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Índice

1 Nota prévia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

2 As fases de produção literária. Temas e estilo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

3 A dimensão ideológica da obra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

4 Representações do séc. XX
4.1 O espaço da cidade, o tempo histórico e os acontecimentos políticos . . . . . . . . 14
4.2 A imprensa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
4.2.1 O bodo da Páscoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
4.2.2 O bodo de O Século . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
4.3 Os políticos e o povo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
4.3.1 O discurso da mutilação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
4.3.2 A cadela Ugolina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
4.4 Os cenários de guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
4.5 A religião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

5 Intertextualidade: Saramago, leitor de Camões, Cesário


e Pessoa
5.1 Intertextualidade: visão do mundo e memória cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
5.2 Intertextualidade, atitude deambulatória e crítica social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
5.3 O original e o duplo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
5.3.1 A carta sobre a génese dos heterónimos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
5.3.2 A ambiguidade identitária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
5.3.3 A humanização da personagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
5.3.4 Os poemas de Ricardo Reis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

6 Representações do amor
6.1 Lídia: o desapego amoroso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
6.2 Marcenda: a paixão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
6.2.1 A relação sem futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
6.3 Marcenda vs. Lídia: amor vs. amizade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
6.4 O desvanecimento dos jogos amorosos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72

7 O aparecimento de Fernando Pessoa


7.1 Os encontros com Ricardo Reis: funções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
7.2 Fernando Pessoa, os velhos e Ricardo Reis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

Anexo
1 Intertextualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
2 Saramago, leitor de Camões, Cesário e Pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
O ano da morte de Ricardo Reis

4 Representações
do séc. XX

4.1 O espaço da cidade, o tempo histórico


e os acontecimentos políticos
t Lisboa: cidade Todas as personagens e todos os acontecimentos de O ano da morte de
labiríntica
e sombria. Ricardo Reis confluem numa Lisboa-cidade labiríntica19, decadente e “sombria,
recolhida em frontarias e muros” (p. 12), guardada por um Adamastor de dolo-
rosa expressão (e que, pelas hipóteses que o romance levanta, não é de lição
simbólica tão clara quanto o afirma Fernando Pessoa, p. 314), e vigiada por um
t A reapropriação Camões que não sabe, não poderia já sabê-lo, “que dele se servem, à vez ou em
de Camões de
acordo com as confusão, os principais, cardeais incluídos, assim lhes aproveite a conveniência”
conveniências (p. 92); um Camões, continuamos a falar da estátua em sua representação, “de cada
políticas e vez mudado consoante os olhos que o veem, em vida sua braço às armas feito e mente
ideológicas.
às musas dada, agora de espada na bainha, cerrado o livro, os olhos cegos, ambos,
tanto lhos picam os pombos como os olhares indiferentes de quem passa” (p. 248).

Ω Luís de Camões, Praça Luís de Camões, Lisboa.

19
“Estas frontarias são a muralha que oculta a cidade, e o táxi segue ao longo delas, sem pressa, como se
andasse à procura duma brecha, dum postigo, duma porta da traição, a entrada para o labirinto” (p. 19);
“Ricardo Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou ao Camões, era como se esti-
vesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar, a este bronze afidalgado e espada-
chim, espécie de D’ Artagnan premiado com uma coroa de louros por ter subtraído, no último momento,
os diamantes da rainha às maquinações do cardeal” (p. 92).

14
4. Representações do séc. XX

Como escreve Ellen W. Sapega, o monumento da autoria de Víctor Bastos, inau-


gurado em 9 de outubro de 1867, esconde a “memória de um passado nacional
glorioso” que serviu ao Estado Novo “para justificar as plataformas políticas mais
diversas”20. Talvez por isso, no presente de enunciação, de tão usado, ele se tenha
tornado indiferente aos que por ele passam. Mas, porque aos olhos do autor, ou do
seu duplo, o narrador, vale a pena apelar ao não esquecimento de um dos maiores
nomes da literatura portuguesa (e repensar as reapropriações que dele fizeram) todo t Apelo ao não
esquecimento
o romance é percorrido não só por constantes referências à estátua, e/ou ao local em da figura
que se encontra, mas também por inúmeros momentos que, intertextualmente, e de Camões.
cumprindo diversas funções, estabelecem laços com o legado camoniano.
Ainda no que diz respeito aos comentários feitos sobre a estátua do poeta, num
reflexo da impossibilidade de José Saramago se identificar com a realidade ideoló-
gica exposta nas páginas do romance, não nos parece ser aleatório o facto de Camões
ter, não um, mas os dois “olhos cegos”, talvez não de tanto lhos picarem “os pombos”
e “os olhares indiferentes de quem passa” mas porque, simbólica e voluntariamente,
os fechou, lhos fechou o romancista, perante uma realidade que não era digna de ser
contemplada, a portuguesa e, por extensão, a europeia:

t os primórdios da ditadura de Salazar, presidente do Ministério entre 1932 e t Contexto


histórico
1933 e presidente do Conselho de Ministros entre 1933 e 1968, sob a chefia de (de Portugal
António Óscar de Fragoso Carmona, e da Europa).

t a criação da Mocidade Portuguesa, na linha da juventude hitleriana,


t a criação da Legião Portuguesa,
t os comícios contra o comunismo,
t as eleições em Espanha, a vitória da esquerda e o golpe militar que se lhe seguiu,
t o massacre de Badajoz e a guerra civil,
t o fascismo na Itália e a guerra ítalo-etíope,
t o nazismo na Alemanha,

t o terreno propício à deflagração da II Grande


Guerra.

Ω A Mocidade Portuguesa, 1949, Bernard


Hoffman (1913-1979).

20
Ellen W. Sapega, “O génio de Saramago: Camões, Adamastor e Ricardo Reis”, in Paulo de Medeiros &
José N. Ornelas (eds.), Da possibilidade do impossível: leituras de Saramago. Utrecht: Portuguese Studies
Center, 2007, p. 295.

15
O ano da morte de Ricardo Reis

Questionado sobre a escolha do ano de 1936 para pano de fundo do romance,


o autor explica:

t A razão da Há duas razões para esse ano. Uma prática e outra útil. A prática é que
escolha do ano estava acima das minhas forças lidar mais de nove meses com o Ricardo
de 1936 para Reis […]. Não aguentaria o Ricardo Reis por dois, três anos; ele dura, no
pano de fundo
do romance: meu livro, uma gestação. Agora, a razão útil. Em 1936 há o início da Guerra
– “1936 era o ovo Civil Espanhola, a ocupação de territórios pela Alemanha nazista, o fim da
da serpente”. guerra da Itália contra a Etiópia e, dentro de casa, a criação das milícias
fascistas, como a Legião Portuguesa. Portanto, 1936 era o ovo da serpente.
Era o que me convinha para dizer uma vez mais a Ricardo Reis: aí está o
mundo do qual você se considera alheio, apenas um espetador, e além de
espetador, sábio21.

Luís Nuno Rodrigues, em artigo sobre a criação da Legião Portuguesa, sumariza


a conjuntura política mundial nestes termos:

t A conjuntura a) Uma conjuntura europeia marcada pelo sucesso e consolidação das


europeia: experiências alemã e italiana, pela sua política agressiva, pela difusão do
– a política autoritarismo por outros países do continente europeu e, sobretudo, pelo
agressiva;
deflagrar da guerra civil de Espanha, com o reconhecimento, por parte do
– o autoritarismo.
Estado Novo, dos perigos que o triunfo das esquerdas traria para a esta-
bilidade do regime, pretexto para a mobilização dos setores radicais de
t A conjuntura
portuguesa: direita e motivo direto da convocação do comício em que é lançada a ideia
– a luta política; da Legião Portuguesa;
– o fortalecimento b) Uma conjuntura interna marcada ainda pela luta política com os
do poder do dois setores acima referidos: de um lado, a canalização para a Legião Por-
Estado Novo. tuguesa de uma certa pressão de base correspondente aos desejos e aspi-
rações da direita radical, nomeadamente de setores ligados à organização
corporativa, de homens oriundos do nacional-sindicalismo e do grupo de
tenentes envolvidos no 28 de Maio de 1926, organizadores do comício
de 28 de agosto de 1936 e espinha dorsal da futura milícia; de outro lado,
o desenvolvimento do processo de subordinação do exército ao Estado
Novo e a Salazar, que conhece um ponto alto em 1936, com o desenvolvi-
mento de determinadas instituições exteriores às forças armadas que lhe
retiram o monopólio exclusivo do uso da força e da violência, como é o
caso da Mocidade Portuguesa e da Legião Portuguesa22.

A complexidade, ou a labiríntica, opressiva e confusa problemática do tempo


histórico e social da época, parece-nos ser simbolicamente refletida no anúncio do
Freire gravador:

Este anúncio é um labirinto, um novelo, uma teia. A olhar para ele,


deixou Ricardo Reis esfriar-se o café com leite, coalhar-se nas torradas a
manteiga, atenção, estimados clientes, esta casa não tem agências em

21
José Saramago, “1936 era o ovo da serpente”, entrevista a Norma Couri, in Jornal do Brasil, 15 de outubro,
1988, p. 11.
22
Luís Nuno Rodrigues, “‘A gravidade da hora que passa!’: A criação da Legião Portuguesa em 1936”, in
Análise social. Vol. XXX (130), 1995, pp. 93-94. Disponível em <http://analisesocial.ics.ul.pt/documen-
tos/1223379385H0sZQ6bz0Xy83WA7.pdf> (consultado em 7 de fevereiro de 2017).

16
5 Intertextualidade:
Saramago, leitor
de Camões,
Cesário e Pessoa

5.1 Intertextualidade: visão do mundo


e memória cultural
A recuperação do texto épico de Luís de Camões com que se inicia e termina o INTERTEXTUALIDADE
romance reflete a visão do mundo de José Saramago. As frases tLuís de Camões:
– Os Lusíadas
enaltecem
“Aqui o mar acaba e a terra principia” (p. 9) a grandiosidade
de um povo
e e de um país;
– O ano da morte
“Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera” (p. 582) de Ricardo Reis
sublinha a falta
de grandiosidade
(com, pelo meio, a menção a “tanto mar, a terra tão pouca”, p. 86), configurando
do tempo presente.
uma subversão paródica dos três primeiros versos da estrofe 20 do canto III de
Os Lusíadas

“Eis aqui, quási cume da cabeça


De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa”44,

apontam, por um lado, para a ideia de que, ao contrário do que sucedeu no passado,
não é possível ao presente de enunciação atingir a grandeza no mar.

44
Luís de Camões, Os Lusíadas. Leitura, prefácio e notas de Álvaro da Costa Pimpão. Apresentação de
Aníbal Pinto de Castro. 4.ª ed. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros-Instituto Camões, 2000. To-
das as citações serão feitas a partir desta edição, registando-se o canto e a estrofe no corpo do texto.

37
5. Intertextualidade: Saramago, leitor de Camões, Cesário e Pessoa

5.2 Intertextualidade, atitude deambulatória


e crítica social
Mas a relação entre o romance de Saramago e a poesia de Cesário decorre, ainda, t O ano da norte
de uma série de outros aspetos de considerável interesse. Destacamos, em termos de Ricardo Reis
e Cesário Verde:
gerais, três deles.

1. A aproximação entre Ricardo Reis e o sujeito que em alguns poemas de Cesá- – sujeito que deambula
pela cidade, olhando
rio deambula pela cidade de Lisboa, numa atitude de flâneur que vai permitir olhar e comentando
e comentar a realidade circundante. Tal como Helder Macedo diz da poesia de Cesá- a realidade
rio Verde, também no caso de O ano da morte de Ricardo Reis se pode afirmar que circundante;
se procede a um “Registo anotado de um passeio reflexivo durante o qual o sujeito
procura entender a realidade compósita da qual é, ao mesmo tempo, uma parte e
um observador isolado”47.

Ω Rua do Alecrim, 1965, Armando Serôdio, AFCML.

2. O registo semelhante da ambiência observada (a lembrar alguns fragmen- – registo semelhante


tos do Livro do desassossego de Bernardo Soares): a atmosfera que, por vezes, se dos ambientes
observados;
respira em O ano da morte de Ricardo Reis, “composta de mil cheiros intensos,
a couve esmagada e murcha, a excrementos de coelho, a penas de galinha escalda-
das, a sangue, a pele esfolada” (p. 54), traz-nos à memória alguns versos de “Nós” –
“a Febre / E o Cólera também andaram pela cidade” (est. 1) – e de “O sentimento
dum ocidental” / “Noite fechada” – “E eu sonho o Cólera, imagino a Febre” (est. 18),
“Triste cidade” (est. 20). O mesmo efeito e o mesmo tipo de correlação (acrescidos da
debilidade dos caixeiros a lembrar a fragilidade de algumas figuras de Cesário Verde)
são conseguidos quando, sobre os prédios que o heterónimo vê, o narrador escreve:

todos porejando sombra e humidade, libertando nos saguões o cheiro


dos esgotos rachados, com esparsas baforadas de gás, como não have-
riam de ter as faces pálidas os caixeiros que vêm até à porta das lojas, com
as suas batas ou guarda-pós de paninho cinzento, o lápis de tinta entalado
na orelha, o ar enfadado de ser hoje segunda-feira e não ter o domingo
valido a pena (p. 55).

47
Idem, p. 55.

39
5. Intertextualidade: Saramago, leitor de Camões, Cesário e Pessoa

Lembramos alguns exemplos:

José Saramago Cesário Verde

os homens que, numa das ruas, descar- os calceteiros que, “De cócoras, em linha”,
regam as sacas de feijão (p. 55) “Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua”
(“Cristalizações”, est. 1)

“O sol branqueado”, que bate “nas te- “E as poças de água, como em chão
lhas molhadas, desce sobre a cidade” [vidrento,
(p. 83)
Refletem a molhada casaria”
(“Cristalizações”, est. 2)

“Ao meio, a casaria branca assenta


À beira da calçada, que divide
Os escuros pomares de pevide,
Da vinha, numa encosta soalhenta!”
(“Nós”, II, est. 4)

“há uma claridade branca por trás de “Faz frio. Mas, depois duns dias de
Luís de Camões, um nimbo” (p. 42) [aguaceiros,
“Como se esquecera de fechar as por- Vibra uma imensa claridade crua”
tadas da janela, a matinal claridade cin- (“Cristalizações”, est. 1)
zenta enchia-lhe o quarto” (p. 333)

Na medida em que nos poemas de Cesário, como no romance de Saramago, t Deambulação


e crítica social.
a atitude deambulatória permite extrapolar para regulações positivas da simpatia
das instâncias narrativas em relação aos mais fracos e desfavorecidos, cremos ser
possível delinear mais uma semelhança entre ambos: nenhum parece contentar-se
com “o espetáculo do mundo” (sábios, pois, na linha de subversão que propusemos
para a epígrafe com que abrimos este trabalho). José Saramago, ou o narrador por
ele (e, por extensão, Cesário Verde), de acordo com a nossa sugestão inicial, empe-
nha-se (agindo), na e pela escrita, na denúncia da sombria realidade percorrida.
A título meramente ilustrativo, lembramos, de Cesário, as estrofes 1 e 13 de
“O sentimento dum ocidental” (“Avé-Marias”) e de “Cristalizações”, respetivamente:

Nas nossas ruas, ao anoitecer,


Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!


Que vida tão custosa! Que diabo!
E os cavadores pousam as enxadas,
E cospem nas calosas mãos gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo.

41
O ano da morte de Ricardo Reis

5.3 O original e o duplo


5.3.1 A carta sobre a génese dos heterónimos
Algumas das afinidades, mas também das diferenças (muitas vezes inscritas na
t Ricardo Reis – própria semelhança), entre o Ricardo Reis original (heterónimo de Fernando Pes-
Fernando Pessoa soa) e o Ricardo Reis duplo (personagem do romance de José Saramago), e que, sem
vs. Saramago. pretensão de fazermos um levantamento exaustivo, registamos no quadro abaixo,
tornam-se de imediato muito claras se nos lembrarmos do que ficou escrito num
dos mais importantes documentos para o conhecimento da heteronímia e da sua
génese: a carta, endereçada a Adolfo Casais Monteiro, de 13 de janeiro de 193550.
Carta sobre a génese dos heterónimos O ano da morte de Ricardo Reis

t Carta a Adolfo “pus em Ricardo Reis toda a minha “Este Ricardo Reis não é o poeta, é apenas
Casais Monteiro. disciplina mental vestida da música um hóspede de hotel que, ao sair do quar-
que lhe é própria” (p. 338) to, encontra uma folha de papel com verso
e meio escritos, quem me terá deixado isto
aqui” (p. 65)
“Ricardo Reis sentiu humedecerem-se-lhe
os olhos, ainda há quem diga mal dos mé-
dicos, que por estarem acostumados a ver
doenças e infelicidades levam empederni-
dos os corações, veja-se este que desmente
a asserção, talvez por ser poeta, embora da
espécie cética, como se tem visto” (p. 97)
“este homem não é um destemido experi-
mentador de aventuras” (p. 104)
“Na rua passa uma algazarra de latas, já
deram as onze horas, e é então que Ricardo
Reis se levanta bruscamente, quase violen-
to, Que estou eu para aqui a fazer, toda a
gente a festejar e a divertir-se, em suas ca-
sas, nas ruas, nos bailes, nos teatros e nos
cinemas, nos casinos, nos cabarés” (p. 98)
“o samba terramoto da alma, até Ricardo
Reis, sóbrio homem, muitas vezes sentiu
moverem-se dentro de si os refreados tu-
multos dionisíacos, só por medo do seu
corpo se não lançava no turbilhão” [do car-
naval, no Brasil] […]. Em Lisboa não corre
esses perigos” (p. 215). [Correrá, afinal]
“este também é poeta, não que do título se
gabe, como se pode verificar no registo do
hotel, mas um dia não será como médico
que pensarão nele” (p. 93)

50
In Fernando Pessoa, Obra poética e em prosa. Vol. II. Ed. cit., pp. 336-346.

42
5. Intertextualidade: Saramago, leitor de Camões, Cesário e Pessoa

Carta sobre a génese dos heterónimos O ano da morte de Ricardo Reis

“Ora, Ricardo Reis é um espetador do es-


petáculo do mundo, sábio se isso for sabe-
doria, alheio e indiferente por educação e
atitude, mas trémulo porque uma simples
nuvem passou” (p. 119). [A muitas coisas
não ficará alheio ou indiferente]
“este poeta já lhe sobejam musas inspira-
doras, este homem não busca noiva, se re-
gressou a Portugal não foi com essa ideia,
sem falar na diferença das idades, grande
neste caso” (p. 140). [E, no entanto, en-
volver-se-á com Lídia e com Marcenda, a
quem pedirá em casamento, p. 407]
“é poeta” (p. 412)
Alusões a ou citações de várias odes de Ri-
cardo Reis.
“Ricardo Reis […] verifica que nada ambi-
ciona, que é contentamento bastante olhar
o rio e os barcos que há nele…” (p. 449)
“Não há resposta para o tempo, estamos
nele e assistimos, nada mais” (p. 450)

“Aí por 1912, salvo erro (que nunca “Ricardo Reis foi a Fátima apesar de ser pa-
pode ser grande), veio-me à ideia gão confesso” (p. 487)
escrever uns poemas de índole
Além da menção a poemas de coloração
pagã. Esbocei umas coisas em ver-
pagã, toda a narrativa aparece percorrida
so irregular (não no estilo Álvaro de
por sistemáticas referências aos deuses.
Campos, mas num estilo de meia
irregularidade), e abandonei o caso.
Esboçara-se-me, contudo, numa pe-
numbra mal urdida, um vago retrato
da pessoa que estava a fazer aquilo.
(Tinha nascido, sem que eu soubes-
se, o Ricardo Reis)” (pp. 340-341)
“Arranquei do seu falso paganismo o
Ricardo Reis latente, descobri-lhe o
nome, e ajustei-o a si mesmo, por-
que nessa altura já o via” (p. 341)

“Ricardo Reis nasceu em 1887 (não “quarenta e oito anos, natural do Porto, es-
me lembro do dia e do mês, mas tado civil solteiro, profissão médico, última
tenho-os algures), no Porto, é médi- residência Rio de Janeiro, Brasil” (p. 23)
co e está presentemente no Brasil”
(p. 342)

43
6 Representações
do amor

6.1 Lídia: o desapego amoroso


Vejamos, agora, uma segunda linha de análise que, como acima escrevemos,
também é de fundamental importância para a verificação das diferenças, no âmago
da semelhança, entre a criatura de Pessoa e a de José Saramago: a forma como se
concretiza a temática do amor.
Homem de ressentimento e de cálculo (epicurista triste, como o designa o irmão,
Frederico Reis), que se escuda na antevisão da inevitabilidade da morte para asse-
gurar a vivência moderada dos prazeres da vida, entre os quais o amor, o Ricardo
Reis de Pessoa apenas se permite imaginar o que poderia ser a sua tradução em gozo
efetivo, físico, se preferirmos, como facilmente verificamos a partir da citação de um
dos seus mais conhecidos poemas:

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.


Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida


Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.


Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,


Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

57
6. Representações do amor

6.2 Marcenda: a paixão


Propositadamente usamos a palavra paixão, por julgarmos ser a que melhor cor- t O corrupio
responde à intensidade com que o heterónimo se lança neste corrupio de emoções de emoções.

em que até os beijos são diversos dos trocados com Lídia.


Por isso se regista o “arrepio” que sente, “por fora e por dentro da pele” (p. 31),
quando pela primeira vez vê esta rapariga, “de uns vinte anos, se os tem, magra”
(p. 30), na sala de jantar do Hotel Bragança (mais tarde lembrará o “alvoroço ado-
lescente com que a olhara pela primeira vez”, insinuando, no entanto, que talvez o
tivessem movido “simpatia e compaixão por aquela pungente enfermidade, a mão-
zinha caída, o rosto pálido e triste”, p. 240); por isso, ainda, se anotam os porme-
nores resultantes da observação da jovem que, afinal, “tem mais que os vinte anos
que antes parecera” (p. 32) (na p. 174 saberemos que tem “vinte e três anos”), sem
que isso dilua a impressão de se tratar de uma adolescente, de “pescoço alto e frágil,
o queixo fino, toda a linha instável do corpo, insegura, inacabada” (p. 32).
Despertado o interesse, o fascínio, em outro dia Ricardo Reis descerá mais cedo
do quarto “para ver a rapariga” (p. 69); atrever-se-á a pedir informações a Salvador
(p. 71); esperará, “inquieto”, para descer para o jantar (p. 136); e deslocar-se-á ao
Teatro D. Maria, onde se fará encontrado (p. 147). Aqui, e ao contrário do que faz no
início do segundo ato de Tá mar, em que se volta para trás para lhe sorrir (p. 148),
Marcenda, durante o terceiro ato, em subtil atitude de sedução,

nunca olhou para trás, mas modificara levemente a posição do corpo,


oferecendo um pouco mais o rosto, quase nada, e afastava de vez em
quando os cabelos do lado esquerdo com a mão direita, muito devagar,
como se o fizesse com intenção, que quer esta rapariga, quem é, que nem
o que parece ser é sempre o mesmo (p. 149).

Cabe, entretanto, registar um detalhe interessante: depois de nos dizer que, no t O triângulo
quarto, Ricardo Reis aguarda “inquieto” o momento de novo encontro, o narrador amoroso:
– Lídia – a criada
regista o seguinte: com quem
dorme;
Ricardo Reis levantou-se, foi ao lavatório refrescar a cara, pentear-se, – Marcenda – a
pareceram-lhe hoje mais brancos os cabelos das fontes, deveria usar uma menina de boas
daquelas loções ou tinturas que restituem progressivamente os cabelos à famílias.
cor natural, por exemplo, a Nhympha do Mondego, reputada e sapiente
alquimia que quando chega ao tom da primitiva não insiste mais, ou teima
até atingir o negro-retinto, asa de corvo, se esse era o caso, porém fatiga-o
a simples ideia de ter de vigiar o cabelo todos os dias, a ver se falta muito,
se é tempo de voltar a usar a loção, compor a tinta na bacia, coroai-me de
rosas, podendo ser, e basta. Mudou de calças e casaco, não podia esque-
cer-se de dizer a Lídia que lhos passasse a ferro, e saiu, com a impressão
incómoda, incongruente, de que iria dar essa ordem sem a neutralidade
de tom que uma ordem deve ter quando se dirige de quem naturalmente
manda a quem naturalmente deve obedecer, se obedecer e mandar como
se diz, é natural, ou, para ser ainda mais claro, que Lídia será, agora, essa
que acenderá o ferro, que estenderá as calças sobre a tábua para as vincar,
que introduzirá a mão esquerda na manga do casaco, junto ao ombro, para
com o ferro quente afeiçoar o contorno, arredondá-lo decerto quando o

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