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1 Nota prévia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
4 Representações do séc. XX
4.1 O espaço da cidade, o tempo histórico e os acontecimentos políticos . . . . . . . . 14
4.2 A imprensa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
4.2.1 O bodo da Páscoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
4.2.2 O bodo de O Século . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
4.3 Os políticos e o povo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
4.3.1 O discurso da mutilação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
4.3.2 A cadela Ugolina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
4.4 Os cenários de guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
4.5 A religião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
6 Representações do amor
6.1 Lídia: o desapego amoroso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
6.2 Marcenda: a paixão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
6.2.1 A relação sem futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
6.3 Marcenda vs. Lídia: amor vs. amizade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
6.4 O desvanecimento dos jogos amorosos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72
Anexo
1 Intertextualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
2 Saramago, leitor de Camões, Cesário e Pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
O ano da morte de Ricardo Reis
4 Representações
do séc. XX
19
“Estas frontarias são a muralha que oculta a cidade, e o táxi segue ao longo delas, sem pressa, como se
andasse à procura duma brecha, dum postigo, duma porta da traição, a entrada para o labirinto” (p. 19);
“Ricardo Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou ao Camões, era como se esti-
vesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar, a este bronze afidalgado e espada-
chim, espécie de D’ Artagnan premiado com uma coroa de louros por ter subtraído, no último momento,
os diamantes da rainha às maquinações do cardeal” (p. 92).
14
4. Representações do séc. XX
20
Ellen W. Sapega, “O génio de Saramago: Camões, Adamastor e Ricardo Reis”, in Paulo de Medeiros &
José N. Ornelas (eds.), Da possibilidade do impossível: leituras de Saramago. Utrecht: Portuguese Studies
Center, 2007, p. 295.
15
O ano da morte de Ricardo Reis
t A razão da Há duas razões para esse ano. Uma prática e outra útil. A prática é que
escolha do ano estava acima das minhas forças lidar mais de nove meses com o Ricardo
de 1936 para Reis […]. Não aguentaria o Ricardo Reis por dois, três anos; ele dura, no
pano de fundo
do romance: meu livro, uma gestação. Agora, a razão útil. Em 1936 há o início da Guerra
– “1936 era o ovo Civil Espanhola, a ocupação de territórios pela Alemanha nazista, o fim da
da serpente”. guerra da Itália contra a Etiópia e, dentro de casa, a criação das milícias
fascistas, como a Legião Portuguesa. Portanto, 1936 era o ovo da serpente.
Era o que me convinha para dizer uma vez mais a Ricardo Reis: aí está o
mundo do qual você se considera alheio, apenas um espetador, e além de
espetador, sábio21.
21
José Saramago, “1936 era o ovo da serpente”, entrevista a Norma Couri, in Jornal do Brasil, 15 de outubro,
1988, p. 11.
22
Luís Nuno Rodrigues, “‘A gravidade da hora que passa!’: A criação da Legião Portuguesa em 1936”, in
Análise social. Vol. XXX (130), 1995, pp. 93-94. Disponível em <http://analisesocial.ics.ul.pt/documen-
tos/1223379385H0sZQ6bz0Xy83WA7.pdf> (consultado em 7 de fevereiro de 2017).
16
5 Intertextualidade:
Saramago, leitor
de Camões,
Cesário e Pessoa
apontam, por um lado, para a ideia de que, ao contrário do que sucedeu no passado,
não é possível ao presente de enunciação atingir a grandeza no mar.
44
Luís de Camões, Os Lusíadas. Leitura, prefácio e notas de Álvaro da Costa Pimpão. Apresentação de
Aníbal Pinto de Castro. 4.ª ed. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros-Instituto Camões, 2000. To-
das as citações serão feitas a partir desta edição, registando-se o canto e a estrofe no corpo do texto.
37
5. Intertextualidade: Saramago, leitor de Camões, Cesário e Pessoa
1. A aproximação entre Ricardo Reis e o sujeito que em alguns poemas de Cesá- – sujeito que deambula
pela cidade, olhando
rio deambula pela cidade de Lisboa, numa atitude de flâneur que vai permitir olhar e comentando
e comentar a realidade circundante. Tal como Helder Macedo diz da poesia de Cesá- a realidade
rio Verde, também no caso de O ano da morte de Ricardo Reis se pode afirmar que circundante;
se procede a um “Registo anotado de um passeio reflexivo durante o qual o sujeito
procura entender a realidade compósita da qual é, ao mesmo tempo, uma parte e
um observador isolado”47.
47
Idem, p. 55.
39
5. Intertextualidade: Saramago, leitor de Camões, Cesário e Pessoa
os homens que, numa das ruas, descar- os calceteiros que, “De cócoras, em linha”,
regam as sacas de feijão (p. 55) “Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua”
(“Cristalizações”, est. 1)
“O sol branqueado”, que bate “nas te- “E as poças de água, como em chão
lhas molhadas, desce sobre a cidade” [vidrento,
(p. 83)
Refletem a molhada casaria”
(“Cristalizações”, est. 2)
“há uma claridade branca por trás de “Faz frio. Mas, depois duns dias de
Luís de Camões, um nimbo” (p. 42) [aguaceiros,
“Como se esquecera de fechar as por- Vibra uma imensa claridade crua”
tadas da janela, a matinal claridade cin- (“Cristalizações”, est. 1)
zenta enchia-lhe o quarto” (p. 333)
41
O ano da morte de Ricardo Reis
t Carta a Adolfo “pus em Ricardo Reis toda a minha “Este Ricardo Reis não é o poeta, é apenas
Casais Monteiro. disciplina mental vestida da música um hóspede de hotel que, ao sair do quar-
que lhe é própria” (p. 338) to, encontra uma folha de papel com verso
e meio escritos, quem me terá deixado isto
aqui” (p. 65)
“Ricardo Reis sentiu humedecerem-se-lhe
os olhos, ainda há quem diga mal dos mé-
dicos, que por estarem acostumados a ver
doenças e infelicidades levam empederni-
dos os corações, veja-se este que desmente
a asserção, talvez por ser poeta, embora da
espécie cética, como se tem visto” (p. 97)
“este homem não é um destemido experi-
mentador de aventuras” (p. 104)
“Na rua passa uma algazarra de latas, já
deram as onze horas, e é então que Ricardo
Reis se levanta bruscamente, quase violen-
to, Que estou eu para aqui a fazer, toda a
gente a festejar e a divertir-se, em suas ca-
sas, nas ruas, nos bailes, nos teatros e nos
cinemas, nos casinos, nos cabarés” (p. 98)
“o samba terramoto da alma, até Ricardo
Reis, sóbrio homem, muitas vezes sentiu
moverem-se dentro de si os refreados tu-
multos dionisíacos, só por medo do seu
corpo se não lançava no turbilhão” [do car-
naval, no Brasil] […]. Em Lisboa não corre
esses perigos” (p. 215). [Correrá, afinal]
“este também é poeta, não que do título se
gabe, como se pode verificar no registo do
hotel, mas um dia não será como médico
que pensarão nele” (p. 93)
50
In Fernando Pessoa, Obra poética e em prosa. Vol. II. Ed. cit., pp. 336-346.
42
5. Intertextualidade: Saramago, leitor de Camões, Cesário e Pessoa
“Aí por 1912, salvo erro (que nunca “Ricardo Reis foi a Fátima apesar de ser pa-
pode ser grande), veio-me à ideia gão confesso” (p. 487)
escrever uns poemas de índole
Além da menção a poemas de coloração
pagã. Esbocei umas coisas em ver-
pagã, toda a narrativa aparece percorrida
so irregular (não no estilo Álvaro de
por sistemáticas referências aos deuses.
Campos, mas num estilo de meia
irregularidade), e abandonei o caso.
Esboçara-se-me, contudo, numa pe-
numbra mal urdida, um vago retrato
da pessoa que estava a fazer aquilo.
(Tinha nascido, sem que eu soubes-
se, o Ricardo Reis)” (pp. 340-341)
“Arranquei do seu falso paganismo o
Ricardo Reis latente, descobri-lhe o
nome, e ajustei-o a si mesmo, por-
que nessa altura já o via” (p. 341)
“Ricardo Reis nasceu em 1887 (não “quarenta e oito anos, natural do Porto, es-
me lembro do dia e do mês, mas tado civil solteiro, profissão médico, última
tenho-os algures), no Porto, é médi- residência Rio de Janeiro, Brasil” (p. 23)
co e está presentemente no Brasil”
(p. 342)
43
6 Representações
do amor
57
6. Representações do amor
Cabe, entretanto, registar um detalhe interessante: depois de nos dizer que, no t O triângulo
quarto, Ricardo Reis aguarda “inquieto” o momento de novo encontro, o narrador amoroso:
– Lídia – a criada
regista o seguinte: com quem
dorme;
Ricardo Reis levantou-se, foi ao lavatório refrescar a cara, pentear-se, – Marcenda – a
pareceram-lhe hoje mais brancos os cabelos das fontes, deveria usar uma menina de boas
daquelas loções ou tinturas que restituem progressivamente os cabelos à famílias.
cor natural, por exemplo, a Nhympha do Mondego, reputada e sapiente
alquimia que quando chega ao tom da primitiva não insiste mais, ou teima
até atingir o negro-retinto, asa de corvo, se esse era o caso, porém fatiga-o
a simples ideia de ter de vigiar o cabelo todos os dias, a ver se falta muito,
se é tempo de voltar a usar a loção, compor a tinta na bacia, coroai-me de
rosas, podendo ser, e basta. Mudou de calças e casaco, não podia esque-
cer-se de dizer a Lídia que lhos passasse a ferro, e saiu, com a impressão
incómoda, incongruente, de que iria dar essa ordem sem a neutralidade
de tom que uma ordem deve ter quando se dirige de quem naturalmente
manda a quem naturalmente deve obedecer, se obedecer e mandar como
se diz, é natural, ou, para ser ainda mais claro, que Lídia será, agora, essa
que acenderá o ferro, que estenderá as calças sobre a tábua para as vincar,
que introduzirá a mão esquerda na manga do casaco, junto ao ombro, para
com o ferro quente afeiçoar o contorno, arredondá-lo decerto quando o
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