48

Por fim, o quarto projeto de lei de inciativa popular corresponde à Lei Complementar
135/2010: a Lei da Ficha Limpa. O Projeto de Lei da Câmara n° 58, de 2010 (comple-
mentar) (Nº na origem: PLP 168/1993) foi registrado como autoria da Câmara dos
Deputados, inciativa do Presidência da República.49 Apresentado em 22/10/1993,
o projeto pretendeu alterar a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que
estabelece, de acordo com o § 9º do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegi-
bilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses
de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no

45 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Combatendo a corrupção eleitoral. Biblioteca Digital da Câmara dos
Deputados–Centro de Documentação e Informação Coordenação de Biblioteca, Brasília, 1999. Disponível
em: <http://bd.camara.gov.br>.

46 SENADO FEDERAL. Projeto de Lei da Câmara n° 36, de 2004. Disponível em: <https://www25.senado.leg.
br/web/atividade/materias/-/materia/68396>. Acesso em: 01 ago. 2018.

47 CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 2710/1992. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/


fichadetramitacao?idProposicao=18521. Acesso em: 01 ago. 2018.

48 ANDRÉ, Daniela. Moradia: Proposta de iniciativa popular. Câmara Agência Notícias, 07 ago. 2002.
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/agencia/noticias/21644.html>. Acesso em: 01 ago. 2018.

49 SENADO FEDERAL. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/


materia/96850>. Acesso em: 01 ago. 2018.

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 275


exercício do mandato, dispensando o trânsito em julgado da sentença para os casos
que especifica.50

O projeto foi encabeçado por entidades que fazem parte do Movimento de Combate
à Corrupção Eleitoral (MCCE), e mobilizou vários setores da sociedade brasileira, entre
eles, a Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais
(Abramppe), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), organizações não governamentais, sindicatos, associações e confederações
de diversas categorias profissionais, além da Igreja católica. Foram obtidas mais de 1
milhão e 600 mil assinaturas em apoio.51

Dos quatro projetos que se originaram da iniciativa popular, três deles versam
sobre pontos de forte apelo popular: corrupção e penas para crimes hediondos. Dois
desses projetos versaram sobre temas relacionados à corrupção, tema que vem à
mente de grande parte dos brasileiros quando o assunto é política. Esse contexto
demonstra, em alguma medida, que há uma preocupação, em tese, a com a lisura dos
agentes públicos. Se essa preocupação é parte de um projeto maior de criminalização
da própria política já é um assunto que não cabe refletir neste artigo52. Outro projeto
tratou de uma questão penal muito importante e ainda teve respaldo em um episódio
trágico, que causou comoção nacional, além de contar com a iniciativa de uma pessoa
conhecida pelo público, Glória Perez. Por fim, dos quatro projetos, pode-se dizer que o
mais peculiar é o que criou Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, que teve
interesse popular por tentar resolver o problema da moradia no país. Ele também foi
o projeto que mais demorou para ser aprovado (14 anos, ao todo).53

Uma nova forma de participação por iniciativa popular tem sido pensada. A coleta
de assinaturas de apoio a projetos de lei de iniciativa popular poderá ser feita pela
Internet, sendo que a mudança está entre as sugestões da comissão especial da

50 CÂMARA DOS DEPUTADOS. PLP 168/1993. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/


fichadetramitacao?idProposicao=21571. Acesso em: 01 ago. 2018.

51 LADEIRA, Beatriz Maria do Nascimento. Compreendendo a Lei da Ficha Limpa. Tribunal Superior Eleitoral,
Revista eletrônica EJE n.4, ano 5. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/o-tse/escola-judiciaria-eleitoral/
publicacoes/revistas-da-eje/artigos/revista-eletronica-eje-n.-4-ano-5/digressoes-sobre-as-doacoes-de-
campanha-oriundas-de-pessoas-juridicas>. Acesso em: 01 ago. 2018.

52 Para aprofundamento: ROSANVALLON, Pierre. La contre-démocratie: la politique à l’âge de la défiance.


Paris, Seuil, 2006.

53 4 PROJETOS de iniciativa popular que viraram leis. Politize. Disponível em: < http://www.politize.com.
br/4-projetos-de-iniciativa-popular-que-viraram-leis/>. Acesso em: 01 ago. 2018.

276 Suellen Moura


Thiago Burckhart
reforma política. A Câmara já trabalha no desenvolvimento de tecnologia para implantar
a medida. A comissão especial que discutiu a matéria no ano passado aprovou relatório
sobre os mecanismos de democracia direta e sugeriu projeto de lei com novas regras
para plebiscitos, referendos e projetos de lei de iniciativa popular.54

2.3. Balanço e desafios nos 30 anos da Constituição Cidadã


A participação popular na forma direta, embora com quantidade expressiva de
assinaturas, não logrou êxito originalmente como projeto de lei de iniciativa popular,
seguindo, portanto, o rito prescrito para leis ordinárias. Em 30 anos de vigência
da Constituição Federal é possível observar que a legitimação, tanto na forma da
democracia representativa quanto na forma de democracia participativa, sofreu uma
desfiguração importante. Dois grandes fatores podem ser apontados: a desconfiança
nas instituições políticas; e um sentimento compartilhado na comunidade de que os
indivíduos não conseguem identificar a relevância ou importância de sua participação
na vida política. Nesse sentido, Jeremy Waldron ressalta que se a participação na
autoridade política é pequena, é difícil identificar sua conveniência.55

Alguns dados, obtidos de pesquisas sobre a confiança nas instituições podem ser
destacados. “Retratar a confiança do cidadão em uma instituição significa identificar
se o cidadão acredita que essa instituição cumpre a sua função com qualidade, se faz
isso de forma em que benefícios de sua atuação sejam maiores que os seus custos e
se essa instituição é levada em conta no dia-a-dia do cidadão comum”56.

Dados coletados pelo ICJBrasil (Índice de Confiança na Justiça), no relatório do


primeiro semestre de 2017, produzido pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas (Direito SP), revelaram queda na confiança da população em pratica-
mente todas as instituições analisadas, na comparação com o relatório de 2016. As

54 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Coleta de assinaturas de apoio a projetos de lei de iniciativa popular poderá
ser feita pela Internet. Câmara dos Deputados, 09 fev. 2018. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/
camaranoticias/noticias/POLITICA/553306-COLETA-DE-ASSINATURAS-DE-APOIO-A-PROJETOS-DE-LEI-
DE-INICIATIVA-POPULAR-PODERA-SER-FEITA-PELA-INTERNET.html>. Acesso em: 03 ago. 2018.

55 WALDRON, Jeremy. Derecho y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 295, (tradução nossa).

56 Relatório ICJBrasil 1º semestre/2017. FGV Direito SP. Disponível em: <https://direitosp.fgv.br/sites/


direitosp.fgv.br/files/arquivos/relatorio_icj_1sem2017.pdf>. Acesso em: 06 ago. 2018.

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 277


que sofreram as quedas mais acentuadas foram o Poder Executivo (45%) e Congresso
Nacional (30%).57

Em pesquisa registrada no Tribunal Superior Eleitoral com o número BR


05110/2018, referente ao levantamento realizado do dia 06 ao dia 07 de junho de 2018
pelo Datafolha58, dentre 10 instituições, três relacionadas ao universo da representação
política lideram empatadas como as menos confiáveis do país. Sete em cada dez (68%)
declararam não ter confiança nos partidos políticos, 67% declararam não ter confiança
no Congresso Nacional (o índice mais alto da série histórica), e 64%, na Presidência
da República.59

Esses percentuais que indicam a queda progressiva de confiança em instituições


políticas revelam um problema ainda maior que a sociedade brasileira precisa enfrentar,
cujos percalços englobam uma crise generalizada da democracia representativa. A
construção de qualquer ordem democrática desvela uma série de desafios, seja em
uma democracia “direta” ou indireta. O primeiro deles diz respeito aos interesses dos
indivíduos e grupos e a formação de uma pretensa “vontade coletiva”.60 Isso significa
conseguir manter uma unidade imprescindível a toda sociedade aliado a permitir que
os conflitos produzidos sejam livremente expressados e considerados. Nesse sentido,
conforme afirma Lefort, “o gesto inaugural da democracia é o reconhecimento da
legitimidade do conflito”.61

O segundo desafio circunscreve-se na disparidade entre a igualdade formal e


as desigualdades reais. Ou seja, é preciso lidar com “a capacidade diferenciada dos

57 ICJBRASIL 2017: Confiança da população nas instituições cai. FGV, 24 out. 2017. Disponível em: <https://
portal.fgv.br/noticias/icjbrasil-2017-confianca-populacao-instituicoes-cai>. Acesso em: 03 ago. 2018.

58 Foram realizadas 2.824 entrevistas presenciais em 174 municípios, com margem de erro máxima 2 pontos
percentuais para mais ou para menos considerando um nível de confiança de 95%. Isto significa que se
fossem realizados 100 levantamentos com a mesma metodologia, em 95 os resultados estariam dentro
da margem de erro prevista. Disponível em: < http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2018/06/15/
e262facbdfa832a4b9d2d92594ba36eeci.pdf>. Acesso em: 03 ago. 2018.

59 DATAFOLHA. Partidos, Congresso e Presidência são instituições menos confiáveis do país. Datafolha
Instituto de Pesquisas, São Paulo, 15 jun. 2018. Disponível em: <https://datafolha.folha.uol.com.br/
opiniaopublica/2018/06/1971972-partidos-congresso-e-presidencia-sao-instituicoes-menos-confiaveis-
do-pais.shtml>. Acesso em: 03 ago. 2018.

60 MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp,
2014.

61 LEFORT apud MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo:
Editora Unesp, 2014., p. 13.

278 Suellen Moura


Thiago Burckhart
indivíduos de determinar suas próprias preferências e interesses de acordo com a
posição em que se encontram na sociedade.”62 A isso não corresponde uma defesa de
inutilidade de direitos formais, como sinaliza o autor. Esses direitos são instrumentos
importantes que carregam um ideal de equidade e lançam um horizonte normativo
capaz de ampliar as possibilidades, especialmente para aqueles que se encontram em
posições subalternas. Contudo, não possuem o condão de assegurar que os espaços
de participação política sejam apropriados igualmente. As assimetrias sociais, cuja
dinâmica interfere nos potenciais de apropriação da participação, interfere também
na produção das próprias preferências.

E, um terceiro desafio, corresponde à possibilidade de manipulação da “vontade


coletiva” através do que Luis Felipe Miguel denomina de uso estratégico das normas
de agregação de preferências. “Há uma vasta literatura, na ciência política, dedicada
– a partir do paradoxo de Condorcet e do teorema da impossibilidade de Arrow – a
demonstrar que qualquer decisão é influenciada pelas regras que levam a ela”.63

Esses desafios se tornam ainda mais acentuados dentro de um sistema de demo-


cracia representativa, em que se observa uma separação considerável entre governantes
e governados, a formação de uma elite política distanciada da massa da população, a
ruptura do vínculo entre a vontade dos representados e a vontade dos representantes e
a distância entre o momento em que se firmam os compromissos com os constituintes
(a campanha eleitoral) e o momento do exercício do poder (o exercício do mandato).64

Atentos a isso, é preciso uma construção não apenas de uma cultura democrática,
mas também “investigar o próprio sentido de democracia”65. Isso porque,

[...] embora a democracia não nos dê a certeza de excelentes ou boas


decisões (na verdade, às vezes suas decisões são ruins ou pouco
inteligentes), ela nos dá a certeza de podermos reformular ou mudar
todas as decisões sem questionar ou revogar a ordem política; isto é,

62 Ibidem, p. 14.

63 “Condorcet demonstrou, já no século XVIII, que, na presença de mais de duas alternativas e mais de duas
pessoas votantes, há sempre o risco de que escolhas de indivíduos racionais levem a resultados coletivos
irracionais. A partir dele, Kenneth Arrow estabeleceu, no século XX, que a soma das racionalidades
individuais não produz uma racionalidade coletiva”. Ibidem, p. 14.

64 Cf. MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo: Editora
Unesp, 2014., p. pp. 15-17.

65 Ibidem, p. 27.

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 279


sem perder nossa liberdade. Decisões democráticas requerem emendas
por meios democráticos; exigem mudanças mediante estratégias diretas
e indiretas (ou procedimentos e jogo de opiniões) com o fito de reduzir ao
máximo possível o risco de desfiguração ou de servir a outros objetivos
que não a garantia de uma igual liberdade política.66

Quando uma democracia se encontra fragilizada, quase nada é tão frágil quanto
defender seu fim ao invés de tentar aprimorá-la. Democracia e representação são
territórios em disputa e são formas de exercício de poder. É verdade que autorização e
accountability (obrigação que os poderes públicos têm de se responsabilizar por seus
atos) são instrumentos que promovem a incerteza quanto ao exercício do poder, que,
como dizia Przeworski, é a marca da política democrática67. Mas, se são insuficientes,
como de fato são, nem por isso são descartáveis. “Formas de representação que deles
prescindem, como porta-vozes auto instituídos, quase com certeza estarão em pior
situação no que se refere a seu caráter democrático”68.

Considerações finais
A promessa democrática inscrita na Constituição de 1988 é marcada por uma
série de contradições. Em efeito, apesar do processo participativo da ANC ter resultado
em uma Constituição cujo texto é marcadamente progressista, em que sua plena
realização teria a potencialidade de transformar uma realidade ainda marcada pela
desigualdade – das mais variadas naturezas, política, social, econômica, cultural,
dentre outras – é fato, entretanto, que o processo de aplicação e concretização da
Constituição é marcado por uma série de conflitos de natureza política. O fato de
que em 30 anos de vigência somente tenham sido aprovados 4 projetos de iniciativa
popular em âmbito nacional demonstra a frágil cultura política de grande parte do povo
brasileiro, que por desconhecimento ou desinteresse não participa da vida política
ativamente da vida política nacional.

66 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 6.

67 PRZEWORSKI, Adam. Ama a incerteza e serás democrático. In: Novos Estudos, São Paulo, n. 9, p. 36-46,
1984 [1983].

68 MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp,
2014.

280 Suellen Moura


Thiago Burckhart
A desconfiança nas instituições políticas é um grave problema para a democracia
contemporânea, haja vista que o bom funcionamento da democracia representativa
exige um acentuado grau de confiança entre governantes e governados, além da
aceitação do conflito político e dos direitos fundamentais, como adverte Marilena
Chauí69. Observa-se, portanto, um baixo grau de participação popular nos 30anos de
vigência da Constituição de 1988, o que evidencia de modo mais abrangente uma crise
da democracia representativa que inexoravelmente leva ao rebaixamento do grau de
compromisso democrático no campo político e na política institucional.

Mostra-se evidente, desta forma, a necessidade de aprofundar a experiência


democrática. Isso perpassa indubitavelmente pela ampliação da possibilidade de
participação e influência de segmentos sociais na política, ou seja, democratizar a
democracia70. Mas não fala-se de qualquer participação, é preciso uma participação
esclarecida, daí a necessidade de pensar a democracia na sua dimensão substancial
como um elemento essencial para o desenvolvimento e aprimoramento da nossa
sociedade. Nesse sentido, a promessa democrática não está morta ou foi superada, mas
permanece viva e mantém-se no horizonte como ideal de sociedade a ser perseguido.

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69 Cfe. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994.

70 Cfe. SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Democratizar a democracia: os caminos da democracia


participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002

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A PROMESSA DEMOCRÁTICA 283


284 Suellen Moura
Thiago Burckhart
JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E
MÍDIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E
EMPÍRICAS SOBRE AS INFLUÊNCIAS
DA OPINIÃO PÚBLICA SOBRE O
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Thiago Coelho Sacchetto1

Resumo
O artigo faz uma análise sobre as possibilidades que a abertura midiática
dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal traz para o desenvolvimento
de um controle social sobre os argumentos exarados pelos Ministros da
Corte. De forma analítica, examina hipóteses apontadas pela doutrina como
orientadoras para o estudo acerca das influências da opinião pública, e
de outros fatores externos, sobre a atividade jurisdicional das Cortes
Constitucionais. Dedica especial atenção para o exame das características da
imprensa comercial brasileira, a fim de que, derradeiramente, possa analisar
a relevância do papel até então cumprido pela TV Justiça, analisando as
diferenças entre mídias estatais e mídias comerciais.

Introdução
Com a crescente e rápida evolução dos meios de comunicação, sinal de uma
revolução tecnológica já adiantada no espectro da transmissão de informações, a

1 Professor no Centro Universitário UNA. Doutorando em Direito Político pela Universidade Federal de
Minas Gerais. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Pós-Graduado em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático. Graduado em
Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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Duarte, Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo Horizonte: IDDE, 2018. p. 285-318. Disponível
em: https://doi.org/10.32445/978856713409312
questão da publicidade (com a transmissão ao vivo das sessões de julgamentos do
Colendo Tribunal) tem divido opiniões de especialistas quanto aos efeitos desta prática
adotada de forma pioneira pela principal corte jurisdicional brasileira.

Há aqueles estudiosos que, sob uma perspectiva conservadora e com a boa


intenção de tentar evitar que a Corte máxima de Justiça torne-se cada vez mais refém
dos influxos populares e de pressões externas, o que contrariaria a própria essência
jurisdicional do Tribunal, defendem que os princípios da publicização e transparência
do Poder Judiciário não devem ser interpretados como um mandamento pela irrestrita
e integral exposição dos votos e discussões dos Ministros.

Outros, por sua vez, dando importância basilar aos influxos de concepções demo-
cráticas nas quais se idealiza uma crescente e ilimitada permeabilidade das questões
do Estado e da Justiça pelos instrumentos de participação e controle pelo povo, e tendo
em conta as inexoráveis transformações promovidas pela Emenda Constitucional n.º
45/2004, entendem que os deveres de publicidade e transparência são atualmente
imposições teleológicas da Constituição Federal Brasileira de 1988, que devem ser
cumpridas com máxima efetividade.

Longe de encontrar unanimidade, a discussão sobre a exibição dos julgamentos


realizados pelo Supremo Tribunal Federal pela mídia tem se tornado cada vez mais
passional, e é certo que, havendo argumentos em favor de ambas as posições, o
problema tem sido analisado pela doutrina nacional, sobretudo no seu viés empírico,
estando ainda a surgir estudos que desenvolvam a questão por meio de uma abordagem
normativa e dogmática.

Neste cenário incipiente de estudos acadêmicos, deve-se ou não “blindar”, ou


dentro do possível, minorar o espectro de influências externas a que está submetido o
Supremo Tribunal Federal, no qual damos destaque à questão da exposição midiática
dos julgamentos realizados pela Corte.

Seria desejável o processo, já em andamento, de uma abertura midiática plena do


órgão de jurisdição máxima do Estado Brasileiro, como vem sendo feito com a trans-
missão ao vivo dos seus julgados pela TV Justiça e Rádio Justiça, ou por outro lado,
deve-se buscar o refreamento deste procedimento, considerando que pode culminar em
uma indesejável perda de autonomia da Corte, tornando-a mais suscetível a pressões
de ordem política e conjectural?

286 Thiago Coelho Sacchetto


1. Direito à informação, transparência e a prática de
publicização dos julgamentos do Supremo Tribunal
Federal.

1.1. Direito à Informação, publicidade e transparência


Decorre da própria essência do Estado Democrático de Direito a limitação do poder
estatal como finalidade perseguida pelos componentes da sociedade, seja por meio da
finalidade de garantir direitos fundamentais oponíveis ao Estado, seja pela necessidade
de se adotar métodos e critérios para o controle dos atos estatais.

É despiciendo argumentar que alguns dos princípios e direitos relacionados à


informação, publicidade e transparência estão diretamente associados à derrocada
do estado absolutista e a evolução de concepções democráticas de organização da
sociedade2, por meio das quais, não só o cidadão singular deve prestar contas ao Estado
como também o próprio Estado deve prestar contas de sua atuação aos indivíduos.

No que concerne às particularidades e as exigências de transparência e publici-


dade dos atos do Poder Judiciário de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro,
merece especial atenção às alterações promovidas pela Emenda Constitucional n.º
45 de dezembro de 20043, que entre outras medidas, buscou:

(i) redefinir a estrutura interna do Poder Judiciário (com a criação do Conselho


Nacional de Justiça); (ii) exigir maior preparo técnico dos magistrados (implemen-
tando tempo mínimo de atividade jurídica para realização de concursos de títulos e
provas e criando cursos de formação); e (iii) assegurar a transparência nas sessões

2 Nesse sentido argumenta Luísa Neto para quem o nascimento da democracia está diretamente
associado a uma efetiva transparência e publicidade dos atos estatais. In verbis: “Ora, é bem sabido que a
democracia in statu nascendi pretendeu eliminar para sempre das sociedades humanas o poder invisível,
instaurando um governo cujos actos deveriam ser realizados em público, ‘au grand jour’, nos termos de
Maurice Joly. No fundo, foi este o mesmo princípio defendido por Kant, no Apêndice à Paz Perpétua,
segundo o qual ‘[T]odos os actos relativos ao direito de outros homens cuja máxima não seja susceptível
de ser tornada pública são injustos’”. p. 491. NETO, Luísa. Um outro tipo de “Freios e Contrapesos”: A
Comunicação Social no contexto do Estado de Direito Democrático. In: Estudos de Homenagem ao Prof.
Doutor Jorge Miranda. Volume II. Coordenação de Marcelo Rebelo de Sousa.. [et al.] Coimbra: Coimbra
Editora, 2012, pp. 491-493.

3 Para uma análise do inteiro teor da Emenda Constitucional n.º 45/04 consultar: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc45.htm. Acesso em 10/07/18.

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 287


judiciais e administrativas, buscando garantir publicidade dos julgamentos judiciais
e administrativos.

Com uma análise atenta dos motivos que justificaram a proposição e a apro-
vação da EC n.º 45/044, constata-se que havia à época uma contumaz crítica ao Poder
Judiciário, que até então era considerado pela população como um poder: ineficiente,
moroso, com estruturação autocrática; e sem respaldo, razões pelas quais se fazia
necessária a sua reformulação.

Isto porque, em virtude do próprio amadurecimento da democracia brasileira e com


a consolidação de uma Lei Maior denominada como “Constituição Cidadã”, ganhava
expressão propostas que de algum modo pudessem aprimorar e garantir à democracia,
e fossem assim, capazes de aproximar o Estado dos indivíduos. A transparência do
judiciário como forma de fomentar a democracia e garantir o controle da sua atuação
passava a significar a evolução de uma “nova justiça”, como denominaram os propo-
sitores da emenda.

A propósito, sobre o tema do controle social das práticas estatais relacionado ao


dever de publicidade dos atos envolvendo interesses públicos, interessantíssimas são
as formulações trazidas por Ana Paula de Barcellos, ao dissertar sobre a importância do
controle exercido pela sociedade para o funcionamento das democracias e do aparato
estatal, principalmente em Estados nos quais a política se exerça predominantemente
por meio da atuação representativa, ressaltando que o controle social desempenha
uma função de limitação ao exercício do poder 5.

A Professora de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro


leciona de modo consistente sobre a importância que o controle social exerce sobre o
amadurecimento das instituições do Estado, dando destaque que, para que de fato seja
plausível e possível o exercício de um controle por parte dos cidadãos, sobre o aparato

4 A EC n.º 45 foi produto da PEC n.º 96/1992 proposta pelo então Deputado Hélio Bicudo. Para o inteiro teor
de sua exposição de motivos, consultar: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD01MAI1992.
pdf#page=7 pp. 7847-7853. Acesso em 10/07/18. Importante ressaltar que desde a sua proposição até
sua consolidação a proposta original sofreu inúmeras alterações.

5 DE BARCELLOS, Ana Paula. Papéis do direito constitucional no fomento do controle social democrático:
algumas propostas sobre o tema da informação. In: Revista Quaestio Iuris, v. 1, n. 6 a 9, 2012. pp. 6-7.

288 Thiago Coelho Sacchetto


estatal em suas diversas formas de manifestação, é imprescindível que os cidadãos
tenham acesso à informação para poderem moldar a sua conduta.6

Embora o foco do artigo escrito pela Constitucionalista da UERJ diga respeito ao


dever de publicidade e de prestação de contas, aplicável principalmente aos agentes
públicos pertencentes aos poderes Executivo e Legislativo, os argumentos basilares
do seu trabalho são também aplicáveis ao necessário dever de transparência e pres-
tação de informação a que se submete o Judiciário na ordem normativa constitucional
brasileira, sobretudo e após o advento da EC n.º 45/037.

Nesse viés, o dever de publicidade, seja no que se refere aos atos estatais promo-
vidos pelos agentes dos Poderes Executivo ou Legislativo, como também em relação
aos julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, carece de ser enfrentado
pela doutrina jurídica como um verdadeiro mandado de otimização8, por meio do qual
se exija que este dever seja cumprido com a mais efetiva densidade.

6 DE BARCELLOS, Ana Paula. op. cit. pp. 11-12: “Ao menos um conjunto de problemas que contribuem para
a fragilidade do controle social deve receber influência do direito constitucional: trata-se do conjunto de
problemas relacionado com a informação sobre a ação pública. A rigor, e trata-se de um truísmo, qualquer
controle apenas pode ocorrer se houver conhecimento do objeto a ser controlado. Como controlar a
ação pública se as pessoas não dispõem de informação sobre ela? A dificuldade em obter informação
desestimula o controle social na medida em que impõe ao indivíduo eventualmente interessado em
desempenhar esse controle um custo enorme, de tempo e esforço, na busca por dados. E, ademais, caso
as informações não seja verdadeira ou compreensíveis, isso pode inviabilizar, afinal, qualquer controle real.
Por outro lado, caso as informações sejam de fácil acesso e compreensão para o público, o custo de se
informar e exercer alguma forma de controle social diminuirá sensivelmente.”.

7 Em sua atual redação, tratam diretamente sobre o direito a informação os incisos XIV e XXXII do art. 5º
da CRFB/1988. Ipsis literis: “Art. 5º (...) XIV–é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado
o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; (...)XXXIII–todos têm direito a receber dos
órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão
prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível
à segurança da sociedade e do Estado;” Sobre o dever de publicidade dos julgamentos dos órgãos do
Poder Judiciário, o art. 93, IX da CF, alterado pela EC n.º 45/03, assim passou a dispor: “Art. 93. (...) IX
todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões,
sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus
advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado
no sigilo não prejudique o interesse público à informação.” Ainda, sobre os princípios orientadores da
administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dispõe o art. 37 da CRFB: “Art.
37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade
e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”

8 Sobre o dever de publicidade e sua compreensão como princípio a ser otimizado em sua máxima eficácia,
ver: BINENBOJM, Gustavo. O princípio da publicidade administrativa e a eficácia da divulgação de atos
do poder público pela internet. In: Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto
Brasileiro de Direito Público, n. 19, 2006. pp. 4-11.

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 289


Dessa forma, no que se refere ao dever de publicidade e transparência dos julga-
mentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal, considerando a atual engenharia
constitucional brasileira e os seus ditames normativos, entende-se que é dever do
Estado tomar todas as providências ao seu alcance para levar à ciência e ao conheci-
mento das pessoas os seus atos, criando as melhores condições possíveis para que
esta finalidade seja alcançada.

Sabe-se que, a depender da espécie do ato estatal, das pessoas envolvidas e da


relação que se perfaz entre as pessoas e o ato praticado, as formas de se proporcionar
ciência e conhecimento sobre as ações praticadas poderão variar. Isto porque, como
é possível se constatar com um pouco de sensibilidade crítica, a publicidade não se
realiza e nem se aperfeiçoa pura e simplesmente por meio da prática de uma formali-
dade, que por encerrar um fim em si mesma, pudesse ser suficiente para atender o seu
propósito. Pelo contrário, para que a publicidade de fato seja real e factível, o Estado
precisa empregar meios que, pelo menos de forma presumida, possam produzir acesso
real das pessoas ao conhecimento dos atos estatais.9

Não por outro fundamento, torna-se deveras relevante a ação pioneira adotada pelo
Estado Brasileiro de transmitir ao vivo e de forma integral as sessões de julgamento
realizadas pelo Supremo Tribunal Federal, fato que indubitavelmente contribui para
maximizar o dever de publicidade em consonância com as disposições normativas da
Constituição, e assim, garantir o direito a informação.

1.2. A TV Justiça, a Rádio Justiça e as transmissões ao vivo das


sessões do Supremo Tribunal Federal
De acordo com informação disponibilizada pelo site institucional do Supremo
Tribunal Federal10, o STF foi o primeiro tribunal do mundo a transmitir seus julgamentos
ao vivo por meio de canais próprios, como a TV Justiça11, que iniciou as transmissões

9 Cf. DE BARCELLOS, Ana Paula. op. cit. pp. 23-24.

10 Informações disponibilizadas em: http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.


php?sigla=portalStfSobreCorte_pt_br&idConteudo=196222&modo=cms. Acesso em 10/07/18.

11 Instituída pela Lei 10.461/2002.

290 Thiago Coelho Sacchetto


ao vivo das sessões plenárias do órgão em 14 de agosto de 2002, e a Rádio Justiça,
que iniciou suas transmissões em FM a partir de 5 de maio de 200412.

Responsáveis não apenas pela transmissão das sessões plenárias do Supremo


Tribunal Federal, a TV Justiça e a Rádio Justiça fazem parte de um plano institucional
do Judiciário, cuja finalidade precípua é aproximar este poder dos cidadãos, realizando
para tanto: a divulgação de suas ações, efetuando a abordagem de temas jurídicos em
linguagem acessível ao público, promovendo aulas e debates, com a explicitação de
questões tratadas nos principais processos em julgamento, entre outras iniciativas.

A finalidade de aproximação do poder judiciário com o cidadão e a busca por


permitir um acesso fidedigno às informações judiciárias, preenchendo espaços
deixados pelas emissoras comerciais, é desígnio manifesto destes meios de comu-
nicação oficiais, apresentando-se a TV justiça como um meio institucional que “tem
como foco preencher lacunas deixadas por emissoras comerciais em relação a notícias
sobre questões judiciárias”13, e a Rádio Justiça inclui nos seus propósitos a “busca [para]
evitar que assuntos importantes e complexos sejam abordados superficialmente.”14

Daí poder se dizer com convicção que estes canais midiáticos oficiais, têm desde
a sua gênese, uma preocupação cívica e institucional de permitir de fato uma aproxi-
mação do Poder Judiciário com o cidadão, estreitando desta maneira os laços entre a
Justiça e os Jurisdicionados, inserindo as questões da Justiça no cotidiano do cidadão,
e promovendo o que se poderia denominar de cultura jurídica.

Embora a TV Justiça tenha sido criada em momento anterior a EC n.º 45/04, com
as modificações efetuadas no texto da Constituição por esta reforma, entende-se
que o papel maximizador de publicidade realizado pelas mídias oficiais ganhou um
importante substrato jurídico para amparar a atuação pioneira de transmissão dos
julgamentos, o que provocou uma inédita abertura da Corte Constitucional Brasileira
à crítica e análise popular.

12 Cf. informação disponível em: http://www.radiojustica.jus.br/radiojustica/sobreRadio!showHistoriaRadio.


action?menuSistema=mn330. Acesso em 02/09/13.

13 Conforme informação disponibilizada em: http://www.tvjustica.jus.br/index/conheca. Acesso em


10/07/18.

14 Conforme dispõe o sítio eletrônico oficial: http://www.radiojustica.jus.br/radiojustica/


sobreRadio!showHistoriaRadio.action?menuSistema=mn330. Acesso em 10/07/18.

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 291


Sem dúvida alguma, a preocupação institucional do Poder Judiciário Brasileiro
com a transparência e a publicidade de suas ações é hoje uma diretriz institucional
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), merecendo destaque a declaração dada por
Eliana Calmon em fevereiro de 2013, no Encontro Nacional de Comunicação do Poder
Judiciário em Brasília, na qual destacou que “a transparência é a palavra de ordem do
Século 21” 15.

Naquela ocasião, a i. Magistrada defendeu a valorização do trabalho dos profis-


sionais de comunicação do Poder Judiciário, ressaltando que eles possuem papel
fundamental no processo de aproximação deste poder com a sociedade e frisando
ainda que a prestação de contas aos membros da coletividade é dever de todos os
agentes públicos.

A nosso ver, embora os índices de audiência tanto da TV Justiça como da Rádio


Justiça sejam reconhecidamente baixos16, a criação pioneira dessas mídias oficiais de
comunicação expressam de fato uma interessante preocupação do poder público de
aproximar o Poder Judiciário do cidadão, realidade que permite consolidar ainda que
a passos lentos, uma salutar consciência jurídico-democrática nos jurisdicionados do
país, o que fortalece a sua cultura política e jurídica.

Ademais, conforme expusemos anteriormente, o desiderato e a forma como se


dão as atuações dessas mídias oficiais consistem em elogiáveis métodos formulados
pelo Poder Público para poder de fato fazer valer o dever de publicidade, não de modo
meramente formal, mas demonstrando uma preocupação substancial para que o
conteúdo referente às informações do Poder Judiciário, e dos julgamentos por ele
realizados, sejam levados ao conhecimento do público de modo inteligível.

Importante ressaltar que, a escolha feita pelos gestores públicos de concentrar


as atividades de comunicação da Suprema Corte brasileira nos aparelhos de mídia
de rádio e televisão refletem uma bem-sucedida análise da predominância destes
instrumentos como principais vias de acesso da população brasileira a informações,
conforme é possível se observar com uma análise de dados estatísticos.17

15 Ver notícia na íntegra disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/23714-profissional-de-


comunicacao-e-a-ponte-para-aproximar-o-judiciario-do-cidadao-diz-ministra. Acesso em 10/07/18.

16 Não se encontraram dados representativos do índice de audiência das referidas mídias.

17 De acordo com dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizado no ano de 2004, a maior parte da população
brasileira ainda tem como instrumentos predominantes de acesso à mídia eletrônica o Rádio e a Televisão.

292 Thiago Coelho Sacchetto


Não obstante, em que pese o cenário virtuoso em que se dá a atuação das mídias
oficiais, parte da doutrina e alguns analistas de modo geral, ao efetuarem críticas
quanto à abertura midiática do Supremo Tribunal Federal, concentradas, sobretudo
na transmissão ao vivo das sessões realizadas pelo órgão jurisdicional, não o fazem
especificamente quanto à promoção cívica/informativa realizada por estes veículos
da mídia oficial.

A grande preocupação manifestada por juristas, juízes, políticos e componentes


das mais diversas classes profissionais, independentemente da ideologia professada,
consiste na constatação do grande perigo que a irrestrita publicização dos julga-
mentos efetuados pelo Supremo Tribunal Federal pode ocasionar, quando, ao percorrer
o caminho das mídias oficiais para a mídia comercial, a informação possa sofrer
deturpações e ser utilizada como rechaçável meio de pressão externa sobre a Corte.18

1.3. Democracia e a objeção à justiça constitucional


Não é novo o debate que traz à tona as contradições e suscita discussões acerca
da contraposição em que muitas vezes se coloca a Justiça Constitucional frente à ideia
de democracia e o respeito à vontade das maiorias, materializado costumeiramente
por meio da criação de leis.19

Pelos dados prestados, os percentuais de domicílios que possuem os respectivos aparelhos de mídia são
os seguintes: Rádio: 88%; Televisão: 90%; Computador: 16%; Acesso à Internet: 12%. Conforme AZEVEDO,
Fernando Antônio. Democracia e mídia no Brasil: um balanço dos anos recentes. In: Mídia e Democracia.
GOULART, Jefferson O. (Org.). 1ª Edição. São Paulo: Annablume Editora, 2006. p. 31.

18 Cf. a crítica efetuada pelo Desembargador do TRF Néviton Guedes, ainda que direcionada a exposição
dos julgamentos em matéria penal, para quem: “O mais incrível é que, mesmo com o amplo acesso ao
julgamento, a mídia não se conforma aos limites legítimos do seu código de comunicação (informar/não
informar), pretendendo antes substituir-se ao próprio Supremo Tribunal, na sua competência constitucional
de dizer o direito, pois passou abertamente a confrontar os próprios ministros, ao dizer ao público com ares
de correção e perícia técnica o que é lícito ou ilícito nas condutas daqueles que estão sendo submetidos
a julgamento naquela Suprema Corte. Mais do que isso, alguns órgãos da imprensa e seus profissionais,
não se limitando a “julgar” o caso, passaram a julgar os próprios juízes e ministros, não aceitando qualquer
outra resposta ao caso que não seja aquela por eles próprios — órgãos de imprensa — considerada
adequada, além de invadir outro sistema social — a ética — para dizer o que, no comportamento de cada
ministro do Supremo, é certo ou errado, legítimo ou ilegítimo (gerechtfertigt/ungerechtfertigt).” Conforme:
GUEDES, Nevilton. Jean Baudrillard e o mensalão em tela total. In: Revista Consultor Jurídico, 27/08/12.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-ago-27/constituicao-poder-jean-baudrillard-mensalao-
tela-total. Acesso em 10/07/18.

19 Para uma leitura aprofundada sobre o tema ver: BICKEL, Alexander. The last dangerous branch. 2ª
Edição. Indianapolis: Bobbs-Merrill Co, 1986; ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 293


Variados autores escreveram sobre as objeções que o paradigma jurídico-político
do constitucionalismo, no qual se sustentam as ideias de controle de constituciona-
lidade e/ou a judicial review enfrentam quando, contrapostos à noção de soberania
popular, acabam por contrariar a vontade popular, materializada por meio das normas
criadas pelos representantes do povo. Isto porque, como é cediço, em regra, cabe à
Justiça Constitucional avaliar se os atos legislativos editados pelos parlamentos estão
de acordo com a Constituição, e nos casos em que se observe uma violação à Carta
Maior (seja ela material ou formal), cumpre às Cortes Constitucionais fazer valer a
hierarquia da Norma Suprema sobre a legislação infraconstitucional.

Nesta atividade, fica evidente, com menor ou maior intensidade conforme as


opções e tradições do arranjo institucional de cada Estado, espaços em que se
conforma uma disputa de poder entre Judiciário e Legislativo, que no atual contexto
brasileiro tem se evidenciado em cores cada vez mais vivas20, trazendo para o debate
contemporâneo a questão do ativismo judicial e da antiga querela sobre quem deve dar
a palavra final sobre o conteúdo e a amplitude abarcada pela norma constitucional21.
Deve a Corte ser controlada?

A escolha do constituinte brasileiro de 1988 em elaborar uma Constituição


analítica e prolixa, na qual uma diversidade de matérias encontra-se abrangidas pela
normatividade da Constituição, demonstra senão a opção dos mandatários do poder
constituinte em transferir maiores poderes aos juízes, enquanto intérpretes oficiais
da Constituição.22

Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1998; WALDRON, Jeremy. Law and disagreement.
Oxford: Clarendon Press, 1999; entre outros.

20 Sobre o tema, interessante e profunda é a obra publicada pelo professor da USP: RAMOS, Elival da Silva.
Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. 1ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2010. pp. 226-304. Recente
polêmica que traz a tona o debate sobre disputas institucionais entre o poder Legislativo e Judiciário no
Brasil refere-se a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados da PEC
n.º 33/11, que visa reduzir de forma considerável os poderes do Supremo Tribunal Federal.

21 Para uma aprofundada leitura acerca da polêmica, ver a obra. La polémica Schmitt / Kelsen sobre
la justicia constitucional: El defensor de la Constitución versus ¿Quien debe ser el defensor de la
Constitución? Madrid: Editorial Tecnos, 2009, na qual se incluem os textos: LOMBARDI, Giorgio. Estudio
Preliminar – La Querela Schmitt/Kelsen: Consideraciones Sobre lo Vivo e y ló Muerto em La Gran
Polémica Sobre La Justicia Constitucional de Siglo XX; KELSEN, Hans. ¿Quien debe ser el defensor de la
Constitución? 1931 e SCHMITT, Carl. El defensor de la Constitución. 1931.

22 Cf. afirma BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no
Brasil contemporâneo. In: RFD-Revista da Faculdade de Direito da UERJ, v. 2, n. 21, 2012. pp. 4-8.

294 Thiago Coelho Sacchetto


Todavia, muito tem se questionado sobre uma excessiva interpenetração dos
temas constitucionais em outras searas autônomas do direito. Vê-se com desconfiança
a atuação de um órgão jurisdicional que, ao fundamento de fazer valer e zelar pela força
normativa da constituição acaba por concentrar demasiados poderes, contrariando em
certas situações as deliberações políticas tomadas pelo legislador infraconstitucional.

Sabe-se que o legislador, no âmbito de sua atividade legiferante, teria espaços


próprios para a ponderação e efetuação de escolhas políticas, que devido a sua natureza,
não devem ou pelo menos não deveriam se sujeitar ao controle jurisdicional, sob pena
de se materializar um déficit democrático no âmbito daquela sociedade.23 Quando uma
interferência do Poder Judiciário ocorre sobre decisões típicas e constitucionalmente
delegadas ao Legislativo, as críticas a um ativismo judicial aparem com força.

Não por outra razão, constantemente ganham credibilidade no cenário jurídico


algumas correntes doutrinárias que negam caber ao Judiciário dar a última palavra
sobre a interpretação da Constituição24, de modo que na perspectiva dessas correntes,
a Constituição deve ser retirada dos tribunais para que seja possível se valorizar os
debates políticos de deliberação pública.

Seguindo esse caminho, obra jurídica que provocou grande impacto na doutrina
foi aquela publicada pelo neozelandês Jerome Waldron, na qual em linhas gerais,
defende que as divergências e desacordos acerca dos conteúdos dos direitos devem
ser resolvidos por meio dos debates legislativos, e não pela deliberação judicial25, já
que do contrário, estar-se-ia legitimando um verdadeiro governo de juízes em prol de
um governo democrático.

Nesse diapasão, objeta-se que os juízes, ao contrário dos representantes dos


Poderes Legislativo e Executivo, não teriam legitimidade democrática para definirem

23 Como bem leciona Elival da Silva Ramos, para quem: “Não se nega que os magistrados ou os juristas
exerçam suas respectivas atividades (operacionais ou científica) de modo diverso dos representantes
políticos, em relação ao direito. Estes últimos praticam a política legislativa, com acentuada liberdade de
opção entre as diretrizes em disputa, ao passo que aqueles outros devem respeitar as opções feitas, sendo-
lhes facultada apenas a movimentação permitida pela normatização das escolhas políticas primárias.”.
RAMOS, Elival da Silva. op. cit. p. 60.

24 A exemplo, cite-se a corrente denominada de “constitucionalismo popular ou populista”, cf. aponta


BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 1ª Edição. Saraiva, São Paulo,
2009. p. 285, em que se faz referências aos trabalhos de TUSHNET, Mark. Taking the Constitution away
from the courts. Princeton: Princeton University Press. 1999.

25 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em Estado de Direito
Democrático. 1ª Edição. Coimbra Editora. Coimbra. 2012, pp. 149-150.

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 295


o conteúdo do direito vigente em determinada sociedade, devendo sua atuação se
restringir à aplicação/interpretação do direito, nos contornos delimitados de acordo
com os atos de soberania popular.

Daí se dizer que a adoção de uma Justiça Constitucional seria senão a legitimação
de um governo alicerçado em uma aristocracia dos sábios ou aristocracia judicial, que
a bem da verdade, acabaria por se revelar como um governo de juízes, supostamente
melhores preparados para resolverem os desacordos morais da sociedade acerca do
conteúdo de direitos fundamentais, do que a própria sociedade de leigos. 26

Com base nessa contumaz crítica, não por outra razão, o objetivo central do
presente estudo consiste em analisar os ganhos democráticos que se obtém com a
promoção de uma abertura midiática e o fomento da discussão democrática em relação
aos julgados promovidos pelo Supremo Tribunal Federal (sobre direitos fundamentais),
como forma de levar ao conhecimento da sociedade os pontos de vista, jurídicos e
políticos externados nos votos proferidos pelos magistrados.

Neste ponto, damos corpo à linha de pensamento propugnada por John Rawls
quando defende que a função desempenhada pelas Cortes Constitucionais deve
servir como instrumento e instituição exemplar da razão pública 27, por meio da qual
a Corte deve explicitar os argumentos expostos em seus julgados de forma racional,
desempenhando um papel educativo para a cidadania e a democracia28, por meio da
qual também poderá ser criticada.

Nesse ínterim, cumpre observar que é adotada neste trabalho uma posição de defesa
da atuação das Cortes Constitucionais como verdadeiras guardiãs da Constituição,
compreendendo-as na sua essência como verdadeiros órgãos fundamentais para

26 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. op. cit. p. 151 e 165.

27 Nesse sentido o autor diz: “Dizer que a Suprema Corte é a instituição exemplar da razão púbica significa
também que é função dos juízes procurar desenvolver e expressar, em suas opiniões refletidas, as melhores
interpretações que puderem fazer da constituição, usando seu conhecimento daquilo que esta e os
precedentes constitucionais requerem. Aqui, a melhor interpretação é aquela que melhor se articula com
o corpo pertinente daqueles materiais constitucionais, e que se justifica nos termos da concepção pública
de justiça ou de uma de suas variantes razoáveis.”. RAWLS, John. O Liberalismo Político. Tradução: Dinah
de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000. p. 286.

28 Cf. BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional. Legitimidade democrática e instrumentos


de realização. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. pp. 80-82.

296 Thiago Coelho Sacchetto


garantir o equilíbrio entre constitucionalismo e democracia, direitos fundamentais e o
devido processo democrático.29

2. Justiça constitucional, opinião pública, mídia e


controle.

2.1. Do papel potencializador da publicidade irrestrita dos


julgamentos do Supremo Tribunal Federal para o controle dos
seus argumentos pela opinião pública
Considerando que o papel das Justiças Constitucionais, quando julgam casos de
direitos fundamentais, não é o de definir puramente o conteúdo destes direitos em si,
mas sim o de traçar as balizas por meio dos quais pode se avaliar em que medida a
atuação do legislador – ao restringir ou dar primazia a um direito fundamental sobre
outro – contrariou (ou não) os primados substanciais e principiológicos da Carta Maior,
possibilitar meios de controle30 sobre o discurso dos juízes constitucionais é finalidade
precípua da democracia, que pode contribuir para se evitar uma perniciosa invasão
institucional do Poder Judiciário na órbita do poder Legislativo.

Até porque, importa repisar que por meio do controle social é possível depurar e
aferir se de fato a atividade exercida pela corte na decisão de questões importantes
está sendo baseada em argumentos políticos e/ou argumentos jurídicos como os
que se expôs anteriormente. Com base nas constatações obtidas, pode melhor ser
avaliado se o papel desempenhado pela corte, em determinado Estado é desejável
ou não nos termos da separação de poder ali configurados e de acordo com o seu
arranjo institucional.

29 No esteio substancial das vertentes defendidas por Ronald Dworkin e John Rawls.

30 Que pode ser compreendido em duas vertentes: como controle social puro ou como controle social com
repercussões jurídicas. O primeiro se caracterizaria como meio de pressão por meio do qual a população
pode demonstrar a sua insatisfação (com protestos, manifestações) sobre alguma diretriz política
ou sobre o resultado de algum julgado, influenciando suas futuras decisões. Já o segundo pode ser
compreendido como um mecanismo formal por meio do qual a população ou os seus representantes
podem se insurgir contra alguma decisão da corte, limitando os seus efeitos como por exemplo por meio
aprovação de uma Emenda Constitucional. Cf. DE BARCELLOS, Ana Paula. op. cit. pp. 6 e 7.

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 297


Independentemente do posicionamento doutrinário assumido para compreender
a legitimar a autoridade da Constituição31, se baseado em uma concepção ético-
-comunitária da sua legitimidade, que seria estabelecida em um pacto prévio (ou
pré-ordenante)32, ou se baseado na concepção de uma constituição procedimental,
cujos fundamentos se alicerçam na perspectiva dialógica (pós-ordenante)33, enten-
de-se que a publicização dos julgamentos realizados pelo STF, e por consequência,
do posicionamento jurídico de cada um dos Ministros que o compõem, trazem apenas
benefícios do ponto de vista de um controle social puro ou de um controle social com
repercussões jurídicas34 a ser exercido sobre os julgamentos proferidos pelo Supremo
Tribunal Federal.

Conforme pontuamos em momento anterior, acreditamos que a publicização dos


julgamentos realizados pelo STF, sobretudo no que concerne a questões envolvendo
direitos fundamentais, permite, no âmbito do debate que se verifique o que está sendo
considerado como premissa material35 da Constituição, possibilitando que se discuta

31 Aqui, para não nos alargarmos demasiado no tema sobre as diferentes concepções de fundamentação
ou forma de interpretação da Constituição, a exemplo do debate estabelecido entre as doutrinas
interpretativistas e não-interpretativistas da Constituição, citemos trecho do livro de Rodolfo Viana
Pereira, que de forma elogiosa, resume em síntese aquelas que seriam as principais polaridades
teóricas do atual debate constitucional: “Dois caminhos majoritários se apresentam na doutrina em uma
relação de contraposição. Duas compreensões constitucionais que, em termos analíticos, representam
grosso modo, as polaridades teóricas mais debatidas nas últimas cinco décadas. Podemos resumi-las
da seguinte maneira: de um lado, o modelo da constituição pré-ordenante impositiva, eis que sustentada
sobre uma legitimação substancial, um núcleo ético-moral bem definido acerca dos valores fundamentais
da sociedade e dos objetivos prioritários do Estado; de outro lado o modelo da constituição pós-ordenante,
dialógica, eis que sustentada sobre uma legitimação procedimental, um núcleo ético-discursivo aberto
à multiplicidade dos valores sociais e dos objetivos fundamentais. PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito
Constitucional Democrático: Controle e Participação como Elementos Fundantes e Garantidores da
Constitucionalidade. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2010.Rodolfo Viana Pereira, pág 75.

32 Ainda: PEREIRA, Rodolfo Viana. op. cit. p. 78: “Nesse contexto, a constituição transformaria em linguagem
jurídica uma determinada pré-compreensão social acerca dos valores e dos objetivos essenciais da
comunidade política concreta, restando aos poderes estatais a obrigação de conformar suas funções aos
mesmos e, especialmente à jurisdição, o papel de garantir sua integridade através do manejo do princípio
da ponderação em casos de divergências fundamentais.”.

33 Idem. Ibidem. p. 81: Fazendo alusão ao pensamento de Habermas. “Em uma sociedade complexa,
heterogênea, diferenciada e descentrada, não haveria lugar para a previsão de valores pré-discursivos,
supostos como naturais ou não problematizados. A imposição de um modelo de vida boa ou de direitos
naturais pré-políticos afrontaria o pluralismo social e o respeito pela pretensão de validade dos vários
modos de vida, de visões e de comportamentos”.

34 Descritos cf. nota n.º 51.

35 Para um breve resumo acerca da teoria material da Constituição, ver: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito
Constitucional. 26ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 170-195.

298 Thiago Coelho Sacchetto


a pertinência da assunção destas premissas. Estariam elas de acordo com o que foi
prelecionado pelo poder constituinte?

Ao dissertar sobre o extenso talante argumentativo sobre os quais os Juízes


Constitucionais podem efetuar escolhas (jurídicas ou não jurídicas), Jorge Reis Novais
leciona que a falta de controlabilidade dos argumentos utilizados nas discussões sobre
direitos fundamentais podem levar a um alargamento da discricionariedade do apli-
cador/intérprete/julgador36, o que seria extremamente nocivo, pelo que consideramos
veneráveis instrumentos capazes de comprimir esta discricionariedade (jurídicos ou
puramente sociais).

Dentro desta temática de controle sobre a Justiça Constitucional, aqui referenciada,


interessante o pensamento externado por Habermas que defende que ao conceder-se a
palavra final sobre a interpretação da Constituição às Cortes Constitucionais, de todo
modo, suas decisões devem ser amplamente fundamentadas e expostas ao debate
público37, havendo inclusive quem defenda que a crítica oriunda de juristas, jornalistas
e profissionais liberais em geral têm potencial racionalizador capaz de legitimar as
decisões proferidas. 38

Ora, efetuando-se um prognóstico hipotético, em situações nas quais se constate:


um hiato entre os valores constitucionais identificados por meio dos votos dos magis-
trados componentes do STF (quando assumimos uma perspectiva pré-ordenante); ou
que se constate uma violação ao procedimento democrático de determinar o conteúdo
da norma maior (em uma perspectiva pós-ordenante); com a irrestrita publicização dos
julgados, potencializa-se a marcha social para impulsionar medidas políticas (como
uma Emenda Constitucional) capazes de refrear um Poder Judiciário ativista, que
eventualmente esteja agindo fora de suas competências institucionais.

Ganha-se assim um instrumento potencial para limitar a utilização de teorias


hermenêuticas, ou teorias sobre os direitos fundamentais, que de forma enrustida,

36 NOVAIS. Jorge Reis. op. cit. pp. 30-33.

37 Cf. HABERMAS, Jürgen. Soberania Popular como Procedimento. São Paulo: In: Novos Estudos CEBRAP,
nº 26, 1990. pp. 109- 111.

38 BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional... p. 115: “Assim, embora à Corte Constitucional
se cometa a palavra final sobre a interpretação da Constituição, suas decisões devem ser amplamente
fundamentadas e expostas ao debate público, pois a crítica advinda da esfera pública (juristas, operadores
do direito, políticos, jornalistas, profissionais liberais em geral) possui um potencial racionalizador e
legitimador.”

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 299


façam valer a opinião pessoal dos juízes sobre aquilo que é considerada a Constituição,
e que seja carente de embasamento democrático. Sem informação, este controle,
ainda que possa se dar apenas em sua perspectiva social, torna-se impossível, não
obstante, com a irrestrita publicização dos julgamentos do STF (otimizando-se o direito
à informação nos termos da constituição) é possível que se reflita, com mais acuidade
sobre o papel racionalizador desenvolvido pela Corte Constitucional e se ele tem se
conformado aos delineamentos constitucionais.

Embora seja importantíssimo repisarmos e considerarmos que a Corte


Constitucional e a consistência dos seus julgados não perdem força única e exclusi-
vamente por contrariarem a opinião majoritária da população, eis que, como se sabe, é
da sua essência exatamente realizar este papel, podendo garantir o direito das minorias
contra o das maiorias, traçar critérios de controlabilidade para que se afira quando e em
que circunstâncias argumentos de política estão sendo utilizados, e não propriamente
argumentos de princípio é essencial.

Daí, e nessas situações, podermos fazer coro ao que é defendido por Eduardo
Garcia de Entería, em posição diríamos até radical, quando fala que a legitimidade da
justiça constitucional se encontraria em última instância “en el plebiscito diário” 39 a
que estão sujeitas as suas decisões e na sua capacidade de gerar consenso.

Em sentido semelhante, Otto Bachof já defendia em décadas passadas em seu


trabalho Jueces y Constitución que a legitimação da justiça constitucional e da atividade
jurisdicional exercida pelos seus juízes seria obtida em grande parte em razão do
diálogo mantido com a opinião pública e a comunidade jurídica por meio da penosa e
“difícil arte de poder escuchar!”40.

Embora não seja da pretensão do presente trabalho firmar-se em uma linha espe-
cífica de pensamento doutrinário constitucional, havendo, do contrário, o intento de
refletir sobre o problema estudado com base nas diversas orientações doutrinárias
existentes, não podemos deixar de evidenciar que a possibilidade de controle sobre

39 ENTERRÍA, Eduardo Garcia de. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. 3ª Edición.
Madrid: Civitas, 1985. pp. 203-205.

40 BACHOF, Otto. Jueces y Constitución. 1ª Edición. Madrid: Civitas, 1985. p. 60

300 Thiago Coelho Sacchetto


os argumentos da justiça constitucional que se propõe pode ser acolhida em uma
perspectiva do denominado constitucionalismo moralmente reflexivo.41

Isto porque, em linhas gerais, firmando-se a assunção de que esta doutrina


buscaria um caminho equilibrado, no qual a legitimidade da constituição estaria entre
a “pré-ordenação e a pós-ordenação, entre a força dirigente e a força dialógica”42, um
controle sobre as opções constituintes (e a sua reverberação ou apropriação) por meio
do discurso promovido pelas Cortes Constitucionais, proporciona um controle sobre o
discurso constitucional em ambas as suas vertentes (dirigente ou dialógica).

Em termos de propostas conciliatórias para democracia e constitucionalismo,


representação popular e poderes constituídos, a abertura do discurso do Supremo
Tribunal Federal ao controle social43 promovida com a irrestrita publicidade dos
julgamentos possibilita sem dúvida alguma uma louvável “interconexão reflexiva entre
procedimento e substância”44 que permite o exercício do papel da Justiça Constitucional
como lugar de discussão e evidenciação da razão pública45, nas palavras de John Rawls,
ou de determinação do processo público, com esteio da doutrina de Peter Häberle.

41 Na seara da doutrina formulada por Ulrich Preuss e Gomes Canotilho. Cf. PEREIRA, Rodolfo Viana. op. cit.
p. 95.

42 PEREIRA, Rodolfo Viana. op. cit. p. 95.

43 Acerca dos delineamentos teoréticos sobre o que deve ser entendido por controle, interessante
transcrever a lição de Rodolfo Viana Pereira: “Em termos teoréticos, tais delineamentos inspiram o resgate
do termo controle como categoria útil para a definição dessa dimensão fundante da constitucionalidade.
A constituição se apresenta em sua melhor luz como um sistema normativo de controle das opções
constituintes de uma determinada comunidade política, isto é, a constituição funda um modelo de
organização político-jurídica controlando normativamente a possibilidade do ser e do vir-a-ser dessa
mesma comunidade, em face do conjunto de determinantes posto pela vontade popular. O conceito,
portanto, abre-se às particularidades e idiossincrasias dos diversos contextos regulados, assegurando,
da melhor forma possível. (...) Controlar é assim uma atividade em princípio neutra, mas funcionalmente
aberta, isto é, não se reduz a priori nem a dimensões substantivas, nem a vertentes procedimentalistas,
mas se abre a ambas, adaptando-se a uma ou a outra, bem como a modelos entrelaçados.” PEREIRA,
Rodolfo. Viana. op. cit. p. 97.

44 Idem. Ibidem. p. 97.

45 RAWLS, John. op. cit. pp. 281-291.

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 301


2.2. Aspectos de influência da opinião pública sobre a corte
constitucional
Conforme se pontuou outrora, foge a pretensão do presente trabalho realizar um
estudo empírico no sentido de examinar as influências de fato observadas por meio
da opinião pública (por vezes canalizada pelas vozes da mídia comercial) sobre o
Supremo Tribunal Federal, não obstante considerarmos que trabalhos neste sentido46
tenham grande relevo e possam servir de substrato para o desenvolvimento do tema
na doutrina brasileira.

Entretanto, ainda que não se busque promover um estudo calcado nas influências
empíricas constatadas sobre os julgamentos realizados pela Colenda Corte, após e
com o advento das transmissões ao vivo por meio da TV Justiça e da Rádio Justiça,
não podemos deixar de, com base nomeadamente na doutrina norte-americana, fixar
alguns parâmetros e pontos fulcrais que têm servido para a análise das relações
recíprocas de influência que Cortes Constitucionais e opinião pública podem exercer
umas sobre as outras.

Nesse desiderato, o estudo realizado por Marcelo Novelino acerca da Influência


da Opinião Pública no Comportamento Judicial dos Ministros do STF acaba por ser
pioneiro na doutrina brasileira. No referido trabalho o autor faz um interessante paralelo
com o enfoque dado ao tema também pela doutrina norte-americana, enunciando de
modo pontual interessantes hipóteses fáticas capazes de aprofundar a análise sobre
as influências que a opinião pública exerce sobre as cortes constitucionais.

46 Sobre as diferentes perspectivas em que as influências da opinião pública sobre as decisões judiciais
podem ser abordadas, interessante transcrever excerto da lição de Marcelo Novelino, para quem: “A
influência exercida pela opinião pública sobre as decisões judiciais pode ser abordada sob duas perspectivas
distintas. Em termos normativos, a discussão tem como foco central a legitimidade da influência popular
sobre as decisões, especialmente em face da independência judicial e do papel contramajoritário atribuído
à Corte. Em que medida o Tribunal deve estar atento à opinião e se deixar influenciar por ela? Em que tipo
de situação a influência deve ou não ser admitida? Tal influência deve ser vista como algo que fortalece o
regime democrático ou deve ser considerada inconcebível em face dos princípios decorrentes do Estado
de Direito? Por um lado, há quem considere que a opinião pública não deve ser um fator relevante no
processo decisório, por sua incompatibilidade com o papel contramajoritário da Corte e com as exigências
de neutralidade, independência e imparcialidade do juiz, constitucionalmente protegidas contra pressões
externas através das garantias institucionais (autonomia administrativa e financeira) e funcionais
(vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade da remuneração). Por outro lado, há quem defenda que
os juízes não devem se manter totalmente indiferentes ao clamor popular, sobretudo porque o apoio da
sociedade é considerado um importante fator para a legitimidade do tribunal e para o seu fortalecimento
como instituição.” Conforme: NOVELINO, Marcelo. op. cit. pp. 284-285.

302 Thiago Coelho Sacchetto


É cediço que os Ministros do Supremo Tribunal Federal, conforme exigência do
art. 101 da Constituição de 198847 devem ser pessoas experientes, com notório saber
jurídico e conduta ilibada. Tais requisitos decorrem da essência da função que devem
desempenhar, considerando que em sua atividade eles inevitavelmente lidam com
diversos tipos de pressão social e política, atuando em casos jurídicos com grande
repercussão pública.

Todavia, em que pese os rigorosos e nem sempre cumpridos pressupostos exigidos


para o exercício do cargo de juiz constitucional possuírem como fundamentação
teleológica, o propósito de assegurar que os magistrados desempenhem a sua função
com autonomia e imparcialidade48, na prática, o exercício da função absolutamente
isento e imune a influências externas não ocorre. Pelo menos não de acordo com o
que apontam algumas pesquisas.

Com efeito, o relato de trabalhos desenvolvidos por cientistas políticos esta-


dunidenses, ao estudarem em períodos distintos as relações entre a Suprema Corte
americana e a opinião pública, tem apontado que as decisões promovidas pelos seus
juízes constitucionais têm em larga medida refletido as posições manifestadas pela
opinião pública, o que seria um indício de que no plano factual (deixado de lado a
perspectiva normativa-científica se de fato esta influência deve ou não ocorrer) ocorreria
uma permeabilidade no pensamento dos justices aos anseios populares. 49

Visando trazer a lume algumas hipóteses desenvolvidas pela doutrina50 a fim


de constituir critérios que possibilitem, com maior ou menor rigor, estabelecer o
porque de haver uma certa convergência entre os julgamentos efetuados por Cortes
Constitucionais e a opinião pública, apontemos de forma sucinta alguns standards
por ela desenvolvidos. São eles: (i) a hipótese da legitimidade institucional; (ii) a
hipótese do autointeresse; (iii) a hipótese da influência indireta; e (iv) a hipótese da
socialização política.

47 CFRB/1988: Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre
cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico
e reputação ilibada. Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo
Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.

48 Assim como as garantias gerais conferidas aos membros do poder judiciário pela CRFB em seu art. 95,
incisos I e III.

49 NOVELINO, Marcelo. op. cit. p. 286.

50 Cf. faz Marcelo Novelino.

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 303


Em suma, de acordo com a hipótese de legitimidade institucional51, entende-se
que um Tribunal Constitucional, por ser uma instituição jurisdicional, mas por possuir
também traços políticos, teria sua autoridade a depender em certo grau, da confiança,
da legitimidade e do respeito público que suas decisões irradiam, de modo que tal
prestígio institucional é considerado importante fator facilitador para que suas decisões
sejam voluntariamente acatadas. Com base na hipótese de legitimidade institucional,
os Magistrados componentes de uma corte se veriam influenciados a tomar decisões
que possuam respaldo popular em questões fundamentais.52

Já a denominada hipótese do autointeresse se relaciona à construção teórica de


que a condição humana dos juízes constitucionais implicaria em um inevitável desejo
de aceitação popular, havendo uma consciente ou por vezes inconsciente aspiração
por adquirir maior respeito e admiração que, em larga ou pequena medida, influenciaria
nas escolhas tomadas pelos decisores. 53 Formula-se que, ao contrário do que o senso
comum pensa, os juízes de fato se importariam de forma considerável com a opinião
popular ou de determinados segmentos da sociedade.54

Outra hipótese apontada pela doutrina que evidencia razões aparentemente aptas
à justificar a convergência entre decisões proferidas por Cortes Constitucionais e a
opinião pública, dá-se com a análise sobre os diferentes modelos de nomeação dos
juízes constitucionais adotados em diferentes Estados, conhecida como hipótese
de influência indireta. De acordo com os contornos teóricos desta hipótese, embora
ela não permita aferir propriamente um fator comprovativo da influência da opinião

51 Cf. NOVELINO, Marcelo. op. cit. pp. 290-294.

52 Conforme William Mishler e Reginald S. Sheehan: “The direct-effects hypothesis has two distinct
explanations. One, linked to Justice Frankfurter, holds that the Court is a political institution whose authority
depends on public deference and respect. Sensitive to this, justices are careful not to jeopardize the Court’s
authority by departing too far or too long from majoritarian views on fundamental issues.” ISHLER, William
e SHEEHAN, Reginald S. Response: Popular Influence on Supreme Court Decisions. In: The American
Political Science Review, Vol. 88, n. 3, 1994. P. 717. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2944805.
Acesso em: 10/07/18.

53 NOVELINO, Marcelo. op. cit. p. 295.

54 Cf. Lawrence Baum e Neal Devins: “For reasons we will now detail, Supreme Court Justices are not the
“Spock-like judges of the dominant models [who] have no interest in public approval as na end in itself”;
instead, Supreme Court Justices, like other people, “care a great deal about what people think of them.”,
BAUM, Lawrence e DEVINS, Neal. Why the Supreme Court Cares About Elites, Not the American People.
Faculty Publications. College of William & Mary Law School. Paper 1116, 2010. p. 1.529. Disponível
em: http://scholarship.law.wm.edu/facpubs/1116. Acesso em 10/07/18. No referido estudo chega-se a
constatação de que a opinião das elites, no caso da Corte Suprema americana teria mais importância do
que a opinião popular de modo geral.

304 Thiago Coelho Sacchetto


pública sobre os juízes constitucionais, possibilita que se faça suposições razoáveis
para compreender o porquê desta convergência ocorrer em muitos casos. Expliquemos
melhor.

De acordo com a hipótese da influência indireta, considerando que a nomeação


dos membros de Cortes Constitucionais, em vários Estados, se dê com a participação
do Executivo ou Legislativo e que estes poderes, por serem eleitos por meio do voto
popular, normalmente representam as preferências políticas majoritárias da população,
haveria nas decisões tomadas pelos Juízes Constitucionais um viés ideológico que
representaria indiretamente a opinião da ideologia dominante que elegeu os membros
do poder Executivo e Legislativo.55

Enunciando em breve síntese, outra hipótese destacada que permite se conjeturar


a existência de aspectos de decisões judiciais que reflitam preferências da opinião
popular, refere-se à denominada “hipótese da socialização política”, que nada mais
é do que a construção teórica que visa demonstrar que os juízes, assim como os
demais membros da sociedade, estão suscetíveis às influências das mesmas normas
e valores sociais.

De acordo com esta hipótese, o posicionamento dos juízes seria influenciado não
diretamente pela opinião pública, mas sim, devido ao fato de que por estarem inseridos
no mesmo contexto social, por meio do qual os valores e mudanças na realidade
social ocorreriam, suas opiniões individuais não estariam imunes ao processo social
de formação das opiniões56, e assim, suas convicções pessoais e jurídicas poderiam
ser afetadas como a dos demais membros da sociedade.57

55 Cf. NOVELINO, Marcelo. op. cit. p. 296. Nesse sentido, os resultados de algumas análises efetuadas por
Martin Epstein confirmaram de modo empírico a coincidência entre as decisões da corte constitucional
americana com a opinião popular, que trariam evidências da plausibilidade da hipótese de influência
indireta. Transcreva-se: “(...) virtually all the studies demonstrate an indirect effect of public opinion via
the appointments process. That is, they tend to show that changes in the Court’s composition can lead
to a higher or lower percentage of liberal decisions each term. Political scientists deem this “indirect”
because the public does not directly affect the percentage of liberal decisions; its role comes in electing
the President and the Senate, who appoint and confirm Justices reflecting the public’s preferences.
Accordingly, “the ideological orientation of the Court generally corresponds to the attitudes of the
electorate” and the ruling regime. EPSTEIN, Lee e MARTIN, Andrew D. Does public opinion influence the
Supreme Court? Possibly yes (but we’re not sure why). University of Pennsylvania Journal of Constitutional
Law, Vol. 13, No. 263, 2010. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=2087255. Acesso em 10/07/18.

56 NOVELINO, Marcelo. op. cit. p. 299.

57 Nesse sentido conjeturam os pesquisadores norte-americanos:“More generally still, this indication of


reciprocal links between the public mood and the Court’s decisions hint at the existence of a relationship

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 305


Feitos alguns apontamentos sobre os mais difundidos critérios utilizados pela
doutrina para traçar hipóteses que visam esclarecer os motivos aparentemente justi-
ficadores para a existência de uma constante convergência entre a opinião pública e
eventuais decisões tomadas pelas cortes constitucionais, passemos a analisar algumas
relações entre mídia oficial, opinião pública e mídia comercial.

2.3. Mídia oficial, opinião pública e mídia comercial


De acordo com o que se expôs até aqui, entende-se que o direito à informação e
o dever de publicidade dos atos estatais são elementos fundamentais para se permitir
a atuação de um controle pela sociedade sobre a atuação das diversas órbitas do
poder organizado.

No que se refere particularmente ao Poder Judiciário, e mais especificadamente


aos julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal em que são tratados
problemas de Direitos Fundamentais (colisão entre direitos fundamentais, suposta
violação de direito fundamental por norma infraconstitucional, etc.) é inegável que
fatores extrajurídicos possam e acabam por influenciar as suas decisões.

Embora se reafirme a todo tempo que as Cortes Constitucionais possuam plena


autonomia e desvinculação em relação a pressões externas para julgar as lides e
questões a ela submetidas única e exclusivamente de acordo com parâmetros jurídicos,
cumpre traçar uma breve relação existente entre mídias oficiais, opinião pública e
mídia comercial.

Atualmente no cenário brasileiro, considerando a intensa exposição pública a que


tem sido submetido o Supremo Tribunal Federal, e por consentâneo, os Ministros que
o compõem por meio da TV Justiça e da cobertura jornalística e mais acirradamente,
após o julgamento de questões com grande repercussão popular58, ganha importância

in which (1) the ideological tenor of the Court’s decisions are responsive in the long run to the shifts in the
ideology of the public mood and (2) the Court’s decisions subsequently reinforce and legitimize those shifts
in mood. This is highly speculative, of course.” MISHLER, William e SHEEHAN, Reginald S. The Supreme
Court as a Countermajoritarian Institution? The Impact of Public Opinion on Supreme Court Decisions.
In: The American Political Science Review, Vol. 87, No. 1, 1993. Disponível em: http://www.jstor.org/
stable/2938958. Acesso em 10/07/18.

58 Entre vários casos, cite-se a ADPF 54/DF (que tratava da questão referente ao aborto de fetos
anencéfalos), a ADI 4277/DF (que abordou o tema das uniões homoafetivas), a ADPF 186/DF (que tratou
sobre o sistema de cotas em universidades públicas) e a recentíssima AP 470/DF (o caso do mensalão).

306 Thiago Coelho Sacchetto


os estudos que visam evidenciar e problematizar os aspectos de influência da opinião
popular sobre as cortes, como se apresentou de forma resumida no tópico anterior.

De toda forma, é importante que se tenha em conta que a formação da opinião


pública, em sociedades complexas e com contingentes populacionais expressivos,
perpassa necessariamente pela atuação da imprensa e dos meios de comunicação
de massa59, de modo que, ao analisar-se as influências e o controle da opinião pública
sobre os julgamentos realizados pelas Cortes Constitucionais, inevitavelmente deve-se
ter o cuidado de analisar o desenho e o desenvolvimento da imprensa comercial no
âmbito de determinado Estado.

Isto porque, a partir da análise de diversas características dos meios de comu-


nicação, contrapostas as normas de liberdade e responsabilização da imprensa,
torna-se possível fazer um diagnóstico sobre o maior ou menor potencial de que a
mídia comercial possa influenciar a opinião popular.

Como pontuamos anteriormente, entre o que consideramos fazer parte do direito


a informação, cumpre expressar que o dever de publicidade (antípoda deste) consiste
não apenas que os atos públicos não sejam sigilosos, mas basicamente no dever de
proporcionar às pessoas o efetivo conhecimento acerca dos atos do Poder Público,
de modo que lhes seja possibilitado controlar (socialmente ou juridicamente) os atos
praticados nas diversas esferas estatais.

Por todo o exposto, ainda que se considere absolutamente legítima e bem quista a
atuação das mídias oficias (como a TV e Rádio Justiça) que ao efetuarem a publicização
dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, em grau que poderíamos classificar
como máximo, têm o cuidado de depurar a informação transmitida, em um viés (ainda
que idealístico) calcado na imparcialidade e no caráter informativo, faz-se necessário
ter em conta que a abertura do STF pelas mídias oficiais gera a possibilidade de uma
cobertura midiática não tão imparcial por parte da mídia comercial.

Por conta do risco que essa abertura inicialmente bem quista como densificação
do direito a informação, e do cumprimento do dever de publicidade estatal realizada

59 Nesse sentido disserta Daniel Innerarity: “A sociedade só pode conhecer o mundo por via dos
meios de comunicação (se excluirmos aquele mundo próximo, privado, que cada um pode conhecer
imediatamente). E até podemos afirmar que nem sequer podemos separar o saber que temos pelos
meios de comunicação do saber que adquirimos por experiência pessoal. É certo que há um círculo
vital pessoal acerca do qual se sabe sem o ter lido no jornal. Mas uma pessoa não se pode orientar no
espaço público sem aquele saber que se obtém pelos meios de comunicação.” INNERARITY, Daniel. O
novo espaço público. 1ª Edição. Lisboa: Editorial Teorema, 2010.

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 307


pelas mídias oficiais possa sofrer quando percorra o caminho sujeito à crítica da mídia
comercial (ao menos intuitivamente menos preocupada com interesses públicos e
mais baseada em interesses particulares) se deve perguntar novamente: a abertura
midiática da Corte Constitucional brasileira traz um prognóstico positivo ou negativo
para a atuação da Justiça e o desenvolvimento da democracia?

Nesse diapasão, façamos um exame acerca da conveniência e da apropriabilidade


da abertura midiática da justiça constitucional já em curso (com a publicização irrestrita
dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal) em consonância com as características
da mídia comercial brasileira, do seu ordenamento jurídico constitucional e tendo
em conta a possibilidade de se regulamentar diretrizes para a atuação dos meios de
comunicação social. 60

2.4 Características da mídia comercial no Brasil e uma


perspectiva sobre a abertura midiática da justiça constitucional
brasileira
Visando de forma sintética fornecer um panorama geral sobre o atual status de
desenvolvimento da mídia comercial no Brasil, de modo que seja possível formular
conjecturas, fazer previsões e delimitar em linhas gerais a forma pela qual ela pode
reproduzir e criticar as transmissões efetuadas pelas mídias oficiais (que promovem
a publicização dos julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal) trazemos à luz
algumas dimensões críticas para analisar o sistema de mídia brasileiro e suas relações
de influência com o poder.

Baseado em percepções de vivência, em dados informativos e estatísticos e de


acordo com estudo de algumas dimensões analíticas propostas por estudiosos da
teoria da comunicação61, procuraremos destacar algumas características gerais que se
observa na organização da mídia comercial brasileira que podem contribuir para uma
análise das possibilidades de sua influência sobre a opinião pública e os julgamentos
realizados pelo Supremo Tribunal Federal.

60 O que de forma alguma deve se confundir com estrita censura a liberdade de imprensa.

61 Propostas em sua originalidade por Daniel C. Hallin e Paolo Mancini no estudo clássico: Comparing
media systems – three models of media and politics. New York: Cambridge University Press, conforme
remissões efetuadas por AZEVEDO, Fernando Antônio. op. cit. p. 23.

308 Thiago Coelho Sacchetto


A primeira delas, também conhecida como diversidade externa62, relaciona-se a
pluralidade na oferta de informações com a propriedade dos meios de comunicação.
Uma análise geral no contexto brasileiro permite constatar que a organização da sua
mídia comercial está conformada em moldes estruturais de monopólios familiares, o
que significa ao menos de modo potencial, desvantagens para que a atuação da mídia
se dê de forma plural e democrática.

De acordo com algumas pesquisas elaboradas, apenas oito grupos familiares


controlam quase que a totalidade dos setores de rádio e televisão no Brasil, e ademais
destas oito famílias, quando se agrega outros importantes grupos familiares com
substancial domínio sobre revistas, outros meios impressos, portais e TV por assinatura,
chega-se ao índice aproximado de que 90% da mídia brasileira seria controlada por
apenas 15 grupos familiares. 63

Diante de uma constatação como esta é natural que ganhe força as vozes que
de certa forma defendem a necessidade de se garantir uma blindagem do Poder
Judiciário em relação à influência da mídia e da opinião pública, conquanto que o
posicionamento destas possam resultar senão no reflexo das opiniões de determinadas
elites dominantes, que além de já possuírem considerável influência nas órbitas dos
poderes Executivo e Legislativo, com a abertura da Corte teriam ampliado o seu âmbito
de influência sobre o poder que ao menos idealisticamente deveria ser influenciável
e imparcial.

Entretanto, de acordo com o que se afirmou alhures, discordamos destas posições


radicais, primeiro porque acreditamos que a exposição dos julgamentos do Supremo
Tribunal Federal para a mídia (oficial ou comercial) não redunda em uma necessária

62 Fernando Antônio Azevedo disserta sobre a importância em uma sociedade democrática e plural de
se possuir uma acentuada diversidade externa, definida em suas palavras como: “existência efetiva de
diversidade de informação e de opinião nos meios de comunicação em massa que garanta aos cidadãos
acesso às principais perspectivas políticas em competição”. Segundo o referido autor “para assegurar
as condições democráticas referidas é imprescindível que os meios de comunicação de massa estejam
organizados numa estrutural plural e competitiva e sejam capazes de refletir, se não toda, pelo menos
as correntes mais importantes da diversidade ideológica, política e cultural da sociedade.” Cf. AZEVEDO,
Fernando Antônio. op. cit. p. 32.

63 Cf. LIMA, Venício A. Mídia, teoria e política. Apud AZEVEDO, Fernando Antônio. op. cit. pp. 34-35. Sobre
o tema, interessante a informação fornecida sobre o fato de que desde 1946 as Constituições Brasileiras
proibiam o controle de empresas jornalísticas e de radiodifusão por parte de pessoas jurídicas,
sociedades anônimas por ações e estrangeiros. A finalidade de tais restrições estaria relacionada ao
intuito de possibilitar a identificação plena dos proprietários destes meios de comunicação e impedir o
controle da mídia pelo capital estrangeiro. Ocorre que indiretamente, tais restrições ajudaram a produzir
a formação de monopólios familiares. Idem, ibidem. p. 33.

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 309


invasão da autonomia dos juízes para julgarem e decidirem as questões a eles
submetidas, conquanto as suas garantias constitucionais permaneçam incólumes.
Em segundo, porque conforme também já expusemos, entendemos que a exposição dos
julgamentos realizados pelo STF como forma de otimizar os deveres de publicidade e
transparência dos atos estatais, trata-se propriamente de um dever jurídico do Estado
em garantir o direito à informação nos termos prelecionados pela Constituição Federal.

Nessa perspectiva, apartando-se daqueles que devido a uma desconfiança nos


sistemas de mídia 64(por serem controlados por pequenos oligopólios), justificam
uma menor publicização dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, entendemos
que o temor sobre um “quarto poder” 65 não pode ser justificativa apta para cercear a
densificação e concretização do direito a informação (considerado como mandado de
otimização) devido à possibilidades hipotéticas de cometimento de abusos.

Até porque, não faltam estudos, propostas e até alguns projetos de lei no ordena-
mento jurídico brasileiro que visam regulamentar, aprimorar ou estabelecer novos meios
de controle sobre a atividade da imprensa, que deve ser exercida com responsabilidade
sob pena de imputar o abuso ao próprio direito à liberdade e/ou liberdade de imprensa.66

Outra consideração que pode ser utilizada contra os argumentos lastreados


no temor da manipulação e agigantamento do poder da imprensa relaciona-se ao
fato de que, cada vez mais, e ainda que seja de difícil mensuração constata-se o

64 Como já se manifestou Dalmo de Abreu Dallari, entre outros renomados juristas, em artigo publicado em
18/12/2012. DALLARI, Dalmo de Abreu. A transmissão de julgamentos. In: Observatório da Imprensa,
SSN 1519-7670, Ano 17–nº 764, 2012. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/
view/_ed725_a_transmissao_de_julgamentos. Acesso em 10/07/18.

65 Ainda que voltado estritamente para os riscos da Televisão e escrito em época aproximada de sua criação,
continua a ser um clássico sobre a crítica à TV, e em uma perspectiva ampla, aos meios de comunicação
de massa quando mal utilizados, o ensaio escrito por Karl Popper Uma lei para a televisão e trazido a
lume no livro Televisão: Um perigo para a Democracia. O filósofo alerta: “(...) a democracia consiste em
submeter o poder político a um controle. É essa a sua característica essencial. Numa democracia não
deveria existir nenhum poder político incontrolado.” “(...) Não pode haver democracia se não submetermos
a televisão a um controle, ou, para falar com mais precisão, a democracia não poder subsistir de uma forma
duradoura enquanto o poder da televisão não for totalmente esclarecido.” POPPER, Karl e CONDRY, John.
Televisão: Um perigo para a democracia. 4ª Edição. Lisboa: Gradiva, 2012, p. 29.

66 Sobre o tema, confira-se a Tese de Doutoramento de PAULINO, Fernando Oliveira: Responsabilidade Social
da Mídia. Análise Conceitual e perspectivas de aplicação no Brasil, Portugal e Espanha. Faculdade de
Comunicação da Universidade Federal de Brasília (UnB), 2008. Como exemplo de projeto normativo que
visa trazer inovações sobre a matéria, entre outros, a PEC n.º 33/09, proposta no Congresso Nacional
possui conteúdo interessante conforme se irá expor. Ressalte-se sempre que questões envolvendo a
regulamentação da liberdade de expressão e/ou liberdade de imprensa devam ser analisadas sempre
com muito critério sob pena de se violar esses tão custosos direitos.

310 Thiago Coelho Sacchetto


desenvolvimento de um senso crítico perspicaz nos brasileiros67 quanto às influências e
manipulações realizadas pela mídia. É indubitável que meios alternativos a visões extre-
mamente parciais sobre a informação têm se desenvolvido em velocidades extremas
exercendo um importante contrapeso sobre as informações deturpadas que podem
ser veiculadas pelos meios tradicionais de comunicação.

Nesse sentido, ganha destaque o poder ainda desconhecido das redes sociais
como instrumentos alternativos de veiculação de ideias, opiniões e informações, que
por meio de sítios eletrônicos e virtuais como o Youtube, Facebook, Twitter, entre
outros, têm possibilitado aos indivíduos singulares construírem os seus pontos de
vista baseados em uma percepção dos fatos e das coisas, nem sempre intermediada
por meios das lentes da imprensa convencional e de mercado.

Lado outro, considerando que por ter organização empresarial a maior parte da
imprensa de massa necessite de investimentos publicitários para se manter e, como via
de regra, para receber investimentos faz-se imperioso que se conquiste credibilidade,
os meios de comunicação acabam em uma lógica de auto sustentação por precisar de
demonstrar que seu viés editorial preocupa-se com a busca pela informação imparcial
e informativa.

Ainda que seja idealista supor que os meios de comunicação possam extinguir os
seus próprios vieses ideológicos para fornecer uma informação puramente imparcial (o
que é inclusive rechaçável posto que a imprensa também possua um papel opinativo)
fato é que o contrapeso exercido pela sociedade de modo geral (que tem tido a sua voz
energizada com a evolução dos meios de comunicação democráticos) ocasiona uma
busca pelos meios de comunicação em massa para apresentar os fatos com maior
fidedignidade e verossimilhança ao público a que se destinam.

67 Em exemplo recente, observou-se por meio da difusão em redes sociais de uma crítica contumaz a
cobertura jornalística realizada por alguns meios de comunicação na imprensa brasileira sobre os
protestos iniciados em Junho de 2013 no Brasil contra a corrupção, os gastos excessivos do Poder
Público, e outras bandeiras, que ficou conhecido como “A primavera brasileira”. Ao que se constatou,
em síntese perfunctória, a imprensa inicialmente tratou os manifestantes como vândalos sem buscar
depurar com maior imparcialidade as causas e reivindicações que motivaram os atos de indignação.
Passado um primeiro momento, devido às extensas críticas efetuadas, sobretudo em veículos “não
oficiais” de comunicação (como as redes sociais) sobre a abordagem extremamente parcial dada pela
mídia comercial ao movimento político, a imprensa (em geral) acabou efetuando uma radical mudança
em seu viés editorial, por meio do qual buscou assumir um posicionamento mais informativo e menos
opinativo sobre os fatos narrados, alijando-se de pré-concepções simplistas.

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 311


Em artigo no qual faz uma análise geral da mídia no Brasil, Fernando Antônio
Azevedo destaca o percurso histórico e a evolução das características da mídia
impressa brasileira, destacando que em que no seu atual estágio observa-se a predo-
minância de típicas características informativas, o que também se constata cada vez
mais com as mídias de televisão e rádio68.

Ora, a nosso ver, em que pese à concentração dos meios de comunicação tradi-
cionais nas mãos de uma minoria na sociedade brasileira, o atual aspecto da mídia
no país é potencialmente favorável para potencializar e contribuir com a prestação de
uma informação lisa69, com potencial e qualidade para os seus destinatários, podendo
influir positivamente na fomentação do debate democrático que envolve a constante
deliberação sobre a constituição pós-ordenante e o permanente controle sobre o subs-
trato ético-moral sobre os quais se fundam as premissas dos votos dos Ministros no
âmbito da Constituição pré-ordenante.

Outro fator que corrobora para as conclusões no sentido de um diagnóstico


factual positivo sobre o atual contexto da mídia brasileira, relaciona-se a crescente
profissionalização do jornalista no Brasil, de modo que a especialização acadêmica
dos profissionais dos meios de comunicação tem contribuído em muito para o forta-
lecimento do que se chama Diversidade Interna 70 dos veículos de comunicação. Além
do que, as atuações de figuras inovadoras na imprensa comercial como o ombudsman
ou a consolidação do Observatório da Imprensa têm servido como estimulantes

68 Transcreva-se excerto das análises feitas pelo pesquisador que concluem pela existência predominante de
uma mídia informativa: “(...)Todas essas transformações foram realizadas sob a pressão de uma acirrada
competição comercial entre os principais jornais de circulação nacional que engendrou uma nova visão de
negócios na qual a informação e a credibilidade se transformaram, pelo menos teoricamente, nas principais
mercadorias dos jornais, implicando, por sua vez, na valorização do jornalismo informativo em detrimento
do jornalismo opinativo (muito embora este sobreviva entre nós tanto nos jornais, através dos editoriais,
colunas assinadas e artigos, quanto nas revistas de informação semanal.) Essa nova configuração editorial
mais orientada para o jornalismo informativo vem fortalecendo a diversidade interna nos grandes jornais,
o que significa uma maior abertura às perspectivas conflitantes sobre temas e questões em disputa pelos
principais atores políticos e sociais, e uma cobertura editorial mais equilibrada, como mostram diversos
rastreamentos do comportamento da mídia realizados nos últimos anos por grupos acadêmicos (DOXA /
IUPERJ, ECA /USP), críticos da mídia (Observatório da Imprensa) e partidos políticos.” AZEVEDO, Fernando
Antônio. op. cit. p. 40. Algumas dessas impressões, além dos estudos citados, tiramos da própria análise
e experiência diária com os diversos meios de comunicação brasileiros.

69 Embora a recente cobertura do recebimento de Embargos Infringentes pelo Supremo Tribunal Federal na
Ação Penal 470 (o caso do mensalão), julgado em definitivo em 18/09/12, tenham demonstrado trações
de uma mídia ainda excessivamente opinativa e articulada por interesses ideológicos.

70 Compreendida como a diversidade de ideologias e pluralidade de opiniões que marcam um meio de


comunicação. Cf. AZEVEDO, Fernando Antônio. op. cit. pp. 41-42.

312 Thiago Coelho Sacchetto


catalisadores para o constante desenvolvimento e aperfeiçoamento destes veículos
de informação.

Na vertente que reforça a necessidade de profissionalização editorial dos meios


de comunicação, cite-se inclusive a existência do Projeto de Emenda Constitucional
n.º 33/09, aprovado no Senado Federal e atualmente em trâmite na Câmara dos
Deputados71, que exige o diploma de curso superior para o exercício da profissão de
jornalista, seguindo a linha da necessidade de que os profissionais desta área atuem
com responsabilidade social e com o necessário rigor técnico em observância à função
social da profissão.72

Regulamentos normativos que em pouco ou em nada limitem a liberdade de


imprensa, mas que sejam capazes de impor deveres de transparência e responsabi-
lização da mídia podem servir como benéficos instrumentos para o desenvolvimento
da cultura democrática e da maximização do direito a informação verdadeira, embora
imprescindivelmente necessitem para o seu aperfeiçoamento de amplo debate
democrático e de disposições técnicas que não confundam responsabilização com
cerceamento ao direito de expressão.

O debate sobre a melhor forma de densificar o direito à informação e regula-


mentar o dever de publicidade e transparência dos atos estatais, que já contêm traços
normativos na ordem constitucional e infraconstitucional, deve estar aberto para novos
arranjos e discussões, e indubitavelmente deve perpassar pelo tema de responsabili-
zação da mídia para que o simples e puro temor sobre a manipulação da informação

71 Para a consulta do iter legislativo da referida medida, ver informações disponíveis em: http://www.
senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=92006. Acesso em 10/07/18.

72 Sobre a importância da profissionalização do jornalismo em consectário com a função pública da atividade


desempenhada, transcreva-se trecho da Exposição de Motivos da PEC n.º 33/09: “Foi no século passado
que se reconheceu no jornalismo – seja no Brasil, nos Estados Unidos, em países europeus e muitos outros
– um ethos profissional. Em outras palavras, validou-se, socialmente, um modo de ser profissional, que
procura afastar o amadorismo e vincular a atividade ao interesse público e plural, fazendo do jornalista
uma pessoa que dedica sua vida a tal tarefa. Nesse contexto, evoluíram e se consolidaram princípios
teóricos, técnicos, éticos e estéticos profissionais, disseminados por diferentes suportes tecnológicos,
como televisão, rádio, jornal, revista, Internet. E em diferenciadas funções, do pauteiro ao repórter, do
editor ao planejador gráfico, do assessor de imprensa ao fotojornalista. Para isso, exigem-se profissionais
multimídia que se relacionem com outras áreas e com a realidade a partir da especificidade profissional;
que façam coberturas da ciência à economia, da política aos esportes, da cultura à saúde, da educação às
questões agrárias com qualificação ética e estética, incluindo concepção teórica e instrumental técnico a
partir de sua área. Tais tarefas incluem responsabilidade social, escolhas morais profissionais e domínio
da linguagem especializada, da simples notícia à grande reportagem.” Disponível em: http://www.senado.
gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=62024&tp=1. Acesso em 10/07/18.

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 313


não se constitua em entrave supostamente insuperável para a otimização dos referidos
direito e deveres.

Considerações finais
Conforme se pontuou na introdução do presente trabalho, sabe-se que a temática
da exposição irrestrita dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, compreendida
neste estudo como a realização do dever de publicidade e transparência dos atos
estatais é polêmica.

Delimitar com clareza se o direito à informação dos cidadãos, conjugado com o


dever de publicidade e transparência dos atos estatais, se aperfeiçoa com a transmissão
integral e ao vivo (pelas mídias oficiais e/ou comerciais) dos julgamentos realizados
pelo principal tribunal da Republica Federativa do Brasil é tarefa árdua.

A complexidade desta análise, conforme se pontuou outrora, exige em muitos


casos que se perfaça um exame de aspectos empíricos, psicológicos ou sociológicos
que envolvem a relação dos magistrados como seres humanos, e as influências externas
por eles recebidas.

Seria possível medir e graduar as possíveis influências que aspectos externos


efetuam sobre o livre poder de convencimento e autonomia dos magistrados, e com
base no resultado obtido, sopesar os malefícios e benefícios que envolvem a prática
pioneira adotada no Brasil?

Parece-nos claro, em referência ao atual nível de desenvolvimento da ciência,


que não. Não se podem mensurar com precisão matemática os níveis de influências
externas recebidas pelos magistrados, suas relações com a publicização dos julgados
e o enlace que eles possuem com o resultado das decisões prolatadas pelos juízes.

Com base nesta impossibilidade factual para responder a um questionamento,


que ao início do desenvolvimento dos estudos, nos pareceu fundamental, refizemos
a pergunta motivadora das investigações, concentrando o cerne na pesquisa na inda-
gação: deve o Supremo Tribunal Federal, na medida do possível, estar blindado de
possíveis influências externas sobre os seus julgamentos?

O nosso caminho investigativo e nossas percepções pessoais nos levaram


a conclusão de que não. Não se devem afastar as influências externas sobre os
julgamentos que envolvem problemas de direitos fundamentais, conquanto não seja

314 Thiago Coelho Sacchetto


possível se afirmar a priori que influências externas sobre os julgadores, inevitavelmente
redundem em violação ao princípio de livre convencimento dos magistrados.

Com esteio nessas primeiras indagações, pareceu-nos claro que a irrestrita publi-
cização dos julgamentos efetuados pelo Supremo Tribunal Federal, em um Estado que
se considera como Democrático de Direito (Art. 1º CF/88), e que contém expressas
disposições na constituição regulamentando o direito a informação e transparência
dos atos estatais, não poderia ser afastada ao simples argumento de que a irrestrita
publicização dos julgados poderia maximizar o poder de influências externas sobre
a corte.

O que acabamos por concluir, na realidade foi que uma irrestrita publicização
dos julgamentos efetuados pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos como tem
sido realizada (diretamente) pela TV e Rádio Justiça, e (indiretamente) pelas mídias
comerciais, apresenta-se em profícua consonância com as atuais compreensões dos
modelos de democracia participativa, que sugere a necessidade de implementação
de instrumentos de participação democrática, bem como prevê a intensificação de
instrumentos de controle social dos atos estatais.

Nesse sentido, demonstrou-se que a irrestrita publicização dos julgamentos


efetuados pelo STF, de acordo com uma perspectiva hermenêutica que abraça as
ideias fundamentais da sociedade aberta dos intérpretes da constituição contribui de
modo agudo para que se desenvolva uma cultura política, cujos propósitos se dire-
cionem à constante sabatina das premissas (pré) e (pós) ordenantes da Constituição,
eventualmente assumidas pelos Ministros do STF quando da resolução de questões
envolvendo direitos fundamentais.

Nessa toada, apontando de forma sintética para alguns dos principais argumentos
lançados contra a judicial review, conclui-se com esteio na doutrina que a atividade de
interpretação e resolução de problemas jurídicos de direitos fundamentais, operada
pela justiça constitucional, não se confunde com a atividade de definição do conteúdo
destes direitos, mas que, devido a sua natureza argumentativa, permitir que se evidencie
(por meio da máxima publicização) o caráter (político ou principiológico) das soluções
dadas pela corte é salutar para que se critique ou enalteça os seus julgados.

Em relação ao temor de manipulação da informação pela mídia comercial (ou até


estatal), entendemos não ser despropositada a questão, e é exigível que se aborde o
tema com o devido cuidado. Não obstante, cremos que a imposição de deveres sobre

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E MÍDIA 315


o esclarecimento da informação prestada73 podem ser melhores vias para lidar com o
problema do que propriamente limitar o acesso ao direito à informação, que em nossa
perspectiva de Estado Democrático é um mandado de otimização fundamental.

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
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73 No esteio das diretrizes teleológicas consubstanciada nas figuras do ombudsman, dos observatórios de
imprensa, etc.

316 Thiago Coelho Sacchetto


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318 Thiago Coelho Sacchetto

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