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Contingência, Ironia e Solidariedade:

notas pessoais e fragmentos de


Richard Rorty

Minhas notas:
FRAGMENTOS DO LIVRO QUE ESTOU LENDO:

Richard Rorty: “Contingência, Ironia e Solidariedade” (Editorial Presença, 1994) – tradução de Nuno Ferreira da
Costa.

Págs. 15 e 16:

A tentativa de fundir o público e o privado está por detrás quer da tentativa, por parte de Platão, de responder à
pergunta “Porque é que ser justo é do interesse de cada um?” quer da tese do cristianismo de que a realização
pessoal perfeita pode ser alcançada através do serviço prestado à outrem. Tais tentativas metafísicas ou
teológicas de conjugar uma luta pela perfeição com um sentido de comunidade exigem que reconheçamos a
existência de uma natureza humana comum. Exigem que acreditemos que o que há de mais importante para
cada um de nós é aquilo que temos em comum com os outros – que acreditemos que as fontes de satisfação
privada e as da solidariedade humana são as mesmas. Céticos como Nietzsche insistiram em que a metafísica
e a teologia são claras tentativas de fazer o altruísmo parecer mais razoável do que de fato é. No entanto, é
típico esses céticos terem as suas próprias teorias da natureza humana, defendendo, eles também, que há algo
de comum a todos os seres humanos – a vontade de poder, por exemplo, ou os impulsos da libido. A sua tese é
de que no nível “mais profundo” do eu não há um sentido de solidariedade humana, de que tal sentido é um
“mero” artefato da socialização do homem. Desta forma, os referidos céticos tornam-se anti-sociais. Voltam
costas à própria idéia de uma comunidade que seja maior do que um estreito círculo de iniciados.

Desde Hegel, porém, os pensadores historicistas não deixaram nunca de tentar ultrapassar esses conhecido
impasse, tendo vindo a negar a existência de uma “natureza humana” ou de um “nível mais profundo do eu”. A
sua estratégia tem sido a de insistir em que a socialização, e portanto as circunstâncias históricas representam
tudo – que não há nada “além” da socialização ou anterior à história que defina o humano. Esses autores dizem-
nos que a pergunta “o que é um ser humano?” deveria ser substituída por perguntas tais como “o que é habitar
uma sociedade democrática e rica do século XXI?” e “Como poderá um habitante de uma tal sociedade ser mais
do que o ator de um papel num argumento previamente redigido?”. Esta viragem historicista contribuiu para nos
libertar, de forma gradual mas constante, da teologia e da metafísica – da tentação de procurar uma fuga ao
tempo e ao acaso. Ajudou-nos a substituir a Verdade pela Liberdade enquanto objetivo do pensamento e do
progresso social. Mas mesmo depois dessa substituição mantém-se a antiga tensão entre o privado e o público.
Os historicistas nos quais predomina o desejo de autocriação, de autonomia privada (por exemplo, Heidegger e
Foucault) continuam a ter tendência para ver a socialização da mesma maneira que Nietzsche a via: como
sendo antitética relativamente a algo de profundo que há dentro de nós. Os historicistas nos quais predomina o
desejo de uma comunidade humana mais justa e livre (por exemplo, Dewey e Habermas) continuam a ter
inclinação para ver o desejo de perfeição pessoal como estando contaminado de “irracionalismo” e
“esteticismo”. O presente livro tenta fazer justiça a estes dois grupos de autores historicistas. Defendo que não
tentemos optar por um deles, mas sim que lhe atribuamos igual peso e que os usemos para diferentes fins.
Autores tais como Kiekegaard, Nietzsche, Baudelaire, Proust, Heidegger e Nabokov são úteis como exemplares,
como ilustrações do aspecto que pode ter a perfeição privada – uma vida humana autocriada e autónoma.
Autores tais como Marx, Mill, Dewey, Habermas e Rawls são cidadãos como nós e não exemplares. Estão
empenhados num esforço social, que é partilhado por todos: o esforço para tornar as nossas instituições e
práticas mais justas e menos cruéis. Só consideraremos esses dois tipos de autores como opostos se
pensarmos que poderia haver uma perspectiva filosófica de maior grau de compreensão que nos permitisse
abarcar a autocriação e a justiça, a perfeição privada e a solidariedade humana numa única visão.

Não é possível que alguma vez a filosofia ou qualquer outra disciplina teórica possam permitir-nos isso. O mais
próximo que podemos estar de conjugar essas duas exigências é ver que o objetivo de uma sociedade justa e
livre é permitir que os seus cidadãos sejam, de modo privado, tão “irracionalistas” e esteticistas quanto quiserem
ser, desde que o façam na devida altura – sem fazerem mal a outrem e sem utilizarem para tanto recursos de
que necessitam os menos favorecidos.

Págs. 25, 26 e 27:

Temos que fazer uma distinção entre a tese de que o mundo está diante de nós e a tese de que a verdade está
diante de nós. Dizer que o mundo está diante de nós, que não é uma criação nossa, quer dizer, tal como o
senso comum, que a maior parte das coisas no espaço e no tempo são efeitos de causas que não incluem os
estados mentais do ser humano. Dizer que a verdade não está diante de nós é simplesmente dizer que onde
não há frases não há verdade, que as frases são elementos de linguagens humanas e que as linguagens
humanas são criações do homem.

A verdade não pode estar diante de nós – não pode existir independentemente da mente humana – porque as
frases não podem existir dessa maneira ou estar diante de nós dessa maneira. O mundo está diante de nós,
mas as descrições do mundo não. Só as descrições do mundo podem ser verdadeiras ou falsas; o mundo por si
só – sem o auxílio das atividades descritivas dos seres humanos – não pode.

A ideia de que a verdade, tal como o mundo, está diante de nós é uma herança de uma época em que o mundo
era visto como criação de um ser que tinha a sua própria linguagem. Se deixarmos de tentar dar sentido à ideia
de tal linguagem não humana, não seremos tentados a confundir o truísmo de que o mundo pode fazer com que
tenhamos justificação para acreditar na verdade de uma frase com a tese de que o próprio mundo se divide, por
sua própria iniciativa, em fragmentos em forma de frase chamados “fatos”. Se, no entanto, passarmos à noção
de fatos auto-subsistentes, é fácil começar a escrever com maiúscula a palavra “verdade” e trata-la como sendo
algo de idêntico ou a Deus ou ao mundo enquanto projeto de Deus. Dir-se-á então, por exemplo, que a verdade
é boa e vencerá.

Tal fusão é facilitada pelo fato de se restringir a atenção a frases individuais e não a vocabulários. É que muitas
vezes deixamos que o mundo decida a competição entre frases alternativas (por exemplo: “ganha o vermelho” e
“ganha o preto” ou “foi o mordomo” e “foi o médico”). Em tais casos, é fácil associar o fato de que o mundo
contém as causas que nos levam a termos justificação para perfilhar determinada crença à tese de que há um
estado não linguístico do mundo, que, ele próprio, é um exemplo de verdade, ou que tal estado “torna
verdadeira uma crença” por “corresponder” a ela. As coisas não são, porém, tão fáceis quando passamos de
frases individuais para vocabulários no seu todo. Quando consideramos exemplos de jogos de linguagem
alternativos – o vocabulário da política ateniense antiga contra o de Jefferson, o vocabulário moral de São Paulo
contra o de Freud, o jargão de Newton o de Aristóteles, a linguagem de Blake contra a de Dryden – é difícil
pensar que o mundo torna um deles melhor do que o outro ou que o mundo decide entre eles. Quando
deslocamos a noção de “descrição” do mundo do nível de frases regidas por um critério no interior de um jogo
de linguagem para os jogos de linguagem no seu todo, jogos que não escolhemos por referência a critérios, já
não se pode dar um sentido claro à ideia de que o mundo decide quais as descrições são verdadeiras. Torna-se
difícil pensar que esse vocabulário é algo que já está diante de nós no mundo, à espera de que o descubramos.
Dirigir a atenção (do tipo da que é desenvolvida por estudiosos da história intelectual como Thomas Kuhn e
Quentin Skinner) para os vocabulários em que as frases são formuladas, e não para frases individuais, faz-nos
perceber, por exemplo, que o fato de o vocabulário de Newton nos permitir mais facilmente fazer previsões
sobre o mundo do que o de Aristóteles não significa que o mundo fale newtoniano.

O mundo não fala; só nós é que falamos. O mundo pode ser causa de perfilharmos crenças, uma vez
programados com uma linguagem. Não pode, no entanto, propor-nos uma linguagem para falarmos. Só outros
seres humanos é que o podem fazer. A tomada de consciência de que o mundo não nos diz quais os jogos de
linguagem que devemos jogar não deveria, no entanto, levar-nos a dizer que uma decisão sobre o jogo que há
que jogar é arbitrária, nem a dizer que é a expressão de algo de profundo que existe dentro de nós. A moral da
história não é a de que os critérios objetivos para a escolha de vocabulário têm de ser substituídos por critérios
subjetivos, que a razão tem que ser substituída pela vontade e pelo sentimento. É, isso sim, que as noções de
critério e de escolha (incluindo a de “escolha arbitrária”) deixam de ter sentido quando se trata de mudanças de
um jogo de linguagem para outro. A Europa não decidiu aceitar a linguagem da poesia romântica, nem a da
política socialista, nem a da mecânica de Galileu. Tal tipo de viragem não foi um ato de vontade, tal como não foi
o resultado de uma argumentação. Em vez disso a Europa gradualmente perdeu o hábito de utilizar certas
palavras e adquiriu gradualmente o hábito de usar outras.

Tal como Kuhn defende em “The Copernican Revolution”, nós não decidimos com base em quaisquer
observações telescópicas, nem com base em qualquer outra coisa, que a Terra não era o centro do Universo,
que o comportamento macroscópico podia ser explicado com base no movimento a nível das micro-estruturas,
nem que a previsão e o controle deveriam constituir o principal objetivo da teorização científica. Em vez disso, e
após cem anos de uma confusão inconcludente, os europeus deram consigo próprios a falar de um modo que
tomava como certas essas teses interligadas. Uma mudança cultural dessa magnitude não resulta da aplicação
de critérios (nem de “decisão arbitrária”), tal como as pessoas não se tornam teístas ou ateístas ou mudam de
cônjuge ou círculo de amigos em resultado quer da aplicação de critérios quer de actes gratuits. Não
deveríamos, nestas matérias, procurar quaisquer critérios de decisão dentro de nós, nem no mundo.
A tentação de procurar critérios constituiu uma classe dentro da tentação mais geral de pensar que o mundo ou
o eu do homem possuem uma natureza intrínseca, uma essência.

Págs. 28, 29 e 30:

O fenômeno que Hegel descreve é o que consiste em haver mais pessoas a oferecer mais redescrições radicais
de mais coisas do que alguma vez antes acontecera, de jovens atravessarem meia dúzia de saltos de “Gestalt”
espirituais antes de atingirem a idade adulta. O que os românticos exprimiram como sendo a tese de que a
imaginação, e não a razão, é a faculdade humana central foi a percepção de que o instrumento capital da
mudança cultural é um talento para falar de outra maneira e não para argumentar bem. O que os utopistas
políticos sentiram desde a Revolução Francesa não foi que uma natureza humana duradoura e da ordem do
substrato tivesse sido suprimida ou reprimida por instituições sociais “não naturais” ou “irracionais”, mas sim que
as linguagens e outras práticas sociais em mutação podiam produzir seres humanos de um tipo que nunca
anteriormente existira. Os idealistas alemães, os revolucionários franceses e os poetas românticos tinham em
comum um vago sentimento de que os seres humanos cuja linguagem mudara de tal forma que já não falavam
de si próprios como sendo responsáveis perante poderes não humanos se tornariam, dessa concepção, um
novo tipo de seres humanos.

A dificuldade que enfrenta um filósofo que, como eu, nutre simpatia por essa concepção – um filósofo que pensa
dele próprio que é auxiliar do poeta e não do físico – e a de evitar sugerir que tal ideia de alguma forma está
certa, que meu tipo de filosofia corresponde à maneira como as coisas de fato são. É que tal discurso de
correspondência recupera precisamente a ideia de que o meu tipo de filósofo pretende ver-se livre, a ideia de
que o mundo ou o eu tem uma natureza intrínseca.

(...) Dizer que não existe uma natureza intrínseca não é dizer que a natureza intrínseca da realidade se tenha
afinal revelado, assaz surpreendentemente, ser extrínseca. É dizer que a expressão “natureza intrínseca” é
uma expressão que nos valeria a pena não utilizar, uma expressão que gera mais dificuldades do que proveito.
Dizer que deveríamos abandonar a ideia de uma verdade que se encontra diante de nós à espera de ser
descoberta não é dizer que descobrimos que, diante de nós, não há qualquer verdade. É dizer que a melhor
maneira de servir os nossos fins seria deixar de ver a verdade como um assunto profundo, como matéria de
interesse filosófico, e de ver “verdadeiro” como sendo um termo que merece “análise”. A “natureza da verdade”
é um assunto que não proporciona qualquer proveito, assemelhando-se a este respeito à “natureza do homem”
e à “natureza de Deus” e distinguindo-se da “natureza do positrão” e da “natureza da fixação edipiana”. Mas
esta tese acerca da utilidade relativa equivale apenas à recomendação de que, de fato, devemos dizer pouco
acerta de tais assuntos e vermos como nos saímos.

Na perspectiva da filosofia que estou a apresentar não se deveria pedir aos filósofos argumentos contra, por
exemplo, a teoria correspondencial da verdade ou contra a ideia da “natureza intrínseca da realidade”. A
dificuldade dos argumentos contra a utilização de um vocabulário familiar e consagrado pelo tempo está em
esperar sejam formulados nesse mesmo vocabulário. Espera-se que mostrem que os elementos centrais desse
vocabulário são inconsistentes nos seus próprios termos ou que se descontroem a si próprios. Porém isso
nunca pode ser mostrado. Qualquer argumento no sentido de a nossa utilização familiar de um termo familiar
ser incoerente, vazia, confusa, vaga ou “meramente metafórica” está condenada a ser inconcludente e
questionável. É que, no fim das contas, tal utilização é o paradigma de um discurso coerente, dotado de
significado e literal. Tais argumentos parasitam sempre e constituem sempre abreviações de teses sobre a
existência de um vocabulário melhor. A filosofia que é interessante raramente é um exame dos prós e dos
contras de uma tese; regra geral, é implícita ou explicitamente uma competição entre um vocabulário instalado,
que se tornou prejudicial, e um novo vocabulário meio formado que vagamente promete grandes resultados

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