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Um HOMEM de meia-idade coloca uma luva comprida em uma das mãos, esticando-a até o antebraço. Luz até seu quadril.
Cheira um poppers ( estimulante químico ). Desce a mão com a luva abaixo do quadril. Parece que vai enfiá-la em alguém.
Pode-se ouvir os gemidos de um rapaz, que num primeiro instante não vemos. São adeptos de fist-fucking, preparando-se
para transa. Durante o texto, a mão vai desaparecendo mais e mais. Luz alterna-se entre homem e rapaz, nunca
focalizando-os juntos.
HOMEM
A gente quer pôr a mão em tudo. Na Lua, em Marte, em Deus. Até no que não nos
pertence. No que o tempo nos tirou. No que está longe. Quanto mais distante, mais
vontade de tocar. Todo mundo tem saudades de um toque. De uma carne. Eu sinto
falta de Binho. Às vezes, quando minha mão tem cãibra, ela está doendo de
saudades de Binho.
HOMEM
Era meu vizinho.Quando criança brincava de pôr o dedo no seu cu.
Na verdade, eu pagava. Binho foi meu único amor. Eu nunca havia tocado outro
homem. Me apaixonei por ele nos primeiros centímetros do indicador, enquanto ele
desabrochava (seu ânus) em ton sur ton de rosas e violetas.
Mas com os meninos, eram só negócios.
Tem gente que só tira fezes do rabo; Binho tirou uma bicicleta, patins, comprou até
boneca para sua preferida, Neide. Ele a adorava. Acho que pensava nela enquanto
se prostituía.
Pelo menos sempre foi sexo seguro. E sem luvas, nem pensar. Acho que a Bíblia
nem fala nada sobre isso. Ou será que fala ? ( pausa )
Não, definitivamente não fala.
Mas mataram tanta gente por colocar o “sacrossanto órgão reprodutor” no “vaso
traseiro”. Teriam misericórdia se puséssemos a mão ? O punho ? Duvido. Eles
nunca tiveram compaixão alguma com o prazer. De nenhum tipo.
coitado do cu já sofreu muita perseguição. Ele é só mais uma porta.
Me transportou para Binho.
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#texto na web: http://docs11.minhateca.com.br/456690889,BR,0,0,MORENO,-Newton---Dentro.pdf
Mas até onde ir ?
Seria tão bom encontrar alguém e perguntar-lhe, antes que fosse tarde : até onde ir
?
HOMEM
erá que eu o
Como se descobre a fronteira ? Quando se machuca ? ( Pausa ) S
machuquei ?
HOMEM
De que adianta ter alguém ao lado se não posso perfurar-lhe o
núcleo ! Evoluí meu apetite por Binho.
Primeiro, sonhei que me vestia de Binho como se fosse uma pele. Encaixava-me
entre ossos e feixes, abotoando-o em mim. Habitava-o. Como parasita/hospedeiro.
Vivendo dele, nele, pra ele.
Depois, sonhei que comia seus pedaços, alimentando-me de sua proteína albina.
Casando nossas células, banhando-nos em nossas placas sanguíneas.
Seria ele tão lindo do avesso ?
Experimentei uma vontade de comê-lo. Sabê-lo inteiro: sabor, textura, tempero. Eu
queria me imprimir em Binho, mostrar-lhe minha fome.
RAPAZ
Pode começar por onde quiser : todo o meu corpo é orifício. Várias portas. Cada
poro deve ser penetrado pelo suor do outro com a mesma sensação de um
membro, de uma língua, de dedos, mãos. Cada poro existe para me dar prazer.
Sabe quantas pessoas existem no mundo ? Eu e os meus amantes. Os que já
estiveram em mim e as minhas promessas.
Moro na cama de cada um deles. Moro no corpo de cada um deles. Moro no
músculo de cada um deles e hospedo todos entre minhas pernas.
HOMEM
Arranhei na parede de dentro meu nome e o dele. Desenhei meu segredo. Binho
não gritou, aceitou minha assinatura.
HOMEM
Procurei anos por Binho. Binho envelheceu na profissão. Paguei-lhe de novo. Não
me reconheceu.
Antes de você tudo era sem graça. Por anos, eu bebi detergente e tomei sopa de
sabão em pó à mesa com meus pais para agradá-los.
Mas eu tinha amigos ricos e perfumados. Amigos que adoravam rodas a cidade à
noite e caçar bichos como você. Nossa adolescência não se desvirginou com putas,
galinhas ou cabras. Nós disputávamos o rabo de miseráveis. Pegávamos indigentes
no meio da rua. O mentigo tinha que estar bem bêbado, daqueles que esqueceu a
própria lingua, o próprio nome, esqueceu até que está vivo. Tirávamos a sorte para
ver quem iria primeiro. Mergulhávamos a cabeça dele num balde de pinga e
comíamos o seu rabo podre. Um após o outro. Foi assim que eu perdi a virgindade.
o meu prazer nasceu no cu de uma lata de lixo, como o seu.
Depois, é claro, eu tinha uma mulher loura com uma boceta morena. Não aguentava
mais o perfume francês que ela passava naquela boceta. Ela afogou a própria
boceta. Afogou a si mesma. Me afogou. Até hoje eu sinto o perfume entre minhas
pernas.
acordo à noite assustada com pesadelos e o meu suor tem o cheiro francês daquela
boceta.
Numa noite, olhei para ela no meio da foda e implorei, sufocando-a aos poucos.
“ O que eu queria te pedir é que você matasse uma pessoa e me amasse em
seguida. Queria o teu sangue velox, por que matou uma pessoa. Você seria capaz
de me dar este sangue?”
Depois dela, voltei ao que me interessava. Então o mais próximo que eu me
aproximei do lixo foi o cu de um boliviano. Ele me ofereceu o rabo em troca de um
cachorro quente. Fiz questão de comê-lo enquanto ele devorava o sanduíche. Tinha
tanta fome que não gritava, não gemia, não sentia. Gostei do seu cheiro. Cheiro de
meses sem banho.
O outro foi um nordestino que eu conheci nos banheiros do Tietê. Ele falou que
dava o cu para juntar a grana da passagem de volta.
Eu comia seu cu e mandava ele falar da seca, falar da fome, com sotaque, falar da
miséria, falar dos filhos que morreram um a um e que ele enterrou junto dos pés
secos da mandioca, fala de Graciliano Ramos, porra. Comi até mandá-lo de volta
para a caatinga. A única coisa civilizada que ele levou embora foi o meu sêmen,
nadando dentro do seu rabo seco.
Me apaixonar só por você, é claro.
Trouxe comida.
Eu guardo a imagem exata da primeira vez que nos encontramos.
Eu me aproximei e disse: “ Deixa-me beijar teus pés. lavar com a língua o teu
corpo.”
Eu te amei a primeira vez que me pediu esmolas. Logo depois que você abordou o
carro forte do banco e pediu um dinheiro para o pão.
E o motorista disse que não tinha trocado.
Você me pediu trocados e eu te dei.
E chorei. Chorei tanto que metade de mim se foi naquelas águas. Desidratei
naquela tristeza. Binho vestiu-se, pegou o dinheiro e perguntou: “Gostou ?”. Nem
sentiu que nada acontecera.
RAPAZ
Tempo é o frio que faz entre o calor de um corpo e o próximo.
HOMEM
Coloco minha mão à luz do sol, olhando a palma, as linhas, mas o que me
impressiona é sua firmeza. Sólida. Solto-a ao mar como uma rede de pesca.
Curiosa. Á vida.
E eu a perdê-la de vista. Minha mão dentro do outro. Até o pulso. Ou além.
RAPAZ
Toda vez que eu beijo, quero descobrir a sensação exata do primeiro beijo. Não do
meu, o primeiro beijo de todos os tempos. O primeiro encontro de salivas, o
despertar do desejo dos homens, as primeiras línguas que se amaciaram e se
comprometeram.
O universo inteiro deve ter gozado em uníssono. Desesperada e organicamente.
Todas as forças da natureza gozando através daquelas bocas.
Eu busco exatamente o prazer que eles tiveram.
O resto é eco. Distante. Que vai se amarelando em mofo e fingimento.
Eu quero um homem que me traga a ereção de Deus quando criou o mundo,
o prazer de Deus quando criou o homem e o prazer do homem quando criou o
prazer.
( Para alguns homens da platéia ) Dê-me um grito de prazer nunca antes dado.
Dê-me um beijo mais espesso e mais molhado. Dê-me algo deste impulso dos teus
músculos. Dê-me um pouco do tesão que movimenta o teu sangue. Dê-me teu
corpo sem saber o que eu devolvo. Dê-me algo que eu possa chamar de vida, que
eu possa injetar em meu tecido, que eu possa diluir em meus líquidos.
Sinto passos dentro de mim, mas quem alcança o meu coração ? Quem alcança o
meu coração ? Quem alcança o meu coração?