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O retorno ao sentido do esvaziamento e algumas recepções em Samuel Beckett

Caio Marcos Gonçalves Reis1

É sabido que Samuel Beckett fora um excelente dramaturgo. Sua peça mais
conhecida denomina-se À espera de Godot. Escrita em francês, foi apresentada pela
primeira vez em 1952 no teatro Théâtre Babylone em Paris. A direção ficou por conta
de Roger Blin2. Essa peça é considerada uma das mais importantes de Beckett e das
mais importantes no assunto referente ao teatro do absurdo.
Falar de Beckett é entender que no encontro com suas produções virão
representações das relações humanas e os desencontros que as hiâncias deixam como
marca. É saber aguardar o momento de refletir, pois, a degradação humana e os
questionamentos do porque continuar, seguir adiante, em qualquer aspecto irão se
sobrepor a qualquer elucidação comunicativa. E em se tratando de escrita, existem
questões que podem ser problematizadas a partir do questionamento do sentido literário
e representações históricas tanto em teatro como em produções textuais do pós-guerra.
Adorno retoma os trabalhos de Benjamin sobre Kafka e Brecth. Por exemplo,
em Brecht a filosofia serve-se como um mecanismo anti-ilusionista ao passo que a
leitura feita de Beckett por Adorno coloca em questão esse mecanismo iluminista.
Mecanismo esse extremamente racionalista, se é que é possível existir tal racionalismo.
O questionamento se realmente pode existir um racionalismo que seja soberano e
genuíno é que em se tratando de psiquismo humano podemos citar a psicanálise, a qual
1
Mestrando no programa de pós-graduação em linguagens da UNEB.
2
Roger Blin foi um ator e diretor francês notável por encenar estréias mundiais de Waiting for Godot de
Samuel Beckett em 1952 e Endgame em 1957.
nos dirá que um dos mecanismos de defesa mais bem elaborados chama-se
racionalização. E sobre os questionamentos humanos e desumanos, Beckett desejava
pô-los de forma nua, assim como o é, ou pelo menos tentava.
Essas reflexões acerca do teatro, seus textos e da filosofia encontram sentido a
partir do momento em que se tratando de teatro vamos observar um drama, logo, ação,
mas sem espectador não existe espetáculo segundo Rancière (2012). Talvez esse seja o
ponto de âncora de Bretch, ou que Adorno tenha feito de Bretch. Ocorre que a peça fim
de partida de Samuel Beckett chega a Theodore W. Adorno com uma radicalidade
extremamente moderna ou moderna demasiadamente. Aquilo que alguns críticos
classificam em Beckett como o limite da linguagem, a falta de sentido, o esvaziamento e
a morbidade da existência humana.
Adorno (1998) então lança mão de algumas características que confirmam a
dissolução do iluminismo na representação e formulação de sentido nos elementos
textuais da peça fim de partida. Seriam elas: o teor metafísico, a intenção do todo para
compor o sentido e o sentido de palavras. Adorno sustenta que esses três elementos
juntos são caracterizados como transformação histórico-filosófica. Ao privar a
ação/drama do sentido que articula a relação entre as partes a partir da ideia do todo, a
peça fim de partida abala os fundamentos tradicionais. Adorno reúne essas reflexões
como tentativa de considerar que a filosofia ainda vive na arte e se retroalimenta dela.
A arte não seria, pelo menos pouco antes do século XX e logo depois, algo em
que só seria recebida como entendimento: a tentativa de todos os significados, a coisa
ilusória, abstrata, puramente além da física. Dessa forma, não dando espaço para o que
há de mais assustador - os dejetos dos seres humanos. O resto. O que fica de resto entre
o que se absorve enquanto receptor e o que se faz com isso. Esse resto para a psicanálise
é da ordem do inconsciente. Devido a estar situado nesta instância é que preocupa, pois,
quando ocorre a irrupção de alguma representação deste resto, sempre advém um
significante trágico junto.
Samuel Beckett (1949) em O inominável sempre retoma a questão de por que
continuar em um ambiente sem sentido. Por que insistir nisso que não há nome
específico; onde não há sentimento e sensação que desloquem o sujeito para seu
caminho. Se há caminho ou se não há. Adorno parece ser acarinhado por Beckett,
porém seria um alívio caminhar sem sentido? Adorno defende a dissolução da noção de
sentido como algo simbólico e aqui partimos para um patamar duplamente qualificado.
Por um lado, sobre essa noção de símbolo, Adorno bebe de Walter Benjamin em
Origem do Drama Barroco Alemão. Em anotações sobre Kafka, Adorno explicita a
relação de sentido, interpretação e símbolo:
Kafka é enquadrado em uma corrente de pensamento estabelecida , em
vez de se insistir nos aspectos que dificultam o enquadramento, e que por isso
mesmo requerem interpretação. Como se o trabalho de Sísifo de Kafka não
tivesse sido necessário, como se a força de maelstrom de sua obra pudesse ser
explicada caso ele tivesse dito apenas que o homem perdeu a salvação, que o
caminho para o absoluto lhe foi negado, que sua vida é obscura, confusa, ou,
como se diz hoje em dia, está contida no nada, e que teria restado ao homem
apenas cumprir humildemente e sem muita esperança seus deveres imediatos,
integrando-se a uma comunidade que Kafka de maneira alguma precisaria ter
afrontado se concordasse com ela. Explicar as interpretações desse tipo com o
argumento de que Kafka obviamente não disse isso com palavras tão secas,
mas, enquanto artista se esforçar em traduzi-las em um simbolismo realista é
admitir a insuficiência dessas formulações, mas não muito mais que isso. Pois
uma representação ou é realista , ou é simbólica; não importa quão densamente
organizados possam estar os símbolos, seu peso específico de realidade não
prejudica em nada seu caráter simbólico. (Adorno, 1998, p. 237- 9).

A dimensão simbólica para Adorno adquire ainda tensão no significante


alegoria de Walter Benjamin. Retomando a questão de filosofia e historicidade,
compreende-se a escrita de Samuel Beckett como elevação do modernismo ao extremo,
o qual está situado na categoria de nouveau romance.
Já os elementos fenomenológicos e existenciais de Beckett como: a condução do
sujeito a ermo, a falta de identidade e a presença de indefinibilidade assumem
substancialmente o papel da alegoria descrita por Walter Benjamin. Esse conceito de
alegoria seria o desdobramento da dimensão simbólica trabalhada por Adorno como
receptor de Kafka e, por conseguinte onde Samuel Beckett serve como receptando ao
escapar das molduras canônicas dos gêneros literários. Quando Benjamin traz a palavra
alegoria, o traz como recurso categórico da estética, pois somente este recurso seria
capaz de compreender os fenômenos históricos em sua atualidade. Enquanto o símbolo
é a própria ideia em sua formulação dotada de sensibilidade corpórea, a alegoria seria
uma configuração da síntese da imaginação dialética. Mais precisamente, Benjamin
define as duas da seguinte forma:
a medida temporal da experiência simbólica é o instante místico, na qual o
símbolo recebe o sentido em seu interior oculto e por assim dizer, verdejante.
Por outro lado, a alegoria não está livre de uma dialética correspondente, e a
calma contemplativa, com que ela mergulha no abismo que separa o ser visual
e a Significação, nada tem da auto-suficiência desinteressada que caracteriza
intenção significativa,e com a qual ela tem afinidades aparentes. (BENJAMIN,
1984, p.187-188).

Vencida a qualificação do primeiro ponto a ser levantado no início do texto,


avancemos para o segundo, ou melhor, para o patamar em que a psicanálise fala sobre a
dimensão simbólica das coisas, dos seres e da linguagem. Rasteiramente a instância
simbólica para psicanálise é trabalhada pela dualidade presença/ausência. Só existe
possibilidade de simbolizar algo se essa dualidade estiver presente. Ou seja, somente na
falta que podemos nos constituir. Paralelamente podemos pensar que a metafísica em
sua matriz filosófica exerce a função ou “pré-tensão” em significar a toda coisa. Essa
tentativa em anular a ausência de sentido, fortalece por um lado a angústia dos sujeitos
que assimilam e se articulam a partir dela. Por outro lado, imobilizam os sujeitos, já que
a força motriz do desejo é nossa relação com a falta.
Quando Adorno rastreia o impasse entre, de certa forma, o que o autor quer
emitir e como o espectador irá receber, ele instaura um movimento de desconstrução da
linguagem. O discurso não dará conta de modular a interpretação. Adorno ainda critica
que uma obra de arte ainda que “original”, pode ser falsa:
Brecht queria atingir na imagem o ser em si do capitalismo; nesse sentido, sua
intenção era realista (...). Ele teria se recusado a citar essa essência em sua
manifestação na vida danificada, como que sem imagem e cega, distante do
significado. Isso lhe impôs, porém, a obrigação de apresentar com correção
teórica aquilo que ele visava de modo unívoco. Sua arte, porém, se recusou a
aceitar esse quid pro quo: ao mesmo tempo que se apresenta de modo didática,
exige ser dispensada, em virtude de sua conformação estética, da
responsabilidade pela correção daquilo que ela ensina. A crítica a Brecht não
pode silenciar a respeito do fato de que ele, por motivos objetivos além da
suficiência de suas próprias formações, não seguiu a norma que ele se impôs
como se ela fosse a salvadora. (...) Quanto mais Brecht se preocupava com as
informações e desconsiderava as imagens, mais ele perdia a essência do
capitalismo que sua parábola deveria apresentar. (Adorno, 1997, p. 416- 7).

Uma obra de arte só pode ser produzida a partir do vazio. Vejam que difere
drasticamente de iniciar do nada. Quando iniciamos algo a partir do vazio é como se
entendêssemos semelhantemente à metáfora de Heidegger (1956). Ele nos vai
questionar qual seria a matéria prima do oleiro. Seria o barro ou seria o vazio? O barro é
o primeiro elemento, mas, não é por ser o primeiro que a coisa se iniciará por ele. O
segundo elemento seria o vazio, o qual na incompletude da representação traria a
energia propulsora que existe para ser utiliza na criação e produção de algo do sujeito.
Então o barro será a borda para dar limite ao vazio, que por sua vez, será circundado e
então poderá se transformar em vaso, pote, jarro, etc.
O perigo atualmente, seja ele no campo dos gêneros textuais ou no âmbito das
coisas existenciais, é exatamente permitir brechas para o imaginário ou tentar localizar o
real. Por um lado, o imaginário desaguaria nos sentimentos de insegurança, nas
sensações persecutórias, nos doutrinamentos a partir de uma interpretação mais pura ou
mais correta, na instabilidade com que se exprimem discursos e na superficialidade com
que se recebem as informações. Por outro lado a tentativa de localizar o real gera a
literalidade das coisas. O dito deixa de poder ser abstrato, metafórico. Cada vez mais as
escritas podem vir desesperadamente dispostas a mostrar ao receptor a verdade das
coisas. Nisso, o compromisso e o desejo da produção se aglutinam com o nada, pois, o
nada é o que há de mais real, é o sem representação. A violência e a agressividade com
que se discute com que se escreve e com que se presenteia um ente querido são uma
forma desvitimizada atravessada pela tentativa de localizar esse real. O simbólico ainda
salva o receptor de dialogar entre as vertentes possíveis e impossíveis, fazendo assim
um circuito em que encenam emissor e receptor na tentativa de jamais localizar o real,
mas sim, de localizar o suporte para suportar a diferença.
REFERÊNCIAS

GATTI, L. F. Adorno lendo Beckett: a paródia do drama. ABRALIC, São Paulo, 2008.
ADORNO. Theodor W. Prismas. Crítica Cultural e Sociedade. São Paulo, Ática, 1998.
RANCIÈRE. J. O espectador antecipado. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2012.
BECKETT, Samuel. O inominável. 1. ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2009. 208 p.
HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. São Paulo: Edições 70, 2007.
BENJAMIN, W. Origem do drama barroco. Tradução, apresentação e notas de Sérgio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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