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UNIVERSIDADE ESTADUAL VALE DO ACARAÚ - UEVA
<linsjr2000@hotmail.com>
DOI: 10.21439/conexoes.v12i1.1380
Resumo. A língua estrangeira, enquanto elemento primordial de uma outra cultura deve favorecer ao
reconhecimento de identidades nacionais e não a supervalorização de uma sobre outra(s). O presente
artigo tem por finalidade apresentar a Política Linguística adotada pela Base Nacional Comum Curricular
(BRASIL, 2014; BRASIL, 2016c; BRASIL, 2016b) na adoção da língua inglesa como obrigatória no
Ensino Médio. Nossa reflexão propõe-se, inicialmente, uma análise da construção deste documento e sua
real representatividade a ponto de garantir-lhe o status de democraticamente legítimo (GRAMSCI, 1978;
MIGNOLO, 2000) e, em seguida, quais as Políticas Linguísticas (SCHIFFMAN, 1996; SPOLSKY,
2004; SHOHAMY, 2006) priorizadas nos conteúdos estabelecidos na segunda versão do documento e
se estas colaboram com perspectiva da diversidade linguística em diferentes contextos que entende a
relação dinâmica entre a língua e a sociedade. Nesse estudo refletimos sobre a relevância das políticas
linguísticas adotadas na Base, visando a utilidade da língua inglesa na sociedade brasileira, através do
ambiente escolar como instrumento de interação da linguagem.
Abstract. The foreign language, as a primordial element of another culture should work in favor of
the recognition of national identities and not the overvaluation of one on others. The purpose of this
article is to analyse the Linguistic Policy adopted by the Base Nacional Comum Curricular (BRASIL,
2014; BRASIL, 2016c; BRASIL, 2016b) and the choice of English as a compulsory foreign language
in Brazilian High School. The analysis focus on three aspects: [1] the construction of the document
and its real representativeness concerning its legitimacy (GRAMSCI, 1978; MIGNOLO, 2000); [2] the
Language Policies (SCHIFFMAN, 1996; SPOLSKY, 2004; SHOHAMY, 2006) hidden/stated in the
contents (considering it is the second version of the document); and [3] if such policies collaborate
with a perspective of linguistic diversity in different contexts in order to understand the relation between
language and society. In this study, we reflect on the relevance of the language policies adopted in the
Base, aiming at the usefulness of English in Brazilian society, through the school environment as an
instrument of language interaction.
1 INICIANDO A DISCUSSÃO como ações que podem vir, também, da direção oposta.
Por isso, entender política linguística como ações neu-
Enquanto os primeiros estudos sobre políticas lin- tras, parece-me, além de ingênuo, descomprometido
guísticas estavam preocupados em resolver conflitos de com uma linguística aplicada indisciplinar (Moita Lo-
comunicabilidade – por isso sempre pensadas numa pes, 2006), haja vista a sua existência como resultado
perspectiva top-down, a perspectiva atual, neste mundo da confluência de forças socioculturais, religiosas, polí-
globalizado/globalizante1 em que vivemos, as entende
pital, novos circuitos financeiros, tecnoglobalismo e migrações mas-
1 Tomamos o conceito empregado por Mignolo (2000 apud sivas – ideias nacionais e princípios sobre a pureza da língua”. Ou
MOITA LOPES, 2008, p. 323-324), para quem “o estado atual da seja, não se trata de um resultado, mas de um processo que permite
globalização questiona cotidianamente – através da expansão do ca- que os seus agentes possam ressignificar os contextos adotados
Guerra Mundial, em 1945. Com a passagem das an- balização, chamamos a atenção, aqui, para a noção de falante nativo
tigas colônias para novas nações, surgem questões de como uma imaginação teórica, que não é capaz de existir na vida
cotidiana, dada a grande confluência de culturas linguísticas que se
ordem linguística que perpassam a língua que deveria manifestam nos processos sociais (cf. DAVIES, 2003).
ser adotada como oficial, a possibilidade (ou não) de se 3 Instrumentos linguísticos (AUROUX, 2009).
manter outras línguas para atividades locais e o local e 4 No original, “covert and overt policies”.
mento da PPL, um desenvolvimento das pesquisas influenciadas pela cussão sobre a qualidade da educação básica por meio do desenvolvi-
Teoria Crítica e uma possibilidade de promover mudanças sociais, re- mento dos currículos da educação infantil e dos ensinos fundamental
conhecendo as desigualdades sociais para depois tentar minimizá-las e médio, tendo como uma das metas, inclusive, a elaboração de um
(TOLLEFSON, 2013). documento orientando a construção da base curricular comum.
education, though the performance might apply to what teachers do, (http://countrymeters.info/pt/Brazil).
docentes, o sistema de avaliação, e os materiais didáti- “extraordinários resultados contaram com o apoio
cos de toda a educação básica, de forma negativa, uma decisivo do CONSED [...] e da UNDIME [...], orga-
vez que tende a limitar as potencialidades dos estudan- nizações que reúnem todos os secretários de educação
tes. do Brasil” (grifos nossos).
Uma leitura desprovida de argúcia impede ver na BNCC Tabela 2: Distribuição de contribuição de propostas de inclusão de
qualquer problema referente a interdições ou limitação novos objetivos de aprendizagem, segundo perfil de cadastro dos par-
do potencial dos nossos estudantes. Somente quando ticipantes1.
comparada a edições estrangeiras é que começam a emer-
gir as limitações que são impostas (GAMA, 2018).
Perfis Frequências Percentual (%)
Com base nos dados acima, passamos a analisar os Indivíduos 6313 31,5
conceitos de hegemonia, ideologia e representatividade Organizações 1010 5,0
na elaboração de um documento essencial ao processo Escolas 12737 63,5
de Reforma do Ensino Médio (BRASIL, 2016b). A Total 20060 100,00
Fonte: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
quantidade de instituições escolares que participaram documentos/relatoriosanaliticos/areas/ LIN LINGUA
da consulta pública corresponde ao dobro de indivíduos ESTRANGEIRA MODERNA Relatorio 2 3.pdf
(mesmo sabendo que grande maioria deles são profes-
sores). Destes dados, pode-se inferir que ainda há re- Constatamos que num país com mais de 210 mi-
sistência de um trabalho coletivo de professores de di- lhões de habitantes, 300 mil indivíduos cadastrados no
ferentes áreas pensarem a escola como um espaço de sistema significa um percentual bem abaixo de 1% da
diversidade(s). Essa inferência se torna mais concreta população – o que não justifica o uso dos termos ‘elo-
quando analisamos o baixo índice do perfil de organiza- quente’ e ‘extraordinário’, a não ser para criar legiti-
ções cadastradas (Tab. 2), haja vista a interdependência midade no documento (que também se caracteriza com
dessas com as próprias ações desenvolvidas no espaço uma política linguística). Afinal,
escola/comunidade.
De novo, pensemos a partir da concepção de ino- ‘relevância e números estão em campos separados. Fenô-
vação proposta por Hargreaves (2003) e sobre aqueles menos estatisticamente insignificantes podem se mostrar
decisivos, e seu papel decisivo não pode ser compreen-
que a fazem acontecer na educação. O título da aba dido de antemão’ (Bauman, 1992: 122) – cf. Rampton
‘CONTRIBUA10 ’, na página virtual do MEC que se (neste volume) –, uma vez que sua significância tem a ver
destina à participação pública na construção da BNCC, com sua relevância para aqueles que enfrentam as contin-
diz “consulta pública concluída” e a matéria inicia com gências da vida social em suas ações situadas (MOITA
LOPES, 2006, p. 101).
o agradecimento do MEC em relação ao “êxito” desta
participação popular. Em seguida, afirma que os “da-
Assim, os termos ‘eloquente’ e ‘extraordinário’ po-
dos da participação são eloquentes: mais de 1 mi-
dem ser interpretados tanto como uma tentativa de per-
lhões de contribuições foram apresentadas ao docu-
suasão como algo inesperado, respectivamente. Entre-
mento preliminar”, continua indicando que os dados in-
tanto, se pensarmos que este número representa quase
cluem “mais de 300 mil cadastrados, dos quais 207 mil
uma totalidade de professores (os practitioners sugeri-
foram de professores” e conclui afirmando que esses
dos por Hargreaves), o êxito de uma participação popu-
10 http://basenacionalcomum.mec.gov.br/site/fim-contribuicao lar se torna questionável, pois tratamos apenas de uma
Fonte:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/documentos/relatoriosanaliticos/areas/LIN LINGUA ESTRANGEIRA MODERNA Relatorio 1.pdf
língua são indissociáveis. Sobre essa questão, Penny- a implementação de resoluções justas de política esta-
cook (2006 apud CÁCERES, 2014, p. 106) desenvolve tal. Política linguística tem a ver com o uso das línguas
como parte da governamentalidade linguística (PENNY-
o conceito de “governamentalidade12 linguística” que COOK, 2006 apud CÁCERES, 2014, p. 112).
pode ser entendida
É neste contexto que passamos, agora, a analisar a
em termos de como as decisões sobre as línguas e as for- questão da língua estrangeira e a obrigatoriedade do in-
mas linguísticas através de um conjunto diverso de ins-
glês no ensino médio, a partir modificação da LDB, pro-
tituições (direito, educação, medicina, artes gráficas) e
através de um conjunto diverso de instrumentos (livros, posta pela Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, no
regulamentos, exames, artigos, correções) regulam o uso que diz respeito à língua estrangeira. De acordo com
da língua, o pensamento e as ações de diferentes pessoas, esta alteração, regidos pela BNCC,
grupos e organizações.
os currículos do ensino médio incluirão, obrigatoria-
mente, o estudo da língua inglesa e poderão ofertar ou-
Importante notar na definição acima que entre as tras línguas estrangeiras, em caráter optativo, preferen-
instituições e os instrumentos linguísticos encontram- cialmente o espanhol, de acordo com a disponibilidade
se os agentes sociais, atuando em diversos níveis, o que de oferta, locais e horários definidos pelos sistemas de
nos permite entender que o conceito de governamentali- ensino (BRASIL, 2017, Art. 35-A, § 4o . Grifo nosso.).
dade linguística pode ocorrer em dois sentidos opostos: Pensemos nos últimos doze anos! Em 2005, a Lei no
top-down, das macro instâncias para as micro instân- 11.161 decretava a obrigatoriedade da língua espanhola
cias, ou bottom-up, de maneira inversa, o que coloca no ensino médio. Dez anos depois, em 28 de abril de
os professores e alunos, no caso da instituição escolar, 2015, um projeto de Lei (PL no 1302/2015) defendia a
como agentes de práticas da língua na comunidade lin- oferta de pelo menos uma LE moderna a partir do 1o
guística onde essa escola esteja localizada. Por isso, a ano do EF, justificada por dois fatores distintos. Pri-
autora continua dizendo que meiro, porque
política linguística sempre foi muito mais que a escolha vivemos numa época de globalização, onde o fim das
de quais línguas usar no governo, na educação, ou na lei, fronteiras culturais nos transforma em cidadãos de uma
que tomar decisões sobre o meio de instrução nas esco- imensa aldeia mundial [e segundo, por]que quanto mais
las ou o papel dos tradutores nas cortes e governos, ou cedo começamos a aprender uma segunda língua, mais
a atividade cerebral por ela desencadeada se aproximará
12 A autora pontua que o termo, cunhado por Foucault da região que a língua materna ocupa no nosso cérebro
([1979]2009), na obra Microfísica do poder, refere-se a uma ação que (BRASIL, 2015a, p. 1-2).
se opunha a um governo soberano, manifestando um governo para o
povo, e associa-se à passagem do Estado de Justiça (do Feudalismo) Em menos de um mês, no dia 06 de maio de 2015,
para o Estado Administrativo da Idade Moderna. o Projeto de Lei 1382, sugere novas alterações na LDB
Figura 1: Pareceres das duas versões preliminares e dos leitores críticos da Consulta Pública
Fonte: http://basenacionalcomum.mec.gov.br//site/relatorios-analiticos
e no texto do PL 1302/2015, defendendo o ensino do região bilíngue com os países de língua espanhola e
inglês a partir do 1o ano do ensino fundamental e a in- atrelando o ensino do inglês às exigências de um mer-
clusão de pelo menos mais uma LE a partir da 5a série, cado que se rende à dominação econômica dos países
sob a justificativa de que da América do Norte, a língua estrangeira está longe de
faz-se necessário, considerando o processo de globaliza- se tornar um elemento de inclusão. Ao contrário, está se
ção determinante no mundo atual no século XXI, dar ao tornando uma lente de aumento para as diferenças cul-
texto da Lei redação para oferecer aos estudantes brasi- turais, sociais e econômicas entre o Brasil e os demais
leiros oportunidades de inclusão no mundo moderno e o países que têm o inglês como língua oficial ou segunda
desenvolvimento de seu intelecto linguístico preparando-
os para, no futuro, poderem competir em igualdade de língua.
condições no mercado mundial [e porque] a grande mai- A BNCC, citando outros documentos norteadores
oria dos países com os quais o Brasil mantém relações do educação básica13 , estabelece que o ensino de lín-
comerciais e diplomáticas como, por exemplo, os países
que participam dos BRICS, G20 e outros tem o Inglês
gua estrangeira deve promover o “desenvolvimento da
praticamente como segunda língua (BRASIL, 2015b, leitura, da escuta, da oralidade e da escrita a partir
p.1-2). de uma perspectiva discursiva, compreendendo os tex-
tos como manifestações culturais resultantes de um tra-
Finaliza dizendo que “o fato do idioma inglês ainda
balho conjunto de construção de sentidos” (BRASIL,
não ser generalizado no Brasil cria uma barreira difícil
2016a, p. 120), a fim de que na interação discursiva
de ser vencida na comunicação entre as partes para um
com as diferentes culturas, o aluno possa construir sen-
perfeito entendimento dos parceiros nas tratativas co-
tidos que o signifique e aos outros com quem (ou de
merciais e diplomáticas”. Ou seja, nesse percurso que
quem) ele apre(e)nde. Na página seguinte, o documento
traçamos (de 2005 a 2017), assistimos a um grande re-
utiliza-se de dois termos para justificar essa autono-
trocesso da compreensão do que deva ser o ensino de
língua estrangeira na educação básica e a sua adequação 13 A Base refere-se ao texto (até então não modificado) da LDB
às demandas sociais (e linguísticas) da sociedade brasi- (1996), aos PCNs (1998; 2000; 2002) e às Orientações Curriculares
leira. Ignorando-se o fato de que o Brasil está numa para o Ensino Médio (OCEM, 2005).