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Pedro Vidal Matos

Advogado Estagiário

DEONTOLOGIA E AUTO-REGULAÇÃO
PROFISSIONAL NA ADVOCACIA
— Setembro de 2004 —

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO 3

I – A PROFISSÃO DE ADVOGADO E A DEONTOLOGIA 4

II – O ESTADO E A REGULAÇÃO ECONÓMICA. A AUTO-REGULAÇÃO 6

III – AS ORDENS PROFISSIONAIS E A ORDEM DOS ADVOGADOS EM 8

ESPECIAL

IV – VANTAGENS E INCONVENIENTES DO SISTEMA VIGENTE 11

V – SISTEMAS ALTERNATIVOS 13

CONCLUSÃO 16

BIBLIOGRAFIA 17

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INTRODUÇÃO

O trabalho que nos propomos realizar consiste numa pequena reflexão sobre a relevância da
Deontologia no exercício da Advocacia e sobretudo sobre a forma como o respeito pelos seus
ditames tenta ser garantido pelo Estado, através da regulação da actividade. Atentaremos
especificamente na situação nacional e na auto-regulação feita através das ordens profissionais.

Apesar da não pretensão de completude do trabalho, não nos coibiremos de ensaiar um balanço
dos aspectos positivos e negativos do sistema adoptado no nosso país bem como um conjecturar
de possíveis soluções para diminuir os últimos mantendo os primeiros.

Uma advertência. Procuraram-se evitar, tanto quanto possível, as enumerações e exemplificações


exaustivas, num esforço de simplificação destinado a não tornar a leitura monótona e previsível e
a permitir, ao mesmo tempo, maximizar a assumida dimensão reduzida do trabalho.

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I – A PROFISSÃO DE ADVOGADO E A DEONTOLOGIA

Uma imagem por muitos tida do advogado é a de alguém que luta a todo o custo por fazer
triunfar as pretensões do seu cliente, tentando o mais possível iludir e escapar à mão pesada da
justiça e/ou levando a cabo os seus melhores esforços para responsabilizar a contraparte.

O exercício da profissão de advogado seria assim um obstáculo à realização da Justiça, visto


regra geral como censurável e apenas tolerado na medida em que a existência de profissional tão
sem escrúpulos pudesse remotamente vir a mostrar-se como conveniente, encontrando-se alguém
na desconfortável posição de necessitar de tais serviços.

Quem partilha da concepção acima exposta, ainda que de forma mais moderada, não compreende
que, para além dos interesses privados, o advogado serve o interesse público pois participa,
desempenhando uma função essencial, na realização da Justiça.

No moderno Estado de Direito, a função jurisdicional surge como complemento indispensável da


função legislativa não sendo o resultado de um dado processo inteiramente estranho ao interesse
público na medida em que o que está invariavelmente em jogo é a aplicação da lei.

Ao advogado, profissional do direito, cabe um inigualável papel de intermediário entre os


cidadãos e a função jurisdicional do Estado, evitando e dirimindo conflitos extrajudicialmente
ou, não sendo possíveis tais soluções, representando o seu patrocinado em Juízo, garantindo a
qualidade científica e técnica dessa representação e, ao mesmo tempo, desempenhando essas
funções com consciência ética, integridade e probidade. A melhor forma de garantir o acerto e a
justiça de uma sentença, simultaneamente síntese e culminar de qualquer processo, é
previamente dotar o juiz de duas teses opostas defendidas por pessoas igualmente conhecedoras
e competentes. A imparcialidade do juiz só floresce à base da unilateralidade das partes.

Assim se percebe o papel fundamental do advogado. Compreendendo a profissão nesta


perspectiva, compreendemos aquele que é ainda, apesar da mutação decorrente do exercício
daquela em sociedades cada vez maiores, um dos traços marcantes da advocacia: a
independência e liberdade com que o advogado pauta a sua actuação.

O exercício da advocacia de forma livre e independente protege e desenvolve virtudes como a


coragem, a agilidade e o zelo e bem assim a mentalidade crítica e combativa e a indispensável

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confiança na relação com o cliente, sendo a mesma considerada, ao menos nas democracias
ocidentais, como a que, jurídica e sociologicamente, se afigura mais apta ao serviço do interesse
público.

A advocacia livre envolve contudo um perigo: a liberdade significa também um regime de


concorrência que corre o risco de se transformar em exasperada luta pela sobrevivência, ditando
condutas que acabarão por pôr em risco os fundamentos do estatuto de independência e a longo
prazo a existência da própria actividade. Por isso a liberdade profissional não se pode exercer
sem regras. Servir a Comunidade, servindo a Justiça é, antes de ser um dever jurídico para cada
advogado, um dever ético pois é esse serviço que justifica e legitima a sua existência. O conjunto
de regras ético-jurídicas pelos quais o advogado deve pautar o seu comportamento constitui a
Deontologia profissional.

A deontologia profissional define-se então como sendo o conjunto de regras éticas que
disciplinam a conduta dos profissionais. Estas normas podem na verdade existir apenas como
simples normas de conduta. O seu cumprimento dependerá exclusivamente da integridade dos
profissionais ou da sua vontade em prestigiarem a sua profissão. A ética profissional formar-se-á
espontaneamente dentro do próprio grupo sociológico como resposta às necessidades de controlo
da qualidade do serviço prestado e de prevenção da concorrência desleal.

Não raras vezes porém, esta forma de auto-regulação voluntária, não é suficiente. Ou porque a
classe profissional não se mostra capaz de se regular convenientemente ou porque a actividade
profissional é especialmente relevante por se revestir de grande interesse público, torna-se
desejável que essa regulação seja feita graças à intervenção do Estado enquanto comunidade
social e política.

A regulação estatal pode contudo tomar várias formas a que correspondem vários graus de
intervenção, sendo que a intensidade da regulação estatal se apresenta, via de regra, como
inversamente proporcional à autonomia concedida aos profissionais para regularem a sua
actividade.

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II – O ESTADO E A REGULAÇÃO ECONÓMICA. A AUTO-REGULAÇÃO

A regulação estatal da economia consiste, em sentido amplo, na imposição de regras pelos


poderes públicos com a finalidade específica de influenciar o comportamento dos agentes
económicos no sector privado. Uma das possíveis razões avançadas para a regulação estatal é a
de limitar o poder de mercado e aumentar a eficiência ou evitar a duplicação de infra-estruturas
em caso de monopólio natural. Uma outra razão é a situação que nos propusemos tratar: a
protecção dos cidadãos assegurando um nível de qualidade do serviço prestado adequado bem
como o respeito por normas de natureza deontológica.

Relativamente às medidas de regulação propriamente ditas, elas separar-se-ão em duas categorias


básicas, em função dos seus objectivos concretos e imediatos: um primeiro conjunto de medidas,
tradicionalmente designadas por de polícia económica, compreende aquelas que visam restringir
a liberdade de iniciativa económica, em qualquer uma das suas componentes – acesso,
organização ou exercício da actividade económica (são tipicamente medidas de carácter
preventivo e repressivo que se traduzem em deveres para os seus destinatários); um segundo
conjunto compreende medidas que contêm indicações, incentivos, apoios ou auxílios aos agentes
económicos (advindo delas ónus ou faculdades para os seus destinatários).

O conceito de auto-regulação na sua definição mais elementar é a regulação levada a cabo pelos
próprios interessados podendo a mesma ser privada (se as suas instâncias forem estabelecidas
por auto-vinculação dos regulados, de forma voluntária, na base do direito privado e da liberdade
negocial) ou pública (se as instâncias de auto-regulação forem impostas ou reconhecidas
oficialmente pelo Estado e dotadas de poderes de normação e de disciplina obrigatória idênticos
aos deste). Relativamente ao nosso trabalho, a forma de auto-regulação que mais nos interessará
analisar será a pública pois é essa a realidade nacional no que à advocacia diz respeito.

A auto-regulação pública supõe sempre uma certa medida de regulação estatal (ao menos a
necessária para organizar ou reconhecer oficialmente a organização profissional, para estabelecer
as suas atribuições e definir a sua competência). Assim ela é protagonizada por organismos
profissionais ou de representação profissional dotados de estatuto jurídico-público. É o que se
passa com a Ordem dos Advogados.

Paralelamente, a auto-regulação pública apresenta-se como sendo, de entre as várias formas que
a regulação pública pode tomar, aquela em que a dimensão regulatória estatal é mais reduzida. O

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Estado descarrega nos interessados as tarefas de regulação municiando contudo o organismo
regulatório com os necessários recursos jurídicos (meios de autoridade e sancionatórios). O
sistema funciona porque, e na medida em que, a entidade a quem cabe regular a actividade tem
como seu interesse fundamental a persecução do mesmo objectivo de interesse público visado
pelo Estado. Esta fundamental coincidência, no caso de uma associação profissional, entre a
defesa dos interesses colectivos privativos da profissão e os interesses reguladores do Estado é
provavelmente o que mais impressiona quando falamos de auto-regulação pública.

É portanto logicamente necessário que a profissão esteja interessada na regulação o que não
obsta a que, ainda que essa coincidência seja ab initio assumida, essa tensão contraditória básica
marque indelevelmente a vida da entidade regulatória.

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III – AS ORDENS PROFISSIONAIS E A ORDEM DOS ADVOGADOS EM ESPECIAL

Um exemplo clássico de auto-regulação pública é nos dado pelas Ordens Profissionais. Tratam-
se de associações públicas formadas pelos membros de determinada profissão considerada como
de interesse público com o fim de, por ampla devolução de poderes do Estado, regular e
disciplinar o exercício da respectiva actividade profissional. Fazem assim parte da administração
autónoma. Prosseguem os interesses públicos próprios das pessoas que os constituem, definindo
com independência a orientação das suas actividades e estando apenas sujeitas, segundo o artigo
199.º, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, à tutela do Governo, mero poder de
fiscalização e controle que não permite a este último dirigir ou orientar aquelas.

Para que possam cabalmente cumprir os seus desígnios, gozam as ordens profissionais do
privilégio da unicidade (só podendo existir uma associação pública por cada fim de interesse
público), do benefício da inscrição obrigatória e de poderem impor a quotização dos seus
membros, controlam o acesso à profissão do ponto de vista legal e deontológico e exercem sobre
os seus membros o poder disciplinar.

No entanto existe uma outra face decorrente do estatuto de associação pública. A obrigatoriedade
de colaboração com o Estado, o respeito pelos princípios gerais do Direito Administrativo e a
sujeição ao controle do Provedor de Justiça serão disso apenas alguns exemplos.

Relativamente às funções concretas das ordens, elas repartem-se por quatro áreas de acção bem
distintas: têm uma inegável dimensão de representantes e defensores da profissão; prestam
variados serviços de apoio aos seus membros; cumprem incumbências administrativas
relacionadas com a actividade; finalmente, função mais relacionada com o nosso trabalho,
regulam e disciplinam a profissão.

A função de regulação e disciplina da profissão desdobra-se na regulação do acesso e na


regulação do exercício da mesma. Quanto à regulação do acesso ela implica uma análise da
competência e capacidade do candidato ao exercício da actividade em questão. No que diz
respeito à regulação do exercício propriamente dito, o que está em causa no fundo é o
cumprimento das normas de conduta profissional e da Deontologia que, quando inobservadas
poderão dar azo ao exercício do poder disciplinar pela ordem profissional em causa.

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No que diz respeito ao Direito e concretamente à Advocacia, foi a crescente complexidade do
mundo jurídico que simultaneamente ditou a valorização da profissão e a necessidade de
regulação estatal.

A forma escolhida pelos Estados para regularem o exercício da Advocacia não foi contudo
universal, tendo surgido múltiplos modelos diferentes podendo estes ser basicamente
reconduzidos a três formas fundamentais. A colegial é a predominante na Europa ocidental e
vigente em Portugal. Os advogados organizam-se em organismos de inscrição obrigatória,
exercendo a profissão com independência e autonomia face ao Estado, pertencendo àqueles
organismos o poder de disciplinar a actividade. A forma de organização livre caracteriza-se pela
liberdade de inscrição nas associações profissionais, cabendo aos juízes o exercício do poder
disciplinar. É a forma de organização adoptada nos Estados Unidos da América mas também em
países europeus como a Suíça, a Finlândia ou a Noruega. A terceira forma fundamental é a
organização estatal. Os advogados dependem do Governo como funcionários públicos. Era a
forma de organização utilizada na União Soviética e podemos hoje ainda encontrá-la em países
como a China.

Em Portugal, a Ordem dos Advogados foi criada pelo Decreto n.º 11715, de 12 de Junho de
1926, respondendo aliás a uma pretensão então já há muito reiterada pela classe. Após ter sido
integrada no Estatuto Judiciário e ter permanecido dependente, em certos casos do Ministério
Público, a Ordem viria a sofrer profundas transformações na sequência da revolução de 25 de
Abril de 1974 e da Constituição de 1976. Elaborou-se um Estatuto – Decreto-Lei n.º 84/84, de 13
de Março – que garantiu a autonomia do organismo face ao poder político, alargaram-se os
direitos dos advogados e aprofundou-se a democratização da profissão.

Apesar de terem surgido como parte integrante da organização corporativa do Estado Novo, os
organismos de auto-regulação profissional então criados que ainda hoje subsistem são
actualmente, no plano teórico e não só, muito diferentes.

Sendo a administração autónoma uma forma de administração pública exterior ao Estado,


chegamos à conclusão que o corporativismo não foi, no seu âmago, uma forma de administração
autónoma, antes uma perversão da administração autónoma em administração indirecta do
Estado. O lema do fascismo italiano – «tudo no Estado, nada fora do Estado» – ilustra da melhor
forma o que se pretende demonstrar. Mesmo as figuras hoje existentes e que são oriundas do

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período corporativista sofreram, após o 25 de Abril de 1974, profundas transformações que as
tornaram em genuínas estruturas de auto-regulação profissional.

O Estado moderno, na prossecução dos seus múltiplos fins, reserva para si próprio uma espécie
de poder organizativo da sua estrutura e simultaneamente um poder organizatório de
conformação da sociedade. Isso prende-se com a necessidade de deixar ao Estado a capacidade e
margem necessárias para decidir e definir quais os melhores meios para adequadamente
prosseguir os fins de interesse público.

Ao criar a Ordem dos Advogados (ou para este efeito qualquer outra ordem profissional), o
Estado escolhe descarregar a tarefa pública num sujeito diferente dele próprio, numa associação
profissional. Esta escolha implica assumir e aceitar que a prossecução dos interesses dos sócios
funcionará como um motor de realização da tarefa pública.

O Estado, sem abrir mão da tutela de determinados interesses que considera públicos, deixa de
ter de se ocupar com a criação e manutenção de órgãos a eles dedicados dentro da sua máquina
administrativa para, em vez disso, instituir um sujeito de direito que autonomamente os prossiga.

Tendo considerado que o exercício da advocacia desempenha um papel fundamental na


administração da Justiça mas tendo igualmente em mente que esse exercício feito de forma
privada garante como que um momento equilibrador na afirmação pública desta, o Estado
confiou a uma associação profissional a tarefa de articular os interesses desses particulares com o
interesse público, regulando a actividade somente até ao ponto mínimo de intervenção estatal.

O que justifica a instituição da Ordem é assim a tutela da dignidade e qualidade da função de


advogado como instrumental relativamente à realização da Justiça. É nesta perspectiva que a
Ordem protege e cultiva os valores deontológicos. Assim sendo, chegamos à conclusão que o
conceito que sustenta a auto-regulação só pode ser o de uma deontologia ao serviço da
sociedade.

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IV – VANTAGENS E INCONVENIENTES DO SISTEMA VIGENTE

A vantagem mais imediata da devolução de poderes que a auto-regulação implica é, pelo menos
do ponto de vista do Estado, o descongestionamento das suas estruturas básicas e os ganhos de
eficiência na gestão que a isso estão associados. Mas este não é o único ponto onde a auto-
regulação se mostra vantajosa, quer em comparação com a regulação estatal quer em
comparação com a ausência de regulação.

Relativamente à ausência de regulação, a auto-regulação apresenta todas as vantagens já


afloradas como justificativas da existência de regulação. Importará então analisar quais as
vantagens do sistema auto-regulatório em comparação com a regulação estatal directa ou
indirecta.

Um ponto essencial a salientar é o facto de que, frequentemente, o auto-policiamento de um


grupo é menos oneroso e mais eficaz do que a regulação estatal. Menos oneroso porque os
profissionais assumem, se não totalmente, grande parte dos custos e mais eficaz pois existirá
uma maior propensão para o cumprimento de regras ditadas por uma organização de iguais do
que por imposição estatal em que a própria legitimidade democrática, apesar de inquestionável,
será certamente menor.

O facto de serem os próprios profissionais a regular a sua actividade garante igualmente, pelo
menos em princípio, uma maior flexibilidade e agilidade na resolução de problemas que afectem
a classe. A proximidade e dedicação são assim outras das vantagens.

Do ponto de vista estatal acresce ainda o facto de, com a auto-regulação, a classe se encontrar em
certa medida responsabilizada, pondo-se o Estado a salvo de grande parte das críticas e ataques
que sofreria certamente por parte daquela, caso desempenhasse um papel mais activo na
regulação do sector.

Quanto aos regulados, a auto-regulação apresenta-se igualmente vantajosa na medida em que


lhes permite escapar de uma regulação mais intensa por parte do Estado, salvaguardando a
liberdade e autonomia económico-profissional.

A auto-regulação permite assim superar dois obstáculos tradicionais da regulação estadual: as


dificuldades de reacção e implementação das práticas reguladoras e o problema da legitimação

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das medidas impostas em nome dos interesses gerais da sociedade. Quanto ao primeiro, a auto-
regulação possibilita a reunião na mesma entidade de reguladores e regulados, quanto ao
segundo ela endogeniza os motivos da regulação, apresentados em benefício da própria
profissão. É a ideia de que a má conduta de um profissional fere o prestígio de toda a classe e
que portanto deverá ser objecto de interesse e repressão por parte desta.

Contudo, a auto-regulação tem também os seus inconvenientes. Ela trás consigo a proliferação
de centros de decisão autónomos, de patrimónios separados, que escapam em grande medida ao
controlo global do Estado. Mais do que isso, corre-se o risco de desviar a função regulatória em
proveito próprio dos regulados. A transformação das ordens profissionais em instrumentos de
lobbying dos profissionais não é algo de que não se tenha já tido exemplo. Noutro plano, corre-se
o risco de não se utilizar tão frequentemente quanto desejável o poder disciplinar, visto que os
fiscalizadores são também os fiscalizados. Todos estes riscos são potenciados pela
democraticidade, mais directa no seio das ordens do que numa regulação através do Estado.

Para além das desvantagens acima referidas outras surgem que colocam problemas de
constitucionalidade. Não se duvida da prevalência do interesse público como justificação de
medidas restritivas da liberdade individual, contudo, quando, como acontece com a Ordem dos
Advogados, a regulação estatal é acompanhada de inscrição coactiva e poderes de regulação e
disciplina sobre os associados, as associações profissionais podem contender com outros direitos
fundamentais além da liberdade de associação.

As funções de defesa e representação da classe profissional que as ordens profissionais


assumem, podem facilmente descambar na instituição material de um sindicato público e por
essa via porem em causa a liberdade sindical constitucionalmente garantida, sobretudo na sua
vertente negativa ao inviabilizarem o exercício da profissão por parte de alguém que não deseje
pertencer a nenhuma espécie de organização do género.

Como último ponto não podemos deixar de notar a existência de restrições ao acesso à profissão
como aquelas expressas no artigo 156º do Estatuto da Ordem relativas à idoneidade moral que
introduzem no sistema uma indesejável subjectividade que dificilmente poderá ser vista como
constitucional.

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V – SISTEMAS ALTERNATIVOS

A verdade é que a Ordem dos Advogados não tem conseguido lidar de uma forma capaz com as
mudanças que a profissão tem sofrido nos últimos anos. Cada vez mais os advogados exercem a
sua profissão integrados em sociedades cada vez maiores, facto que faz diminuir fortemente
aquele que definimos como um dos traços essenciais do exercício desta profissão: a
independência. Paralelamente, o protótipo do advogado também mudou. O acesso à profissão
generalizou-se o que fez aumentar a concorrência e diminuir o nível económico médio dos
profissionais. Para além destas questões, e independentemente delas, como pano de fundo, a
integração europeia aprofunda-se colocando novas questões e desafios à classe.

A reorganização em empresas dificilmente será evitável, sendo mesmo duvidoso que tal seja, por
princípio, indesejável. O mesmo se diga relativamente à concorrência. O que é por outro lado
também imperioso que se diga é que a realidade destes dois factores conjugados exige da Ordem
uma vigilância muito mais atenta às violações deontológicas.

O cenário agrava-se quando se assiste a uma proliferação de Cursos de licenciatura em Direito,


alguns dos quais fornecendo formação de qualidade duvidosa. Se aqueles primeiros pontos são
realidades com as quais a Ordem tem de saber conviver, esta última realidade deverá merecer da
mesma uma profunda oposição pois ele faz perigar algo que até à pouco tempo não se discutia
sequer: a competência técnico-científica dos advogados portugueses.

O que é facto é que, apesar dos esforços, o prestígio da profissão perde-se diariamente e as
normas deontológicas passaram de descritivas a decorativas. A Ordem não está a demonstrar
capacidade para regular cabalmente a actividade. Importará então ponderar sistemas alternativos
que se possam demonstrar como mais hábeis no serviço do interesse público.

Não pensamos que o sistema de funcionalismo público dos advogados seja defensável nem
adaptável à realidade nacional. Com este sistema perder-se-iam características indispensáveis
para o correcto exercício da profissão para além de que a sua implementação constituiria um
salto sobremaneira grande para poder facilmente ser dado sem implicações sócio-profissionais
profundas.

Situado no outro extremo do espectro organizacional está o sistema anglo-saxónico. Este sistema
caracteriza-se pela ampla liberdade dada aos profissionais, sendo as funções de regulação

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delegadas a organizações profissionais privadas ou cometidas a organismos reguladores públicos
de composição mista entre profissionais eleitos pelos seus pares e membros do poder político.

A adaptação deste sistema à realidade nacional parecer-nos-á menos complexa que a do sistema
anteriormente descrito. Resolveria mesmo alguns dos dilemas constitucionais que o sistema
actual acarreta. Contudo, a sua capacidade para solucionar os restantes será no mínimo duvidosa.
De facto, o que pensamos ser necessário é um acréscimo da regulamentação e não um
movimento no sentido contrário. Colocar esperanças no mercado significaria esperar que a mão
invisível funcionasse, correndo o risco de, no entretanto, serem seriamente lesados os interesses
dos cidadãos.

Parece então não haver solução à vista, ou pelo menos outra que não a de depositar todas as
expectativas no sistema de regulação actual. Tal será a posição apenas de quem não conceba uma
regulação do exercício da profissão de advogado feita fora do âmbito da auto-regulação. De
facto, pensamos que um sistema mais adequado poderá passar por uma intervenção mais activa
do Estado, via administração indirecta. Quebrando-se aquele paradigma, estariam criadas as
condições para implementar um sistema de raiz capaz de lidar com os problemas com que a
profissão se debate.

Se se retirasse o monopólio de acesso à profissão à Ordem e se criasse um instituto público para


o efeito que se limitasse a aferir do cumprimento pelos candidatos de requisitos objectivos
mínimos (quaisquer que eles fossem), estaria eliminado um dos maiores problemas com que
aquela associação se depara: o ter que lidar anualmente com uma avalanche de candidatos que
não tem, nem pode pretender ter, capacidade de testar convenientemente. Ao mesmo tempo, o
Estado sentiria mais directamente este problema e mais facilmente se mobilizaria para o resolver.

Evidentemente que o sistema se completaria com o surgimento de associações profissionais


privadas, de inscrição facultativa mas que graças ao seu prestígio e ao prestígio dos seus
membros se tornaria na prática quase obrigatória. Isto porque os cidadãos escolheriam
tendencialmente o patrocínio de advogados membros de associações prestigiadas que só o seriam
se se apresentassem como extremamente exigentes no plano deontológico. Os sócios teriam
então que forçosamente zelar pelo cumprimento desses deveres sob pena de um descrédito que
reflexamente os atingiria. Os valores deontológicos seriam então protegidos com um novo
fôlego.

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Este modelo não estará isento de críticas, sendo a mais acertada a possível fragmentação da
classe e consequente perda de importância. A eventual politização das associações privadas seria
também um risco. Tudo somado contudo, não deixamos de crer nas vantagens de um sistema
montado nos moldes descritos.

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CONCLUSÃO

Feita a reflexão, acabamos este nosso trabalho com mais dúvidas do que as que com começámos.
Não terminará por aqui certamente o nosso pensamento relativamente às questões abordadas.
Resta-nos desejar que o do leitor também não e que este trabalho possa ter de algum modo
contribuído para isso.

Quanto à Advocacia e aos seus problemas, a ideia a reter quanto a nós é a de que é necessário
terem os advogados coragem para fazer um exame profundo à sua profissão e ao modo como ela
está organizada para que, sem dogmas nem preconceitos, esta possa sê-lo da forma que melhor
servir o interesse público. Nas palavras de Calamandrei, escritas em 1920 na sua obra «Troppi
avvocati!» mas impressionantemente actuais, esta é a hora em que toda a classe que não queira
ser varrida do porvir iminente deve realizar sem hipocrisias o seu exame de consciência e
perguntar-se sobre que títulos de utilidade comum poderá fundar o seu direito a existir amanhã
numa sociedade melhor do que esta. Esta será então a hora.

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BIBLIOGRAFIA

ARNAUT, António; «Iniciação à Advocacia»; Coimbra Editora, 5.ª edição; Coimbra, 2000.

Autores Vários; «A regulação em Portugal – Conferências ERSE»; ERSE; Porto, 2000.

FREITAS DO AMARAL, Diogo; «Curso de Direito Administrativo, vol. I»; Almedina, 2.ª
edição; Coimbra, 1996.

LUÍS, Alberto; «A profissão de Advogado e a Deontologia»; Centro Distrital de Estágio do


Porto; Porto, 1999.

MOREIRA, Vital, «Administração Autónoma e Associações Públicas»; Coimbra Editora;


Coimbra, 1997.

MOREIRA, Vital; «Auto-regulação profissional e Administração Pública»; Almedina; Coimbra,


1997.

SANTOS, António Carlos / GONÇALVES, Maria Eduarda / LEITÃO MARQUES, Maria


Manuel; «Direito Económico»; Almedina, 3.ª edição; Coimbra, 1999.

SOARES, Rogério; «A Ordem dos Advogados, uma Corporação Pública», in Revista de


Legislação e de Jurisprudência, n.º 3807; Coimbra, 1991.

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