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Pós-Graduação em Educação

Módulo Básico

Teorias do Pensamento
Contemporâneo

Paulo César Medeiros


FAEL

Diretor Executivo Marcelo Antônio Aguilar

Diretor Acadêmico Francisco Carlos Sardo

Coordenador Pedagógico Francisco Carlos Pierin Mendes

editora Fael

Autoria Paulo César Medeiros

Gerente Editorial William Marlos da Costa

Projeto Gráfico e Capa Denise Pires Pierin

Programação Visual e Diagramação Sandro Niemicz

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2012
Teorias do Pensamento
Contemporâneo

1 . A natureza do lidade internalizada, as pressões sobre as articulações


faciais foram reduzidas, dando lugar para a expansão
conhecimento humano dos órgãos da fala e do volume do cérebro.

““
A transição do hominídeo ao homem é tema de


“O pensamento é a ação ensaiando. muitos debates científicos. Os achados arqueológicos
Sigmund Freud nos permitem compreender como os hominídeos
fabricavam seus instrumentos e utensílios, como se
distribuíam espacialmente e como se adaptavam às
1.1 . Evolução e condições ambientais em que viviam. Esses registros
conhecimento humano fornecem ricas informações; porém, restam lacunas
sobre aquilo que pensavam e sobre a linguagem que
Sabe‑se que as capacidades cognitivas dos seres utilizavam. Sabe‑se que a relação entre cérebro, mãos
humanos seguiram a trilha do processo evolutivo do e meio natural representou uma aceleração na homi-
gênero Homo e de seus predecessores. Segundo Fola- nização do humano, pois mudou a história de suas
dori (2001), nas últimas décadas, realizaram‑se avan- relações sociais e delas com a natureza. Assim, o
ços importantes na paleontologia humana e na biologia pensamento humano seguiu a trajetória de sua própria
molecular. Os dados da biologia molecular apontam que humanização.
os primeiros hominídeos começaram a se desprender
do tronco comum, que também deu origem aos gran- 1.2 . O pensamento e
des símios, há 5 ou 6 milhões de anos. Pouco tempo a construção do
em relação aos demais seres vivos.
conhecimento
Os fósseis hominídeos primitivos mais conhecidos
O pensamento é considerado como habilidade
datam em 3,5 milhões de anos (Australopitecus afa-
fundamental para a construção de ciência, pois ele
rensis). Sua diferença básica em relação aos parentes
permite a adaptação às novas realidades, melhorando
símios é a posição erguida e a locomoção bípede nem
desempenho de cada indivíduo e a maneira como se
tão sofisticada como as do Homo erectus e Homo habilis,
explicam os fenômenos naturais e humanos. A inves-
datados em 2,5 milhões de anos. A mudança da postura
tigação científica sobre o conhecimento humano e a
foi fundamental para a liberação das mãos, o aperfeiçoa-
sua interação com as diversas sociedades ao longo
mento cerebral e a transformação de todo o organismo,
do tempo é realizada por diferentes áreas específicas,
que foram vinculados, também, às pressões seletivas,
como história, sociologia, filosofia da ciência e episte-
produto de importantes transformações climáticas.
mologia das ciências.
Por volta de 3 milhões de anos atrás, uma nova
Neste texto, não serão aprofundadas as teorias
onda de frio provocou alterações e tornou o clima mais
do conhecimento, campo vasto de estudos realizados
seco, acarretando na mudança de dietas alimentares.
pela filosofia, pela psicologia cognitiva, pela inteligência
A escassez e o processo de seleção natural levaram
artificial, pela antropologia, pela neurociência e pelas
nossos ancestrais a se bifurcarem em duas práticas de
demais ciências da cognição. Este texto se propõe a
sobrevivência. O grupo de Australopitecus se especiali-
ser apenas um ensaio de orientação sobre as recen-
zou em extração de raízes e sementes, e o Homo habi-
tes abordagens relacionadas ao conhecimento humano.
lis, com uma dieta onívora (alimentação vegetariana e
Em termos gerais, pode‑se considerar que “conhecer”
carnívora), alcançou o êxito evolutivo mental e físico.
é uma necessidade inerente aos seres humanos e que
envolve três elementos essenciais:
A posição erguida e a locomoção bípede trouxeram
vantagem adaptativa, acelerando as funções de deslo- xx O sujeito: aquele que está na condição de
camento e liberando definitivamente as mãos para a busca pela cognição de algo, alguma coisa, ou
transição do símio para o hominídeo. Com a nova habi- um objeto.
xx O objeto: aquilo que o sujeito está objeti- memória, linguagem, raciocínio e intuição intelectual),
vando conhecer, seja um fato, coisas ou um este pode ser classificado em alguns tipos, a saber:
fenômeno. xx conhecimento empírico;
xx A imagem da realidade: a representação xx conhecimento teológico;
mental que o sujeito realiza sobre o objeto da xx conhecimento filosófico;
cognição. xx conhecimento científico.
Os vários métodos que procuram classificar o pen-
samento humano destacam a capacidade de pensar a 1.3.1 . Conhecimento empírico
partir de análises da capacidade mental dos sujeitos em
É tambem chamado de vulgar, intuitivo, de senso
relação aos objetos que buscam conhecer. Segundo
comum ou ordinário. Essa forma de conhecimento dos
Morin (2002), a mente humana opera sob duas grandes
fatos não se preocupa em lhes inquirir as causas. Esse
bases de pensar: a racional, ligada à lógica, ao cálculo
conhecimento é superficial, acontece por informação ou
e à razão; e a mítica, que ocorre em um âmbito mitoló-
experiência casual. É ametódico e assistemático, cons-
gico, do imaginário, das analogias e dos símbolos. Para
tituindo a maior parte do conhecimentos locais, pois é
ele, o raciocínio humano acontece a partir da articulação
gerado para resolver problemas do cotidiano de forma
desses dois tipos de pensamento, os quais não podem instantânea e instintiva. Está ligado à vivência, à ação, à
ser vistos separadamente, de modo que a esfera ima- percepção e subordinado a um envolvimento afetivo dos
ginária – dos mitos, religiões, crenças – adquire para sujeitos. Isso lhe confere dificuldades de se submeter a
o ser humano tanta importância quanto a esfera do uma crítica sistemática e imparcial, gerando dificuldades
pensamento racional. O conhecimento reconstrução do de controle e avaliação experimental.
“real” realizado pelo ser humano, portanto, não é com-
pleto, nem pode ser encarado como uma cópia exata do
1.3.2 . Conhecimento teológico
mundo objetivo, sendo sempre permeado por constan-
tes “erros e ilusões”. Esse conhecimento busca suas bases em teorias
criacionistas, as quais explicam a origem do mundo, das
O conhecimento humano não se encerra nos prin-
coisas e do ser humano a partir de princípios divinos.
cípios da razão e da lógica e deve ser sempre conside-
O conhecimento teológico foi amplamente difundido no
rado dentro de seus limites e incertezas. Dessa forma,
período medieval, no qual a autoridade divina se tornou
tanto o pensamento quanto a construção do conheci-
inquestionável. Atualmente, desenvolve‑se nos meios
mento são permeados não apenas por processos relati- acadêmico e religioso. Consiste em um conjunto de ver-
vos à racionalidade e à lógica, mas também por fatores dades que ocorre, não com o auxílio de sua inteligência,
de outra natureza. O retorno do pensamento a si mesmo mas mediante a aceitação de uma revelação divina. Tudo
para uma reflexão mais profunda aconteceu principal- em uma religião é aceito pela fé, nada pode ser provado
mente na filosofia clássica. Antes disso, o pensamento cientificamente nem se admite crítica, pois o justo viverá
era citado como algo superior, quase como indescritível. pela fé. A revelação é a única fonte de dados. Também
O logos (razão, pensamento) era uma força imensa, que conhecido como conhecimento religioso ou místico, ele
dirigia todo o universo e aparecia como inacessível aos é baseado exclusivamente na fé humana e desprovido
seres humanos. de método e de raciocínio crítico. Alguns exemplos de
conhecimento teológico são as Escrituras Sagradas,
1.3 . Estruturas e formas tais como a Bíblia, o Alcorão, as Encíclicas Papais e a
de conhecimento Sagrada Tradição, que reúne decisões de Concílios e
Sínodos, e outros. Também podem ser incluídos como
De acordo com a natureza e a forma de expressão conhecimento teológico os ensinamentos de grandes
do conhecimento (sensação, percepção, imaginação, teólogos e mestres da Igreja.

O conhecimento humano não se encerra nos


princípios da razão e da lógica e deve ser sempre
considerado dentro de seus limites e incertezas.

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4.
1.3.3 . Conhecimento filosófico de histórias fantásticas e seus personagens fascinantes
que influenciam o ser humano desde a Antiguidade até
Sabe‑se que a filosofia busca conhecer o esforço os dias atuais, desempenhado um papel importante como
da razão para questionar os problemas humanos e dis- fonte de inspiração e ponto de partida do conhecimento
cernir entre o certo e o errado. O conhecimento filosó- sobre a natureza das coisas e do mundo.
fico tem por objetos as ideias, as relações conceituais e
as exigências lógicas. Para analisar esses objetos, utiliza Os mitos são um tipo de conhecimento que apa-
rece, geralmente, na forma de histórias baseadas em
o método racional, visando questionar os demais tipos
tradições e lendas criadas para explicar o universo, a
de conhecimento (teológico, científico, empírico e outros
origem do mundo, os fenômenos naturais e qualquer
que se apresentem). A ideia de existe a “verdade”. Esse
outro fato para o qual explicações simples não sejam
termo pode ser aplicado quando os sujeitos do pensa-
atribuíveis. Em geral, a maioria dos mitos envolve forças
mento percebem o que está se desenrolando em sua
sobrenaturais de seres divinos. Esses seres ou figuras
volta e o conseguem comunicar, representar ou inter-
mitológicas de sociedades clássicas (romana, grega,
pretar, segundo sua razão e seus valores. O conheci-
egípcia, nórdica, chinesa etc.) formaram a base do pen-
mento filosófico reconhece as limitações da construção
da verdade, pois ela não é absoluta. Para tal reconheci- samento humano, nas diferentes civilizações.
mento, utiliza dois importantes elementos para a busca
A mitologia, como forma de explicação dos fenô-
de uma dada verdade: a evidência – o que aparece
menos naturais e humanos, gerou pontos de vista e
do objeto de estudo, sem invenções sobre o que se
crenças sobre cultura, política e religião que atravessa-
desvela; e a certeza – a confiança na verdade que está
ram os séculos e na atualidade ainda influenciam as civi-
fundamentada na evidência, sem dúvida, ignorância ou
lizações. Muitos estudiosos do pensamento consideram
juízo de valor.
as histórias sobre a origem e os acontecimentos dos
povos como contadores de mitos, como exemplos dos
1.3.4 . Conhecimento científico textos sagrados que buscam verdades religiosas, inspi-
radas divinamente e repassadas em linguagens huma-
Esse conhecimento procura conhecer, além do fenô-
nas. Outro exemplo são as crenças em heróis nacionais
meno, suas causas e as leis que o regem. Busca desco-
sobre os quais se formam lendas sobre feitos espetacu-
brir os princípios explicativos que servem de base para a
lares e incomuns.
compreensão da organização, da classificação e da orde-
nação da natureza. Segundo Aristóteles, o conhecimento Na atualidade, os mitos são retomados pela
só acontece quando sabemos qual a causa e o motivo indústria cinematográfica, pela literatura infanto‑juve-
dos fenômenos. Em seu método, ele buscava conhecer nil e pelos jogos eletrônicos. Filmes como O senhor
perfeitamente essas causas, demonstrando seus experi- dos anéis e os livros Star Trek e Harry Potter trazem
mentos em laboratório, aplicando instrumentos, com tra- aspectos mitológicos marcantes, que algumas vezes
balhos programados, metódicos e sistemáticos. desenvolvem‑se em sistemas filosóficos profundos e

2 . Pensamento científico: da
intrincados. A mitologia, tomada na forma de ficção,
recria seres fantásticos que só existiram nas lendas do
era clássica à moderna passado, mas que na sociedade atual assumem forma
e geram milhões de dólares.
2.1 . A mitologia como
conhecimento 2.2 . O conhecimento
do “mundo” filosófico clássico
e medieval
O termo “mitologia” deriva das palavras gregas mytos,
que pode ser traduzida como fábula, lenda ou a criação de O pensamento filosófico se desenvolveu em todos
algo concreto ou abstrato que influenciou os humanos, e os povos e continentes. No entanto, é indiscutível a
logos, que significa um tratado ou algo a ser estudado. De importância da filosofia que se praticava na Grécia,
modo geral, compreende‑se mitologia como um conjunto por volta de 2,5 mil anos atrás. Os sophos (sábios, em

Teorias do Pensamento Contemporâneo

5.
grego), que viveram no século VI a.C., buscaram diver- do conhecimento intelectual. Outro pensador de des-
sos temas para reflexão e buscaram formular explica- taque foi Aristóteles, que desenvolveu os estudos de
ções racionais para tudo aquilo que era explicado, até Platão e de Sócrates. Ele desenvolveu a lógica dedu-
então, pela mitologia. Os pensadores desse período tiva clássica como forma de chegar ao conhecimento
clássico são divididos de acordo com sua ligação com científico. A sistematização e os métodos devem ser
Sócrates, o principal dos filósofos, em: pré‑socráticos, desenvolvidos para se chegar ao conhecimento pre-
socráticos e pós‑socráticos. tendido, partindo sempre dos conceitos gerais para
os específicos.
2.2.1 . Pensadores pré‑socráticos
2.2.3 . Pensadores pós‑socráticos
Foram os pensadores da Grécia Antiga que viveram
antes de Sócrates e tinham como principal preocupa- Essa época vai do fim do período clássico (320
ção o Universo e os fenômenos da natureza. Em seus a.C.) até o fim da hegemonia política e militar da Grécia
ensaios filosóficos, buscavam explicar tudo por meio e início do período medieval na Europa. Sob a influência
da razão e do conhecimento particular das coisas. O do pensamento de Sócrates, formaram‑se várias cor-
matemático Pitágoras fez parte desse grupo e desen- rentes de pensamento:
volveu seu pensamento a partir da ideia de em que tudo a. Ceticismo: para os céticos, a dúvida deve estar
preexiste a alma, já que esta é imortal. Outros filósofos sempre presente, pois o ser humano não con-
pré‑socráticos são Demócrito e Leucipo, que defendiam segue conhecer nada de modo exato e seguro.
a formação de todas as coisas a partir da existência dos b. Epicurismo: os epicuristas, seguidores do
átomos. pensador Epicuro, defendiam que o bem era
originário da prática da virtude. O corpo e a
2.2.2 . Pensadores socráticos alma não deveriam sofrer para, dessa forma,
chegar‑se ao prazer.
Entre os séculos, V e IV a.C. a Grécia viveu um c. Estoicismo: os sábios estoicos como Marco
grande desenvolvimento cultural, político e científico. Aurélio e Sêneca, defendiam a razão a qual-
Entre os pensadores desse momento destacaram‑se quer preço. Para eles os fenômenos exteriores
os sofistas, como Górgias, Leontinos e Abdera, que a vida deviam ser deixados de lado, como a
defendiam uma educação cujo objetivo máximo seria emoção, o prazer e o sofrimento.
a formação de um cidadão pleno, preparado para atuar
politicamente para o crescimento da cidade. Os jovens 2.2.4 . Pensamento medieval
deveriam ser preparados para falar bem (retórica), pen-
sar e manifestar suas qualidades artísticas. Diferente dos Na Idade Média, o pensamento europeu foi muito
sofistas, Sócrates começa a pensar e a refletir sobre o influenciado pela Igreja Católica, que assumiu conside-
homem, buscando entender o funcionamento do Uni- rável poder, uma vez que os reis tornaram‑se cristãos.
verso dentro de uma concepção científica. Para ele, a O Teocentrismo, doutrina filosófica da Igreja, definiu as
verdade está ligada ao bem moral do ser humano. Ele formas de sentir, ver e também de pensar da popu-
também acreditava que os pensadores teriam a função lação. Entre os filósofos dessa vertente destaca‑se o
de entender o mundo da realidade, separando‑o das teólogo romano Santo Agostinho (354‑430), que acre-
aparências. Sócrates não deixou textos ou outros docu- ditava que o conhecimento e as ideias eram de origem
mentos escritos. divina. Segundo esse pensamento, as verdades sobre
o mundo e sobre todas as coisas deviam ser buscadas
O pensamento de Sócrates só foi conhecido nas palavras de Deus. A partir do século V até o século
por meio dos relatos deixados por Platão, seu dis- XIII, uma nova linha de pensamento ganhou importân-
cípulo, que defendia que as ideias formavam o foco cia na Europa, era a escolástica, conjunto de ideias que

O Teocentrismo definiu as formas de sentir, ver e também


de pensar da popu­lação durante a Idade Média.

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6.
visava unir a fé com o pensamento racional de Platão
e Aristóteles. O principal representante dessa linha de
3 . Empirismo: a experiência
pensamento foi São Tomás de Aquino (1225‑1274). e o conhecimento

2.3 . Renascimento e 3.1 . Concepções e


conhecimento científico métodos empíricos

A partir do século XIV um grande movimento no pen- Os empiristas procuravam argumentos nas ciências
samento humano passou a operar na Europa, o Renas- experimentais, na evolução do pensamento e do conheci-
cimento ou Renascença. Nesse período, os impérios mento humanos para justificar suas posições diante do que
europeus ampliaram o comércio e a diversificação dos buscavam conhecer. Para eles, o conhecimento resultava
produtos de consumo que eram vendidos para a Ásia. da observação dos fatos, na qual a experiência desempe-
O aumento do comércio gerou acumulação de riquezas nha um papel fundamental. Por isso privilegiavam a expe-
nas mãos da burguesia mercantil. Isso gerou condições riência em detrimento da razão humana. Esses estudiosos
de se investir na produção artística e intelectual. ­afirmavam que o “sujeito cognoscente” é uma espécie de
“tábula rasa”, na qual são gravadas as impressões decor-
Com a proteção e o apoio financeiro dos gover- rentes da “experiência” com o mundo exterior.
nantes e do clero na forma de mecenato, os intelectuais,
artistas e pensadores tiveram condições para produzir Por isso essa corrente desconsidera o Inatismo
novos conhecimentos e por consequência uma grande (doutrina que se entrelaça com o Racionalismo), que
transformação no conhecimento. Exemplos desse perí- admite a existência de um sujeito cognoscente (a mente,
odo são encontrados na Península Itálica, região em que o espírito) dotado de ideias inatas, isentas de qualquer
o comércio mais se desenvolveu nesse período e gerou dado da experiência. Ainda que o termo “empirismo”
uma grande quantidade de locais de produção artística, tenha sido atribuído a um grande número de posições
como Veneza, Florença e Gênova. filosóficas, a tradição prefere aceitar como “empiristas”
aqueles pensadores que afirmam ser o conhecimento
Nesse processo de revitalização do conhecimento, derivado exclusivamente da experiência dos sentidos, da
houve grande valorização da cultura greco‑romana sensação ou da emperia.
clássica, pois acreditava‑se que esta possuía uma
Admitamos que, na origem, a alma é como que
visão completa e humana da natureza, ao contrário dos
uma tábula rasa, sem quaisquer caracteres,
homens medievais; a inteligência, o conhecimento e o vazia de ideia alguma: como adquire ideias?
dom artístico passaram a ser as qualidades mais valo- Por que meio recebe essa imensa quantidade
rizadas no ser humano; o homem passou a ser consi- que a imaginação do homem, sempre activa
derado o principal personagem (Antropocentrismo), em e ilimitada, lhe apresenta com uma variedade
quase infinita? Onde vai ela buscar todos esses
lugar de Deus (Teocentrismo). Nesse período também a materiais que fundamentam os seus racio-
razão e a natureza passam a ser valorizadas com grande cínios e os seus conhecimentos? Respondo
intensidade, e os métodos experimentais e de observa- com uma palavra: à experiência. É essa a base
ção da natureza e universo ganharam destaque. de todos os nossos conhecimentos e é nela
que assenta a sua origem. As observações que
fazemos no que se refere a objectos exterio-
Entre os pensadores preocupados com o desen-
res e sensíveis ou as que dizem respeito às
volvimento científico, pode‑se citar Nicolau Copérnico operações interiores da nossa alma, que nós
(1473‑1543) e seus estudos astronômicos sobre o apercebemos e sobre as quais reflectimos,
Sistema Solar e os movimentos das constelações. dão ao espírito os materiais dos seus pensa-
Foram também importantes os estudos de Galileu Galilei mentos. São essas as duas fontes em que se
baseiam todas as ideias que, de um ponto de
(1564‑1642), que desenvolveu instrumentos ópticos, vista natural, possuímos ou podemos vir a pos-
além de construir telescópios para aprimorar o estudo suir (LOCKE, [s.d.], p. 68).
celeste. Galileu defendeu a ideia de que a Terra girava
em torno do Sol e, por isso, teve de enfrentar a Inquisi- De acordo com a teoria de que o espírito, a mente,
ção da Igreja Católica. seja uma tábula rasa, uma superfície maleável às

Teorias do Pensamento Contemporâneo

7.
impressões da experiência externa, o empirismo pode defendia que o conhecimento opera em duas fases:
ser estimado sob um prisma psicológico e sob outro sensível e intelectual, sendo que a segunda depende
gnosiológico. À medida que a fonte do conhecimento da primeira, mas ultrapassa‑a: o intelecto vê a natureza
não é a razão ou o pensamento, mas a experiência, a das coisas (intus legit) mais profundamente do que os
origem temporal de conhecer é concebida como resul- sentidos, sobre os quais exerce a sua atividade. Por
tado da experiência externa e interna – aspecto psicoló- meio da observação, o conhecimento intelectual abstrai
gico –, e, por conseguinte, só o conhecimento empírico de cada objeto individual a sua essência, a forma uni-
é válido – o aspecto gnosiológico. versal das coisas. Portanto, Deus é cognoscível pelas
experiências sensível e racional. Baseado nisso, Aquino
3.2 Bases históricas propõe as chamadas “cinco provas da existência de
do Empirismo Deus” (quinquae viae), das quais procedem demons-
trações igualmente racionais.
Entre os primeiros pensadores europeus que defen-
deram a ideia de que todos os conhecimentos são pro- Na Idade Moderna europeia, o Empirismo assumiu
venientes de experiências, encontra‑se Aristóteles, que a forma de método sistemático tal como se conhece
considerava a observação do mundo como base para atualmente, e se difundiu como conhecimento nos
a indução ou que, a partir da obtenção de dados par- meios acadêmicos emergentes. Entre seus formulado-
ticulares, no caso, a observação empírica, poder‑se‑ia res principais destaca‑se Francis Bacon, estudioso das
tirar conclusões (ou conhecimentos) de verdades mais ciências do mundo físico. Para ele, o método utilizado por
absolutas. A partir de suas considerações, os filósofos empiristas anteriores não era sistemático: embora reco-
estoicos, epicuristas e ceticistas formularam teorias lhessem dados da experiência, essas informações eram
empiristas mais explícitas acerca da formação das ideias “capturadas” ao acaso, sem o auxílio de um método que
e dos conceitos. classificasse e sistematizasse as várias experiências e
as orientasse no sentido de dar ao homem uma ciên-
Os estoicos acreditavam que a mente humana era cia útil, em oposição ao conhecimento produzindo. Pelo
uma tábula rasa que seria marcada pelas ideias advindas método da indução se relacionaria o conhecimento
da experiência sensível. Os epicuristas tiveram uma visão sensível, que forneceria material para a inteligência, e a
empirista mais forte, afirmando que a verdade provinha racionalidade, que manipularia e daria sentido aos dados
apenas da sensação. Para eles, as coisas são conheci- dos sentidos.
das por meio de imagens em miniatura, os chamados
fantasmas, que se desprendem do ser e chegam até aos O filósofo inglês Thomas Hobbes (1558‑1603), apli-
sujeitos indo diretamente à alma ou, indiretamente, por cou o método nos estudos da sociedade e da política.
meio dos sentidos. O ceticismo teve como maior repre- Segundo ele, a verdade resulta de raciocínios corretos, fun-
sentante o filósofo Sexto, que ficou conhecido como O damentados pelas sensações. Hobbes criou um método
Empírico. Segundo ele, as verdades sobre o Universo rigoroso de controle das deduções lógicas provenientes da
seriam inacessíveis ao ser os sentidos eram a base do experiência, representada pelos acontecimentos passados
conhecimento, mas possuíam limitações que distorciam na história e da situação política do momento.
a imagem do mundo real, criando as ilusões.
O método empírico de Francis Bacon e de Thomas
A Idade Média europeia foi dominada pelo pen- Hobbes influenciou toda uma geração de filósofos bri-
samento cristão que subordinava os demais pensa- tânicos, com destaque para John Locke (1632‑1704)
mentos à religião. Assim, a experiência sensível ou que, em seu livro Ensaio sobre o entendimento humano,
as ideias humanas não poderiam ser comprovadas e descreve a mente humana como uma tábula rasa (lite-
ou refutadas senão pelo interesse de Deus e sua Trin- ralmente, uma “ardósia em branco”), na qual, por meio
dade. Tomás de Aquino, célebre teórico da escolástica, da experiência, são gravadas as ideias. A partir dessa

Os estoicos acreditavam que a mente humana


era uma tábula rasa que seria marcada pelas
ideias advindas da experiência sensível.

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8.
análise empirista da Epistemologia, ele diferencia dois de ser conhecido verdadeiramente pelo homem, pois
tipos de ideias: as ideias simples, sobre as quais não se esse conhecimento só é acessível a Deus. Ao assumir
poderia estabelecer distinções, como a de amarelo, duro esse Empirismo radical, esse pensador criou a corrente
etc., e as ideias complexas, que seriam associações de conhecida como idealismo subjetivo.
ideias simples (por exemplo o ouro – que é uma subs-
tância dura e de cor amarelada). Com isso, seria for- O escocês David Hume (1711‑1776), seguindo a
mado um conceito abstrato da substância material. linha de Berkeley, identificou dois tipos de conhecimento:
matérias de fato e relação de ideias. O primeiro
Do ponto de vista político e filosófico, os pensado- está relacionado com a percepção imediata e seria a
res ingleses lançaram as raízes das ideias que, talvez, única forma verdadeira de conhecimento. As relações
mais profundamente influenciaram a transformação da de ideias se referem a coisas que não podem ser per-
sociedade europeia. O Empirismo que se desenvolveu cebidas, que não têm correspondência na realidade e
na Inglaterra adquiriu características próprias, dos fatos seriam pura imaginação. Dessa forma, os próprios con-
e fenômenos do século XVI ao XVIII. Os pensadores ceitos abstratos utilizados pela ciência para analisar os
apresentaram uma preocupação menor pelas questões dados dos sentidos não seriam verdadeiros.
rigorosamente metafísicas, voltando‑se bem mais para
os problemas do conhecimento (que não deixam de Baseado nisso, Hume refutou a própria causalidade,
incluir uma metafísica). a noção de causa e efeito, fundamental para a ciência.
Para ele, o simples fato de um fenômeno ser sempre
Seu método a posteriori, utilizando as ciências posi- seguido de outro faz com que eles se relacionem entre
tivas, estabelece uma psicologia e uma gnosiologia sen- si de tal forma que um é encarado como causa do
sistas, baseadas essencialmente nos sentidos, na sen- outro. Causa e efeito, como impressões sensíveis, não
sação (sensus). Historicamente, o Empirismo se opõe à seriam mais do que um evento seguido de outro. A
escola conhecida como Racionalismo, segundo a qual o
noção de causalidade seria, portanto, uma “criação”
homem nasceria com certas ideias inatas, as quais “aflo-
humana, uma acumulação de hábitos desenvolvidos
rariam” à consciência e constituiriam as verdades acerca
em resposta às sensações.
do Universo. A partir dessas ideias, o homem poderia
entender os fenômenos particulares apresentados pelos O pensamento de Hume e Berkeley influenciou várias
sentidos. O conhecimento da verdade, portanto, inde- escolas empíricas do século XIX, com destaque para o
penderia dos sentidos físicos. Positivismo e a Fenomenologia. Entre algumas correntes
que tentaram aproximar o Empirismo do Racionalismo
3.3 . Empirismo e destacou‑se o Empirismo Lógico (também conhecido
modernidade como Positivismo ou Neopositivismo Lógico, embora
alguns não concordem com essa sinonímia), uma tenta-
O Empirismo de John Locke recebeu novas inter- tiva de sintetizar as ideias essenciais do Empirismo Britâ-
pretações no século XVIII nas formulações de George nico (por exemplo, a forte ênfase na experiência sensorial
Berkeley (1685‑1753). Segundo ele, uma substância como base para o conhecimento) com a lógica mate-
material não pode ser conhecida em si mesma. O que mática, a exemplo dos trabalhos de Ludwig Wittgenstein,
se conhece, na verdade, resume‑se às qualidades reve- Gottlob Frege, Bertrand Russell, George Mooro, Rudolf
ladas durante o processo perceptivo. Assim, o que existe Carnap, Jonh Austin e Karl Popper e outros que aplica-
realmente não passa de um feixe de sensações. Daí sua ram o Empirismo em seus trabalhos.
famosa frase: “ser é ser percebido”. Berkeley postulava
a existência de uma mente cósmica, a qual seria uni- Nem o Racionalismo nem o Empirismo são res-
versal e superior à mente dos homens individuais. No postas totais aos problemas que pretendem resolver.
entanto, apesar de existir, o mundo seria impossível O Racionalismo opõe‑se ao Empirismo, e a Doutrina

A Doutrina Empírico‑Racionalista afir­


ma que o conhecimento se deve à
coparticipação da experiência e da razão.

Teorias do Pensamento Contemporâneo

9.
Empírico‑Racionalista representa uma tentativa de de fato nos séculos XVII e XVIII. Os dois grandes
estabelecer a mediação entre essas duas escolas, afir- movimentos filosóficos dos séculos XVII e XVIII são
mando que o conhecimento se deve à coparticipação o Empirismo, tendência positiva e prática, expresso
da experiência e da razão. O maior representante dessa pela cultura anglo‑saxônica, conforme foi visto ante-
corrente é Emanuel Kant (1724‑1804), filósofo alemão riormente, e o Racionalismo, corrente vinculada ao
do século XVIII que abordou a questão da origem do pensamento francês.
conhecimento procurando conciliar as duas doutrinas –
de fato, para Kant, todo o conhecimento começa na e Ainda que a razão seja um componente básico
pela experiência, mas não se limita a ela. Os elemen- de todas as manifestações da filosofia ocidental, é no
tos múltiplos, diversos e contingentes fornecidos pela pensamento moderno que ela adquire novas caracte-
rística e importância. Enquanto na Antiguidade era con-
experiência são integrados em conceitos que o próprio
siderada propriedade inteligível da natureza e, na Idade
entendimento possui a priori. Desse modo, a experiên-
Média, uma luz cedida por Deus ao homem para que
cia fornece a matéria, o conteúdo do conhecimento,
bem a utilize, na filosofia moderna a “razão” é deter-
enquanto o entendimento lhe dá certa forma; o que
minada como uma faculdade autônoma, que possui
significa que o conhecimento é sempre o resultado da
finalidade própria.
junção de uma forma e uma matéria.
Em outras palavras, a razão torna‑se, por excelên-
Kant analisa criticamente ambas as doutrinas – o
cia, veículo de análise e de entendimento do real, que
Racionalismo e o Empirismo –, concluindo a insufi-
caracteriza, de modo específico, o ser ou a substância
ciência de cada uma delas, se perspectivadas de um
racional, isto é, o homem. E, se por um lado se afirma
ponto de vista disjuntivo. Entretanto, se se conciliarem,
veículo cognitivo do real, por outro se estabelece como
talvez resolvam mais satisfatoriamente os problemas.
órgão experimental da mesma realidade. Quer dizer,
Kant considera, pois, que o conhecimento não pode se
as construções racionais (Racionalismo) se aliam aos
fundamentar unicamente na razão, como pretendiam os
dados da experiência (Empirismo).
racionalistas, mas também não pode se reduzir unica-
mente aos dados da experiência. O Racionalismo, tomado apenas etimologicamente,
pode ser entendido como uma perspectiva cultural pela
Esta é antes fonte dos dados recebidos pela nossa
qual o homem chega a verdades absolutas apenas com
sensibilidade, mas devidamente organizados por deter-
o uso da faculdade da razão. Seja a partir de fatos, os
minados conceitos existentes no nosso conhecimento,
quais, ultrapassando a mera força dos sentidos, permi-
os quais não derivam da experiência, pois são‑lhe inde-
tem ao homem, com a força da razão, abstrair e atingir
pendentes os anteriores – são os conceitos puros do
condições transcendentais do mundo; seja a partir da
entendimento a priori, daí chama Apriorismo a doutrina
pura intuição, que prescinde dos fatos.
desenvolvida por Kant. Então, para esse pensador, o
conhecimento é como o resultado de um processo de O Racionalismo buscava conhecer a essência. Por
transformação de uma matéria‑prima dada pela expe- isso, não se prendia aos fatos e ao mundo sensível, mas
riência e apreendida pelo entendimento como tendo afirmava que a razão humana poderia transcender e che-
determinada significação. gar ao conhecimento de realidades suprassensíveis pela
força da abstração e das concatenações racionais. Ao
4 . Racionalismo: a caráter naturalista que apresentava “a razão” no Renas-
faculdade autônoma cimento, é acrescentado, assim, um antropologismo. Por
tais motivos, é possível afirmar que as filosofias antiga
do conhecimento e medieval preocupam‑se mais com o Ser, enquanto a
filosofia moderna com o conhecer.
4.1 . A razão como base
do conhecimento O Racionalismo dos séculos XVII e XVIII é a doutrina
que afirma ser a razão o único órgão adequado e com-
Sabe‑se que a Idade Moderna europeia foi inau- pleto do saber, de modo que todo conhecimento verda-
gurada com o Renascimento, o qual se estabeleceu deiro tem origem racional. Por tal motivo, essa corrente

Módulo Básico

10.
filosófica é conhecida como Racionalismo Gnosiológico Descartes via o mundo como uma máquina, como
ou Epistemológico. A importância conferida à razão por um relógio. A natureza, segundo essa visão, é um con-
Descartes e pelos cartesianos, seus seguidores, é um junto de peças que deve estar em perfeito funciona-
modo de racionalizar a realidade, um lastro “metafísico” mento. Com essa obra, ele pretendia partilhar com o
de cunho racional. leitor o método que encontrou para si, a fim de alcançar
uma ciência universal que pudesse elevar a nossa natu-
4.2 . Pensamento e reza ao seu mais alto grau de perfeição. Seu método
método cartesiano é o da dúvida.

Descartes propôs um desprendimento cosmoló- Para a razão adquirir seu pleno funcionamento,
gico da visão do homem, ou seja, deixar uma visão de é necessário limpar o terreno da mente de todo pre-
mundo centralizada na autoridade e no poder da reli- conceito; é preciso, em um primeiro momento, duvidar
gião e passar para a certeza do conhecimento, dando, de tudo, principalmente do que já se tem estabelecido
assim, origem ao chamado Racionalismo. Assume, de como verdade absoluta, como dogma. Ele resume e
certa forma, o espírito iluminista de sua época, centra- enumera apenas quatro regras, quatro passos a serem
lizando na capacidade racional humana da busca do dados no caminho de seu método:
conhecimento. Descartes preocupou‑se fundamental- xx Jamais acolher coisa alguma como verdadeira
mente em construir um modo para que se pudesse que não conheça evidentemente como tal;
chegar a um conhecimento que fosse seguro. “[...] isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e
criei um método que, parece‑me, proporcionou‑me a prevenção. E de nada incluir nos juízos que
os meios para o gradativo aumento de meu conheci- não se apresente tão clara e tão distintamente
mento, e a levá‑lo, gradualmente, ao máximo de grau a meu espírito que não tenha ocasião de pô‑lo
que a ­mediocridade de meu espírito e a breve duração
em dúvida.
de minha vida lhe permitirem atingir.” (DESCARTES,
xx Dividir cada uma das dificuldades para que se
2000, p. 15)
examine em tantas parcelas quantas possíveis
Ele distingue o universo das ideias duvidosas do forem para melhor resolvê‑las.
universo das ideias claras e distintas. As ideias claras xx Conduzir por ordem os pensamentos, come-
e distintas são as ideias inatas, verdadeiras, não çando pelos objetos mais simples e mais fáceis
sujeitas ao erro, pois não vêm de fora, mas do próprio de conhecer, para subir, pouco a pouco, como
sujeito pensante. Em sua mais conhecida, O discurso por degraus, até o conhecimento dos mais
do método, Descartes enumera quatro regras básicas compostos e supondo mesmo uma ordem
capazes de conduzir o espírito na busca da verdade: entre os que não se precedem naturalmente
uns aos outros.
xx Regras de evidência – só aceitar algo como
xx Fazer em toda parte enumerações tão com-
verdadeiro desde que seja evidente (ideias cla-
pletas e revisões tão gerais que se tenha a
ras e distintas) – ideias inatas.
certeza de nada omitir.
xx Regras de análise – dividir as dificuldades em
quantas partes forem necessárias à resolução O Cartesianismo também pode ser definido em
do problema. uma perspectiva de senso comum como a primeira filo-
xx Regras de síntese – ordenar o raciocínio (pro- sofia moderna, tendo estabelecido as bases da ciência
blemas mais simples aos mais complexos). moderna e contemporânea. O fundamento principal da
xx Regras de enumeração – realizar verificações filosofia cartesiana consiste na pesquisa da verdade,
completas e gerais para garantir que nenhum com relação à existência dos “objetos” dentro de um
aspecto do problema foi omitido. universo de coisas reais.

O Cartesianismo também pode ser definido em uma perspectiva


de senso comum como a primeira filosofia moderna, tendo
estabelecido as bases da ciência moderna e contemporânea.

Teorias do Pensamento Contemporâneo

11.
O objetivo de Descartes é a pesquisa de um
método adaptado para a conquista do saber, descobre
5 . Paradigmas do
esse método que tem como objetivo a clareza e a dis- pensamento científico
tinção, ou seja, com isso quer ser mais objetivo possível, do século XX
imparcial, quer fundamentar o seu pensamento em ver-
dades claras e distintas. Para isso, de acordo com o seu 5.1 . Positivismo: pensamento
método, devem ser eliminadas quaisquer influências de
e paradigma monista
ideias que muitas vezes não são verdadeiras, mas que
são tidas como mitológicas, e por fim frequentemente O Positivismo emerge no progresso das ciências
acabamos aceitando tais mitos sem que os tenhamos naturais, particularmente das biológicas e fisiológicas,
comprovado de fato. as quais buscavam resolver os problemas da Europa
do século XIX. Esse paradigma científico se preocupou
4.3 . O Racionalismo em aplicar os princípios e os métodos das ciências à
Científico e Aplicado filosofia como resolvedora do problema do mundo e
da vida, com resultados. Edmund Leach descreveu o
A influência do Racionalismo sobre o método cientí- Positivismo em 1966 como “a visão de que o inqué-
fico alimentou a ideia de muitos pensadores dos séculos rito científico sério não deveria procurar causas últimas
XIX e XX de que a ciência é obra da razão humana, uma que derivem de alguma fonte externa, mas sim, con-
espécie de máquina gerada por ela, cujas estruturas e finar‑se ao estudo de relações existentes entre fatos
leis internas é preciso descobrir. que são diretamente acessíveis pela observação”.
Essa corrente buscava explicar fatos mais práticos e
O principal expoente dessa interpretação epis- presentes na vida do homem, como no caso das leis,
temológica é Gaston Bachelard (1844‑1962). Esse das relações sociais e da ética.
autor afirma que a filosofia da ciência contemporânea
não pode aceitar nem a solução realista nem a idea- Entre seus principais formuladores, encontramos
lista. Segundo ele, deve colocar‑se em um meio termo o francês Auguste Comte (1798‑1857). Em seus
entre ambos, no qual sejam retomados e superados. ensaios, atribui fatores humanos às explicações dos
Em sua gnosiologia, Bachelard põe o binômio experi- diversos assuntos, contrariando o primado da razão,
ência‑razão na base de todo o conhecimento humano. da teologia e da metafísica. Para Comte, o método
Entretanto, não se trata de um condomínio de potên- positivista consistia na observação dos fenômenos,
cias iguais, pois o elemento teórico é que desempenha subordinando a imaginação à observação. Ele sinte-
o papel normativo. tizou seu ideal em sete palavras: real, útil, certo, pre-
ciso, relativo, orgânico e simpático e preocupou‑se
Bachelard (1977) indica a maneira segundo com a elaboração de um sistema de valores adaptado
a qual o Racionalismo, em seu diálogo permanente à realidade que o mundo vivia na época da Revolução
com o empirismo, constrói a estrutura de apreensão Industrial.
e de criação do conhecimento científico. O Raciona-
Para Comte, o espírito humano, em seu esforço
lismo Aplicado de Bachelard procura mostrar a inter-
para explicar o universo, passa sucessivamente por três
dependência desses dois modos de pensar, os quais
estados:
estariam disseminados por toda a ciência. Para ele, o
conhecimento humano possui dois polos – Idealismo a. Estado teológico ou “fictício”, que
e Realismo – e nenhuma atividade se fixa somente em explica os fatos por meio de vontades análo-
um desses polos. gas à nossa (a tempestade, por exemplo, será
explicada por um capricho do deus dos ventos,
A partir dessa premissa, esse pensador afirma ser Éolo). Esse estado evolui do fetichismo ao poli-
possível, então, atribuir um caráter realista ao Raciona- teísmo e ao monoteísmo.
lismo e um caráter idealista ao Empirismo, devido ao b. Estado metafísico, que substitui os deuses
modo como estes se relacionam respectivamente com por princípios abstratos como “o horror ao
a instância empírica e com o plano das ideias. vazio”, por longo tempo atribuído à natureza.

Módulo Básico

12.
A tempestade, por exemplo, será explicada Como teoria do pensamento, o Positivismo vincu-
pela “virtude dinâmica” do ar. Esse estado é la‑se ao Monismo (do grego monis, “um”), às teorias
no fundo tão antropomórfico quanto o primeiro filosóficas que defendem a unidade da realidade como
(a natureza tem “horror” do vazio exatamente um todo (em metafísica) ou a identidade entre mente e
como a senhora Baronesa tem horror de chá). corpo (em filosofia da mente) por oposição ao dualismo
O homem projeta espontaneamente sua pró- ou ao pluralismo, à diversidade da realidade em geral.
pria psicologia sobre a natureza. A explicação No Monismo, um oposto se reduz a outro, em detrimento
dita teológica ou metafísica é uma explica- de uma unidade maior e absoluta. As raízes do Monismo
ção ingenuamente psicológica. Ela tem, para na filosofia ocidental estão nos filósofos pré‑socráticos,
Comte, importância sobretudo histórica como como Zenão e Parmênides de Eleia. Já Spinoza é o filó-
crítica e negação da explicação teológica pre- sofo monista por excelência, pois defende que se deve
cedente. Desse modo, os revolucionários de considerar a existência de uma única coisa, a substân-
1789 são “metafísicos” quando evocam os cia, da qual tudo o mais são modos.
“direitos” do homem – reivindicação crítica
contra os deveres teológicos anteriores, mas 5.2 . Marxismo: materialismo
sem conteúdo real.
c. Estado positivo, que é aquele em que o e dialética
espírito renuncia a procurar os fins últimos e a
O Marxismo é o conjunto de ideias filosóficas,
responder aos últimos “porquês”. A noção de
econômicas, políticas e sociais elaboradas primaria-
causa (transposição abusiva de nossa expe-
mente por Karl Marx (1818‑1883) e Friedrich Engels
riência interior do querer para a natureza) é
(1820‑1895). A concepção materialista e dialética da
por ele substituída pela noção de lei. Conten-
história interpreta a vida social conforme a dinâmica da
tar‑nos‑emos em descrever como os fatos se
base produtiva das sociedades e das lutas de classes
passam, em descobrir as leis (exprimíveis em
daí consequentes.
linguagem matemática) segundo as quais os
fenômenos se encadeiam uns nos outros. Tal O paradigma marxista compreende o homem como
concepção do saber desemboca diretamente um ser social histórico que possui a capacidade de tra-
na técnica: o conhecimento das leis positivas balhar e desenvolver a produtividade do trabalho, o que o
da natureza nos permite, com efeito, quando diferencia dos outros animais e possibilita o progresso de
um fenômeno é dado, prever o fenômeno sua emancipação da escassez da natureza, proporcio-
que se seguirá e, eventualmente, agindo sobre
nando o desenvolvimento das potencialidades humanas.
o primeiro, transformar o segundo (“Ciência
donde previsão, previsão donde ação”). O método dialético influenciou os mais diversos
Gnosiologicamente, o Positivismo desenvolvido setores da atividade humana ao longo do século XX,
por Comte admite, como fonte única de conhecimento desde a política e a prática sindical até a análise e a
e critério de verdade, a experiência, os fatos positivos, interpretação de fatos sociais, morais, artísticos, históri-
os dados sensíveis. Não aceita qualquer metafísica, por- cos e econômicos. Marx criticou o sistema filosófico ide-
tanto, como interpretação, justificação transcendente ou alista de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770‑1831),
imanente da experiência. no qual a realidade se faz filosofia, pois para Marx esta
precisa incidir sobre aquela. Pode‑se dizer que o pen-
O Positivismo do século XIX buscou bases metodo- samento de Karl Marx se originou fundamentalmente a
lógicas no Empirismo e no Naturalismo inglês, reduzindo partir de seus estudos sobre três tradições intelectuais já
o conhecimento humano ao conhecimento sensível; a bem desenvolvidas na Europa do século XIX: a filosofia
metafísica, à ciência e o espírito, à natureza, com as idealista alemã de Hegel e dos neo‑hegelianos, o pensa-
relativas consequências práticas. Por meio de um con- mento da economia‑política britânica e a teoria política
flito mecânico de seres e de forças, mediante a luta socialista utópica dos autores franceses.
pela existência, determina‑se uma seleção natural, uma
eliminação do organismo mais imperfeito, sobrevivendo O núcleo do pensamento de Marx é sua interpre-
o mais perfeito. tação do homem, que começa com a necessidade de

Teorias do Pensamento Contemporâneo

13.
sobrevivência humana. A história se inicia com o próprio 5.2.2 . O Materialismo
homem que, na busca da satisfação de necessidades, Filosófico Marxista
trabalha sobre a natureza. À medida que realiza esse
trabalho, o homem se descobre como ser produtivo e a. Marx parte do princípio de que o mundo, pela
passa a ter consciência de si e do mundo pelo desen- sua natureza, é material e que os múltiplos
volvimento do aprimoramento da produtividade do tra- fenômenos do universo são diferentes da
balho, da ciência sobre a realidade. Percebe‑se então matéria em movimento.
que “a história é o processo de criação do homem pelo b. O Materialismo Filosófico Marxista parte do
trabalho humano”. princípio de que a matéria, a natureza, o ser,
são uma realidade objetiva existindo fora e
Hegel enunciou as características fundamentais da independente da consciência.
dialética, e Marx e Engels tomaram desse ensaio ape- c. Para o Materialismo Filosófico Marxista, o mundo
nas o núcleo racional de sua dialética. O filósofo alemão e as suas leis são perfeitamente conhecíveis. Não
Ludwig Andreas Feuerbach (1804‑1872) reintegrou o há de forma alguma no mundo coisas que não
materialismo ao seu devido lugar, e Marx e Engels, assim podem ser conhecidas, mas unicamente coisas
como no caso de Hegel, tomaram apenas o núcleo desconhecidas, as quais serão descobertas e
central do materialismo de Feuerbach. Dessa maneira, conhecidas pela ciência e pela prática.
podemos organizar o pensamento marxista nas seguin-
5.2.3 . O Materialismo Histórico
tes estruturas:
a. O Materialismo Histórico considera que a força
5.2.1 . O Método Dialético é o método de obtenção dos meios de exis-
tência necessários à vida dos homens, o modo
Marxista
de produção de bens materiais.
a. Olha a natureza como um conjunto de ele- b. A primeira particularidade da produção, é a de
mentos ligados que dependem uns dos que nunca se mantém num dado ponto por
outros e são condicionados reciprocamente. muito tempo;está sempre a transforma‑se e
Nada pode ser considerado ou entendido desenvolver‑se; além disso, mudança do modo
isoladamente, para se entender determinado de produção provoca inevitavelmente a mudança
fenômeno é necessário estudar o ambiente de todo o regime social , as ideias sociais, as
como um todo. opiniões e instituições políticas; a mudança do
b. Olha a natureza como um estado de movimen- modo de produção provoca a modificação de
tos constante. Como diz Engels, toda a natu- todo o sistema social e político.
reza das partículas mais ínfimas aos corpos c. A segunda particularidade da produção é a de
maiores. Está empenhada em um processo de que as transformações e o seu desenvolvimento
aparecimento e desaparecimento, em um fluxo começam sempre pela transformação e desen-
incessante, em movimento e em transforma- volvimento das forças produtivas. As forças pro-
ção perpétuos. dutivas são por consequência, o elemento mais
c. A dialética considera o processo de desen- móvel e mais revolucionário da produção.
volvimento como o que passa das mudanças d. A terceira particularidade de produção é que
quantitativas e latentes a mudanças evidentes as novas forças produtivas e as relações de
e radicais, às mudanças qualitativas. produção que lhes correspondem não apare-
d. A dialética entende que os objetos e os fenô- cem fora do antigo regime, aparecem no ceio
menos da natureza encerram contradições do velho regime.
internas, pois têm um lado negativo e um lado
positivo, um passado e um futuro, todos eles 5.3 . Fenomenologia: a
têm elementos que desaparecem ou que se intencionalidade da
desenvolvem, a luta entre o velho e o novo. consciência humana
Lênin diz que a dialética no verdadeiro sentido
da palavra é o estudo das contradições na pró- A Fenomenologia foi empregada em várias acep-
pria essência das coisas. ções, por vários pensadores, ao longo da história da

Módulo Básico

14.
filosofia. O termo aparece na obra de Jean Lambert, afim de estudá‑la. E, para a aplicação dos diversos juí-
em 1734, com o sentido de “doutrina da aparência”. zos da ciência (sintético/a priori; analítico/a posteriori),
Ele denomina Fenomenologia a investigação que visa deve existir o ser que transcenda a ciência, o objeto e
a distinção entre verdade e aparência, de modo a des- a terra. Segundo ele, a fenomenologia estuda a matéria
truir as ilusões que com frequência se apresentam ao como objeto possível da experiência.
pensamento. Essa investigação é afirmada como o
fundamento de todo saber empírico. Foi, em seguida, Para �����������������������������������������
Charles Sanders Peirce (1839‑1914), filó-
retomada por Kant e, sobretudo, por Hegel, que publica sofo, cientista e matemático americano, a Fenomeno-
Fenomenologia do espírito, em 1807. logia constitui parte da filosofia e compreende o estudo
do fenômeno que se apresenta de qualquer modo à
O método fenonenológico que emergiu na segunda mente, independentemente de qualquer correspon-
metade do século XIX teve entre seus formuladores dência com a realidade. Essa escola de pensamento,
Franz Clemens Brentano (1838‑1917), um filósofo ale- contudo, ganhou um novo e rigoroso direcionamento
mão que, em suas análises, buscava a intencionalidade no pensamento de Edmund Husserl, de maneira tal que
da consciência humana, em sua intenção de descrever, o sentido atualmente vigente desse termo liga‑se, por
compreender e interpretar os fenômenos que se apre- princípio, ao significado que lhe outorgou esse autor.
sentam à percepção. Em oposição ao Positivismo, a
Fenomenologia busca a volta às coisas mesmas, A Fenomenologia, segundo Edmund Husserl
isto é, aos fenômenos, àquilo que aparece à consciência, (1859‑1938), é um método que visa encontrar as leis
que se dá como objeto intencional. Seu objetivo é chegar puras da consciência intencional. A intencionalidade é o
à intuição das essências, isto é, ao conteúdo inteligível modo próprio de ser da consciência, uma vez que não
e ideal dos fenômenos, captado de maneira imediata. há consciência que não esteja em ato, dirigida para um
No século XX, vários filósofos desenvolveram o método determinado objeto. Por sua vez, todo objeto somente
fenomenológico, entre eles: Edmund Husserl, Martin Hei- existe enquanto apropriado por uma consciência. Sujeito
degger, Jean‑Paul Sartre e Maurice Merleau‑Ponty. e objeto constituem, para essa concepção, dois polos
de uma mesma realidade.
O método fenomenológico consiste em mostrar o
que é apresentado e esclarecer esse fenômeno. O objeto 6 . Conflito de paradigmas
é como o sujeito o percebe, e tudo tem de ser estudado e abordagens
tal como é para ele, sem interferência de qualquer regra
de observação. Um objeto, uma sensação, uma recor- contemporâneas
dação, enfim, tudo deve ser estudado tal como é para o
espectador. Toda consciência é consciência de alguma 6.1 . Cartesianismo: crise
coisa. Assim sendo, a consciência não é uma substân- humana e ambiental
cia, mas uma atividade constituída por atos (percepção,
imaginação, especulação, volição, paixão etc.) com os O físico Fritjof Capra, no seu livro O ponto de muta-
quais visa algo. ção, busca identificar os dois grandes paradigmas que
se confrontam no fim do século XX: o mecanicista e o
Segundo Kant, o fenômeno deve caracterizar‑se no sistêmico. Segundo ele, o paradigma mecanicista agrupa
tempo e no espaço por meio da aplicação das cate- todos os paradigmas que aceitaram a visão de mundo
gorias do entendimento a priori (uma dedução lógica de René Descartes, segundo a qual o mundo natural
da coisa) e em seguida a posteriori (o que pode ser é uma máquina carente de espiritualidade e, portanto,
identificado “positivamente” quanto a esse objeto). Com deve ser dominada pela inteligência humana e ser colo-
a coisa inserida em um contexto temporal e espacial, cada a seu serviço. Nessa visão, o mundo opera a partir
está apta a receber todos os componentes da ciência de leis matemáticas, igual a qualquer máquina, o que

A Fenomenologia busca a volta às coisas mesmas,


isto é, aos fenômenos, àquilo que aparece à
consciência, que se dá como objeto intencional.

Teorias do Pensamento Contemporâneo

15.
permitiria que, ao serem estabelecidas rigorosamente, e Newton, concebiam o mundo como perfeito. Para
o homem teria uma cópia fiel do mundo. Essa visão esse autor, essa perfeição é inexiste, o que ficou pro-
agrupa o Positivismo, o Neopositivismo e a Dialética vado quando percebeu‑se que o mundo era consti-
Materialista. Em suma, agrupam‑se aqui as escolas de tuído por átomos, em um sistema formado de partí-
pensamento monista e algumas dualistas. culas altamente complexas. Nesse aspecto, a ciência
clássica é uma ciência limitada, presa a uma realidade
Capra (1995) descreve como o Mecanicismo determinista mecânica, que considera a subjetividade
Cartesiano foi incorporado por todas as ciências tra- como fonte de erro, ao mesmo tempo em que exclui
dicionais, levando à crise individual, social e ambiental o observador e sua observação – mundo dos objetos,
de caráter global que se vive hoje. A visão mecanicista mundo dos sujeitos.
adota a ideia de que o mundo natural é regido determi-
nisticamente por leis matemáticas em contraposição ao Segundo Kuhn (1975), essa crise faz surgir um
mundo humano, no qual há o livre‑arbítrio. novo paradigma, uma nova estrutura de pressupostos
que vão alicerçar uma comunidade científica. Um olhar
O paradigma mecanicista privilegia a individuali- em nova direção passa a dar corpo ao paradigma emer-
dade, a luta e a competição. Ele transformou o mundo gente, enquanto uma teoria capaz de abarcar a riqueza
medieval no mundo moderno de hoje. A tecnologia da ciência e do espírito.
aplicada a todos os campos da vida cotidiana, industrial
e científica é fundamentada nas descobertas da ciência Para Heisenberg (1995), a realidade é indetermi-
mecanicista, positivista, e as sociedades, instituições, nada, uma probabilidade na qual tudo pode acontecer.
bem como a individualidade e a subjetividade, funcio- A incerteza passa a ser rotulada subjetiva na medida em
nam de acordo com os modelos dialéticos, materia- que se refere ao conhecimento do mundo de cada um.
listas. O que significa que, de fato, a crise vivida hoje A única coisa que pode ser prevista é a probabilidade. A
em todas as áreas, desde a ecológica, passando pela probabilidade, portanto, assume o lugar da certeza.
social até a individual e espiritual, é responsabilidade do
paradigma cartesiano. Segundo Bohm (1995), aquilo que se vê de
imediato é na verdade superficial, e as ideias devem
Max Horkheimer (1895‑1973), filósofo e soció- correlacionar‑se ao que se vê de imediato. Ele define,
logo alemão, fez críticas ao Racionalismo de Descartes. portanto, que o holograma é o ponto de partida para
Segundo ele, o pensamento nascido com Descartes uma nova descrição da realidade: a ordem dobrada em
e, posteriormente, transformado em um dos princípios que a realidade é sempre inteira, total e essencialmente
fundamentais da ciência moderna, privilegiou sem qual- independente do tempo, em que o todo se manifesta.
quer restrição uma racionalidade abstrata e voltada para Desdobra simplicidade até abranger a complexidade do
a dominação da natureza, colocando assim o pensa- universo. Bohm afirma que o manifesto está dentro do
mento e a especulação filosófica em uma via de cres- não manifesto, e que este é maior e move aquele, cap-
cente degradação. Com a separação do pensamento tado pela armadilha do pensamento.
e da realidade concreta promovida pelo Cartesianismo,

6.2 . As teorias sistêmicas


a razão transformou‑se em um mero instrumento de
dominação, perdendo sua força esclarecedora e o seu
poder libertador. A racionalidade técnica, desprezando a
A Teoria Geral dos Sistemas foi proposta em mea-
objetividade em favor de regras (método) lógicas inter-
dos de 1950 pelo biólogo Ludwig von Bertalanffy. Suas
nalizadas, levou aos homens a possibilidade de domínio
pesquisas foram baseadas em uma visão diferente do
efetivo sob a natureza externa.
Reducionismo Científico, até então aplicado pela ciência
Ao lado do progresso da ciência e da indústria, a convencional. Bertalanffy compreendeu o sistema como
razão lógica e abstrata impôs uma dinâmica cega e irra- um conjunto de elementos interdependentes que intera-
cional no que diz a respeito à condição humana. gem com objetivos comuns formando um todo, no qual
cada um dos elementos componentes comporta‑se, por
Morin (1996) lembra que presenciamos a derru- sua vez, como um sistema cujo resultado é maior do que
bada da ciência clássica cujos expoentes, Descartes o resultado que as unidades poderiam ter se funcionassem

Módulo Básico

16.
independentemente. Qualquer conjunto de partes unidas mático. Ele é o criador da Teoria da Autopoiese e da
entre si pode ser considerado um sistema, desde que Biologia do Conhecer, e junto de Francisco Varela, faz
as relações entre as partes e o comportamento do todo parte dos propositores do Pensamento Sistêmico e do
sejam o foco de atenção. Sistema é um conjunto de partes Construtivismo Radical.
coordenadas, formando um todo complexo ou unitário.
Dizem que nós, seres humanos, somos
animais racionais. Nossa crença nessa afir-
Os sistemas podem ser abertos ou fechados: os
mação nos leva a menosprezar as emoções
abertos sofrem interações com o ambiente em que e a enaltecer a racionalidade, a ponto de
estão inseridos. A interação gera realimentações que querermos atribuir pensamento racional a
podem ser positivas ou negativas, criando uma autor- animais não humanos, sempre que obser-
regulação regenerativa, a qual, por sua vez, cria novas vamos neles comportamentos complexos.
propriedades que podem ser benéficas ou maléficas Nesse processo, fizemos com que a noção
de ­realidade objetiva, se tornasse referência
para o todo independentemente das partes; os siste-
a algo que supomos ser universal e inde-
mas fechados são aqueles que não sofrem influência do pendente do que fazemos, e que usamos
meio ambiente no qual estão inseridos, de tal forma que como argumento visando a convencer
ele se alimenta dele mesmo. alguém, quando não queremos usar a força
bruta (MATURANA, 1997).
Segundo Bertalanffy (1975), os organismos (ou
sistemas orgânicos) em que as alterações benéficas A abordagem sistêmica de Maturana deriva de seu
são absorvidas e aproveitadas sobrevivem, e os siste- conceito fundamental: a autopoiese. Poiesis é um termo
mas em que as qualidades maléficas ao todo resultam grego que significa “produção”. Autopoiese quer dizer
em dificuldade de sobrevivência tendem a desaparecer, autoprodução. A palavra surgiu pela primeira vez na
caso não haja outra alteração de contrabalanço que literatura internacional em 1974, em um artigo publi-
neutralize aquela primeira mutação. A evolução perma- cado por Varela, Maturana e Uribe para definir os seres
nece ininterrupta enquanto os sistemas se autorregulam. vivos como sistemas que produzem a si mesmos de
Um sistema realimentado se reorganiza e autogerencia, modo incessante. Esses são sistemas autopoiéticos por
isso é a autorregulação em que o todo assume as tare- definição, porque sempre recompõem seus componen-
fas da parte que falhou. tes desgastados. Assim, um sistema autopoiético é ao
mesmo tempo produtor e produto.
Os parâmetros que compõem qualquer sistema são:
De um modo geral, as principais ideias de Maturana
xx entrada (input), sendo os impulsos recebidos
e sua contribuição ao Pensamento Sistêmico podem ser
de fora na forma de matéria e/ou energia;
assim resumidas:
xx saídas (output), resultados ou produtos do
sistema na forma de matéria e energia; a. enquanto não entendermos o caráter sistêmico
xx processamento, transformação ou operação; da célula não conseguiremos compreender os
xx retroação (feedback) em forma de retroali- organismos;
mentação; b. a autopoiese define com clareza os fenôme-
xx ambiente, sendo o meio que envolve o sis- nos biológicos;
tema. c. os fenômenos sociais podem ser considera-
dos biológicos, porque a sociedade é formada
Entre as várias vertentes que deram origem ao atual
por seres vivos;
pensamento sistêmico, inclui‑se a cibernética ou ciência
dos sistemas de controle. A cibernética surgiu nos EUA e
d. a noção de que os sistemas são determinados
por sua estrutura é de fundamental importân-
se consolidou durante uma série de conferências patro-
cia para muitas áreas da atividade humana.
cinadas pela Fundação Josiah Macy Jr. A partir de 1942,
pesquisadores de várias procedências e diferentes áreas Para Maturana, o termo “autopoiese” traduz o cen-
de interesse começaram a se reunir com regularidade. tro da dinâmica constitutiva dos seres vivos. Para exer-
Entre eles, o biólogo chileno Humberto Maturana tem cê‑la, esses seres precisam de recursos do ambiente.
se apresentado como grande crítico do Realismo Mate- Portanto, são sistemas ao mesmo tempo autônomos e

Teorias do Pensamento Contemporâneo

17.
dependentes. Maturana e Varela utilizaram uma metáfora os processos organizacionais complexos que transcen-
didática para falar dos sistemas autopoiéticos. Para eles, dem as teorias clássicas sobre organizações humanas.
tais sistemas são máquinas que produzem a si próprias.
Nenhuma outra espécie de máquina é capaz de fazer Os diferentes pensadores da complexidade reco-
isso, pois todas elas produzem sempre algo diferente nheceram que ela não é como se acreditava inicial-
de si mesmas. mente, uma propriedade específica dos fenômenos
biológicos e sociais, tornando‑se, portanto, um pressu-
6.3 . A teoria da posto epistemológico transdisciplinar que surge sobre
três aspectos.
complexidade
xx O “problema lógico” – no início do século XX,
Segundo uma importante dimensão ou pressuposto no campo da microfísica defrontavam‑se duas
epistemológico emergente na ciência é o da complexi- concepções, a da partícula subatômica conce-
dade. Esse tema não é novo, ele surge de maneira mais bida de um lado como onda e de outro como
efetiva nos anos 1980. Sabe‑se que as ciências bioló- partícula, obrigando os pesquisadores a fazer
gicas e sociais há muito se defrontam com a dificuldade uma das opções. Até que Niels Bohr afirmou
de adotar o paradigma tradicional de ciência, enquanto que “essas proposições contraditórias eram
as ciências físicas, por obterem sucesso em sua forma de fato complementares [e que] logicamente
de trabalhar com esse paradigma, eram vistas como se deveriam associar os dois termos que se
modelo de cientificidade (VASCONCELLOS, 2002). excluem mutuamente” (MORIN, 1991, p.
422). Esses princípios foram também analisa-
Segundo Morin (1990), a palavra “complexidade”
dos por Max Plank (1990), que percebeu que
tem origem no latim complexus, que significa o que
a luz parecia autocontraditória, consistindo, ao
está tecido em conjunto. Refere‑se a um conjunto cujos
mesmo tempo, em ondas e em partículas, fato
constituintes heterogêneos estão inseparavelmente
que elimina a dualidade. Essa dualidade levou
associados e integrados, sendo ao mesmo tempo uno
ao desenvolvimento da teoria quântica para a
e múltiplo. Para que se possa perceber o complexo,
mecânica quântica, ao descobrimento do fun-
é preciso ampliar o foco, em vez de acreditar que o
cionamento do átomo e ao reconhecimento
objeto de estudo será o elemento, ou o indivíduo, e que
do mundo subatômico como espaço‑tempo
será preciso delimitá‑lo muito bem, deve‑se passar a
em que predomina o “princípio da incerteza” e
acreditar que o objeto será estudado ou trabalhado em
“princípio da complementaridade”.
seu contexto.
xx O “problema da desordem” – remete‑se à
Segundo Frederic Munné (1995), a Teoria da Com- dimensão da instabilidade. A física constatou
plexidade mostra que a realidade é não linear, caótica, também o problema da tendência à desor-
fractal, catastrófica e fuzzy (difusa) e deve ser vista de dem, que veio para derrubar um dogma cen-
forma não somente quantitativa, mas, principalmente, tral da física, a ordem, segundo esse dogma o
qualitativa. A realidade é inacabada, é um eterno e caó- mundo é estável, funciona como uma máquina
tico fluir. Ela engloba várias teorias recentes – Teoria do mecânica absolutamente perfeita, em que a
Caos, dos Fractais, das Catástrofes, da Lógica/Conjuntos desordem não seria mais que uma ilusão ou
Fuzzy (difusos) e outras procedentes das ciências exatas uma aparência. Um tipo de desordem veio das
que se dirigem, explícita e implicitamente, para uma visão pesquisas da termodinâmica. Segundo Prigo-
cada vez mais aproximada da realidade, sem simplifica- gine (1980), a descoberta de que o calor cor-
ção, sem reducionismo. Paradoxalmente, essas teorias responde à agitação desordenada das molé-
aproximam‑se das ciências naturais e das ciências culas por Boltzmann permitiu que se notasse
humanas, sendo aplicadas para entender as estruturas e que a entropia corresponde a uma medida da

Os diferentes pensadores da complexidade reconheceram


que ela não é como se acreditava inicialmente, uma
propriedade específica dos fenômenos biológicos e sociais.

Módulo Básico

18.
desordem molecular. O reconhecimento da mação”, “educação do espírito”. É associada à ideia de
desordem exigiu uma nova forma de pensar, progresso, educação (uma pessoa “culta”).
que incluísse a indeterminação e a imprevisibi-
lidade dos fenômenos. Pierre Bourdieu (1930‑2002) foi um sociólogo
xx O “problema da incerteza” – remete‑se à francês que analisou diferenças culturais entre grupos
dimensão da intersubjetividade. Morin (1983) sociais e desenvolveu o conceito de habitus: sistemas de
ensina a complexidade da relação de conheci- disposições duradouras e transponíveis, estruturas adqui-
ridas por meio de conhecimentos próprios de modos de
mento, da relação entre sujeito que conhece e
vida particulares. Ele caracteriza uma classe ou um grupo
o objeto que é conhecido já é tema a muito dis-
social por comparação com outros que não partilham
cutido pelos pensadores e filósofos. Entretanto,
das mesmas condições sociais. O habitus funciona como
essa relação só foi trazida formalmente para
a materialização ou a incorporação da memória coletiva.
o âmbito da ciência pela física, quando Hei-
senberg formulou o “princípio da incerteza” no Franz Boas (1858‑1942) mostra que a aplicação
qual “não se pode ter, simultaneamente, valo- desse método recusa as determinações do meio físico
res bem determinados para a posição e para a e as determinações raciais como responsáveis pela
velocidade, em mecânica quântica”. Com isso diversidade dos modos de vida humanos. É na cultura
demonstrou que nem mesmo a mensuração e no particularismo histórico que ele vai buscar as fon-
poderia produzir certeza e que “ao se lançar tes dessa diversidade. Boas, ao criticar o evolucionismo,
sobre um elétron, a fim de poder ‘vê‑lo’, isso lançou as bases do Culturalismo, cujo objeto de reflexão
inevitavelmente o colocava fora de curso, afe- eram as sociedades ditas primitivas, espalhadas sobre o
tando sua velocidade ou sua posição”. globo terrestre, consideradas na sua especificidade, na
sua originalidade.
Essas descobertas provocaram a eclosão do pen-
samento complexo e, por consequência, o avanço de Segundo Consorte (1997), o Culturalismo emerge
diversas ciências. Nas ciências humanas deu‑se início como esforço de compreensão da diversidade humana,
uma visão mais integradora para o conhecimento do “constitui‑se no processo de crítica ao evolucionismo,
seu objeto de estudo, o ser humano, e assim a busca de caracterizando‑se, fundamentalmente, por duas ruptu-
uma ciência que pudesse atender a demanda da crise ras uma com o Determinismo Geográfico e outra com
socioambiental. Para se ter uma melhor percepção do o Determinismo Biológico”. No campo da psicologia,
que se concebe no âmbito do pensamento científico o Culturalismo atribui à cultura o papel determinante
como complexidade, é preciso conhecer suas bases no desenvolvimento do caráter e da personalidade,
epistemológicas. enquanto nas ciências sociais em geral ele se traduz
no destaque do papel da cultura na organização das
6.4 . Abordagem cultural condutas e dos fenômenos coletivos.
e conhecimento
Entre os conceitos mais importantes que ganharam
O termo “cultura” em latim significa os cuidados força no Culturalismo está o de identidade, que se remete
prestados aos campos e ao gado. No século XVI, essa para o sentido de pertença, influenciando o comporta-
palavra definia a ação de cultivar a terra; e no fim do mento dos indivíduos em modalidade de categorização
século XVII passou a ser usado no sentido de uma na distinção eu‑você e nós‑eles. Desse conceito deriva
faculdade ou o trabalho para desenvolver uma facul- a identidade social, na qual a coletividade pode perfeita-
dade. Mas foi no século XVIII que a palavra assumiu mente funcionar admitindo no seu interior certa pluralidade
seu sentido figurado, como nas expressões “cultura cultural. O que cria a separação, a fronteira, é a vontade
das artes”, “cultura das letras”, “cultura das ciências”. O de diferenciação e a utilização de certos traços culturais
termo “cultura” também se associa às expressões “for- como marcadores da sua identidade específica.

No campo da psicologia, o Culturalismo atribui à


cultura o papel determinante no desenvolvimento
do caráter e da personalidade.

Teorias do Pensamento Contemporâneo

19.
7 . A complexidade Boaventura Santos, apresentando as teses de
um paradigma emergente e argumentando que todo
humana: limites e o conhecimento científico visa constituir‑se em senso
desafios educacionais comum, diz:

7.1 . Novos paradigmas e


[...] a ciência pós‑moderna sabe que nenhuma
forma de conhecimento é, em si mesma, racio-
conhecimento científico nal; só a configuração de todas elas é racional.
Tenta, pois, dialogar com outras formas de
conhecimento deixando‑se penetrar por elas.
Na primeira década deste século, as preocupa- A mais importante de todas é o conhecimento
ções com os sistemas naturais e humanos adquiriram do senso comum, o conhecimento vulgar e
suprema importância. Veio à tona com toda uma série de prático com que no quotidiano orientamos
problemas globais que estão danificando a biosfera e a as nossas acções e damos sentido à nossa
vida. [...] É certo que o conhecimento do
vida humana de uma maneira alarmante, em um cenário senso comum tende a ser um conhecimento
de degradação próximo de ser irreversível. Existe ampla mistificado e mistificador mas, apesar disso e
documentação científica a respeito da extensão e da apesar de ser conservador, tem uma dimensão
importância desses problemas. Quanto mais se conhece utópica e libertadora que pode ser ampliada
através do diálogo com o conhecimento cien-
os principais problemas da atualidade, mais percebe‑se tífico” (2002, p. 55‑56)
que eles não podem ser entendidos isoladamente. São
problemas sistêmicos, o que significa que estão interli- Reconhecer a falência das certezas é tomar
gados e são interdependentes. consciência da crise paradigmática que se vive. Os
parâmetros de verdade – aqueles transmitidos de
Em última análise, esses problemas precisam ser geração em geração – não são os mesmos e não
vistos, exatamente, como diferentes facetas de uma conseguimos mais agir como nossos pais, como pen-
única crise, que é, em grande medida, uma crise de per- sava o músico e poeta.
cepção. Ela deriva do fato de que a maioria das pessoas,
e em especial grandes instituições sociais, concordam Os novos paradigmas e modelos de saber cientí-
com os conceitos de uma visão de mundo obsoleta, fico que emergem trazem consigo uma nova visão de
uma percepção da realidade inadequada para lidar com mundo para a sociedade. Nessa nova visão o conhe-
as questões culturais e naturais deste século. cimento que necessita ser sustentado em princípios,
tais como:
Thomas Kuhn (1962) aponta que esse movimento
ocorre sob a forma de rupturas descontínuas e revolucio- xx o conhecimento científico‑natural é científico
nárias denominadas mudanças de paradigma. Segundo social sem ruptura entre o ser humano e natu-
ele, há um “paradigma” científico, que pode ser definido reza, o orgânico e o inorgânico, a consciên-
como “uma constelação de realizações – concepções, cia e a realidade física externa. O que leva a
valores, técnicas etc. – compartilhada por uma comuni- um saber sem distinção entre ciências exatas
dade científica e utilizada por ela para definir problemas e humanas. O ser humano está no centro do
e soluções legítimos. O paradigma que está agora retro- conhecimento, mas a natureza está no centro
cedendo dominou a cultura por várias centenas de anos, do ser humano;
durante as quais modelou a moderna sociedade ocidental xx o conhecimento é local e total, sem frag-
e influenciou significativamente o restante do mundo. mentação do saber. O saber se constitui
multidisciplinarmente por meio de uma sín-
Segundo Chizzotti (2005), as concepções de mundo tese de várias fontes, métodos, vivências e
denominam‑se paradigmas e estes representam uma percepções;
concepção teórica, uma crença que direciona a leitura do xx o conhecimento é autoconhecimento, sem
mundo, ou que faz que se enxergue o mundo de um distinção entre observador e fenômeno, sujeito
determinado modo. Por conseguinte, as teorias que orien- e objeto, subjetivo e objetivo. O pensamento
tam as investigações podem ser definidas também como científico não descobre, cria conhecimentos,
paradigmas, modelos ou posturas dos investigadores. e não é a única explicação possível;

Módulo Básico

20.
xx o conhecimento científico deixa de ser hermé- car em evidência a multidimensionalidade e a
tica e reservada a poucos eleitos capacitados, complexidade humana, bem como integrar (na
educação do futuro) a contribuição inestimável
para ganhar o domínio público e tornar‑se um das humanidades, não somente a filosofia e
saber popular. história, mas também a literatura, a poesia, as
artes [...] (MORIN, 2003, p. 47‑48).
7.2 . A formação do
cidadão complexo Morin, em seu livro Os sete saberes necessários
à educação do futuro, apresenta o que ele mesmo
Morin (2003), ao analisar as bases da educação chama de inspirações para o educador, referindo‑se
do futuro, aponta que ela deverá ser o ensino primeiro e aos saberes necessários para uma boa prática educa-
universal na condição humana. Vive‑se na era planetária; cional. São eles:
uma aventura comum conduz seres humanos, onde quer xx 1º saber: erro e ilusão – não afastar o erro
que se encontrem. Estes devem reconhecer‑se em sua do processo de aprendizagem, integrar o
humanidade comum e ao mesmo tempo reconhecer a erro ao processo, para que o conhecimento
diversidade cultural inerente a tudo que é humano. avance.
Conhecer o humano é, antes de mais nada, xx 2º saber: o conhecimento pertinente – juntar
situá‑lo no universo, e não separá‑lo dele. Todo as mais variadas áreas de conhecimento, con-
o conhecimento deve contextualizar seu objeto, tra a fragmentação
para ser pertinente. “Quem somos?” é insepa- xx 3º saber: ensinar a condição humana – os
rável de “Onde estamos?”, “De onde viemos?”,
“Para onde vamos?” Interrogar nossa condição
indivíduos não são um algo só. São pessoas
humana implica questionar primeiro nossa mais que culturais, são psíquicas, físicas, míti-
posição no mundo. O fluxo de conhecimentos, cas, biológicas etc.
no final do século XX, traz luz sobre a situa- xx 4º saber: identidade terrena – saber que a
ção do ser humano no universo. Os progressos
Terra é um pequeno planeta que precisa ser
concomitantes da cosmologia, das ciências da
Terra, da ecologia, da biologia, da pré‑história, sustentado a qualquer custo. Ideia da susten-
nos anos 60‑70, modificaram as ideias sobre tabilidade terra‑pátria.
o Universo, a Terra, a Vida e sobre o próprio xx 5º saber: enfrentar as incertezas – princí-
Homem. Mas estas contribuições permane- pio da incerteza. Ensinar que a ciência deve
ceram ainda desunidas. O humano continua
esquartejado, partido como pedaços de um
trabalhar com a ideia de que existem coisas
quebra‑cabeça ao qual falta uma peça. Aqui incertas.
se apresenta um problema epistemológico: é xx 6º saber – ensinar a compreensão – a
impossível conceber a unidade complexa do comunicação humana deve ser voltada para a
ser humano pelo pensamento disjuntivo, que
compreensão. Introduzir a compreensão; com-
concebe nossa humanidade de maneira insular,
fora do cosmos que nos rodeia, da matéria física preensão entre departamentos de uma escola,
e do espírito do qual somos constituídos, bem entre alunos e professores etc.
como pelo pensamento redutor, que restringe xx 7º saber: ética do gênero humano – é a
a unidade humana a um substrato puramente “antropo‑ética”. Não desejar para os outros,
bioanatômico. As ciências humanas são elas
próprias fragmentadas e compartimentadas.
aquilo que não quer para você. A “antro-
Assim, a complexidade humana torna‑se invi- po‑ética” está ancorada em três elementos:
sível e o homem desvanece “como um rastro indivíduo, sociedade e espécie.
na areia”. Além disso, o novo saber, por não ter
sido religado, não é assimilado nem integrado. Morin alerta que na prática de aplicar esses saberes,
Paradoxalmente assiste‑se ao agravamento da a questão fundamental, o objetivo não é transformá‑los
ignorância do todo, enquanto avança o conhe- em disciplinas, mas sim em diretrizes para ação e para
cimento das partes. Disso decorre que, para elaboração de propostas e intervenções educacionais.
a educação do futuro, é necessário promover
grande remembramento dos conhecimentos
oriundos das ciências naturais, a fim de situar a
Como foi visto, a humanidade se defronta com limi-
condição humana no mundo, dos conhecimen- tações para a satisfação das necessidades básicas de
tos derivados das ciências humanas para colo- existência, a globalização econômica acelerou a degra-

Teorias do Pensamento Contemporâneo

21.
dação e dos sistemas naturais do planeta e distanciou xx Busca do todo, racionalidade somada à intui-
milhões de pessoas da possibilidade concreta da eman- ção. Teoria complementada por experiências.
cipação humana. Por outro lado, observa‑se um amplo xx Educação como processo para vida toda.
esforço das ciências naturais e humanas, principalmente xx Estrutura do currículo flexível em conteúdos e
no fim do século XX, em buscar respostas e estimular metodologia.
ações concretas que permitam aos indivíduos libertar‑se xx Professor também aprende. Caminho de duas
da alienação socioespacial. mãos.
xx Preocupação com ambiente para aprendiza-
Segundo Paulo Freire (1980), “a única maneira de gem: luz, cores, conforto físico.
ajudar o homem a realizar sua vocação ontológica, a xx Preocupação com o desempenho do indivíduo.
inserir‑se na construção da sociedade e na direção da xx Integração de pessoas com idades diferentes.
mudança social, é substituir esta captação principalmente
mágica da realidade por uma captação mais e mais crí- Os paradigmas do pensamento atual concebem
tica”. Paulo Freire sempre ensinou que o ser humano só o mundo como um todo integrado, e não como uma
tem as possibilidades de participar ativamente na histó- coleção de partes dissociadas. Essa percepção reco-
ria, na sociedade e na transformação da realidade se lhe nhece a interdependência fundamental de todos os
for auxiliado a tomar consciência da realidade e de sua fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e
própria capacidade para transformá‑lo. Se o indivíduo sociedades, todos estão encaixados nos processos
não pode lutar contras as forças que não compreende, a cíclicos da natureza e, em última análise, são depen-
não ser que descubra que é modificável e que ele pode dentes desses processos.
fazê‑lo, esta conscientização requer o primeiro objetivo
Neste breve ensaio sobre as Teorias do Pensa-
da educação, e “antes de tudo provocar uma atitude
mento Contemporâneo foram enfatizadas as mudan-
crítica, de reflexão, que comprometa a ação”.
ças nas maneiras de pensar que ocorreram na moder-
Tendo a educação formal e a informal adquirido as nidade e chegaram até nossa geração por meio dos
condições teóricas e metodológicas necessárias para sistemas de ensino. Segundo muitos pensadores das
promover uma visão mais complexa dos fenômenos novas teorias, a sociedade atual possui as condições
naturais e humanos é preciso estabelecer novas pre- necessárias (epistemológicas, tecnológicas e informa-
missas para dar corpo e sentido aos novos paradigmas cionais) para transição para um novo paradigma. Há
emergentes: o movimento de um número suficiente de pensado-
res articulados e eloquentes que podem convencer
xx Ênfase em aprender a aprender. os líderes políticos e corporativos sobre as formas
xx Conhecimento sujeito a mudanças. complexas pensamento. No entanto, a mudança de
xx Aprendizagem como processo, como jornada. paradigmas requer uma expansão não apenas de
xx Igualdade, discordância permitida, relação
percepções e maneiras de pensar, mas também de
entre pessoas, e não entre papéis.
valores culturais e naturais.
xx Experiência interior/pessoal para potencializar
aprendizagem.

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