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Manuel Atienza

,..,
AS RAZOES DO DIREITO
TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Tradução de
Maria Cristina Guimarães Cupertino

LANDY
EDITORA
Título original:
Las Razones dei Derecho
Teorías de la Argumentación Jurídica

© desta edição:
Centro de Estudios Constitucionales Madri/Espana
e
Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda.
SUMÁRIO
Tradução:
Maria Cristina Guimarães Cupertino

Revisão:
Sylmara Beletti

Capa: Nota preliminar ...................... ........ ......... ......................................... 13


Camila Mesquita
CAPÍTULO 1
Editor:
Antonio Daniel Abreu DIREITO E ARGUMENTAÇÃO

Produção:
Kleber Kahn 1. Introdução .. .. .... ...... ......... .. ......... ...... ...... .......... ...... ........... ....... . 17
2. O âmbito da argumentação jurídica .......................................... 18
Editoração: 3. Contexto de descoberta e contexto de justificação. Explicar
ETCetera Editora de Livros e Revistas Ltda.
e justificar................................................................................. 20
Fones: (Oll) 3825-3504 / 3826-4945 / 3661-6380
Fax: (O ll) 3826-7770 4. O conceito de validade dedutiva............................................... 23
etceteraeditora@aol.com 5. Correção formal e correção material dos argumentos................ 28
6. Silogismo teórico e silogismo prático....................................... 29
l .ª edição, junho de 2000 7. Argumentos dedutivos e não dedutivos ..... ..... ............... ......... .. 31
2.ª edição, fevereiro de 2002
8. O silogismo judicial e seus limites............................................ 34
3." edição, setembro de 2003
9. Aspectos normativos e fáticos da argumentação jurídica ........ 37
10. Justificação interna e justificação externa ................................ 39
Direitos reservados para a língua portuguesa
11. Lógica jurídica e argumentação jurídica .... .......... ...... .... ....... .... 40

•LANDY

Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda.


AlamedaJaú, 1.791 -te!. e fax: (11) 3081-4169 (tronco-chave)
CAPÍTULO 2

A TÓPICA E O RACIOCÍNIO JURÍDICO

1. O contexto do surgimento da tópica jurídica............................ 45


CEP 01420-002 - São Paulo, SP, Brasil 2. Theodor Viehweg: Uma concepção tópica do raciocínio jurídico 47
landy@landy.com.br 2.1. O desenvolvimento histórico da tópica ............................ 47
www.Jandy.com.br 2.2. Características da tópica ............................................... .... 49
2003 2.3. Tópica e jurisprudência..................................................... 50
3. Considerações críticas............................................................... 52 CAPÍTULO 4

3.1. Imprecisões conceituais .................................................... 52 A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO DE TOULMIN


3.2. A fortuna histórica da tópica e da lógica.......................... 54
3.3. Tópica e justiça ................................................................. 54
1. Uma nova concepção da lógica ................................................ 93
3.4. Uma teoria da argumentação jurídica? ............................. 55
2. Uma concepção não formal da argumentação .... .................. ... . 95
3.5. Sobre o desenvolvimento da tópica jurídica..................... 56
2.1. Introdução. O que significa argumentar?.......................... 95
3.6. Sobre o caráter descritivo e prescritivo da tópica ............. 56
2.2. O modelo simples de análise dos argumentos ........... ....... 96
3.7. O que resta da tópica jurídica?.......................................... 57
2.3. O modelo geral. A força dos argumentos ......................... 99
2.4. Tipos de argumentos ......................................................... 101
CAPÍTULO 3
2.5. Tipos de falácias................................................................ 104
PERELMAN E A NOVA RETÓRICA 2.6. A argumentação jurídica................................................... 106
3. Avaliação crítica da concepção de Toulmin ............................. 109
1. O surgimento da nova retórica.................................................. 59 3.1. Uma superação da lógica? ................................................ 110
2. A concepção retórica do raciocínio prático .. ..... .. ................ ..... 61 3.2. A contribuição de Toulmin para uma teoria da argumentação 113
2.1. Lógica e retórica................................................................ 61
2.2. Os pressupostos da argumentação .................................... 62 CAPÍTULO 5
2.3. O ponto de partida da argumentação................................ 64 NEIL MACCORMICK:
2.4. As técnicas argumentativas............................................... 66
UMA TEORIA INTEGRADORA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
2.4.1. Classificação dos argumentos .... ............................ 66
2.4.2. Argumentos quase-lógicos..................................... 68
2.4.3. Argumentos baseados na estrutura do real............ 69 1. Introdução ..... .... ...... ............... ........ ................ ............. .............. 117
2.4.4. Argumentos que dão a base para a estrutura do real 71 1.1. A teoria padrão da argumentação jurídica .. ................... ... 117
2.4.5. Argumentos de dissociação ................................... 72 1 .2. Argumentação prática e argumentação jurídica segundo
2.4.6. Interação e força dos argumentos ............... ........... 73 MacCormick. Proposição geral ......................................... 119
3. A lógica jurídica como argumentação ...................................... 74 2. Uma teoria integradora da argumentação jurídica...................... 121
4. Uma avaliação crítica da teoria de Perelman ............................ 77 2.1. A justificação dedutiva ..................................................... 121
4.1. Uma teoria da razão prática.............................................. 77 2.2. Pressupostos e limites da justificação dedutiva. Casos
4.2. Crítica conceituai .............................................................. 78 fáceis e casos difíceis .................. ...... ................... ............. 123
4.2.1. Sobre a classificação dos argumentos ................... 78 2.3. A justificação nos casos difíceis. O requisito de
4.2.2. Sobre a força dos argumentos ........................ ........ 79 universalidade ................................................................... 126
4.2.3. O auditório universal ............................................. 80 2.4. A justificação de segundo nível. Consistência e coerência 128
4.3. Crítica ideológica .............................................................. 82 2.5. Os argumentos conseqüencialistas .................................... 132
4.4. Crítica da concepção de Direito e do raciocínio jurídico ... 85 2.6. Sobre a tese da única resposta correta. Os limites da
4.4.1. O conceito de positivismo jurídico........................ 85 racionalidade prática ................ ...... .......... ........ ...... ....... .. .. 135
4.4.2. A concepção tópica do raciocínio jurídico ............ 87 3. Crítica à teoria da argumentação jurídica de MacCormick ........ 139
4.4.3. Direito e retórica .................................................... 87 3.1. Sobre o caráter dedutivo do raciocínio jurídico............... 139
4.4.4. A retórica geral e a retórica jurídica .. ........... ......... 88 3.1.1. A reconstrução em termos lógicos do raciocínio
4.4.5. Dedução e argumentação....................................... 89 judicial .. ...... ....... .......... ....... ......... ....... ........ .. ....... .. .. 139
4.5. Conclusão.......................................................................... 90 3.1.2. Insuficiência da lógica preposicional .................... 140
3.1.3.
Dedução e consistência normativa ...................... .. 140 2.4. O discurso jurídico como caso especial do discurso prático
3.1.4.
O que significa subsumir? ..................................... . 141 geral. A teoria da argumentação jurídica............................ 172
3.1.5.
Dedução e conceitos indeterminados ................... . 143 2.4.1. Regras e formas da justificação interna .. .... ....... .... 173
3.1.6.
Necessidade lógica e poder discricionário judicial 143 2.4.2. Regras e formas da justificação externa................ 174
3.1.7.
Os juízos de valor no raciocínio judicial .............. . 144 2.4.2.1. Regras e formas da interpretação............. 175
3.1.8.
Verdade e Direito .................................................. . 146 2.4.2.2. Regras da argumentação dogmática......... 177
3.1.9.
Inferências normativas. Norma e proposição 2.4.2.3. Regras sobre o uso dos precedentes ........ 178
normativa .............................................................. . 147 2.4.2.4. Formas de argumentos jurídicos especiais 178
3.1.10. É necessária uma lógica das normas? ................. . 148 2.5 Os limites do discurso jurídico. O Direito como sistema de
3.1.11. O âmbito da dedução .......................................... . 149 normas (regras e princípios) e de procedimentos................ 179
3.2. Uma análise ideológica da teoria .................................... .. 150 3. Uma crítica à teoria da argumentação jurídica de Alexy .......... 183
3.2.1. O âmbito da argumentação ................................... . 150
3.1. Crítica à teoria do discurso em geral ................................ 183
3.2.2. Poder-se-iam justificar deduções contra legem? ... .. 150
3.1.1. Sobre o caráter do procedimento da teoria da
3.2.3. Conflitos entre os diversos requisitos da
verdade ou da correção ... ....... .... ..... ...... ......... ....... . 184
racionalidade ......................................................... . 151
3.1.2. Sobre o caráter comunicativo da fundamentação
3.2.4. "Justiça de acordo com o Direito" ........................ . 152
dos enunciados práticos ......................................... 186
3.3. Sobre os limites da razão prática ..................................... . 153
3.1.3. Sobre os limites do consenso................................. 190
3.3.1. Discordâncias teóricas e discordâncias práticas ... . 153
3.1.4. Sobre a fundamentação das regras do discurso..... 192
3.3.2. O pluralismo axiológico e seus limites ................ .. 154
3.2. Críticas à teoria do discurso jurídico ................................ 195
3.3.3. O espectador imparcial ......................................... . 154
3.2.1. Aspectos conceituais. Sobre a pretensão de correção 195
3.2.2. O alcance da teoria................................................. 201
CAPÍTULO 6
3.2.3. Crítica ideológica ................................................... 203
ROBERT ALEXY:
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO DISCURSO RACIONAL CAPÍTULO 7

PROJETO DE UMA TEORIA


1. Introdução................................................................................. 159
DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
1.1. Proposição geral: argumentação prático-geral e
argumentação jurídica....................................................... 159 1. Introdução ................................................................................. 211
1.2. A teoria do discurso de Habermas .................................... 160 2. O objeto da teoria...................................................................... 212
2. A teoria da argumentação jurídica de Alexy ............................ 163 3. Problemas metodológicos......................................................... 215
2.1. A teoria do discurso como teoria do procedimento. 3.1. Representação da argumentação ..... .... .. ..... .... ...... ... .. ....... . 216
Fundamentação das regras do discurso............................. 163 3.2. Critérios de correção ............ ............................................. 222
2.2. As regras e formas do discurso prático geral.................... 166 4. As funções da teoria da argumentação jurídica ........................ 224
2.2.1. As regras fundamentais.......................................... 166
2.2.2. As regras da razão.................................................. 166 Bibliografia....................................................................................... 227
2.2.3. As regras sobre a carga da argumentação.............. 167
2.2.4. As formas dos argumentos..................................... 167
2.2.5. As regras de fundamentação.................................. 169
2.2.6. As regras de transição ............................................ 170
2.3. Os limites do discurso prático geral.................................. 170
NOTA PRELIMINAR

O tema de que trata este livro, a argumentação jurídica, interes-


sa-me há muito tempo e por várias razões. A mais importante é que
eu não concebo - e por isso não iria tampouco pôr em prática - a
filosofia do Direito como uma disciplina fechada em si mesma e
elaborada não apenas por, mas também para filósofos do Direito.
Na minha opinião, a filosofia do Direito deve cumprir uma função
de intermediação entre os saberes e as práticas jurídicas, por um
lado, e o resto das práticas e saberes sociais, por outro. Isso signi-
fica também que os destinatários dos textos de filosofia do Direito
não deveriam ser apenas outros filósofos do Direito, mas também -
e até fundamentalmente - os cultivadores de outras disciplinas,
jurídicas ou não, assim como os juristas com atuação prática e os
estudantes de Direito.
Uma vez que a prática do Direito consiste de modo muito funda-
mental em argumentar, não haveria por que parecer estranho que os
juristas com alguma consciência profissional sentissem curiosidade
pelas questões sobre as quais versa este livro. O que significa argu-
mentar juridicamente? Até que ponto a argumentação ética ou a
argumentação política ou, inclusive, a argumentação na vida comum
ou na ciência se diferenciam da argumentação jurídica? Como se
justificam logicamente as decisões jurídicas? Qual é o critério de
correção dos argumentos jurídicos? O Direito oferece uma única
resposta correta para cada caso? Quais são, em suma, as razões do
Direito: não a razão de ser do Direito, e sim as razões jurídicas
que servem de justificação para uma determinada decisão?
Mas se essas questões são - como suponho - relevantes para a
prática do Direito, terão de sê-lo também para a dogmática jurídi-
ca - cuja justificação, em última instância, só pode derivar dos
serviços que ela é capaz de prestar àquela - e, a fortiori, para os
14 • MANUEL ATIENZA AS RAZÕES DO DIREITO • 15

estudantes de Direito que, supõe-se, são quem, no futuro, deverá de Alexy, que configuram o que se poderia chamar de teoria padrão
continuar - e oxalá também renovar! - o trabalho em um e outro (atual) da argumentação jurídica. Com relação à obra desses cinco
campo. Finalmente, parece-me que os cultivadores de outras ciên- autores, segui um mesmo método expositivo que, talvez, possa pa-
cias sociais ou de outros ramos da filosofia encontrariam prova- recer excessivamente linear, mas que julgo útil do ponto de vista
velmente nas diferentes tradições de reflexão sobre o Direito - e pedagógico: em primeiro lugar me esforcei por apresentar um resu-
em particular na teoria da argumentação jurídica - muito mais do mo - às vezes bastante amplo - compreensível e não distorcido das
que em princípio poderiam - e parecem efetivamente - pensar. A idéias do autor em questão sobre a argumentação; depois quis mos-
habitual falta de cultura jurídica desses especialistas explica seu trar quais são as principais objeções que cabe dirigir a essa concep-
freqüente desinteresse - ou até mesmo desdém - intelectual ao ção. Finalmente, no último capítulo apresento - na forma de um
contemplarem o mundo do Direito, fato que, embora sem grande simples projeto - minha idéia de como deveria ser uma teoria ple-
relevância em si mesmo, acaba sendo grave porque com isso eles namente desenvolvida e crítica da argumentação jurídica, que espe-
se privam de poder entender aspectos essenciais da sociedade. ro desenvolver nos próximos anos.
Apresso-me a declarar que não pretendo ter escrito um livro ca- Na verdade devo dizer que este é um livro que eu nunca quis
paz de interessar a um público tão amplo quanto o referido anterior- escrever - embora possa parecer estranho que o ato de escrever um
mente ou que ofereça respostas adequadas a questões tão importantes livro seja um exemplo de ação não-intencional-, no sentido de que
como são - na minha opinião - as apontadas acima. Gostaria de ter o meu objetivo era - e é - uma investigação mais ampla do que
feito isso, mas sou perfeitamente consciente de tê-lo conseguido ape- partir de uma exposição crítica das teorias da argumentação jurídica
nas em escassa medida. Isso não me impede, no entanto, de conti- existentes para, com base nela, desenvolver uma concepção própria.
nuar achando que esses são os objetivos a serem perseguidos - pelo O livro que eu gostaria de ter escrito - e que talvez ainda escreva -
menos normalmente - pelos trabalhos de filosofia do Direito, que deveria ser algo assim como a foto revelada - e ampliada - do que
não precisam perder nada do seu rigor pelo fato de se dirigirem a agora é o negativo.
um público amplo; não creio que na filosofia do Direito - e nem Quanto à elaboração deste livro (que o leitor tem em mãos ou,
provavelmente em nenhuma, ou quase nenhuma, ciência social ou pelo menos, não muito longe delas), sua origem são os cun~os de
ramo filosófico - haja algo de real importância que não possa ser filosofia do Direito que venho ministrando nos últimos anos na Fa-
dito de maneira compreensível para qualquer pessoa medianamente culdade de Direito da Universidade de Alicante, assim como diver-
culta e disposta a despender um esforço sério para entendê-lo. As sos seminários desenvolvidos no Centro de Estúdios Constituciona-
dificuldades que precisam ser enfrentadas nessa disciplina são de les, em Madri, no Instituto Tecnológico de México e na Universida-
outro tipo e se relacionam mais com a falta de idéias ou com a falta de Pompeu Fabra de Barcelona. A todos os que tiveram de me es-
de idéias claras. Só espero que o leitor não vá descobrir, exatamente cutar na ocasião, desejo agradecer a paciência e, acima de tudo, as
nessa ocasião, que tais carências não impedem que se escrevam observações e comentários que me dirigiram e que, sem dúvida,
muitas páginas sobre um tema. contribuíram em grande medida para esclarecer conceitos e corrigir
Os sete capítulos do livro estão estruturados da seguinte manei- erros. Finalmente - e de modo muito especial - tenho de agradecer
ra: o primeiro pretende oferecer uma introdução geral aos conceitos a ajuda que me deram meus companheiros do Seminário de Filoso-
básicos da teoria da argumentação jurídica, tomando como ponto de fia do Direito da Universidade de Alicante, que debateram comigo
partida a noção de inferência dedutiva. Os três seguintes são dedi- todos e cada um dos capítulos e itens do livro. Uma discussão pro-
cados à obra dos três autores que podem ser considerados os pre- funda de um trabalho não garante um bom livro, mas pelo menos
cursores - na década de 50 - da atual teoria da argumentação jurí- resulta num livro melhor do que se ela não tivesse ocorrido. O lei-
dica e que têm em comum, precisamente, a rejeição da lógica for- tor julgará se isso é suficiente.
mal dedutiva como modelo que serve de base para o desenvolvi-
mento dessa teoria; refiro-me à tópica de Viehweg, à nova retórica
de Perelman e à lógica informal de Toulmin. No quinto e no sexto
capítulos estudo, respectivamente, as concepções de MacCormick e
CAPÍTULO 1

DIREITO E ARGUMENTAÇÃO

1. Introdução

Ninguém duvida que a prática do Direito consista, fundamen-


talmente, em argumentar, e todos costumamos convir em que a
qualidade que melhor de'fine o que se entende por um "bom ju-
rista" talvez seja a sua capacidade de construir argumentos e
manejá-los com habilidade. Entretanto, pouquíssimos juristas le-
ram uma única vez um livro sobre a matéria e seguramente mui-
tos ignoram por completo a existência de algo próximo a uma
"teoria da argumentação jurídica". Este livro pretende expor - aliás
de modo incompleto - o que significa argumentar juridicamente,
e além disso mostrar como outros autores têm definido esse tipo
de argumento. Evidentemente alguém pode evidenciar uma boa -
até mesmo excelente - capacidade argumentativa e ao mesmo
tempo ter muito pouco a dizer sobre essas duas questões. Mas essa
circunstância (sem dúvida feliz) parece compatível com a preten-
são de que um livro como este - de teoria do Direito - possa
despertar, pelo menos em princípio, algum interesse entre os ju-
ristas em geral.
Neste primeiro capítulo apresentarei o que podem ser consi-
derados os conceitos básicos da teoria da argumentação jurídi-
ca e tentarei esclarecer, particularmente, a noção de argumento
dedutivo.
18 • MANUEL ATIENZA AS RAZÕES DO DIREITO • 19

2. O âmbito da argumentação jurídica Finalmente, o_ terceiro âmbito em que se verificam argumen-


tos jurídicos é o da dogmática jurídica. A dogmática é, sem
A teoria (ou teorias) da argumentação jurídica tem como objeto dúvida, uma atividade complexa, na qual cabe distinguir essen-
de reflexão, obviamente, as argumentações produzidas em contex- cialmente as seguintes funções: 1) fornecer critérios para a pro-
tos jurídicos. Em princípio pode-se distinguir três diferentes cam- dução do Direito nas diversas instâncias em que ele ocorre; 2) ofe-
pos jurídicos em que ocorrem argumentações. O primeiro é o da recer critérios para a aplicação do Direito; 3) ordenar e sistema-
produção ou estabelecimento de normas jurídicas. Aqui, por sua vez, tizar um setor do ordenamento jurídico. As teorias comuns da
se poderia fazer uma diferenciação entre as argumentações que acon- argumentação jurídica se ocupam também das argumentações que
tecem numa fase pré-legislativa e as que se produzem na fase pro- a dogmática desenvolve para cumprir a segunda dessas funções.
priamente legislativa. As primeiras se efetuam como conseqüência Esses processos de argumentação não são muito diferentes dos
do surgimento de um problema social, cuja solução - no todo ou efetuados pelos órgãos aplicadores, uma vez que se trata de ofe-
em parte - acredita-se que possa ser a adoção de uma medida recer, a esses órgãos, critérios - argumentos - para facilitar-lhes
legislativa. Exemplo disso são as discussões a propósito da despe- (em sentido amplo) a tomada de uma decisão jurídica que con-
nalização ou não (e em que casos sim ou não) do aborto, da eutaná- siste em aplicar uma norma a um caso. A diferença que, não
sia ou do tráfico de drogas, ou da regulamentação do chamado "trá- obstante, existe entre os dois processos de argumentação poderia
fico de influências". Outro tipo de argumentações surge quando um ser assim sintetizada: enquanto os órgãos aplicadores têm de re-
determinado problema passa a ser considerado pelo Poder Legislativo solver casos concretos (por exemplo, se se deve ou não alimentar
ou por algum órgão do Governo, tendo ou não sido previamente à força os presos que estão em greve de fome para obter determi-
discutido pela opinião pública. Enquanto na fase pré-legislativa se nadas mudanças em sua situação carcerária), 1 o dogmático do
pode considerar que os argumentos têm, em geral, um caráter mais Direito se ocupa de casos abstratos (por exemplo, determinar quais
político e moral que jurídico, na fase legislativa os papéis se inver- são os limites entre o direito à vida e o direito à liberdade pessoal
tem,_ passando para o primeiro plano as questões de tipo "técnico- e qual dos dois deve prevalecer quando há conflito entre eles).
jurídico". Em todo caso, as teorias da argumentação jurídica de que Contudo, parece claro que a distinção não pode sempre (ou tal-
dispomos não se ocupam praticamente de nenhum desses dois con- vez quase nunca) ser feita de forma muito taxativa. Por um lado
textos de argumentação. porque o praticante precisa recorrer a critérios fornecidos pela
Um segundo campo em que se efetuam argumentos jurídicos é o dogmática, pelo menos quando enfrenta casos difíceis (por exem-
da aplicação de normas jurídicas à solução de casos, embora essa plo, para adotar uma decisão fundamentada na primeira questão
seja uma atividade levada a cabo por juízes em sentido estrito, por proposta acima seria necessário responder, antecipadamente, à se-
órgãos administrativos no sentido mais amplo da expressão ou por gunda), e ao mesmo tempo a dogmática se apóia também em casos
simples particulares. Aqui, novamente, caberia distinguir entre concretos. Por outro lado, porque ocorre de os tribunais (ou cer-
argumentações relacionadas a problemas concernentes aos fatos ou to tipo de tribunais) terem de resolver casos abstratos, isto é, suas
ao Direito (esses últimos, em sentido amplo, poderiam ser designa- decisões podem não consistir simplesmente em condenar X a
dos como problemas de interpretação). Pode-se dizer que a teoria pagar uma certa quantidade de dinheiro ou em absolver Y de um
da argumentação jurídica dominante se centra nas questões - os casos determinado delito, mas também em declarar que uma determi-
difíceis - relativas à interpretação do Direito e que são propostas nada lei é inconstitucional, que um regulamento é ilegal ou que
nos órgãos superiores da administração da Justiça. Mas a maior parte uma determinada norma deve ser interpretada num determinado
dos problemas que os tribunais como órgãos não-jurisdicionais do sentido; além disso alguns tribunais, ao decidirem um caso con-
Governo têm de conhecer e sobre os quais decidem é constituída de creto, criam jurisprudência, o que significa que a regra em que
problemas concernentes aos fatos, e assim os argumentos que ocor- baseiam a sua decisão - e que se expressa na ratio decidendi da
rem, suscitados pelos mesmos, recaem fora do campo de estudo das sentença - tem um caráter geral e abstrato, e conseqüentemente
teorias usuais da argumentação jurídica. vale para os casos futuros.
20 • MANUEL ATIENZA
AS RAZÕES DO DIREITO • 21

3. Contexto de descoberta e contexto de justifica- que a ideologia dos juízes (ou dos jurados) tenha um peso excessi-
ção. Explicar e justificar vo nas decisões a tomar (por exemplo, fazendo com que tenham mais
relevância outros elementos que fazem parte da decisão ou propon-
Na filosofia da ciência costuma-se distinguir (cf. Reichenbach, do ampliar as causas de rejeição de juízes ou jurados). E por outro
1951) entre o contexto de descoberta e o contexto de justificação lado pode-se descrever como o juiz em questão efetivamente funda-
das teorias científicas. Assim, de um lado está a atividade que con- mentou a sua decisão (baseou-se no argumento de que - de acordo
siste em descobrir ou enunciar uma teoria e que, segundo a opinião com a Constituição - o valor vida humana deve prevalecer sobre o
geral, não é suscetível de uma análise de tipo lógico; nesse plano, valor liberdade pessoal); ou então se pode dispor ou sugerir - o que
cabe unicamente mostrar como se gera e se desenvolve o conheci- exige por sua vez uma justificação - como o juiz deveria ter funda-
mento científico, o que constitui tarefa para o sociólogo e o histo- mentado a sua decisão (sua fundamentação devia ter se baseado em
riador da ciência. Mas do outro lado está o procedimento que con- outra interpretação da Constituição que subordina o valor vida hu-
siste em justificar ou validar a teoria, isto é, em confrontá-la com os mana ao valor liberdade pessoal).
fatos a fim de mostrar a sua validade; essa última tarefa exige uma Em todo caso a distinção entre contexto de descoberta e contex-
análise de tipo lógico (embora não apenas lógico) e se rege pelas to de justificação nos permite, por sua vez, distinguir duas pers-
regras do método científico (que não são aplicáveis no contexto da pectivas de análise das argumentações: a primeira seria a perspec-
descoberta). Pode-se também estender a distinção ao campo da ar- tiva de algumas ciências sociais, como a psicologia social, que es-
gumentação em geral e ao da argumentação jurídica em particular boçaram diversos modelos para explicar o processo de tomada de
(cf. Wasserstrom, 1961, e Golding, 1984, págs. 22-3). Assim, uma decisões a que se chega, em parte, mediante o uso de argumentos.
coisa é o procedimento mediante o qual se estabelece uma determi- No campo do Direito, um desses modelos é o da informação inte-
nada premissa ou conclusão, e outra coisa é o procedimento que grada, elaborado por Martin F. Kaplan (cf. Kaplan, 1983). Segun-
consiste em justificar essa premissa ou conclusão. Se consideramos do ele, o processo de tomada de decisão por um juiz ou um jurado
o argumento que conclui afirmando ser "necessário alimentar à for- é resultado da combinação dos valores da informação com os da
ça os detentos do GRAPO", a distinção pode ser traçada entre as impressão inicial. O processo de decisão começa com a acumula-
causas psicológicas, o contexto social, as circunstâncias ideológicas ção de unidades de prova ou informação; a isso se segue o proces-
etc. que levaram um determinado juiz a emitir essa resolução, e as so de avaliação, em que a cada item informativo se atribui um va-
razões dadas pelo órgão em questão para mostrar que a sua decisão lor numa escala específica para o julgamento que está se desenvol-
é correta ou aceitável (que está justificada). Dizer que o juiz tomou vendo; o terceiro passo consiste em atribuir um peso para cada in-
essa decisão devido às suas fortes crenças religiosas significa enun- formação; depois a informação avaliada e sopesada é integrada num
ciar uma razão explicativa; dizer que a decisão do juiz se baseou julgamento singular, como por exemplo "probabilidade de culpabi-
numa determinada interpretação do artigo 15 da Constituição signi- lidade"; e finalmente se leva em conta a impressão inicial isto é
fica enunciar uma razão justificadora. De modo geral os órgãos ' '
os preconceitos do juiz ou do jurado, que podem provir tanto de
jurisdicionais ou administrativos não precisam explicar as suas de- condições circunstanciais (por exemplo, seu estado de humor no
cisões; o que devem fazer é justificá-las.2 momento do julgamento) quanto de condições ligadas à sua perso-
A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justifica- nalidade (por exemplo, preconceitos raciais ou religiosos). O mo-
ção não coincide com aquela existente entre discurso descritivo e delo não pretende explicar apenas como se decide (e se argumenta)
discurso prescritivo, a não ser pelo fato de que em relação tanto a de fato, mas também sugere o que se poderia fazer para reduzir o
um quanto ao outro contexto se pode adotar uma atitude descritiva peso dos preconceitos (dar um peso maior aos outros elementos)
ou prescritiva. Por exemplo, pode-se descrever quais são as causas ou, então, sob que condições os julgamentos com jurados (o que
que levaram o juiz a emitir uma resolução no sentido indicado (o implica também as argumentações dos jurados, que conduzem a uma
que significaria explicar a sua conduta), mas também se pode indi- determinada conclusão) poderiam ser tão confiáveis quanto os jul-
car ou recomendar determinadas mudanças processuais para evitar gamentos com juízes profissionais.
AS RAZÕES DO DIREITO • 23
22 • MANUEL ATIENZA

A segunda perspectiva seria a de outras disciplinas que estudam conclusões formuladas com caráter provisório" (pág. 109); que não
se pode aceitar a tese que apresenta o juiz "aplicando leis e princí-
sob que condições se pode considerar justificado um argumento.
pios aos fatos, isto é, adotando alguma regra ou princípio [... ] como
Aqui, por sua vez, caberia falar de uma justificação formal dos ar-
sua premissa maior, empregando os fatos do caso como premissa
gumentos (quando um argumento é formalmente correto) e de uma
menor e chegando então à resolução mediante processos de puro
justificação material (quando se pode considerar que um argumen-
raciocínio" (pág. 111 ); e que, resumindo, as "decisões se baseiam
to, num campo determinado, é aceitável). Isso permitiria distinguir
nos impulsos do juiz, que fundamentalmente não extrai esses im-
entre a lógica formal ou dedutiva, por um lado, e o que às vezes se
pulsos das leis e dos princípios gerais do Direito, mas sobretudo de
chama de lógica material ou informal (onde se incluiriam coisas tais
fatores individuais que, entretanto, são "mais importantes que qual-
como a tópica ou a retórica), por outro. quer coisa que poderia ser referida como preconceitos políticos,
A teoria padrão da argumentação jurídica se situa precisamente econômicos ou morais" (pág. 114).
nessa segunda perspectiva, isto é, no contexto de justificação dos Mais adiante voltarei a tratar do silogismo judicial, mas a distin-
argumentos, e em geral costuma ter pretensões tanto descritivas quan- ção que acabo de introduzir permite mostrar com clareza o erro em
to prescritivas; trata-se, portanto, de teorias (como as de Alexy ou que incorrem esses últimos autores, que não é outro senão o de con-
de MacCormick, abordadas mais adiante neste livro) que pretendem fundir o contexto de descoberta e o contexto de justificação. É pos-
mostrar como as decisões jurídicas se justificam de fato e também sível que, de fato, as decisões sejam tomadas, pelo menos em parte,
(e ao mesmo tempo, pois segundo eles os dois planos em geral coin- como eles sugerem, isto é, que o processo mental do juiz vá da con-
cidem) como deveriam elas ser justificadas. Tais teorias partem do clusão às premissas e inclusive que a decisão seja, sobretudo, fruto
fato de que as decisões jurídicas devem e podem ser justificadas, e de preconceitos; mas isso não anula a necessidade de justificar a
nesse sentido se opõem tanto ao determinismo metodológico (as de- decisão e tampouco converte essa tarefa em algo impossível; do
cisões jurídicas não precisam ser justificadas porque procedem de contrário seria preciso negar também que possa ocorrer a passagem
uma autoridade legítima e/ou são o resultado de simples aplicações das intuições às teorias científicas ou que, por exemplo, cientistas
de normas gerais) quanto ao decisionismo metodológico (as deci- que ocultam certos dados que se ajustam mal às suas teorias este-
sões jurídicas não podem ser justificadas porque são puros atos de jam por isso mesmo privando-as de justificação.
vontade) (cf. Neumann, 1986, págs. 2 e 3).
A primeira dessas duas posturas parece insustentável, especial-
mente no contexto do Direito moderno, no qual a obrigação estabe- 4. O conceito de validade dedutiva
lecida de "motivar" - justificar - as decisões contribui não só para
torná-las aceitáveis -, e isso é particularmente relevante nas socie- Disse anteriormente que a lógica formal ou dedutiva se ocupa
dades pluralistas que não consideram como fonte de legitimidade dos argumentos do ponto de vista de sua correção formal. Mas o
ou de consenso coisas tais como tradição ou autoridade -, como que significa isso mais precisamente? Para esclarecer essa definição
também para que o Direito possa cumprir a sua função de guia da de campo de estudo partirei de algo que é óbvio, a saber, que não
conduta humana (Golding, 1984, pág. 9); por outro lado, justificar apenas se argumenta em contextos jurídicos como também no âm-
uma decisão, num caso difícil, significa algo mais que efetuar uma bito dos vários conhecimentos especializados e no da vida cotidia-
operação dedutiva que consiste em extrair uma conclusão a partir na. Também na literatura defrontamo-nos muitas vezes com argu-
de premissas normativas e fáticas. E o mesmo ocorre com a segun- mentações, embora, evidentemente, a função principal das obras li-
da postura, isto é, com a opinião de que os juízes (ou os jurados) terárias não seja registrar argumentos, e sim expressar sentimentos,
não justificam - nem poderiam justificar propriamente - suas deci- narrar histórias, fabular etc. Entretanto, há um gênero literário par-
sões, e sim as adotam de forma irracional - ou então sem a partici- ticularmente denso em argumentações: trata-se do gênero policial,
pação da razão - e depois as submetem a um processo de raciona- cujo inventor - nas palavras de Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis
lização. Assim, alguns representantes do realismo americano - so- Borges (1972) - teria sido Edgard Allan Poe. Um de seus contos
bretudo Frank (1970) 3 - sustentaram, efetivamente, que as senten- mais célebres leva por título "A carta roubada"; nele se narra uma
ças judiciais "são desenvolvidas de modo retrospectivo, a partir de história que é aproximadamente esta:
24 • MANUEL ATIENZA
AS RAZÕES DO DIREITO • 25

Auguste Dupin (precursor de Sherlock Holmes, do padre Na lógica preposicional, a inferência poderia ser representada
Brown, de Hercule Poirot etc.) recebe, um dia, a visita do chefe aproximadamente (cf. Infra, cap. V, item 3.1.2) assim:
da polícia de Paris, que o consulta sobre o seguinte problema: um
documento da maior importância foi roubado na residência real. p ~ q
Sabe-se que o autor do roubo é o ministro D., que usa a carta como p
instrumento de chantagem contra uma dama da realeza. O minis-
tro certamente escondeu a carta em algum lugar da sua casa, mas q
o chefe da polícia, apesar de ter realizado uma busca minuciosa e
sistemática, não consegue encontrá-la. Dupin é bem sucedido no E, mais precisamente, na lógica de predicados de primeira or-
caso, graças a um processo de raciocínio que, grosso modo, é o dem:
seguinte: se a carta tivesse estado ao alcance da busca os agentes
a teriam descoberto, e, como a carta tem de estar na residência do Ax Px ~ Qx
ministro, isso quer dizer que a polícia não procurou direito. Dupin Pa
sabe que o ministro é uma pessoa audaz e inteligente, e que, além
disso, tem não apenas uma inteligência matemática como também Qa
- se assim se pode chamar - uma inteligência poética. Assim, o
ministro pôde prever que a sua casa seria revistada pela polícia e O argumento em questão é válido em termos lógicos porque a
que os homens do prefeito procurariam em todos os lugares onde conclusão é necessariamente inferida das premissas. Isso é fácil de
se supõe que uma pessoa pode deixar um objeto que deseja es- perceber graficamente. Se simbolizamos com P a classe dos poetas,
conder. Com base nisso, Dupin infere que o ministro teve de dei- com I a dos imbecis e com m o ministro (m - assinalado no gráfico
xar a carta num lugar muito visível, mas, precisamente por isso, com um ponto - designa um indivíduo, ao passo que P e / desig-
inesperado. E efetivamente ele encontra a carta numa caixa de nam classes ou conjuntos de indivíduos), a informação contida nas
papelão para cartões que pendia de uma tira azul sobre a lareira, duas premissas do argumento pode ser representada assim:
enrugada e manchada (como se se tratasse de algo sem importân-
cia) e exibindo um sinete e um tipo de letra no endereço de ca-
racterísticas opostas às da carta roubada (pois o envelope havia sido
convenientemente trocado). Dupin explica assim o fracasso do
chefe da polícia: "A causa remota do seu fracasso é a hipótese de
que o ministro é um imbecil porque tem fama de poeta. Todos os
imbecis são poetas; é isso que acha o chefe da polícia, e ele in-
corre numa non distributio medii ao inferir que todos os poetas Agora, se quiséssemos representar também a informação da con-
são imbecis" (pág. 33). clusão, perceberíamos que não precisaríamos acrescentar nada: a
Assim, de acordo com o relato, o chefe da polícia cometeu um informação da conclusão já estava incluída na das premissas, o que
erro de tipo lógico, uma falácia, pois da afirmação "todos os imbe- explica termos podido dizer que a passagem de umas para a outra é
cis são poetas" não se infere logicamente que "todos os poetas são necessária; ou seja, não é possível que as premissas sejam verdadei-
imbecis". A partir dessa afirmação - poderíamos acrescentar - o ras e a conclusão não seja. .
chefe da polícia fez um raciocínio logicamente válido, mas com uma Ao passo que a) é um exemplo de argumento válido logicamen-
premissa falsa: te, mas com uma premissa falsa; o argumento seguinte b) quase re-
presenta o caso oposto, quer dizer, aquele em que as premissas são
a) Todos os poetas são imbecis. verdadeiras (verdadeiras, naturalmente, em relação ao conto de Poe),
O ministro é poeta. mas o argumento é logicamente inválido. Concretamente, trata-se
Logo, o ministro é um imbecil. da falácia denominada afirmação do conseqüente;
AS RAZÕES DO DIREITO • 27
26 • MANUEL ATIENZA

Por fim, um exemplo de argumento válido logicamente e cujas


b) Todos os imbecis são poetas.
premissas são verdadeiras (e, portanto, também a sua conclusão) seria
O ministro é poeta.
este:
Logo, o ministro é imbecil.

d) Os ministros que são poetas não são imbecis. Ax Px" Qx ---? -Rx
E em notação lógica:
O ministro é poeta. Pa " Qa
Logo, o ministro não é imbecil. -Ra
Ax Px ~ Qx
Qa
Nesse caso, qualquer representação possível das premissas con-
Pa teria também a conclusão. Assim, um modo de representar a infor-
mação contida nas premissas seria este:
Para comprovar que esse é de fato um argumento logicamente
incorreto ou inválido, podemos submetê-lo à mesma prova anterior.
Mas uma representação que está de acordo com a informação con-
tida nas premissas poderia ser esta:

E, contudo, ela é incompatível com a informação que a conclu-


no qual, obviamente, está contida também a informação da conclusão.
são transmite. Assim, é nesse caso que é possível as premissas se-
Agora estamos sem dúvida em condições de entender melhor
rem verdadeiras, mas a conclusão, falsa.
a noção de argumento lógico, que pode ser definida da seguinte
Antes eu disse que a) e b) eram casos quase opostos. Se não são
maneira: "Temos uma implicação, ou uma inferência lógica, ou
de todo opostos é porque em ambos a conclusão, que é a mesma, é
falsa. No exemplo seguinte c) tanto as premissas quanto a conclu- uma argumentação válida (dedutivamente) quando a conclusão ne-
são são verdadeiras, mas apesar disso não se trata de um argumento cessariamente é verdadeira se as premissas são verdadeiras (Que-
logicamente válido: sada, 1985, pág. 9). A lógica, a lógica dedutiva, pode se apresen-
tar de forma axiomática ou como um sistema de regras de infe-
c) Todos os imbecis são poetas. Ax Px ---? Qx rência, mas essa segunda forma de apresentação é a que melhor
O ministro é poeta. Qa se ajusta à maneira natural de raciocinar. Isso porque, no modo
Logo, o ministro não é imbecil. -Pa axiomático de deduzir, parte-se de enunciados formalmente verda-
deiros (tautologias) e se chega, no final da dedução, a enunciados
Para provar a sua invalidade lógica, bastará fazer novamente uma também formalmente verdadeiros; enquanto que, no modo natu-
representação possível da informação contida nas premissas que, ral de fazer inferências dedutivas, é possível partir - e isso é o
contudo, contradiz a informação da conclusão. mais freqüente - de enunciados indeterminados em seu valor de
verdade, ou inclusive declaradamente falsos, e se chegar a enun-
ciados que podem ser verdadeiros ou falsos (cf. Deafío, pág. 146).
A única coisa que determina uma regra de inferência é que se as
premissas são verdadeiras, então a conclusão também tem neces-
sariamente de sê-lo. Os raciocínios indicados com a) e d) e os
28 • MANUEL ATIENZA AS RAZÕES DO DIREITO • 29

esquemas lógicos correspondentes são válidos em virtude da re- entretanto, distinguir entre argumentos manifestamente inválidos e
gra chamada modus ponens, que pode ser escrita assim: argumentos que parecem válidos mas não são, denominados falá-
cias. O problema, é claro, coloca-se a propósito da distinção entre
x~v os argumentos válidos e as falácias (os argumentos manifestamente
X inválidos não são problemáticos, uma vez que não podem levar à
confusão), coisa que a lógica dedutiva só consegue fazer pela meta-
y de. A razão disso é que não só existem falácias formais, isto é, ar-
gumentos que parecem corretos do ponto de vista formal - deduti-
(O uso das letras X e Y deve-se ao fato de que as regras são ex- vamente -, mas não são,5 como também falácias não formais. Estas,
pressas numa metalinguagem relacionada à das fórmulas da lógica por sua vez, podem se classificar em outras duas categorias, dando
para a qual empregamos as letras p, q, P, Q etc.). Ao contrário, os lugar às falácias de concernência e de ambigüidade. Nas primeiras,
raciocínios b) e c) e os esquemas correspondentes são inválidos lo- "as premissas não têm atinência lógica em relação às conclusões, e
gicamente, porque nenhuma regra de inferência lógica autoriza a portanto são incapazes de estabelecer a sua verdade" (Copi, 1986,
efetuar a passagem que neles se dá. pág. 83); assim ocorre, por exemplo, com o argumento ad ignono-
rantiam, com o argumento ad hominem ou com apetitio principii.
As segundas, pelo contrário, "aparecem em raciocínios cuja for-
5. Correção formal e correção material dos argumentos mulação contém palavras ou frases ambíguas, cujos significados
oscilam e mudam de modo mais ou menos sutil no curso do racio-
A caracterização feita do que é um argumento dedutivo apre- cínio" (Copi, 1986, pág. 194). Naturalmente, a lógica formal dedu-
senta, contudo, diversos motivos de insatisfação se passamos para tiva só nos fornece instrumentos plenamente adequados para fazer
o campo dos argumentos que se costuma articular no plano do frente às falácias formais.
Direito ou no da vida comum. Um primeiro motivo de insatisfação -
aliás óbvio - deriva precisamente do fato de que a lógica dedutiva
só nos oferece critérios de correção formais, mas não se ocupa das 6. Silogismo teórico e silogismo prático
questões materiais ou de conteúdo que, claramente, são relevantes
quando se argumenta em contextos que não sejam os das ciências Outro dos possíveis motivos de insatisfação provém do fato de
formais (lógica e matemática). Assim, por um lado, como vimos, a a definição de argumento válido dedutivamente (aquela que é en-
partir de premissas falsas pode-se argumentar corretamente do ponto contrada nos livros de lógica) se referir a proposições (premissas
de vista lógico; e, por outro lado, é possível que um argumento e conclusões) que podem ser verdadeiras ou falsas. Mas no Direi-
seja incorreto do ponto de vista lógico, embora a conclusão e as to, na moral etc. os argumentos que se articulam partem muitas
premissas sejam verdadeiras, ou pelo menos altamente plausíveis. 4 vezes de, e chegam a, normas; isto é, empregam um tipo de enun-
Em alguns casos a lógica aparece como um instrumento necessá- ciados em relação aos quais não parece que tenha sentido falar de
rio, mas insuficiente, para o controle dos argumentos (um bom verdade ou falsidade. Em conseqüência, surge o problema de se a
argumento deve sê-lo tanto do ponto de vista formal quanto do lógica se aplica ou não às normas. Por exemplo, Kelsen, sobretu-
material). Em outros casos é possível que a lógica (lógica deduti- do em sua obra póstuma, La teoría general de las normas (1979),
va) não permita nem sequer estabelecer requisitos necessários com sustentou enfaticamente que a inferência silogística não funciona
relação ao que deve ser um bom argumento; como veremos, um com relação às normas. As regras da lógica se aplicam ao silogis-
argumento não lógico - no sentido de não dedutivo - pode ser, mo teórico que se baseia num ato de pensamento, mas não ao
contudo, um bom argumento. silogismo prático ou normativo (o silogismo em que pelo menos
Por outras palavras, propor a questão da correção dos argumen- uma das premissas e a conclusão são normas), que se baseia num
tos significa propor o problema de como distinguir os argumentos ato de vontade (numa norma). Na tradição da filosofia do Direito,
corretos dos incorretos, os válidos dos inválidos. Aqui é possível, a questão costuma remontar a Jorgensen (1937), que propôs um
30 • MANUEL ATIENZA
AS RAZÕES DO DIREITO • 31

problema por ele denominado "quebra-cabeça", e que Ross (1941 E fica patente que essa informação contém também a da conclu-
e 1971) chamou de "dilema de Jorgensen". De acordo com Ross, são: p se encontra necessariamente dentro de D, isto é, dentro da
uma inferência prática como: classe das promessas que devem ser mantidas.
Evidentemente isso não soluciona um problema que tem um al-
Você deve manter as suas promessas. cance teórico indubitável. 7 Mas me parece que pode servir como pro-
Essa é uma das suas promessas. va de que, na vida comum, atribuímos às inferências práticas a mes-
Logo, você deve manter essa promessa. ma validade que às teóricas. Além do mais, parece-me que Gianfor-
maggio (1987; cf. também Ruiz Manero, 1990, pág. 71) tem razão ao
carece de validade lógica. Não é logicamente necessário que um considerar que os defensores da tese de que a lógica não se aplica às
sujeito que estabelece uma regra geral deva também estabelecer a normas estão, na verdade, confundindo os termos do problema, na
aplicação particular dessa regra. Que isso se verifique ou não de- medida em que não parecem ter reparado no caráter diferente dessas
pende de fatos psicológicos. Não é raro - acrescenta Ross - que um duas perguntas. 8 Por um lado, está a questão de se a relação que
sujeito formule uma regra geral, mas evite a sua aplicação quando mantêm entre si as normas válidas (no sentido de pertencentes a um
se vê afetado. sistema) são relações de tipo lógico. A resposta a essa pergunta é
Entretanto, se examinarmos bem, essa idéia é decididamente es- obviamente negativa, uma vez ser possível que normas contraditórias
tranha. Se A aceita como moralmente obrigatória a regra de que entre si pertençam a um mesmo sistema. Por exemplo, a um mesmo
"as promessas devem ser mantidas (todas as promessas e em qual- sistema moral poderia pertencer tanto a norma "devem-se cumprir
quer circunstância)" 6 e aceita como verdadeiro o fato de que pro- todas as promessas" quanto a norma "não tenho por que cumprir a
meteu a B acompanhá-lo ao cinema na tarde de quarta-feira, e con- promessa que fiz a B"; o sistema em questão ficaria pouco atraente
tudo sustenta também que apesar disso não se considera no dever devido precisamente ao fato de ser inconsistente do ponto de vista
de acompanhar B ao cinema nesse dia, seu comportamento é tão lógico, mas isso não vem ao caso. E por outro lado há a questão de se
irracional quanto o de quem considere enunciados verdadeiros "os é válido inferir uma norma de outra. A resposta a essa última pergun-
ministros que são poetas não são imbecis" e "X é um ministro que ta é absolutamente independente da anterior, e não vejo por que não
é poeta" e, entretanto, não esteja disposto a aceitar que X não seja há de ser afirmativa. Na realidade, o problema com que esbarramos
imbecil". Naturalmente, é possível que essas duas situações (tam- aqui é que, na definição de argumento dedutivo anteriormente aceita,
bém a segunda) ocorram de fato, mas isso não parece ter relação consideravam-se apenas enunciados suscetíveis de serem qualifica-
com a lógica, que - como a gramática - é uma disciplina prescritiva: dos como verdadeiros ou falsos, e essa característica - segundo opi-
não diz como os homens pensam ou raciocinam de fato, apenas nião generalizada, embora não unânime - é inerente às normas. Mas
como deveriam fazê-lo. o que isso comporta é a necessidade de corrigir aquela definição que
Para provar que o argumento anterior é um argumento corre- poderia agora ser assim formulada: "Temos uma implicação ou uma
to, podemos recorrer de novo às figuras utilizadas antes. Sendo inferência lógica ou uma argumentação válida (dedutivamente) quan-
P a classe das promessas, D a das promessas que devem ser do a conclusão é necessariamente verdadeira (ou seja, correta, justa,
mantidas (de acordo com a primeira premissa, ambas as classes válida etc.) se as premissas são verdadeiras (ou seja, corretas, justas,
têm a mesma extensão) e p a promessa concreta feita por A a B, válidas etc.)". Isso suscita alguns problemas lógicos de tipo técnico,
as premissas do raciocínio poderiam ser representadas por meio dos quais, entretanto, podemos prescindir aqui (cf. infra, capítulo
da seguinte figura: quinto, item 3.1).

7. Argumentos dedutivos e não dedutivos


p D
Mas ainda assim essa nova definição não resolve todos os pro-
.p
blemas. No item 5 vimos que um dos limites da lógica derivava do
32 • MANUEL ATIENZA AS RAZÕES DO DIREITO • 33

seu caráter formal. Agora, devemos nos fixar em outro limite que efetuar a verificação - estavam A e B (um homem e uma mulher
se liga ao seu caráter dedutivo, quer dizer, ao caráter de necessida- respectivamente). Na audiência o advogado de defesa e os acusa-
de que, de acordo com a definição, tem a passagem das premissas à dos, A e B, sustentaram que, embora os dois últimos vivessem jun-
conclusão. tos no mesmo apartamento, eles não mantinham mais que uma rela-
Se voltarmos de novo a "A carta roubada" e ao senhor Dupin, ção de amizade, dormiam em quartos diferentes e, concretamente, B
poderemos sintetizar (e simplificar) da seguinte maneira a argumen- não tinha conhecimento da existência da droga. Em decorrência dis-
tação que lhe permitiu descobrir o mistério: so, o advogado de defesa, em suas conclusões definitivas, solicitou
a absolvição de B. Entretanto a sentença, num dos seus "anteceden-
O ministro é um homem ousado e inteligente. tes do fato", considerou "fato provado" que A e B compartilhavam o
O ministro sabia que sua casa ia ser revistada. quarto referido e que, conseqüentemente, B tinha conhecimento e
O ministro sabia que a polícia procuraria em todos os lugares em que havia participado da atividade de tráfico de drogas, da qual ambos
fosse possível esconder uma carta.
eram acusados. A justificação que aparece é esta: "Os acusados (A e
Logo, o ministro deve ter deixado a carta num lugar tão "visível" que,
precisamente por isso, ela passou despercebida pelos homens do chefe B) compartilhavam a habitação referida, como prova - apesar de,
de polícia. na audiência, eles terem declarado não serem mais que simples ami-
gos - o testemunho dos dois policiais que fizeram a verificação e
Contudo, esse último não é, obviamente, um argumento deduti- que disseram ser essa a única cama que estava desfeita (a verifica-
vo, já que a passagem das premissas à conclusão não é necessária, ção foi realizada às 6 horas da manhã) e em cujo quarto estavam
mas apenas provável ou plausível. Poderia ter ocorrido, por exem- todos os objetos pessoais dos acusados, e o fato de que, em escrito
plo, que o ministro tivesse deixado a carta com um amigo íntimo, ao juiz de instrução (dirigido enquanto A estava cumprindo prisão
ou então que a houvesse ocultado tão bem que a polícia não tivesse preventiva), [... ] o acusado (A) se refere a (B) como 'minha mulher"'.
sido capaz de encontrá-la etc. A esse tipo de argumentos, nos quais Esquematicamente, o argumento seria o seguinte:
a passagem das premissas à conclusão não é necessariamente feita,
chama-se às vezes de argumentos indutivos ou não dedutivos. Deve- Havia apenas uma cama desfeita na casa.
se ter em conta, no entanto, que por "indução" não se entende aqui Eram 6 horas da manhã quando ocorreu a verificação.
Toda a roupa e os objetos pessoais de A e de B estavam na mesma
a passagem do particular para o geral: no caso anterior, por exem-
habitação em que se encontrava a cama.
plo, o que ocorre é um trânsito do particular para o particular. Além Meses depois, A se refere a B como "minha mulher".
do mais, os argumentos desse tipo são (ou podem ser) bons argu- Logo, na época em que se realizou a verificação, A e B mantinham re-
mentos, pois há muitas ocasiões em que nos deparamos com a ne- lações íntimas (e, conseqüentemente, B sabia da existência da droga).
cessidade de argumentar, sem que, no entanto, seja possível utilizar
argumentos dedutivos. 9 Isso ocorre, evidentemente, não apenas nos Como no exemplo anterior, o argumento não tem caráter deduti-
romances policiais como também na vida comum e no Direito. vo, pois a passagem das premissas à conclusão não é necessária,
Vejamos este exemplo, extraído de uma sentença recente da embora altamente provável. Se se aceita a verdade das premissas,
Audiência Provincial de Alicante (n. 477/89). A e B são acusa- então existe uma razão forte para aceitar também a conclusão, em-
dos do delito de tráfico de drogas tipificado no artigo 344 do bora, é claro, não possa haver certeza absoluta: teoricamente é pos-
Código Penal, com a concorrência da circunstância agravante do sível que B tivesse acabado de chegar em casa às 6 da manhã, que
artigo 344 rep. a) 3. º, pois a quantidade de heroína apreendida seus objetos pessoais estivessem na casa de A porque ele pensava
com eles (mais de 122 gramas de heroína pura) é considerada - em fazer uma limpeza em regra nos armários, e que, depois da de-
de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal - de "notó- tenção de ambos, a amizade existente entre eles tivesse se converti-
ria importância". A droga tinha sido encontrada pela polícia numa do numa relação mais íntima.
bolsa, escondida no travesseiro de uma cama de casal, situada no O argumento tem uma grande semelhança com o anterior (o
quarto de um apartamento onde - quando a polícia entrou para articulado por Dupin), mas talvez eles não sejam totalmente iguais,
34 • MANUEL ATIENZA AS RAZÕES DO DIREITO • 35

se se observa a extremidade seguinte. É certo que tanto Dupin quanto Esse tipo de esquema lógico que, mais simplificadamente, pode-
O autor (ou autores) da sentença se guiam em sua argumentação pelo ríamos escrever assim:
que poderíamos chamar "regras de experiência", que desempenham
aqui um papel semelhante ao das regras de inferência nos argumentos Ax Px ~ OOx
dedutivos. Contudo, para esses casos os magistrados não podem se Pa
servir unicamente das regras de experiência, pois eles precisam se
sujeitar também (ao contrário do detetive Dupin) às "regras proces-
suais de avaliação da prova". Por exemplo, um juiz pode estar pes-
ººª
soalmente convencido de que B também sabia da existência da dro- costuma ser chamado de "silogismo judicial" ou "silogismo jurídi-
ga (assim como Dupin estava quanto ao lugar onde a carta podia ser co", e serve ao mesmo tempo como esquema para o silogismo prá-
encontrada) e, entretanto, não considerar isso um "fato provado", tico ou normativo de que tratamos no item 6. A primeira premissa
pois o princípio da presunção de inocência (tal e como ele o inter- enuncia uma norma geral e abstrata na qual um caso concreto (x é
preta) exige que a certeza sobre os fatos seja não apenas altamen~e uma variável de indivíduo e P uma letra atributiva) aparece como
provável, mas sim - poderíamos dizer - absoluta. E, embora ~ªJª condição para uma conseqüência jurídica; o símbolo O indica que a
razões para não interpretar assim o princípio da presunção de mo-
conseqüência (R) deve em geral (pode se tratar de uma obrigação,
cência (pois do contrário seriam realmente muito poucos os atos
de uma proibição ou de uma permissão) se seguir quando se realiza
delituosos suscetíveis de ser considerados provados), o que interes-
o caso concreto, embora seja possível que, na realidade, não acon-
sa aqui é mostrar uma peculiaridade do raciocínio jurídico: o seu
teça isso. A segunda premissa representa a situação na qual se pro-
caráter fortemente institucionalizado.
duziu um determinado fato (a é um indivíduo concreto ao qual se
atribui a propriedade P) que recai sob o caso concreto da norma. E
8. O silogismo judicial e seus limites a conclusão estabelece que a a se deve juntar a conseqüência jurídi-
ca prevista pela norma.
Se agora quiséssemos escrever esquematicamente o tipo de ra- O esquema em questão apresenta, contudo, alguns inconvenien-
ciocínio químico que se utiliza na sentença anterior, poderíamos pro- tes. O primeiro deles é que há suposições (como a do exemplo men-
por a seguinte formulação: cionado), nas quais a conclusão do silogismo não representa a con-
clusão ou a decisão da sentença, e sim, por assim dizer, um passo
Quem realizar atos de tráfico de drogas numa quantidade de notória prévio para a mesma. Na sentença que tomamos como exemplo, a
importância deverá ser punido, de acordo com o artigo 344 e 344 rep. parte dispositiva não estabelece apenas que A e B devem ser conde-
a) 3.º do Código Penal, com a pena de prisão maior.* nados à pena de prisão maior, e sim, concretamente, à pena de oito
A e B cometeram esse tipo de ato. anos e um dia de prisão maior. 10 O argumento anterior poderia, por-
Logo, A e B devem ser castigados com a pena de prisão maior.
tanto, ser completado com este:
E em notação lógica:
A e B devem ser condenados à pena de prisão maior.
Na execução do delito referido não concorreram circunstâncias modifi-
Ax Px /\ Qx ~ ORx
cadoras da responsabilidade criminal.
Pa /\ Qa /\ Pb /\ Qb Quando não concorrem circunstâncias modificadoras da responsabili-
ORa /\ ORb dade criminal, os tribunais imporão a pena em grau mínimo ou médio
atendendo à gravidade do fato e à personalidade do delinqüente (art.
61, 4.º do Código Penal).
* De acordo com o Código Penal Espanhol, prisión mayor é a pena de prisão
Logo, A e B devem ser condenados à pena de oito anos e um dia de
que dura de seis anos e um dia até doze anos. (N. da T.) prisão maior (esse é o mínimo de pena permitido pela lei).
36 • MANUEL ATIENZA AS RAZÕES DO DIREITO • 37

Esse tipo de raciocínio é, contudo, um raciocínio não dedutivo, como "decidimos que devemos condenar, mas não condenamos",
pois a passagem das premissas à conclusão não tem caráter neces- mas não porque se trate de uma contradição de tipo lógico, e sim
sário (o tribunal podia ter imposto uma pena de até doze anos sem porque haveria nela uma contradição pragmática ou performativa
infringir a lei, isto é, sem contradizer as premissas). No entanto, (cf. capítulo sexto, item 3.2.1).
poderia ser considerado dedutivo (todo argumento indutivo pode se
converter em dedutivo se se acrescentam as premissas adequadas)
caso se entendesse incorporada (implicitamente) na argumentação 9. Aspectos normativos e fáticos da argumenta-
anterior uma premissa do seguinte teor: ção jurídica

A reduzida gravidade do fato e a personalidade não particularmente Num item anterior vimos que o estabelecimento da premissa
perigosa do delinqüente fazem com que se deva impor o mínimo da pena menor do silogismo judicial, a premissa fática, podia ser o resulta-
permitido pela lei.
do de um raciocínio de tipo não dedutivo. O mesmo pode acontecer
com relação ao estabelecimento da premissa maior, da premissa
Essa última premissa não enuncia uma norma do Direito vigen-
normativa. Um bom exemplo disso é a utilização do raciocínio por
te e nem supõe a constatação de que se produziu um determinado
analogia, que para muitos autores é o protótipo do argumento jurí-
fato, mas sim que o fundamento da mesma são, antes, juízos de
dico. Vejamos, com uma hipótese prática, como funciona a analo-
valor, pois "gravidade do fato" e "personalidade do delinqüente"
gia no Direito (cf. Atienza, 1986 e 1988).
não são termos que se refiram a fatos objetivos ou verificáveis de
Numa sentença de 17 de outubro de 1985 (137/1985) o Tribunal
algum modo; no estabelecimento dessa premissa, poderíamos dizer
Constitucional entendeu que o princípio constitucional de inviola-
que o arbítrio judicial desempenha um papel fundamental. Mas isso
bilidade do domicílio se estende também à sede social das empresas.
significa que o silogismo judicial não permite reconstruir satisfato-
O domicílio de uma pessoa jurídica é tão inviolável quanto a mora-
riamente o processo de argumentação jurídica, porque as premissas
dia de uma pessoa física. Conseqüentemente, a autorização para que
de que se parte - como ocorre nesse caso - podem precisar por sua
um inspetor ou um cobrador se apresente no domicílio social de uma
vez ser justificadas, e porque a argumentação jurídica é entimemá-
empresa deve ser estabelecida por um juiz de instrução, assim como
tica. Um argumento entimemático pode sempre ser proposto de
no caso de uma residência particular. Poderíamos esquematizar assim
forma dedutiva, mas isso supõe acrescentar premissas às explicita-
o argumento em questão:
mente formuladas, o que significa reconstruir, não reproduzir, um
processo argumentativo. 11 A residência de um indivíduo é inviolável.
Outro possível inconveniente consiste em que o silogismo ju- O domicílio social de uma empresa é semelhante ao de um indivíduo.
dicial conclui com um enunciado normativo que estabelece que Logo, o domicílio social de uma empresa é inviolável.
"A e B devem ser condenados", ao passo que, na decisão da sen-
tença, não apenas se diz isso como também se condena A e B. Em símbolos:
Essa distinção entre o enunciado normativo e o enunciado perfor-
mativo (o ato lingüístico da condenação) em que consiste propria- Ax Px ~ OQx
mente a decisão implica que, na mesma, está se fazendo uma pas-
Ax Rx ~ P'x
sagem do plano do discurso para o da ação, isto é, uma passagem
que recai fora da competência da lógica. É interessante deixar cla- Ax Rx ~ OQx
ro que na redação da parte dispositiva das sentenças - pelo menos
no nosso país - emprega-se uma cláusula de estilo que abriga preci- É óbvio que a conclusão não se segue dedutivamente das premis-
samente essa distinção: "Decidimos que devemos condenar e con- sas (P' = semelhante a P), mas o argumento- como sempre ocorre -
denamos" ou "devemos absolver e absolvemos". E interessante pode se tornar dedutivo se se acrescentar uma nova premissa que
observar que consideraríamos sem dúvida incorreta uma expressão estabeleça que tanto a residência de um indivíduo quanto o que é
38 • MANUEL ATIENZA AS RAZÕES DO DIREITO • 39

semelhante a ela é inviolável (em símbolos: x Px v P'x ~ OQx), l. Suponhamos que o direito de objeção de consciência seja apenas uma
isto é, se se dá um passo no sentido de generalizar ou de esten- causa de isenção do serviço militar.
der para casos não expressamente previstos na norma estabelecida 2. Mas se é apenas isso, então seria um despropósito qualificá-lo de
fundamental (ou seja, ele não pode ser qualificado de fundamental).
legalmente.
3. Mas o direito de objeção de consciência é um direito fundamental,
Outro argumento, utilizado com certa freqüência para estabe-
de acordo com o estabelecido pela Constituição.
lecer a premissa normativa quando não se pode partir apenas das 4. Da premissa I e 2 se depreende que o direito de objeção de cons-
normas fixadas legalmente, é a redução ao absurdo. Esse argumen- ciência não pode ser qualificado de fundamental.
to tem, em princípio, uma forma dedutiva, mas, tal e qual a uti- 5. As premissas 3 e 4 enunciam uma contradição.
lizam os juristas, a redução ao absurdo costuma ir além de uma 6. Portanto, não cabe supor que o direito de objeção de consciência
simples dedução, por duas razões: em primeiro lugar porque, com seja apenas uma causa de isenção do serviço militar.
freqüência, é preciso entender que determinadas premissas estão
simplesmente implícitas (e sem elas não teríamos a forma dedu- Em símbolos lógicos:
tiva do argumento); e em segundo lugar porque a noção de "ab-
surdo" utilizada pelos juristas não coincide exatamente com a de 1. Pa
"contradição lógica", e sim com a de "conseqüência inaceitável". 12 2. Pa ~ -Qa
No final das contas, do ponto de vista do seu caráter dedutivo ou 3. Qa
não dedutivo, esse tipo de argumento não difere muito do ante- 4. -Qa
rior; pode-se considerar - como acabamos de ver - que também
5. Qa -Qa
o argumento por analogia tem uma forma dedutiva, uma vez que
a norma estabelecida legalmente foi reformulada para incluir o 6. -Pa
novo caso. Vejamos agora um exemplo de argumento por redu-
ção ao absurdo.
A sentença do Tribunal Constitucional 160/1987, de 27 de ou- 1O. Justificação interna e justificação externa
tubro, acolhe a decisão do tribunal declarando a constitucional ida-
de da lei de objeção de consciência. Contudo, o tribunal chegou Voltemos novamente à distinção entre contexto de descoberta e
a essa decisão apenas por maioria; vários magistrados divergiram contexto de justificação, e concentremo-nos agora na noção de jus-
com relação a diversos aspectos da sentença. Um dos elementos tificação. Tanto no item 7 quanto no 8 e no 9, ofereceram-se exem-
importantes da fundamentação se referia a como os magistrados plos de raciocínios jurídicos que exibiam esquemas de justificação.
concebiam o direito de objeção de consciência (como um direito No 8 - e, um pouco antes, no 6 - vimos como se podia justificar
fundamental ou como um direito autônomo não-fundamental). Du- dedutivamente a passagem de uma premissa normativa e de uma
rante a argumentação (para sustentar que se tratava de um direito premissa fática para uma conclusão normativa. Nos casos jurídicos
fundamental), um dos magistrados que divergiam afirmou não po- simples ou rotineiros, pode-se considerar que o trabalho argumenta-
der o direito de objeção de consciência ser considerado apenas tivo do juiz se reduza a efetuar uma inferência desse tipo (que de
como uma isenção do serviço militar (portanto, simplesmente todas as formas, e sem necessidade de sair dos casos simples, pode
como um direito autônomo, mas não-fundamental), e justificou oferecer mais complicações do que as sugeridas pelo esquema; bas-
sua proposição assim: "Embora o direito de objeção de consciên- ta pensar que, na realidade, em qualquer caso jurídico que se procu-
cia possa ser, e de fato seja, uma causa de isenção do serviço re resolver se aplica um número muito elevado de normas e que,
militar, ele não é apenas isso, porque se assim fosse seria um por exemplo, no Direito Penal é preciso passar da solução parcial-
despropósito qualificá-lo de fundamental". Acrescentando algu- mente indeterminada contida no Código - prisão maior - para a so-
mas premissas que é preciso entender como implícitas, o argumen- lução plenamente determinada - oito anos e um dia - contida na
to poderia ser assim escrito: sentença). Mas, naturalmente, além dos casos simples há também
40 • MANUEL ATIENZA AS RAZÕES DO DIREITO • 41

casos difíceis (de que se ocupa em especial a teoria da argumenta- normas, um problema típico da lógica do Direito ou - como hoje se
ção jurídica), isto é, suposições nas quais a tarefa de estabelecer a costuma denominar - da lógica deôntica ou das normas.
premissa fática e/ou a premissa normativa exige novas argumenta- A análise lógica dos raciocínios jurídicos - a lógica dos juris-
ções que podem ou não ser dedutivas. Wróblewski (e a sua termi- tas - é um campo de estudo tradicional da teoria do Direito. Con-
nologia é hoje amplamente aceita) chamou ao primeiro tipo de jus- tudo a utilização da lógica formal moderna - isto é, da lógica
tificação, o que se refere à validade de uma inferência a partir de matemática ou lógica simbólica - para esses propósitos é algo que
premissas dadas, justificação interna. E ao segundo tipo de justifi- ocorreu basicamente a partir da Segunda Guerra Mundial. A obra
cação, o que põe à prova o caráter menos ou mais fundamentado de que se costuma considerar como pioneira é a Juristische Logik de
suas premissas,justificação externa (Wróblewski, 1971 e 1974). A Ulrich Klug, cuja primeira edição data de 1951, embora - como
justificação interna é apenas questão de lógica dedutiva, mas, na explica o autor no prólogo - sua concepção da lógica jurídica já
justificação externa, é preciso ir além da lógica em sentido estrito. estivesse elaborada desde 1939. 13 Klug parte de uma concepção
As teorias da argumentação jurídica que vamos estudar nos capítu- da lógica geral como "teoria da conseqüência lógica" (pág. 2), o
los seguintes deste livro se ocupam fundamentalmente desse segun- que lhe permite distinguir entre argumentos válidos e não válidos
do tipo de justificação. do ponto de vista lógico-formal. A lógica jurídica seria uma parte
especial dessa lógica geral, ou seja, "a teoria das regras lógico-
formais que são empregadas na aplicação do Direito" (pág. 8).
11. Lógica jurídica e argumentação jurídica E nela, por sua vez, ele distingue entre a forma básica do racio-
cínio jurídico - o que chamamos de silogismo judicial ou jurídi-
Antes de passar a considerar essas teorias, convém esclarecer um co -, que, na sua opinião, seria uma aplicação ao campo do Di-
último ponto: como a argumentação jurídica (ou a teoria da argu- reito do silogismo tradicional modus barbara; e os argumentos
mentação jurídica) se relaciona com a lógica jurídica. especiais da lógica jurídica. Nessa última categoria incluem-se: o
Por um lado, se pode dizer que a argumentação jurídica vai além raciocínio por analogia (ou a simili), o raciocínio a contrario, os
da lógica jurídica porque, como vimos anteriormente, os argumen- argumentos a fortiori (a maiore ad minus e a mino ri ad maius),
tos jurídicos podem ser estudados também de uma perspectiva que o argumentum ad absurdum e os argumentos interpretativos; es-
não é a da lógica: por exemplo, da perspectiva psicológica ou so- tes são os que servem para estabelecer as premissas dos raciocí-
ciológica, ou então da perspectiva não formal, às vezes chamada de nios dedutivos - seriam os meios a utilizar no que chamamos de
"lógica material" ou "lógica informal", e outras vezes de "tópica", "justificação externa" - e não fazem parte propriamente da lógi-
"retórica", "dialética" etc. ca jurídica: são "princípios para a interpretação, não problemas
Por outro lado, a lógica jurídica vai além da argumentação jurí- lógico-jurídicos" (pág. 197).
dica no sentido de que tem um objeto de estudo mais amplo. Para Em sua análise dos raciocínios jurídicos, Klug não leva em con-
esclarecer isso podemos utilizar uma conhecida distinção feita por ta, entretanto, a lógica deôntica ou lógica das normas. Essa discipli-
Bobbio (1965) dentro da lógica jurídica. Na sua opinião a lógica na se desenvolve também a partir de 1951 (ano em que aparece o
jurídica seria constituída pela lógica do Direito, que se concentra ensaio de George H. von Wright, Deontic logic) e leva à concepção
na análise da estrutura lógica das normas e do ordenamento jurídi- da lógica jurídica tanto como lógica do Direito quanto como lógica
co, e pela lógica dos juristas, que se ocupa do estudo dos diversos dos juristas - não como uma aplicação da lógica formal geral ao
raciocínios ou argumentações feitos pelos juristas teóricos ou práti- campo do Direito, e sim como uma lógica especial, elaborada a partir
cos. Naturalmente esses dois campos de estudo não podem se sepa- das modalidades deônticas de obrigação, proibição e permissão. Esses
rar de maneira taxativa: por exemplo, a construção do silogismo operadores deônticos podem, assim, ser utilizados - como fizemos
jurídico não pode ser feita desconsiderando-se a análise lógica das anteriormente - para dar conta dos (ou de alguns dos) raciocínios
normas jurídicas, já que - como vimos - uma de suas premissas e a jurídicos. Vejamos, de modo resumido, como se propõe essa tarefa
conclusão são normas; e quando discutimos a questão de se a lógica um autor como Kalinowski, que foi também um dos fundadores da
se aplica ou não às normas, surgiu o problema das contradições entre lógica deôntica.
42 • MANUEL ATIENZA AS RAZÕES DO DIREITO • 43

Kalinowski (1973) considera raciocínios jurídicos aqueles que são 2. "As razões explicativas se identificam com os motivos. Elas se compõem
exigidos pela vida jurídica, e apresenta para eles uma dupla classi- de estados mentais que são antecedentes causais de certas ações. O caso
central de razão explicativa ou motivo é dado por uma combinação de
ficação. Por um lado, distingue entre raciocínios de coação intelec-
crenças e desejos [... ]. As razões justificadoras ou objetivas não servem
tual (lógicos), de persuasão (teóricos) e propriamente jurídicos (os para entender por que se realizou uma ação ou eventualmente para pre-
que se baseiam em suposições, prescrições, ficções etc. estabelecidas ver a execução de uma ação, e sim para avaliá-la, para determinar se ela
pela lei). Por outro lado, ele separa os raciocínios normativos (em foi boa ou má segundo diferentes pontos de vista" (Nino, 1985, pág. 126).
que pelo menos uma das premissas e a conclusão são normas) dos 3. A crítica de Frank se encontra num dos capítulos, "The judging process
não-normativos (que seriam jurídicos apenas por acidente). Os ra- and the judge's personality", daquela que provavelmente é a sua obra mais
ciocínios normativos, por seu lado, podem ocorrer no plano da ela- conhecida, Law and the modem mind, cuja primeira edição é de 1930.
boração, da interpretação ou da aplicação do Direito. Concretamen- 4. Em geral um argumento, do ponto de vista lógico, pode ser correto, em-
te, no plano da interpretação do Direito utilizam-se tanto argumentos bora o que se diz nas premissas não seja relevante ou pertinente em rela-
extralógicos, baseados em meios puramente jurídicos (por exemplo, ção ao estabelecido na conclusão. Isso ocorre devido ao caráter puramente
sintático da noção de inferência da lógica dedutiva. Para evitar isso,
os argumentos a rubrica, pro subjecta materia etc.), quanto argu-
desenvolveram-se as chamadas lógicas relevantes, nas quais se fortalece
mentos paralógicos, que se baseiam em técnicas retóricas (por exem- essa noção de inferência, fazendo com que a relação de conseqüência
plo, os argumentos ab autoritate, a generali sensu, ratione legis lógica também seja uma relação entre os significados e os enunciados;
estricta etc.) e argumentos lógicos, que se baseiam na lógica formal cf. Sánchez Pozos, 1990.
propriamente dita (por exemplo, argumentos a fortiori, a maiori, a 5. Por exemplo, o argumento assinalado antes como b) que, como já disse,
pari e a contrario). Contudo, os argumentos estritamente lógicos é um caso de falácia da afirmação do conseqüente. Sobre o conceito de
são regidos tanto por regras lógicas em sentido estrito (as da lógica falácia, cf. Pereda, 1986.
deôntica fazem parte da lógica formal dedutiva) quanto por regras 6. Outra coisa é pensar que a primeira premissa enuncia na realidade uma
extralógicas, isto é, por regras jurídicas de interpretação do Direito. obrigação primafacie. Nesse caso poderia ser que, na verdade, se tivesse
Além disso, Kalinowski considera que o primeiro tipo de regras se em principio a obrigação de manter as promessas, mas não a de manter
uma determinada promessa (porque aqui atua outra obrigação de sinal
subordina ao segundo, o que poderia ser entendido no sentido de
contrário que cancela a anterior). Mas isso, naturalmente, não quer dizer
que a justificação interna depende da (ou é um momento logica- que em tal situação deixem de atuar as leis da lógica, mas sim que a
mente posterior ao da) justificação externa. primeira premissa enuncia uma norma não-categórica ou, talvez melhor,
um princípio. Sobre a natureza da premissa maior nos silogismos tratarei
Notas mais adiante, a propósito da concepção de Toulmin (quarto capítulo). E
sobre o que se deve entender por "princípios" (e o papel que eles desem-
l. No final de 1989, vários presos dos Grupos Anfascistas Primero de penham no raciocínio jurídico) falarei com algum vagar nos capítulos de-
Octubre (GRAPO) declararam-se em greve de fome como medida para dicados a MacCormick e a Alexy (sexto e sétimo, respectivamente).
conseguir algumas melhorias em sua situação carcerária; com isso eles 7. Mais adiante, no capítulo dedicado à teoria da argumentação jurídica de
basicamente pressionavam no sentido da reunificação dos membros do MacCormick, esse problema voltará a aparecer.
grupo num mesmo centro penitenciário, o que significava modificar a 8. Gianformaggio propõe outra questão, da qual prescindo aqui.
política governamental de dispersão dos presos por delito de terrorismo.
9. Esse tipo de argumento poderia se denominar também, segundo Peirce,
Nos meses seguintes, vários juízes da vigilância penitenciária e vários
abdução. Para Peirce (cf. Sebeok e Umiker-Sebeok, 1987) a abdução -
tribunais provinciais tiveram de se pronunciar sobre se cabia ou não au-
que às vezes é também chamada de hipótese ou retradução - é um tipo
torizar a alimentação à força desses presos quando sua saúde estivesse
de argumentação diferente tanto da dedução quanto da indução, pois se
ameaçada, precisamente em conseqüência da longa duração da greve de
fome. A solução dada por alguns órgãos judiciais foi considerar que o trata de um "argumento original", no sentido de que com ele surge uma
governo autorizava a alimentação dos presos à força mesmo quando eles idéia nova: "Na realidade 'a sua única justificativa é que se alguma vez
se encontrassem em estado de plena consciência e manifestassem sua quisermos entender totalmente as coisas, deverá ser a partir dele'. Do
repulsa à medida. Outros, pelo contrário, entenderam que o governo só mesmo modo, 'a dedução e a indução nunca podem oferecer a menor
estava autorizado a tomar esse tipo de medida quando o preso tivesse per- informação aos dados da percepção; e[ ... ] as meras percepções não cons-
dido a consciência. Uma análise das diversas argumentações levadas a tituem nenhum conhecimento aplicável a nenhum uso prático ou teórico.
cabo a propósito desse caso pode ser vista em Atienza, l 990a. O que faz com que o conhecimento se apresente por meio da abdução'"
44 • MANUEL ATIENZA

(pág. 351). Vejamos - seguindo sempre a exposição de Sebeok e Umiker-


Sebeok - um exemplo de abdução oferecido pelo próprio Peirce: "Certa
ocasião desembarquei num porto de uma província da Turquia e subi,
passeando, até uma casa à que ia em visita. Encontrei um homem num
cavalo, rodeado de quatro cavaleiros que, sobre a cabeça dele, sustinham
um dossel. O governador da província era o único personagem que podia
ter uma honra tão grande, portanto inferi que aquele homem era ele. Isso
era uma hipótese" (pág. 73). Como o leitor provavelmente já adivinhou -
isto é, abduziu -, dessa forma de raciocinar pode-se encontrar exemplos CAPÍTULO 2
abundantes nos romances policiais. As famosas "deduções" de Sherlock
Holmes não seriam, assim, outra coisa senão abduções, no sentido em
que Peirce emprega essa expressão. Para uma visão geral da obra de
A TÓPICA E O RACIOCÍNIO JURÍDICO
Peirce, veja-se Proni, 1990.
10. Também a uma pena de multa da qual se prescinde aqui.
11. A circunstância de que o raciocínio jurídico - e o raciocínio que se rea-
liza na vida comum - não obedece totalmente à noção de inferência lógi-
ca - de inferência dedutiva - levou à criação de lógicas nas quais a rela-
ção de inferência é debilitada. Esses sistemas de lógica são chamados
lógicas não monotônicas, pois a monotonicidade é uma propriedade da
inferência dedutiva que não parece ocorrer nas inferências realizadas no 1. O contexto do surgimento da tópica jurídica
raciocínio comum. Com isso se quer dizer o seguinte: a lógica dedutiva é
monotônica, porque se das premissas p ~ q e p se infere q, então essa
mesma conclusão continua sendo inferida por mais que acrescentemos O que normalmente se entende hoje por teoria da argumentação
novas premissas (por exemplo, embora tivéssemos também r, -p. etc). jurídica tem sua origem numa série de obras dos anos 50 que com-
Contudo, no raciocínio comum (que, como já disse, é normalmente partilham entre si a rejeição da lógica formal como instrumento para
entimemático, quer dizer, nele não aparecem explicitadas todas as pre- analisar os raciocínios jurídicos. As três concepções mais relevan-
missas utilizadas), a conclusão pode mudar quando se acrescentam ou-
tes (às quais dedicarei, respectivamente, este capítulo e os dois se-
tras informações; assim, não ocorre a propriedade de monotonicidade. Por
exemplo, no caso anterior se chegaria a outra conclusão, se em lugar de guintes) são a tópica de Viehweg, a nova retórica de Perelman e a
pressupor a última premissa indicada, pressupuséssemos outra que esta- lógica informal de Toulmin.
belecesse que "a gravidade do fato e a personalidade perigosa do delin- Em 1953 foi publicada a primeira edição da obra de Theodor
qüente aconselham fixar uma pena superior ao mínimo estabelecido pela Viehweg Topik und Jurisprudenz, cuja idéia fundamental consistia
lei". Cf. Bibe!, 1985. em reivindicar o interesse que, para a teoria e a prática jurídicas,
12. Mais adiante, ao tratar da teoria de Perelman, veremos que ele considera tinha a ressurreição do modo de pensar tópico ou retórico. O livro
a redução ao absurdo um argumento "quase-lógico"; cf. infra, capítulo 3,
de Viehweg teve grande êxito na teoria do Direito da Europa conti-
item 2.4.2. Em Ezquiaga, 1987, pode-se encontrar muitos exemplos des-
se e de outros tipos de argumentos. nental I e se converteu, desde então, num dos centros de atenção da
13. Nessa data, Klug tinha apresentado o seu trabalho como habilitação para polêmica em torno do chamado "método jurídico". Com relação às
a Universidade de Berlim, que não o aceitou então por razões políticas muitas discussões que, a partir daí, se sucederam - sobretudo, natu-
(cf. Klug, 1990, prólogo à quarta edição). ralmente, na Alemanha - entre partidários e os detratores da tópica,
é preciso dizer que, em geral, o debate foi proposto em termos não
muito claros, devido em grande parte ao caráter esquemático e im-
preciso da obra fundadora de Viehweg. 2 Além disso, para avaliar
em seu contexto o livro de Viehweg, há três dados que vale a pena
levar em conta.
Um deles é que a ressurreição da tópica é um fenômeno que ocor-
re na Europa do pós-guerra em diversas disciplinas, e não apenas, nem
46 • MANUEL ATIENZA AS RAZÕES DO DIREITO • 47

em primeiro lugar, no Direito. O livro pioneiro parece ter sido o de R. tem características que, em outras circunstâncias, poderiam ser
Curtius, Europiiische Literatur und lateinisches Mittelalter; de 1948; consideradas imperfeições" (págs. 9-10). Essas características con-
desde então as proposições tópicas têm um certo desenvolvimento em sistem em que não se parte de regras fixas e sim de regras que
matérias como a ciência política, a sociologia, a teoria literária, a fi- "mudam de um caso para outro e são reformuladas em cada um
losofia ou a jurisprudência. deles" (pág. 10): "as categorias usadas no processo jurídico têm de
O segundo dado é que a obra de Viehweg aparece muito pouco permanecer ambíguas para permitir a acolhida de novas idéias" (pág.
depois da irrupção da lógica moderna no mundo do Direito. Como 12); isso pode parecer uma imperfeição, mas permite que "as idéias
antes já indiquei, tanto a Juristische Logik de Klug (que representa da comunidade e das ciências sociais, certas ou não, à medida que
a primeira - ou uma das primeiras - tentativas de aplicar a lógica ganham aceitação naquela, controlem as decisões" (pág. 15). Resu-
formal geral ao campo do Direito) quanto o ensaio Deontic logic de mindo, o Direito se configura não como um "sistema fechado", e
H. G. von Wright (que supõe o surgimento da lógica das normas, sim como um "sistema aberto" (cf. Carrió, 1964, pág. 135), e não
isto é, a construção de uma lógica especial para o mundo das nor- se pode apresentar o raciocínio jurídico como meramente dedutivo;
mas - e, portanto, também para o mundo do Direito) datam de 1951. apenas o movimento dos conceitos jurídicos é bastante "circular"
A contraposição entre lógica e tópica é, como em seguida veremos, (pág. 18): o conceito vai se construindo à medida que se comparam
uma das idéias centrais da obra de Viehweg e também um dos as- os casos e pode chegar a ser modificado no sentido de que, ao final
pectos mais discutidos com relação à tópica jurídica. do processo, o que era uma circunstância excepcional no tocante à
E, por fim, o terceiro dado a assinalar é que as idéias de Viehweg sua aplicação se converte em regra geral. A "lógica jurídica", po-
têm uma "semelhança óbvia" (cf. Carrió, 1964, pág. 137) com as der-se-ia dizer, é uma lógica peculiar, enraizada no próprio proces-
defendidas por Edward H. Levi numa obra publicada também em so de desenvolvimento do Direito, e na qual a noção de consenso
1951, An introduction to legal reasoning, que desde estão teve uma desempenha um papel de grande importância: "O contraste entre a
grande influência no âmbito da common law, e à qual o próprio lógica e o método da práxis do direito não beneficia a primeira e
Viehweg se refere episodicamente (1964, pág. 70). Também por essa nem o segundo. O raciocínio jurídico tem uma lógica própria. Sua
mesma época outros autores, como Luís Recaséns Siches (1956) ou estrutura o ajusta para dar sentido à ambigüidade e para constante-
Joseph Esser (1961), publicaram diversos trabalhos nos quais sus- mente verificar se a sociedade observou novas diferenças ou seme-
tentavam uma concepção da argumentação e da interpretação jurí- lhanças [... ]. Esse é o único sistema capaz de funcionar, embora os
dica muito semelhante à de Viehweg. Vejamos, muito resumidamen- homens não estejam em total acordo. Os membros da comunidade
te, em que consistia a proposição de Levi, que, na minha opinião, é são leais à instituição da qual participam. As palavras mudam para
também quem apresenta um interesse maior do ponto de vista da receber o conteúdo que a comunidade lhes confere. Não tem senti-
teoria da argumentação jurídica. do se esforçar para encontrar acordo pleno antes de a instituição se
Na opinião de Levi, tanto no campo do Direito jurisprudencial pôr em funcionamento" (pág. 132).
quanto no da interpretação das leis e da constituição (ele se refere à
constituição americana), o processo do raciocínio jurídico obedece 2. Theodor Viehweg: uma concepção tópica do ra-
a um esquema básico, que é o do raciocínio por exemplos. Trata-se
ciocínio jurídico
de um raciocínio de caso a caso, do particular para o particular, que
Levi descreve assim em suas primeiras páginas: "É um processo que
se compõe de três passos, caracterizados pela doutrina do preceden- 2.1. O desenvolvimento histórico da tópica
te, no curso do qual uma proposição descritiva do primeiro caso é
convertida numa regra de direito e aplicada depois a outra situação O livro de Viehweg, anteriormente mencionado, começa com uma
semelhante. Os passos são os seguintes: primeiro se descobrem se- referência a uma obra de Viço do início do século XVIII, na qual o
melhanças entre os casos; depois se exprime a regra de direito implí- autor contrapunha o método antigo, tópico ou retórico, ao método
cita no primeiro; por último, ela é aplicada ao segundo. O raciocínio novo, o método crítico do cartesianismo, e propunha a necessidade
por exemplos é um método de raciocínio necessário ao Direito, mas de intercalar no novo método a tópica (que ensina a examinar uma
48 • MANUEL ATIENZA
T AS RAZÕES DO DIREITO • 49

coisa sob ângulos muitos diferentes; a tópica toma como ponto de faciat fidem); os argumentos estão contidos nos lugares ou Zoei - os
partida não um primum verum, e sim o verossímil, o sentido co- topoi gregos -, que são, portanto, sedes ou depósitos de argumen-
mum, e o desenvolve mediante um tecido de silogismos e não me- tos; a tópica seria a arte de achar os argumentos (cf. García Amado,
diante longas deduções em cadeia). A tópica constitui, com efeito, 1988, pág. 68). A formação do juízo, pelo contrário, consistiria na
uma parte da retórica, isto é, de uma disciplina que teve uma gran- passagem das premissas para a conclusão.
de importância na Antiguidade e na Idade Média e inclusive depois, Como parte da retórica, a tópica - como já disse - teve uma
até a época do racionalismo. importância considerável na formação antiga e medieval. A retóri-
As duas grandes contribuições da Antiguidade são as obras de ca, com efeito, foi uma das sete artes liberais que integrou o Trivium,
Aristóteles e Cícero. A Tópica de Aristóteles era uma das seis obras juntamente com a gramática e a dialética (a lógica medieval). O
que compunham o Organon. Nela, Aristóteles parte de uma carac- modo de pensar tópico surge, assim, como um contraponto do modo
terização dos argumentos dialéticos (dos quais se ocupam os retóricos de pensar sistemático-dedutivo, do qual a geometria de Euclides é o
e os sofistas) com relação aos argumentos apodíticos ou demonstra- exemplo paradigmático na Antiguidade. A desqualificação da tópi-
tivos (dos quais se ocupam os filósofos), aos argumentos erísticos e ca e sua perda de influência na cultura ocidental teriam ocorrido
às pseudoconclusões ou paralogismos. Os argumentos dialéticos (os precisamente a partir do racionalismo e da irrupção do método ma-
da tópica) se diferenciam dos apodíticos porque partem do simples- temático-cartesiano.
mente provável ou verossímil, e não de proposições primeiras ou
verdadeiras. 3 Quanto ao mais, contudo, as conclusões dialéticas são
iguais às apodíticas e, ao contrário das erísticas e das pseudocon-
2.2. Características da tópica
clusões, formalmente corretas. A diferença essencial reside, pois, na
natureza das premissas, que no caso dos argumentos dialéticos são Viehweg caracteriza a tópica por três elementos, que aliás apare-
endoxa, isto é, proposições que parecem verdadeiras a todos ou aos cem estreitamente ligados entre si (cf. García Amado, 1988, pág.
mais sábios, e dentre estes também a todos ou à maior parte, ou aos 90): por um lado a tópica é, do ponto de vista de seu objeto, uma
mais conhecidos ou famosos (Aristóteles, Tópica, I, 1, 5, 3). Por essa técnica do pensamento problemático; por outro lado, do ponto de
razão, no estudo dos argumentos dialéticos Aristóteles se ocupa, além vista do instrumento com que opera, o que se torna central é a no-
da indução e do silogismo (os dois modos de inferir um enunciado ção de topos ou lugar-comum; finalmente, do ponto de vista do tipo
de outro), da descoberta das premissas, da identificação do sentido de atividade, a tópica é uma busca e exame de premissas: o que a
das palavras, da descoberta de gêneros e espécies e da descoberta caracteriza é ser um modo de pensar no qual a ênfase recai nas pre-
de analogias. missas, e não nas conclusões.
A Tópica de Cícero (obra dedicada precisamente a um jurista) Assim, a tópica é (de acordo com a distinção de Cícero aludi-
teve uma influência histórica maior que a obra de Aristóteles e se da anteriormente) uma ars inveniende, um procedimento de busca
distingue desta pelo fato de, fundamentalmente, tentar formular e de premissas (de tópicos) que, na realidade, não termina nunca: o
aplicar um inventário de tópicos (quer dizer, de lugares-comuns, de repertório de tópicos sempre é necessariamente provisório, elásti-
pontos de vista que têm aceitação generalizada e são aplicáveis seja co. Os tópicos devem ser entendidos de um modo funcional, como
universalmente, seja num determinado ramo do saber) e não, como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento
a de Aristóteles, de elaborar uma teoria. Em Cícero desaparece a que só permitem alcançar conclusões curtas. A isso se contrapõe a
distinção entre o apodítico e o dialético, mas em seu lugar surge ars iudicandi, a lógica demonstrativa que recebe as premissas e
uma distinção que tem uma origem estóica (e que lembra até certo trabalha com elas, o que permite a elaboração de longas cadeias
ponto a distinção vista no tema anterior entre contexto de descober- dedutivas.
ta e contexto de justificação), entre a invenção e a formação do juízo. Por outro lado, os tópicos devem ser vistos como premissas com-
A tópica surge precisamente no campo da invenção, da obtenção de partilhadas que têm uma presunção de plausibilidade ou que, pelo
argumentos; e um argumento é, para Cícero, uma razão que serve menos, impõem a carga da argumentação a quem os questiona. Mas
para convencer de uma coisa duvidosa ( rationem quae rei dubiae o problema essencial que se coloca com seu uso é que os tópicos
50 • MANUEL ATIENZA
AS RAZÕES DO DIREITO • 51

não estão hierarquizados entre si, de maneira que, para a resolução medieval, no que diz respeito aos pré-glosadores e também aos
de uma mesma questão, seria necessário utilizar tópicos diferentes, glosadores, mas sobretudo aos comentaristas do mos italicus. Na
que levariam também a resultados diferentes. Idade Média o estudo do Direito era precedido pelo da retórica (tanto
No que diz respeito à noção de problema, a caracterização ofere- nos canonistas - decretistas - quanto nos legistas), e daí o fato de
cida por Viehweg coincide substancialmente com o que - conforme muitos juristas famosos (começando por Irnerio) terem sido mestres
vimos no capítulo anterior - se entende por caso difícil. Um proble- de retórica antes de sê-lo no Direito. Viehweg assinala, em particu-
ma é, para Viehweg, "toda questão que aparentemente permite mais lar, que o estilo de ensino no mos italicus se baseava na discussão
de uma resposta e que sempre exige um entendimento preliminar, de problemas, aduzindo-se argumentos a favor e contra as suas pos-
de acordo com o qual assume o aspecto de questão que é preciso síveis soluções, e não tanto na configuração de um sistema; "O pro-
considerar com seriedade e para a qual é preciso buscar uma única fessor assinalava para os alunos", acrescenta ele, "o trabalho de
resposta como solução" (pág. 50). A tópica deve servir para resol- organização sistemática" (pág. 100). Inclusive Leibniz - precursor
ver aporias ou problemas impossíveis de afastar. da logística moderna - tratou, numa obra de juventude, de ligar o
A noção de problema se contrapõe em Viehweg à de sistema, o tradicional estilo de pensamento medieval ao pensamento matemá-
que o leva a distinguir - seguindo Hartmann - entre modo de pensar tico do século XVII, mas sua intenção de matematizar a tópica, de
sistemático e modo de pensar aporético. A distinção não é bastante pôr sob controle matemático a ars inveniendi - que contava com o
clara e parece residir numa questão de ênfase; isto é, todo pensa- notabilíssimo precedente medieval da Ars Magna do majorquino
mento - toda disciplina - surge a partir de problemas e dá lugar a Ramón Llull - fracassou, devido basicamente às múltiplas vozes da
algum tipo de sistema, mas a ênfase pode recair em um ou outro linguagem natural.
elemento. Se a ênfase é posta no sistema, então este realiza uma A partir da época moderna - continua Viehweg - a cultura oci-
seleção dos problemas e, assim, os que não recaem sob ele são afas- dental optou por abandonar a tópica e substituí-la pelo método
tados e ficam simplesmente sem ser resolvidos. Se, pelo contrário, a axiomático dedutivo. Esse método consiste em partir de uma série
ênfase é posta no problema, então se trata de buscar um sistema que de princípios e axiomas que devem ter as propriedades de plenitu-
ajude a encontrar a solução; o problema leva assim a uma seleção de de, compatibilidade e independência, mas ele não pode ser aplicado
sistemas e em geral a uma pluralidade de sistemas; aqui se trataria, ao campo da jurisprudência. "Ao passo que algumas disciplinas
portanto, de algo assim como um sistema aberto no qual o ponto de podem encontrar princípios objetivos seguros e efetivamente fecun-
vista não é adotado de antemão (cf. também Viehweg, 1990).4 dos para o seu campo, e por isso podem ser sistematizadas, outras
não são sistematizáveis, por ser impossível encontrar em seu campo
algum princípio que seja ao mesmo tempo seguro e objetivamente
2.3. Tópica e jurisprudência fecundo. Quando esse caso se apresenta, é possível apenas uma dis-
cussão de problemas. O problema fundamental preexistente se toma
A partir dessa caracterização da tópica, Viehweg sustenta que a permanente, o que, no âmbito da atuação humana, não é algo inusi-
jurisprudência na Roma antiga e durante a Idade Média foi, essen- tado. Nessa situação se encontra evidentemente a jurisprudência"
cialmente, uma jurisprudência tópica. Na sua opinião, o estilo do (Viehweg, 1964, pág. 129). O propósito, característico da época
jurista romano se baseava na proposição de um problema para o qual moderna, de atuar no Direito com um método dedutivo, isto é, de
se tratava de encontrar argumentos, e não na elaboração de um sis- dotar de caráter científico a técnica jurídica, é, assim, equívoco,
tema conceitua!. O objetivo principal da "ius civile" eram coleções porque obrigaria a uma série de operações e mudanças no Direito
de regras, de tópicos (por exemplo, quod initio vitiosum est, non que são inviáveis. Segundo Viehweg seria necessária a axiomatização
potest tractu tempore convalescere; nemo plus iuris ad alium do Direito, o estabelecimento da proibição de interpretar as normas,
tranferre potest quam ipse haberet etc.) que se legitimavam quando permitir o non liquet, uma intervenção contínua do legislador, e es-
eram aceitos por homens notáveis, de prestígio (a importância da tabelecer preceitos de interpretação dos fatos que se orientassem
referência à autoridade para a tópica é uma constante desde exclusivamente para o sistema jurídico. Como isso é impossível, a
Aristóteles). E outro tanto é preciso dizer sobre a jurisprudência alternativa que permanece aberta é a de não modificar a essência da
52 • MANUEL ATIENZA AS RAZÕES DO DIREITO • 53

técnica jurídica (isto é, seu caráter tópico), mas apenas concebê-la unívoca nem excessivamente original, uma direção metodológica ou
como uma forma de manifestação da incessante busca do justo, da uma teoria do Direito" (García Amado, 1988, pág. 114). Para isso
qual emana o Direito positivo e que continua apresentada pelo Di- seria necessário, entre outras coisas - o que falta na obra de Viehweg
reito positivo (cf. Viehweg, 1964, pág. 124). A jurisprudência apa- e na de seus sucessores -, "uma caracterização que deveria ser do-
rece, assim, como uma técnica que opera - topicamente - dentro do tada de uma especificidade maior do que a que supõe a identificação
sistema jurídico e que se opõe ao pensar investigador, praticado por de 'problema' com toda questão que admita mais de uma resposta,
disciplinas não-dogmáticas como a história do Direito ou a sociolo- como vimos ser o entendimento de Viehweg" (ibid., pág. 114). Para
gia do Direito. 5 levar a efeito essa tarefa, seria interessante ter em conta a doutrina
A exposição que Viehweg faz da tópica culmina com uma refe- do status que, historicamente, significou a ponte entre a retórica e a
rência a alguns exemplos da doutrina civilista alemã dos anos 40 e jurisprudência, e que foi concebida como um meio para esclarecer
50 que, na sua opinião, encarnariam o modelo tópico de jurispru- as questões apresentadas nos casos jurídicos e fixar assim os pontos
dência por ele proposto, e que se basearia nos três pressupostos se- em disputa (cf. Giuliani, 1970).
guintes: 1) "A estrutura total da jurisprudência só pode ser determi- O conceito de topos foi historicamente equívoco (e o é também
nada a partir do problema"; a aporia fundamental é o problema de nos escritos de Aristóteles e de Cícero) e é usado em vários senti-
determinar o que é o justo aqui e agora. 2) "As partes integrantes da dos: como equivalente a argumento, como ponto de referência para
jurisprudência, seus conceitos e proposições, precisam ficar ligadas a obtenção de argumentos, como enunciados de conteúdo e como
de um modo específico ao problema e só podem ser compreendidas formas argumentativas (cf. García Amado, 1988, pág. 129, que se-
a partir dele". 3) "Os conceitos e as proposições da jurisprudência gue a opinião de N. Horn, 1981). Alexy, fixando-se na obra de Struck
só podem ser utilizados numa implicação que conserve a sua (1971) (o ponto de referência que às vezes o próprio Viehweg toma
vinculação com o problema. É preciso evitar qualquer outra" como exemplo de inventário de topoi), assinala, com razão, que ali
(Viehweg, 1964, págs. 129-30). se encontram coisas tão heterogêneas quanto "lex posterior derogat
legi priori", "o inaceitável não pode ser exigido" e "propósito" (cf.
Alexy, 1978, pág. 40). E García Amado, depois de discutir o que
3. Considerações críticas subsiste da noção de topos jurídico, conclui acertadamente assim:
"Resumindo, vimos que dos tópicos se disse que são pontos de vis-
Uma avaliação crítica da obra de Viehweg e, de certo modo, tam- ta diretivos, pontos de vista referidos ao caso, regras diretivas, luga-
bém dos seus seguidores, pode ser sintetizada nos seguintes pontos. res-comuns, argumentos materiais, enunciados empíricos, conceitos,
meios de persuasão, critérios que gozam de consenso, fórmulas
heurísticas, instruções para a invenção, formas argumentativas etc.
3.1. Impressões conceituais
E como tópicos citam-se adágios, conceitos, recursos metodológicos,
princípios do Direito, valores, regras da razão prática, standards,
Praticamente todas as noções básicas da tópica são extremamen- critérios de justiça, normas legais etc." (pág. 135).
te imprecisas e, inclusive, equívocas. Por fim, as noções de lógica e de sistema, que na obra de Viehweg
Para começar, por "tópica", na obra de Viehweg e na de seus funcionam como os principais termos de contraste para caracterizar
seguidores, pode-se entender pelo menos três coisas diferentes (cf. a tópica, também suscitam muitos problemas. O mínimo que se pode
Alexy, 1978, pág. 40, que nesse ponto segue G. Otte, 1970): 1) uma dizer é que Viehweg exagera na contraposição entre pensamento
técnica de busca de premissas; 2) uma teoria sobre a natureza das tópico e pensamento sistemático (quer dizer, lógico-dedutivo), que
premissas e 3) uma teoria sobre o uso dessas premissas na funda- sua noção de sistema axiomático ou de dedução é mais estreita que
mentação jurídica. as utilizadas pelos lógicos e que estes não parecem ter maior incon-
A noção de problema é, na melhor hipótese, excessivamente vaga, veniente em reconhecer a importância da tópica no raciocínio (con-
pois "a mera concessão de importância prioritária ao pensamento cretamente, no raciocínio jurídico), mas sem que isso signifique
de problemas não basta, por si mesma, para caracterizar, de forma prescindir da lógica.
AS RAZÕES DO DIREITO • 55
54 • MANUEL ATIENZA

indagação sobre o ordenamento justo" (Viehweg, 1964, pág. 132),


3.2. A fortuna histórica da tópica e da lógica
de que "os conceitos que aparentemente são de pura técnica jurí-
dica [ ... ] só adquirem seu verdadeiro sentido a partir da questão
Por outro lado, é interessante considerar que a ruptura da tradi- da justiça" (pág. 134) ou de que "os princípios de Direito [ ... ] só
ção tópica ou retórica na época moderna parece ter sido acompa- proporcionam resultados efetivamente aceitáveis quando ligados à
nhada pelo afastamento da lógica. Na opinião de Lorenzen, a lógi- idéia da justiça" (pág. 139) não parecem significar outra coisa senão
ca formal caiu no esquecimento precisamente em nome da ciên- afirmar ~ue a jurisprudência deve buscar soluções justas a partir
cia; isso porque a nova ciência não partia de um modelo axiomático, de conceitos e proposições extraídos da própria Justiça. Mas isso
que é o que está mais intimamente ligado à lógica formal: "Esse só pode ser qualificado, na melhor das hipóteses, como uma tri-
tipo ideal da teoria axiomática foi substituído por outro tipo de vialidade que, evidentemente, não contribui muito para fazer avan-
teoria, quer dizer, o da chamada teoria analítica. Os modelos fo- çar a jurisprudência ou a teoria do raciocínio jurídico. O proble-
ram a geometria analítica e a mecânica analítica, tal como surgi- ma, naturalmente, não consiste em fazer proclamações vazias so-
ram nos séculos XVII e XVIII [ ... ]. Também as teorias da física
bre a Justiça, e sim em criar algum tipo de método - ou pelo menos
moderna - que procuram se distinguir da chamada física clássica -
algum elemento de controle - que permita discutir racionalmente
pertencem a esse tipo de teorias analíticas [ ... ]. Ao contrário da
as questões de Justiça.
geometria euclidiana, a teoria analítica da eletrodinâmica não co-
meça com axiomas, ou seja, com algumas proposições acessíveis
à razão, e sim com algumas equações matemáticas, as chamadas 3.4. Uma teoria da argumentação jurídica?
equações diferenciais [ ... ]. Nada disso parece ter relação com as
operações lógico-formais. A lógica escolástica pareceu, para a ci- A tópica permite explicar - ou pelo menos se dar conta de -
ência moderna, ser um instrumento adequado apenas para dis- certos aspectos do raciocínio jurídico que passam despercebidos
cussões verbais estéreis" (Lorenzen, 1973, págs. 16-7). E conclui quando abordamos esse campo por uma vertente exclusivamente
pouco depois: "Se entendemos assim as ciências das teorias analí- lógica. Basicamente se poderia dizer que ela permite ver que não
ticas, então podemos entender o destino moderno da lógica. O tipo há apenas problemas de justificação interna, o que, por certo, não
de teorias analíticas que, apenas com a matemática pura, propor- deve levar tampouco a pensar que a lógica formal não tenha ne-
cionava todos os contextos de fundamentação substituiu o tipo das
n_hu~ ~apel na justificação externa. Mas obviamente a tópica por
teorias axiomáticas; essa é a razão pela qual a época moderna afas- s1 so nao pode dar uma explicação satisfatória sobre a argumenta-
tou a lógica. A época moderna não precisava da lógica. Foi essa
ção jurídica. A tópica não permite ver o papel importante que a lei
também a razão pela qual se rompeu com a tradição do ensino da (sobretudo a lei), a dogmática e o precedente desempenham no
lógica e o motivo pelo qual hoje temos de começar tudo de novo"
raciocínio jurídico; ela fica na estrutura superficial dos argumentos
(ibid., pág. 18). É óbvio que, se essa interpretação é correta, cai
padrões e não analisa a sua estrutura profunda, permanecendo num
por terra a tese de Viehweg de que, a partir da modernidade, o
nível de grande generalidade que está distante do nível da aplica-
método tópico ou retórico foi substituído pelo método axiomático-
ção como tal do Direito (por exemplo, um topos como "o insupor-
dedutivo. A decadência da tópica teria sido, pelo contrário, um fe-
tável não é de direito" é demasiadamente genérico para ser aplicá-
nômeno paralelo ao esquecimento da lógica.
vel, sem outros critérios, à resolução de um problema concreto) (cf.
Alexy, 1978, págs. 40-1 ). Ela se limita a sugerir um inventário de
3.3. Tópica e justiça tópicos ou de premissas utilizáveis na argumentação, mas não for-
nece critérios para estabelecer uma hierarquia entre eles. E, defini-
O modelo tópico de funcionamento da jurisprudência a que re- tivamente, não proporciona uma resposta - nem sequer o começo
fere Viehweg no final de Tópica y jurisprudencia (cf. supra, item de uma resposta - para a questão central da metodologia jurídica,
que não é outra senão a da racionalidade da decisão jurídica (cf.
2.3) é indubitavelmente ingênuo. Suas afirmações no sentido de
García Amado, 1988, pág. 369).
que "a grande aporia fundamental [... ] encontra sua formulação na
56 • MANUEL ATIENZA
T AS RAZÕES DO DIREITO • 57

3.5. Sobre o desenvolvimento da tópica jurídica 3.7. O que resta da tópica jurídica?

A partir da obra fundadora de Viehweg, a tópica conheceu al- Apesar de todas essas críticas, a obra de Viehweg contém algo
guns desenvolvimentos tanto por parte do próprio Viehweg6 quanto importante: a necessidade de raciocinar também onde não cabem
de outros autores, como O. Ballweg (1970), W. Schreckenberger fundamentações conclusivas, e a necessidade de explorar, no raciocí-
(1978), H. Rodingen (1977), T. Seibert (1980) ou F. Haft (1985). nio jurídico, os aspectos que permanecem ocultos se examinados de
Todos eles tendem a descartar a prevalência do nível pragmático da uma perspectiva exclusivamente lógica. Essa dimensão - não desenvol-
linguagem em relação ao sintático e ao semântico, a enfatização do vida na realidade, mas para a qual aponta a tópica - foi prosseguida
caráter de dependência em relação à situação de toda argumentação por outras concepções da argumentação jurídica e, um tanto parado-
e a crítica à ontologização a que tende uma compreensão ingênua xalmente, adquiriu, nestes últimos anos, grande importância prática,
da linguagem (cf. Neumann, 1986, pág. 55). Isso também dá lugar em decorrência das atuais investigações sobre sistemas jurídicos há-
a uma aproximação em relação às teorias da argumentação jurídica beis; isto é, em virtude da construção de programas que reproduzem
como a de Robert Alexy (de que falarei num capítulo posterior), que as formas características de raciocinar de um profissional do Direito.
propõem a delimitação das condições de possibilidade do discurso Um sistema jurídico hábil - um sistema hábil, em geral - com-
prático racional geral e do discurso jurídico como caso especial do põe-se essencialmente de uma base de dados e de um motor de
primeiro. Mas certamente isso só pode levar a afirmar que a con- inferência, e esses dois elementos devem ser dotados de caracterís-
cepção de Viehweg é compatível com (ou, se se prefere, o ponto de ticas - para a acomodação ao funcionamento do raciocínio jurídico
partida de) certas teorias da argumentação (García Amado, 1988, e do raciocínio comum - que, num sentido amplo, poderiam ser qua-
pág. 180), mas não que constitua uma teoria autêntica ou suficiente lificadas de tópicas. A base de dados, efetivamente, deve ser flexí-
da argumentação: "Ficar-se-ia num primeiro estágio dessa teoria, se vel, isto é, o sistema hábil deve poder, sem grandes dificuldades,
exporiam apenas os primeiros passos ou o ponto de decolagem do modificar a sua base de conhecimento (cf. Susskind, 1987, pág. 9),
processo argumentativo que termina na decisão. Seria[ ... ] um meio
ou, por outras palavras, deve se tratar de um sistema aberto, como o
de seleção de 'hipóteses de solução"' (ibid., pág. 184).
defendido por Levi ou pelos partidários da tópica. E, no que diz
respeito ao motor de inferência, o sistema deve contar não só com
3.6. Sobre o caráter descritivo e prescritivo da tópica as regras de inferência que são de conhecimento público, quer di-
zer, aquelas de tipo oficial que se encontram codificadas em textos
A obra de Viehweg contém, além de uma caracterização da tópi- mais ou menos conhecidos, mas também com regras de experiência
ca, uma tese descritiva sobre em que consiste o raciocínio jurídico e sem caráter público, que são de caráter informal e constituem a
uma tese prescritiva sobre em que ele deveria consistir; essa última chamada heurística jurídica. A essas últimas regras, os especialistas
tese não se diferencia claramente da anterior, pois, como vimos, o precisam recorrer quando se torna impraticável chegar à solução do
que Viehweg propõe não é modificar, e sim conservar o estilo de problema pelo emprego de um procedimento lógico seqüencial (cf.
pensamento tópico que se pode encontrar na jurisprudência. Mas a Martino, 1987, pág. 140). Em alguns dos seus sentidos, a tópica
caracterização de tópica oferecida por Viehweg é, como vimos, im- parece apontar precisamente para esse tipo de regras. 8
precisa e, em certos aspectos, também equívoca, e tais imprecisões e De qualquer maneira, e como observação final, é necessário reco-
equívocos se transferem tanto para a tese descritiva quanto para a nhecer que na tradição do pensamento da tópica jurídica inaugurada
prescritiva. Assim, por um lado, é bastante provável que o estilo ou por Viehweg pode-se encontrar sugestões e estímulos de inegável valor
o método do pensamento jurídico não tenha sido nunca puramente para quem deseja começar a estudar - e a praticar - o raciocínio ju-
tópico, como quer que se entenda essa expressão. 7 E, por outro lado, rídico; mas, por si mesma, ela não fornece uma base sólida sobre a
não parece tampouco ter muito sentido defender uma jurisprudência qual se possa edificar uma teoria da argumentação jurídica. O mérito
(tanto no sentido de dogmática jurídica quanto no de resultado ou fundamental de Viehweg não é ter construído uma teoria, e sim ter
atividade da aplicação do Direito pelos tribunais) que não conte com descoberto um campo para a investigação. Algo, ao fim e ao cabo,
outros guias além dos que lhe podem ser fornecidos pela tópica. que parece se encaixar perfeitamente no "espírito" da tópica.
58 • MANUEL ATIENZA

Notas

1. Esse livro tem uma tradução para o espanhol, feita em 1964 por Luis Díez
Picazo, com prefácio de Eduardo García de Enterría, que corresponde à
segunda edição alemã de 1963. A quinta edição alemã é de 1974, e, as-
sim, o apêndice que ela inclui não consta na edição espanhola.
2. O melhor estudo sobre a obra de Viehweg e sobre a tópica jurídica em
geral é o de Juan Antonio García Amado (1988); pode-se ter uma síntese CAPITULO 3
dessa obra em García Amado, 1987.
3. Os argumentos erísticos se fundamentam em proposições que são apenas PERELMAN E A NOVA RETÓRICA
aparentemente prováveis. As pseudoproposições ou paralogismos se ba-
seiam em proposições especiais de determinadas ciências.
4. A análise da noção de "sistema jurídico" e "sistema aberto" está no final
do artigo Algunas consideraciones acerca del razanamiento jurídico, cuja
edição original data de 1969.
5. O desenvolvimento dessa última oposição entre pensar tópico e pensar
investigador se encontra em obras de Viehweg posteriores a Topik und
Jurisprudenz; cf. Viehweg, 1990, e García Amado, 1988, págs. 225 e se-
guintes. 1. O surgimento da nova retórica
6. Os trabalhos de Viehweg, publicados desde 1960 até a sua morte em 1988
(Viehweg nasceu em 1907), estão reunidos em Viehweg, 1990.
No capítulo anterior, ao considerar a obra de Viehweg, já fiz
7. Veja-se, por exemplo, a tese de Kaser (1962) a propósito do pensamento
referência à recuperação da tradição da tópica e da retórica antigas
jurídico romano. Pode-se encontrar referências a ela no prefácio de García
de Enterría a Viehweg, 1964, e em García Amado, 1988, pág. 74.
que ocorre a partir da segunda metade do século XX. Mas não me
8. O termo geral "heurística" procede de Polya (1966) (cf. Susskind, 1987,
referi ao autor que provavelmente contribuiu em maior grau para
pág. 9), mas não parece descabido pensar que tudo isso deve ter algum esse ressurgimento: Cha'im Perelman.
parentesco com a ars inventandi da tópica. Embora seja de origem polonesa, Perelman (nascido em 1912 e
morto em 1984) viveu desde criança na Bélgica e estudou Direito e
Filosofia na Universidade de Bruxelas. Começou a dedicar-se à ló-
gica formal e escreveu a sua tese, em 1938, sobre Gottlob Frege, o
pai da lógica moderna. Durante a ocupação nazista, Perelman se
dedicou a realizar um trabalho sobre a Justiça (cf. Perelman, 1945;
tradução em espanhol, Perelman, 1964), aplicando a esse campo o
método positivista de Frege, o que supunha eliminar da idéia de
justiça todo juízo de valor, pois os juízos de valor recairiam fora do
campo do racional. Sua tese fundamental é que se pode formular
uma ~oção _váli,?a de justiça de caráter pur~mente formal, que ele
enuncia assim: Deve-se tratar do mesmo modo os seres pertencen-
tes à mesma categoria". Mas, dado o caráter formal dessa regra, é
preciso contar com outros critérios materiais de justiça que permi-
tam estabelecer quando dois ou mais seres pertencem à mesma ca-
tegoria. Segundo Perelman, é possível distinguir os seis critérios
seguintes, 1 que definem outros tantos tipos de sociedade e de ideo-
logia: a cada um o mesmo; a cada um segundo o atribuído pela lei;
60 • MANUEL ATIENZA AS RAZÕES DO DIREITO • 61

a cada um segundo a sua categoria; a cada um segundo seus méri- 2. A concepção retórica do raciocínio prático
tos ou sua capacidade; a cada um segundo seu trabalho; a cada um
segundo suas necessidades. O problema que surge, então, é que a 2.1 . Lógica e retórica
introdução desses últimos critérios implica necessariamente que se
assumam juízos de valor, o que leva Perelman a propor a questão
de como se raciocina a propósito de valores. Perelman parte - como já indiquei - da distinção básica de
A essa última questão, entretanto, ele não conseguiu dar uma res- origem aristotélica entre raciocínios analíticos ou lógico-formais,
posta satisfatória até que, anos mais tarde, e de forma relativamente por um lado, e raciocínios dialéticos ou retóricos, por outro, e
casual - "lendo um livro de retórica literária" (Perelman, 1986, pág. situa a sua teoria da argumentação nesse segundo item. Seu ob-
4) -, deparou-se com a obra de Aristóteles e, em particular, com o tipo jetivo fundamental é ampliar o campo da razão para além dos
de raciocínios que este, distinguindo-os claramente - como vimos no confins das ciências dedutivas e das ciências indutivas ou
capítulo anterior - dos raciocínios analíticos ou dedutivos (os dos empíricas, a fim de poder dar conta também dos raciocínios que
Primeiros e Segundos analíticos), chamou de dialéticos (dos quais ~correm nas ciências humanas, no Direito e na Filosofia. O que
trata na Tópica, na Retórica e nas Refutações sofísticas). A "descober- mteressa a ele, concretamente, é a estrutura da argumentação, a
ta" de Perelman ocorreu em 19502 e se desenvolve, a partir de então, sua l~gica, e não, por exemplo, os seus aspectos psicológicos;
em várias obras; a mais importante de todas - o texto canônico, po- com isso, ele pretende seguir um programa semelhante ao de
deríamos dizer- é o livro, escrito em colaboração com Olbrecht-Tyteca, Frege: enquanto este renovou a lógica formal ao partir da idéia
La nouvelle rhetorique: Traité de l 'argumentation, cuja primeira edição de que nas deduções matemáticas se encontram os melhores
data de 1958 e que, desde então, teve uma amplíssima difusão.3 exemplos de raciocínios lógicos, Perelman parte da idéia de que
A seguir exporei (no item 2) as idéias de Perelman sobre a retó- a análise dos raciocínios utilizados pelos políticos, juízes ou
rica em geral, baseando-me essencialmente no último livro mencio- advogados (embora no Tratado apareçam sobretudo exemplos de
nado. Isso implica prescindir de algumas mudanças de ênfase - e obras literárias) deve ser o ponto de partida para a construção de
talvez mais que de ênfase - que seria necessário observar se fosse uma teoria da argumentação jurídica.
considerado também o resto da produção de Perelman; mas em A lógica formal se move no terreno da necessidade. Um ra-
contrapartida se ganhará - espero - em clareza e sistematicidade. ciocínio lógico-dedutivo, ou demonstrativo, implica - como vi-
Por outro lado, convém recordar que, embora com freqüência se men- mos - que a passagem das premissas para a conclusão é neces-
cione apenas o nome de Perelman, o Tratado é também obra de sária: se as premissas são verdadeiras, então a conclusão tam-
Olbrecht-Tyteca, que talvez não tenha contribuído com idéias origi- bém será, necessariamente. Ao contrário, a argumentação em
nais, mas com certeza dotou a obra de uma sistematicidade que está sentido estrito se move no terreno do simplesmente plausível.
ausente no restante da produção perelmaniana. Depois (no item 3), Os argumentos retóricos não estabelecem verdades evidentes,
me ocuparei, em particular, da lógica jurídica. 4 Embora, como vere- provas demonstrativas, e sim mostram o caráter razoável, plau-
mos depois, Perelman considere o raciocínio jurídico como para- sível, de uma determinada decisão ou opinião. 5 Por isso, é fun-
digma do raciocínio prático (cf. por exemplo Perelman, 1962), essa damental, na argumentação, a referência a um auditório ao qual
ordem da exposição parece justificada, pois, na gênese do pensa- se trata de persuadir. Se Perelman escolhe, para designar a sua
mento desse autor, a análise do raciocínio jurídico aparece como uma teoria, o nome de "retórica" e não o de "dialética", isso se deve
confirmação, não como uma fonte, da sua teoria lógica (cf. Gian- precisamente à importância que ele dá à noção de auditório, que
formaggio, 1973, pág. 136). Aliás, o próprio Perelman, num de seus certamente é a noção central da sua teoria (cf. Fisher, 1986, pág.
últimos trabalhos, fala da existência de uma retórica geral e de uma 86), e ao fato de que "dialética" lhe parece um termo mais equí-
retórica especializada, e cita seu livro de lógica jurídica como um v_oc~,. pois ao longo da história ele foi utilizado com múltiplos
exemplo de obra de retórica aplicada ao raciocínio dos juristas (Perel- s1gmficados: para os estóicos e os autores medievais era sinôni-
man, 1986, pág. 9). Finalmente (no item 4), apresentarei uma ava- mo de lógica, em Hegel - e em Marx -, como se sabe, tem um
liação crítica da obra de Perelman. sentido completamente diferente etc. 6
62 • MANUEL ATIENZA
AS RAZÕES DO DIREITO • 63

Por outro lado, Perelman considera a argumentação como um Perelman se baseia na distinção entre a argumentação que ocorre
processo em que todos os seus elementos interagem constantemen- diante do auditório universal, a argumentação diante de um único
te, e nisso ela se distingue também da concepção dedutiva e unitá- ouvinte (o diálogo) e a deliberação consigo mesmo. 7
ria do raciocínio de Descartes e da tradição racionalista. Descartes Nos últimos anos, sobretudo, concedeu-se grande importância ao
via no raciocínio um "encadeamento" de idéias, de tal maneira que conceito perelmaniano de auditório universal, que, embora esteja
a cadeia das proposições não pode ser mais sólida que o mais frágil longe de ser um conceito claro, pelo menos no Tratado parece ca-
dos anéis; basta que se rompa um dos anéis para que a certeza da racterizar-se por estes aspectos: 1) é um conceito limite, no sentido
conclusão se desvaneça. Ao contrário, Perelman considera que a de que a argumentação diante do auditório universal é a norma da
estrutura do discurso argumentativo se assemelha à de um tecido: a argumentação objetiva; 2) dirigir-se ao auditório universal é o que
solidez deste é muito superior à de cada fio que constitui a trama caracteriza a argumentação filosófica; 3) o conceito de auditório
(Perelman, 1969). Uma conseqüência disso é a impossibilidade de universal não é um conceito empírico: o acordo de um auditório uni-
versal "não é uma questão de fato, e sim de direito" (ibid., pág. 72);
separar radicalmente cada um dos elementos que compõe a argu-
mentação. Não obstante, para efeitos expositivos, Perelman e 4) o auditório universal é ideal no sentido de que é formado por
Olbrecht-Tyteca, no Tratado, dividem o estudo da teoria da argu- todos os seres dotados de razão, mas por outro lado é uma constru-
ção do orador, quer dizer, não é uma entidade objetiva; 5) isso sig-
mentação em três partes: os pressupostos ou limites da argumenta-
ção; os pontos ou teses de partida; e as técnicas argumentativas, quer nifica não apenas que oradores diferentes constroem auditórios uni-
versais diferentes, mas também que o auditório universal de um
dizer, os argumentos em sentido estrito.
mesmo orador muda. 8
Uma das funções que esse conceito desempenha na obra de
2.2. Os pressupostos da argumentação Perelman é a de permitir distinguir (embora se trate de uma distin-
ção imprecisa, como ocorre também com a distinção entre os diver-
Uma vez que toda argumentação pede a adesão dos indivíduos - sos auditórios) entre persuadir e convencer. Uma argumentação
o auditório a que se dirige -, para que haja argumentação são ne- persuasiva, para Perelman, é aquela que só vale para um auditório
cessárias certas condições prévias, como a existência de uma lingua- particular, ao passo que uma argumentação convincente é a que se
gem comum ou a participação ideal do interlocutor, que precisa ser pretende válida para todo ser dotado de razão.
mantida ao longo de todo o processo da argumentação. Na argu- Enfim, a argumentação, ao contrário da demonstração, está es-
mentação pode-se distinguir três elementos: o discurso, o orador e treitamente ligada à ação. A argumentação é, na realidade, uma ação
o auditório; mas este - como já indiquei - tem um papel predomi- - ou um processo - com a qual se pretende obter um resultado;
nante e se define como "o conjunto de todos aqueles em quem o conseguir a adesão do auditório, mas só por meio da linguagem,
orador quer influir com a sua argumentação" (Perelman e Olbrecht- quer dizer, prescindindo do uso da violência física ou psicológica.
Tyteca, 1989, pág. 55). Perelman deixa claro como a distinção clás- Por outro lado, sua proximidade com a prática faz com que, na ar-
sica entre três gêneros oratórios, o deliberativo (diante da assem- gumentação, não se possa falar propriamente de objetividade, mas
bléia), o judicial (diante dos juízes) e o epidítico (diante dos especta- sim de imparcialidade: "Ser imparcial não é ser objetivo, é fazer
dores que não têm de se pronunciar), se faz precisamente do ponto parte do mesmo grupo que aqueles a quem se julga, sem ter ante-
de vista da função que em cada um deles desempenha o auditório. cipadamente tomado partido de nenhum deles" (ibid., pág. 113). A
E concede por certo uma considerável importância ao gênero noção de imparcialidade, por outro lado, parece estar em contato
epidítico (quando o discurso parte da adesão prévia do auditório, estreito com a regra de justiça (ser imparcial implica que, em cir-
como ocorre nos panegíricos, nos sermões religiosos ou nos comí- cunstâncias análogas, se reagiria do mesmo modo) e com a de au-
cios políticos), pois o fim da argumentação não é apenas conseguir ditório universal (os critérios seguidos teriam de ser válidos para o
a adesão do auditório, mas também acrescentá-la. Contudo, a clas- maior número possível e, em última instância, para o auditório
sificação mais importante de tipos de argumentação feita por universal - cf. ibid., pág. 115).

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