You are on page 1of 13

Emilio Gennari – Educador Popular

Tensões no horizonte de 2019

O economista britânico John Maynard Keynes dizia que a economia é uma ciência
que trabalha com a incerteza à medida que é sempre difícil prever o comportamento dos
agentes que atuam no mercado. E não é para menos. A busca do lucro como bússola das
escolhas empresariais faz com que as opções de investimento e as pressões sobre os
governos mudem a depender dos riscos e das chances de ganho que se apresentam no
horizonte da história.
Os acontecimentos em curso no cenário mundial sinalizam uma diminuição no ritmo
de crescimento da economia, que recentemente estava sendo retomado em alguns países,
e ensaiam passos que podem levar a uma nova crise.
Entre eles, destacamos as tensões comerciais dos Estados Unidos com a China e a
União Europeia. Para reduzir o déficit entre exportações e importações e estimular a
produção nacional, o presidente dos EUA, Donald Trump, elevou os impostos sobre várias
mercadorias trazidas do exterior. Por sua vez, os países atingidos por estas medidas
impuseram tarifas aos produtos estadunidenses que se destinam aos seus mercados na
que, pouco a pouco, ganha as feições de uma disputa comercial desgastante.
Os tributos já aplicados e a perspectiva de aumentá-los freiam a expansão das
trocas, pressionam os custos das mercadorias que dependem de bens importados e inibem
novos investimentos. Insumos mais caros colocam os empresários diante da necessidade
de encolher as margens de lucro para absorver os aumentos e não perder mercado, de
reduzir a confiabilidade ao optar por fornecedores menos qualificados ou de elevar os
preços ao consumidor colocando em risco a competitividade das mercadorias. Estas opções
remam em sentido contrário à expansão da produção e tendem a aumentar os estoques.
Diante da possível imposição de novas tarifas, o diretor geral da Organização
Mundial do Comércio, Roberto Azeredo, afirmou que um aumento acentuado poderia reduzir
o comércio global em 17% freando significativamente a elevação do Produto Interno Bruto
(PIB) mundial.1 Por sua vez, os dados relativos aos Investimentos Estrangeiros Diretos
(IED) traçam um cenário que desperta preocupações. Após encolherem 15,5% em 2017
ante o total de 2016, este volume de dinheiro investido por empresários de outros países
caiu 41% no primeiro semestre de 2018, quando comparado ao mesmo período do ano
anterior. Ao passar de 794 bilhões de dólares, entre janeiro e junho de 2017, para 470
bilhões de dólares nos mesmos meses de 2018, o IED encolheu 93% na Europa, 63% na
América do Norte, 6% na América Latina e Caribe e cresceu 6% na China.2

1
A declaração foi emitida em 16 de novembro de 2018 e publicada em https://www.dci.com.br/economia/omc-aumento-
acentuado-de-tarifas-reduziria-comercio-global-em-cerca-de-17-1.758899 Acesso em 19/11/2018.
2
Os dados foram divulgados pela UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e
publicados em: http://www.jornada.com.mx/2018/10/16/economia/024n2eco Acesso em 20/11/2018.
2
Outro fator não menos preocupante guarda relação com a flutuação dos preços do
petróleo. Entre janeiro e outubro deste ano, o barril tipo Brent teve um aumento de 35,5% ao
passar dos 55 dólares e 70 centavos para 75 dólares e 47 centavos. Fruto da contenção da
oferta por parte dos países produtores e de uma demanda mundial estável, os preços desta
matéria-prima essencial para a economia internacional pressionaram o custo de vida e
contribuíram para conter os gastos dos consumidores.
Na contramão desta tendência, no mês de novembro, os preços do petróleo sofreram
uma queda brusca. O barril tipo Brent caiu 21.2% no mercado internacional em meio às
preocupações com uma redução mais acentuada do PIB mundial que encolheria a demanda
futura de hidrocarbonetos.
Os primeiros reflexos desta situação na economia europeia podem ser verificados na
evolução dos índices de inflação. Nos países que adotam o Euro como moeda, o custo de
vida nos 12 meses até outubro havia somado 2,2% e o núcleo de preços que exclui a
volatilidade dos combustíveis e dos alimentos estava em 1,3%. Apesar de parecer uma boa
notícia, o fato de o índice permanecer abaixo de 2% sinaliza que a economia ainda não
ganhou consistência suficiente para deixar para trás os riscos da deflação. Em novembro,
as pesquisas de preços acenderam mais uma luz de alerta ao constatar que o núcleo da
inflação recuou a 1,1% no acumulado dos últimos doze meses. Apesar de pequena, esta
queda eleva as preocupações do banco central europeu em relação ao comportamento do
PIB no próximo ano, quando a sua política de estímulos financeiros ao crescimento da
economia estaria definitivamente encerrada.
Paralelamente a isso, em novembro, o anúncio de cortes de vagas em unidades
operacionais da General Motors e da Bayer colocou mais lenha na fogueira ao se
apresentar como o início de uma reestruturação mais ampla que o mercado prepara para
conter o impacto nos lucros empresariais do esfriamento da economia mundial.3
Diante da possibilidade de o petróleo servir de combustível para um aumento dos
preços e atrapalhar os planos estadunidenses, Trump pressionou a OPEP a não cortar a
oferta.4 Em sentido oposto, a Arábia Saudita, que precisa de mais recursos para bancar
seus projetos geopolíticos, atuou para que houvesse cortes da ordem de 1 milhão e 350 mil
barris. A reunião dos países produtores, em 6 de dezembro, acordou a diminuição de 1
milhão e 200 mil barris somando a produção diária da OPEP e a da Rússia (que não integra
o grupo) durante seis meses a partir de 1º de janeiro de 2019. No dia seguinte, os preços do
barril subiram 5% atingindo um patamar acima dos 63 dólares. Temos assim uma gangorra
de preços que em nada ajuda a diminuir o quadro de incerteza na economia mundial.
3
No dia 26 de novembro, a GM anunciou o corte de 15% do total de empregados da empresa ao encerrar as atividades
em cinco fábricas na América do Norte e em outras duas fora deste território. Ao todo, cerca de 14.700 trabalhadores
devem perder o emprego, gerando uma economia estimada em 6 bilhões de dólares. Um dia após o anúncio, as
expectativas de lucro fizeram as ações da GM subir 4,79%. Em: https://g1.globo.com/carros/noticia/2018/11/26/gm-
anuncia-plano-de-reestruturacao-e-deve-fechar-fabricas-na-america-do-norte.ghtml Acesso em 03/12/2018.
Três dias depois, foi a vez de o grupo alemão Bayer comunicar o corte de 12.000 empregos em unidades de vários países,
até 2021. Em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/11/29/bayer-anuncia-supressao-de-12-mil-empregos-apos-
compra-da-monsanto.ghtml Acesso em 03/12/2018.
4
Vale lembrar que a OPEP é integrada por 7 países do Oriente Médio, 6 da África e 2 da América do Sul que, em
conjunto, controlam 44% do abastecimento mundial de petróleo e possuem 82% das reservas comprovadas. Em:
https://www.bbc.com/mundo/noticias-46434570 Acesso em 04/12/2018.
3
Em outubro, as incertezas em relação ao futuro marcaram também o desempenho
das bolsas de valores. No dia 24, os mercados de câmbio e de ações registraram fortes
quedas, arrastados pelo desempenho negativo da Bolsa de Nova Iorque. O índice Dow
Jones caiu 7,1%, o S&P encolheu 8,9% e o Nasdaq perdeu 11,7%. Numa única jornada, as
principais representantes do capitalismo mundial viram evaporar toda a valorização das
ações acumulada nos primeiros dez meses do ano. Para termos uma ideia do estrago,
basta pensar que as empresas de tecnologia do Nasdaq perderam cerca de um trilhão de
dólares em valor de mercado.5
Ainda que não se trate de um evento catastrófico, precisaremos manter os olhos bem
abertos no comportamento das Bolsas de Valores à medida que a especulação financeira é
o âmbito no qual se manifestam os primeiros sinais da crise, no contexto contemporâneo. É
aí que os investidores revelam o peso de suas preocupações com uma nova recessão
mundial, cujos efeitos reúnem ingredientes que podem torná-la mais prolongada e
devastadora. E não é para menos. Em abril deste ano, a Bloomberg Businessweek divulgou
os resultados do seu estudo sobre o endividamento mundial público e privado. De acordo
com os autores, o quarto trimestre de 2017 se encerrou com 237 trilhões de dólares em
dívidas, o que corresponde a 317,8% do PIB mundial e a um crescimento de 42% ante o
último trimestre de 2007.6
Se o crédito foi fundamental para o mundo sair da crise, as dívidas acumuladas
criaram uma bomba relógio que só não explodiu porque os juros das principais economias
do sistema são muito baixos ou negativos.7 Esta realidade revela que a atual fase de
crescimento se sustenta fundamentalmente em muletas formadas por endividamentos
crescentes e por juros abaixo da inflação, uma situação que não pode perdurar
eternamente. Diante de uma nova crise, esses instrumentos de política monetária teriam
pouco ou até nenhum efeito na complexa tarefa de ajudar a economia a se erguer.
Para controlar a desaceleração do seu crescimento em função das tarifas impostas
às suas exportações, a China vem tomando medidas que aumentam os riscos relacionados
ao nível de endividamento e de arrecadação.
No início de outubro, Pequim cortou os depósitos compulsórios dos grandes bancos
para 14,5% e dos menores para 12,5%. A redução de um ponto percentual ante a situação
anterior vai injetar 109 bilhões e 200 milhões de dólares no sistema financeiro a fim de
reduzir os custos dos empréstimos e ampliar o consumo.8 Na mesma linha, a partir de
janeiro de 2019, os contribuintes terão direito a descontar anualmente do Imposto de Renda
o correspondente 1.732 dólares para cada filho da pré-escola à pós-graduação. Este
mesmo valor beneficiará também quem paga juros dos financiamentos imobiliários ou cujos
5
Dados publicados em: http://www.jornada.com.mx/2018/10/25/economia/026n1eco Acesso em 19/11/2018.
4
Dados publicados em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-04-10/global-debt-at-record-level Acesso em
15/11/2018.
7
Nunca é demais lembrar que, por exemplo, nos Estados Unidos, a inflação dos 12 meses até outubro de 2018 está na
marca de 2,52% enquanto os juros seguem em 2,25% o que, como no caso do Japão, da Austrália, das nações que
adotam o Euro como moeda única, significa manter juros negativos como forma de direcionar os investimentos do mercado
financeiro para a produção. Dados publicados em: https://pt.inflation.eu/taxas-de-inflacao/estados-unidos/inflacao-
historica/ipc-inflacao-estados-unidos-2018.aspx Acesso em 20/11/2018.
8
Dados divulgados na edição impressa do Diário do Comércio e da Indústria em 08/10/2018.
4
pais acima de 60 anos sofrem de doenças graves. O aumento das dívidas e a redução da
arrecadação podem criar uma situação ainda mais crítica se as preocupações com o futuro
da economia não elevarem o consumo das famílias a um patamar que compense o peso da
renúncia fiscal.
Até o momento, apesar das incertezas que tendem a frear a marcha da produção e
do comércio, não há indícios que nos permitam afirmar que em 2019 teremos uma nova
crise econômica mundial. Todavia, os elementos constitutivos de um processo de crise vêm
ganhando corpo e tendem a se agravar no decorrer deste ano. Ao contrário do que afirmam
os governantes, o que está no horizonte da economia mundial não é um processo de
expansão ainda maior e sim o seu progressivo esfriamento.

De Temer a Bolsonaro: missão cumprida!

Em 2017, o PIB do Brasil registrava o magro crescimento de 1%, mas as promessas


do Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, diziam que, para 2018, o corte dos gastos
públicos elevaria a confiança dos investidores fazendo a economia crescer mais de 2,5%. A
um passo de encerrar o ano, o relatório de Banco Central estima outro crescimento pífio de
1,32%9 e os dados do 3º trimestre divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) revelam um crescimento de 1,1% entre janeiro e setembro deste ano ante os
mesmos meses de 2017.10
Por que a política de austeridade do governo não trouxe os resultados esperados?
Ao contrário do que emerge dos discursos oficiais, não há um vínculo direto entre a
redução das despesas governamentais e a confiança da iniciativa privada. Ninguém investe
porque o governo equilibra as contas públicas, e sim quando há demanda com perspectivas
de lucros compensatórios para os produtos e serviços que serão colocados no mercado.
Conter gastos públicos quando a economia mal entrou em fase de crescimento é sinônimo
de conduzir o país na direção oposta à do necessário aumento da demanda.
Foi isso que ocorreu em 2017, quando os gastos públicos encolheram 0,6% em
relação a 2016, e, em 2018, tudo indica que o crescimento destas despesas não deve

9
O relatório de 30 de novembro de 2018 encontra-se em: https://www.bcb.gov.br/pec/GCI/PORT/readout/R20181130.pdf
Acesso em 03/12/2018.
10
O relatório completo com os dados do PIB do terceiro trimestre levantados pelo IBGE encontra-se em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23251-pib-cresce-0-8-e-
chega-a-r-1-716-trilhao-no-3-tri-de-2018 Acesso em 03./12/2018
Os números que mais chamam à atenção são relativos ao crescimento de 7,8% nos investimentos em capital fixo quando
comparados com o mesmo trimestre de 2017. Este avanço, sem dúvida positivo, tem forte relação com a incorporação de
bens destinados à indústria de petróleo e gás decorrente das isenções fiscais concedidas ao setor petrolífero pela lei
13.586, sancionada pelo presidente Michel Temer em 28 de dezembro de 2017. Por esta medida, as empresas petrolíferas
estrangeiras que atuam na exploração, desenvolvimento, e produção de petróleo e gás no Brasil estarão isentas do
Imposto de Importação, do Imposto sobre Produtos Industrializados, das respectivas contribuições para o PIS e o PASEP
até 2040. De acordo com as estimativas, estes benefícios fiscais levam a uma perda total de arrecadação estimada em 1
trilhão de reais que o governo poderia investir em benefício da população. Em: https://jornalggn.com.br/noticia/medida-
provisoria-reduz-impostos-para-petroleiras-estrangeiras e em: https://www.poder360.com.br/governo/temer-sanciona-lei-
que-da-isencao-a-empresas-petroleiras-ate-2040/ Acesso em 20/11/2018. A comparação com o primeiro trimestre de 2014
foi publicada na versão impressa do jornal Valor Econômico em 30/11/2018.
5
passar de 0,3%, mantendo assim um patamar ainda inferior ao que foi registrado em 2016.11
Ao frear a demanda que vem do setor público, a retomada da economia se torna lenta,
sofrida, carregada de incertezas e a procura de mercadorias e serviços não oferece
perspectivas convincentes. Nestas condições, faltam estímulos para a iniciativa privada
arriscar seu dinheiro na ampliação da produção.
Então...qual é o papel da austeridade?
A história mostra que, no âmbito das políticas neoliberais, o ajuste das contas
públicas cumpre várias funções, entre elas, a de proporcionar um ambiente favorável às
privatizações e ao processo que permite drenar para a iniciativa privada uma gorda fatia dos
recursos públicos através das desonerações, dos incentivos e dos juros da dívida interna.
Além de se manter fiel a este roteiro, a austeridade nas contas públicas do governo Temer
foi fundamental para criar um cenário no qual o desemprego colocaria os trabalhadores na
corda bamba e permitiria cortar direitos sem enfrentar reações significativas. Quanto maior a
insegurança, mais fácil seria quebrar a resistência da classe trabalhadora e atender às
demandas da elite de um trabalhador barato e superexplorado.
Os dados comparativos entre o 3º trimestre deste ano e o mesmo período de 2017,
elaborados pelo IBGE, revelam que este foi justamente o resultado conseguido.12 Vejamos:

Diferença de
Indicadores 3º tri 2018 3º tri 2017 postos entre o 3º tri
de 2018 e de 2017
Força de trabalho total 105.114.000 104.258.000 856.000
Pessoas ocupadas 92.622.000 91.297.000 1.325.000
Pessoas desocupadas 12.492.000 12.961.000 - 469.000
Setor privado com carteira assinada 32.972.000 33.300.000 - 327.000
Setor privado sem carteira assinada 11.511.000 10.910.000 601.000
Trab. doméstico c/ carteira assinada 1.811.000 - 21.000
1.832.000
Trab. doméstico s/ carteira assinada 4.448.000 4.344.000 104.000
Setor público com carteira assinada 1.293.000 1.260.000 34.000
Setor público sem carteira assinada 2.560.000 2.468.000 92.000
Militar e func. público estatutário 7.879.000 7.762.000 117.000
Empregadores 4.429.000 4.245.000 184.000
Trab. por conta própria com CNPJ 4.577.000 4.228.000 349.000
Trab. por conta própria sem CNPJ 18.919.000 18.683.000 237.000
Trabalhador familiar auxiliar 2.222.000 2.264.000 - 43.000

11
Os dados de 2017 e a comparação com 2016 estão no relatório oficial do IBGE sobre o PIB do ano passado, em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/81ae530dde1921d8cb04144b8e283246.pdf Acesso
em 04/06/2018.
As projeções a partir da divulgação dos números do PIB do terceiro trimestre de 2018 foram publicadas em:
https://www.dci.com.br/economia/recuo-de-servicos-publicos-limita-alta-do-pib-1.762593 Acesso em 04/12/2018.
12
Acesso à tabela original em: https://drive.google.com/file/d/1EDhMHMbXL4xA8fjEwgsCVo9b2Yi-r278/view?usp=drivesdk
6
A comparação entre os mesmos trimestres revela um saldo positivo de 1 milhão e
325 mil novos ocupados e uma redução de 496 mil desocupados. A boa impressão gerada
pelo aumento das vagas começa a diminuir quando analisamos o tipo de ocupação.
Os trabalhadores do setor privado com carteira assinada registraram uma diminuição
de 327 mil postos, enquanto a contratação sem carteira assinada se ampliou em 601 mil
vagas.
No mesmo período, o contingente dos trabalhadores por conta própria aumentou em
586 mil pessoas. Pela tabela, percebemos que, no terceiro trimestre de 2018, o número dos
trabalhadores sem CNPJ é 413% superior em relação ao dos que têm esta formalização do
trabalho. Ou seja, apesar de apresentar uma redução ante a diferença de 442% no mesmo
período de 2017, a informalidade entre os que integram este setor segue em níveis
assustadoramente elevados.
Por sua vez, o aumento de 349 mil ocupados com CNPJ inclui situações bem
variadas que o IBGE não diferencia. Se aceitarmos como válidas as porcentagens apuradas
no levantamento de 2016 pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(SEBRAE), temos que 69% deste grupo buscam apenas encontrar uma saída à
precariedade em que se encontram, sendo que os empreendedores propriamente ditos não
passariam de 31%.13
No trabalho doméstico, a precarização é ainda mais gritante à medida que foram
perdidas 21 mil vagas com carteira assinada e outras 104 mil foram criadas sem que os
ocupados deste setor tenham acesso aos poucos direitos previstos pela legislação.
Quando excluímos o grupo dos empregadores e das pessoas que auxiliam suas
famílias recebendo em troca o que precisam para sobreviver, o saldo de vagas com algum
grau de registro formal soma 152 mil postos. Por outro lado, ao reunirmos as vagas do setor
privado e dos trabalhadores domésticos sem carteira assinada, mais os que começaram um
trabalho por conta própria sem CNPJ, as novas vagas são um milhão e 34 mil. Ou seja, na
comparação anual entre os trimestres, a precarização nadou de braçadas.
Mas isso não é tudo. A política de austeridade usa o amparo da lei para manter os
gastos sociais abaixo do já precário nível em que se encontram. A título de exemplo, vamos
analisar os dados consolidados da execução orçamentária na área da saúde em 2017,
conforme constam do relatório divulgado pelo Tesouro Nacional. 14 Antes de tudo,
precisamos lembrar que, no ano passado, a legislação possibilitava que as verbas deste
setor não sofressem restrições orçamentárias, sendo que o patamar mínimo fixado em lei
perfazia 114 bilhões de reais.
Ao olhar as tabelas, a primeira impressão é a de que o governo iria gastar mais do
que o mínimo exigido, à medida que a saúde contaria com um total de recursos de 120
bilhões, 356 milhões e 456 mil reais. Os problemas começam a aparecer quando vemos
que o valor realmente gasto perfaz 103 bilhões, 247 milhões e 634 mil reais, ou seja, 10

13
Idem. Pg. 47.
14
Em: https://drive.google.com/file/d/1L-BmWhQ-rWQb5a5hN5_LgFQBfceRPvX0/view?usp=drivesdk você vai ter acesso
ao texto integral deste relatório.
7
bilhões, 752 milhões e 366 mil reais a menos do que seriam os gastos mínimos previstos
pela legislação. 15 Para fechar as contas, o governo Temer incluiu um total de 14 bilhões 354
milhões e 850 mil reais de “restos a pagar” somando neste montante o que faltou gastar em
2017 e o que foi herdado dos anos anteriores. Ainda não temos os números de 2018, mas
tudo leva a crer que não devem se distanciar muito da realidade que apresentamos.
O artifício contábil dos “restos a pagar” faz com que parte dos gastos que deveria ser
executada no ano a que o orçamento se refere seja adiada para um futuro indeterminado
ou, a depender da situação das contas públicas, venha a ser parcialmente cancelada. Desta
forma, o governo mata vários coelhos com uma pancada só: cumpre no papel o mínimo de
gastos numa área sensível para a maioria da população que depende do Sistema Único de
Saúde (SUS), dá a impressão de se comprometer além do que seria legalmente exigido e,
sem incorrer no risco de sofrer ações judiciais, no futuro, pode eliminar parte dos “restos a
pagar”.
A redução dos valores efetivamente gastos, somada ao aumento da população, tem
como resultado uma piora do atendimento público e um crescimento da demanda na esfera
do privado. Sempre no campo da saúde, na cidade de São Paulo, por exemplo, a piora do
atendimento nos dois últimos anos foi acompanhada pela abertura de clínicas que realizam
consultas especializadas e exames por menos da metade dos preços praticados pelo
mercado. É o caso do “Dr. Consulta” e da “Companhia da Consulta” que fornecem
atendimento clínico especializado a quem não tem condições de pagar um convênio
médico, mas não pode esperar os prazos do SUS.16
Ao aplicar a mesma receita aos demais gastos sociais, em longo prazo, a sua
redução abre espaços a uma maior isenção dos impostos empresariais, corrói os direitos
constitucionais e contribui para aprofundar as reformas neoliberais. Enfim, sob a ótica dos
interesses do capital, não há como negar que o governo Temer fez um ótimo trabalho.
Somando os gastos de União, Estados e municípios, 2018 deve se encerrar com um
montante por volta de 19,3% do PIB, cerca de um trilhão e 400 bilhões de reais, 93% dos
17
quais são determinados pela legislação. Sempre de acordo com a lei, em 2019, esse
volume pode crescer 4,4%, o que soma 59 bilhões e 200 milhões de reais. 18 Ou seja, sobra
muito pouco espaço para a nova equipe econômica pensar em como fazer o país crescer.
Por sua vez, o orçamento de 2019 mantém a estimativa de crescimento do PIB em
2,5%, uma perspectiva bastante otimista diante da evolução da economia mundial, do lento

15
Para termos uma ideia do que isso significa, basta pensar que, com a diferença entre o valor mínimo e o que foi
efetivamente gasto, seria possível comprar 63.623 ambulâncias UTI totalmente equipadas. O número de ambulância foi
calculado com base na média de um modelo 0 km a um custo de R$ 169.000,00 por unidade. Média calculada com base
nos preços divulgados em: https://veiculos.mercadolivre.com.br/ambulancia-uti-completa acesso em 08/05/2018.
16
Para ter uma ideia do tipo de atendimento oferecido e dos valores cobrados, basta acessar: https://www.drconsulta.com/
e https://ciadaconsulta.com.br/ Acesso em 21/11/2018.
17
Em: https://www.dci.com.br/politica/criac-o-de-fundo-de-pens-o-podera-destravar-restric-o-do-teto-de-gastos-1.755837
acesso em 06/11/2018
18
Em: http://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/correio-economico-teto-de-gastos-sera-cumprido-em-2019-e-2020/
acesso em 06/11/2018
8
avanço da massa salarial, do nível de investimentos 19 e do grau de endividamento da
população.20

Bolsonaro vem aí!

Não faltam especulações em relação às primeiras medidas do novo governo. Fala-se


de um plano de demissão voluntária de funcionários públicos federais antes de introduzir o
fim da estabilidade, de uma reforma da previdência cujo principal obstáculo está no fato de
os militares serem responsáveis pela maior parte do déficit previdenciário do setor público,
de alteração da lei que define o teto dos gastos públicos e de um processo de privatização
agressiva. Até o momento, tudo está bastante nebuloso, entre afirmações e desmentidos de
familiares do presidente e membros da futura equipe de governo, boatos e balões de ensaio
que percorrem as redes sociais com o intuito de testar as reações populares.
Qualquer uma das possibilidades citadas vai se deparar com limites e desafios
complexos. O caminho das privatizações, porém, parece ganhar consistência com o decreto
número 9.589, assinado pelo presidente Michel Temer no dia 29 de novembro deste ano.21
Depois de autorizado pelo Presidente da República, toda a responsabilidade do processo de
liquidação passa do Ministério setorial ao qual a empresa estava vinculada para o Ministério
do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão a fim de diminuir o risco de inércia burocrática
e a interferência de um determinado ministério na liquidação da estatal em questão. Graças
ao decreto, tanto a privatização como a extinção das estatais deficitárias deve se tornar
mais rápida.
È possível que, para favorecer a adesão às políticas que se apresentarão como um
remédio amargo, o novo presidente estreie com alguma medida de baixo custo (algo como
um 13º do Bolsa Família) destinada a confirmar nas pessoas o acerto de ter votado nele e a
calar as críticas que negavam do seu compromisso com a população mais pobre.
Do mesmo modo, não está claro como e quando será preparada a transferência da
Embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém e de que forma o fato de ver com
restrições os investimentos da China no país, anunciado durante a campanha eleitoral, se
materializará em medidas concretas. Em ambos os casos, os esforços para ganhar a

19
No terceiro trimestre de 2018, os investimentos representam 16,9% do PIB, um ponto e meio percentual acima dos
15,4% registrados no mesmo período de 2017. Uma elevação muito pequena quando consideramos que o patamar de
2017 foi um dos mais baixos da série histórica apurada pelo IBGE. Em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-
de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23251-pib-cresce-0-8-e-chega-a-r-1-716-trilhao-no-3-tri-de-2018 Acesso
em 03/12/2018.
20
De acordo com a Pesquisa sobre Endividamento e Inadimplência do Consumidor realizada pela Confederação Nacional
do Comércio, a taxa de juros em patamares mais baixos (atualmente, em 6,5% ao ano) fez com que, em outubro deste
ano, o número de famílias endividadas fechasse em 60,7% do total, queda de 1,1 ponto percentual em relação ao mesmo
mês do ano passado. Por outro lado, o percentual de famílias que declaram não ter condições de pagar as contas ou as
dívidas em atraso somam 9,9%, apenas 0,2 ponto percentual a menos em relação aos 10,1% de outubro de 2017. Dados
publicados na versão impressa do Diário do Comércio e da Indústria em 08/11/2018.
Em sentido oposto, os números apurados pelo serviço de Proteção ao Crédito e pela Confederação dos Dirigentes Lojistas
apontam que o número de inadimplentes cresceu 4,22% em outubro ante o mesmo mês de 2017, perfazendo um total de
62 milhões e 830 mil brasileiros com o CPF restrito para fazer compras a prazo ou contratar crédito. Dados publicados na
versão impressa do Diário do Comércio e da Indústria em 13/11/2018.
21
A íntegra do decreto encontra-se em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9589.htm
Acesso em 03/12/2018.
9
simpatia de Donald Trump podem trazer ao Brasil prejuízos bem maiores do que os
supostos ganhos que pretende conseguir.
De um lado, transferir a embaixada para Jerusalém pode levar os países árabes a se
afastarem do Brasil tanto em termos diplomáticos como comerciais. Vale lembrar que entre
janeiro e outubro deste ano, as exportações a eles destinadas aumentaram 1% em relação
ao mesmo período de 2017 perfazendo um total de 35 milhões e 450 mil toneladas de
mercadorias por um valor total de 9 bilhões e 300 milhões de dólares.22 Após as primeiras
declarações do então candidato Jair Bolsonaro sobre este assunto, o Egito cancelou uma
visita que representantes do Brasil fariam ao país, num primeiro sinal de que esta opção
não será sem consequências.
Em relação à China, as coisas são bem mais complexas. Até o momento, a disputa
comercial entre Pequim e Washington favorece as exportações brasileiras para o país
asiático que é o maior parceiro comercial do Brasil. De janeiro a outubro deste ano, os
chineses respondiam pela compra de 26,5% dos embarques brasileiros, um crescimento de
4,3 pontos percentuais acima do registrado no mesmo período de 2017, sendo que, desse
total, 47,7% é de produtos básicos como grãos, carnes e minérios, um avanço de 6,1 pontos
percentuais sempre em relação aos primeiros dez meses do ano passado. Por sua vez, os
EUA são o segundo maior parceiro com menos de 12% do total exportado.23 Um aumento
da tensão nas relações sino-brasileiras poderia ter um custo pesado para a economia caso
Pequim decida boicotar os embarques locais.
No afã de livrar o agronegócio brasileiro das amarras que ainda dificultam a
destruição total do meio ambiente e que, no entender de Bolsonaro, estariam sufocando o
desenvolvimento do setor, o novo presidente pode estar criando problemas que trariam
consequências amargas para a economia como um todo. Na última semana de novembro, o
Brasil decidiu retirar a sua candidatura para sediar a reunião da ONU sobre mudanças
climáticas. Em seguida, Bolsonaro admitiu ter participado da decisão e afirmou que não faria
sentido sediar o evento uma vez que o país pode deixar o acordo sobre o clima, assinado
em Paris, que tem por objetivo minimizar os impactos do aquecimento global.
No dia 29 de novembro, a resposta veio através do presidente da França, Emmanuel
Macron, que deixou claro que a assinatura do acordo comercial entre a União Europeia e o
MERCOSUL, que vem sendo negociado há 20 anos e está na reta final, depende do apoio
do governo brasileiro ao Acordo de Paris. 24 Imitar a postura dos EUA...sendo apenas
Brasil...é arriscar comprometer muito mais do que se acredita poder ganhar.
Em termos de atuação parlamentar, a forma como Bolsonaro escolheu os ministros
do seu governo (com muitos militares no primeiro escalão e agradando ora uma, ora outra
bancada temática) desperta dúvidas em relação à capacidade de manter um apoio
consistente do Congresso. È possível que o fisiologismo parlamentar cobre uma conta

22
Dados publicados na versão impressa do Diário do Comércio e da Indústria em 16/11/2018.
23
Dados publicados na versão impressa do Diário do Comércio e da Indústria em 08/11/2018.
24
A notícia foi publicada na versão impressa do jornal O Estado de São Paulo, em 30/11/2018.
10
razoavelmente alta a cada pedido de aprovação de matérias do Executivo, o que reduziria
substancialmente a capacidade de ação do novo presidente da República.
Basta pensar que, na Câmara dos Deputados, as emendas constitucionais precisam
de 308 dos 513 votos disponíveis, mas a soma das vagas ocupadas por PT, PV, PSB,
PCdB, PSOL, PDT e Rede Sustentabilidade não oferecem mais de 140 votos, 56 votos a
menos do necessário para rejeitar uma emenda constitucional. No Senado, as coisas não
são diferentes à medida que a aprovação se dá com o apoio de 49 dos 81 senadores,
sendo que PT, PSB, PV, PDT e Rede Sustentabilidade não passam de 26 votos, 7 a menos
do que precisariam para o mesmo fim. A diferença que falta para inviabilizar a aprovação de
um projeto do Executivo pode ser oferecida por setores descontentes do chamado “Centrão”
que foram excluídos das negociações dos cargos.
Ainda que a disputa parlamentar ocorresse em condições mais favoráveis, seria um
erro acreditar que tudo pode ser resolvido na base do número de votos disponíveis. Não
podemos esquecer que o ponto essencial da ascensão de Bolsonaro deita raízes no
enfraquecimento da influência das forças contrárias às suas posições nos meios populares
e no fato de ele ter entendido as mudanças que estavam ocorrendo na percepção da
realidade entre o povo simples.
Em vários momentos, as suas frases e chavões ganharam tons rebeldes, usaram
termos de cunho libertário para disfarçar o retorno a posições que ampliam a submissão e a
desigualdade como se fossem passos para avançar na emancipação. Uma tarefa
impossível sem a coesão proporcionada pelas igrejas cujos padres e pastores não titubeiam
em falar em nome de um Deus que se ergue a fiador de crenças e atitudes que acorrentam
os seres humanos a uma ordem onde a disposição a suportar mais sofrimentos é a única
esperança de futuro.
Em 2019, não serão poucos os momentos em que a elite, na figura do seu
presidente, usará uma retórica nacionalista vaga e enfática que parece dizer tudo sem
precisar explicar nada. Graças a este biombo, aqueles que discordarem do que será
encaminhado serão apontados como inimigos e sumariamente colocados no rol dos
corruptos, esquerdistas e criminosos comuns que precisam ser eliminados para que o país
tenha um futuro melhor. Sem que seja necessário provar nada, as posições oficiais serão
apresentadas como a única verdade possível por serem supostamente impermeáveis a
qualquer influência ideológica, por andarem de mãos dadas com o senso comum e
somarem apoios até entre aqueles cuja única identidade com o discurso dominante é o fato
de serem brasileiros. Pelo menos num primeiro momento, quanto maior o encantamento,
menos o novo governo precisará de elementos da realidade para convencer o povo.
Um exemplo vai nos ajudar a entender este processo. Em várias ocasiões, ouvimos
críticas acirradas à participação do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social) no financiamento da ampliação e modernização do porto de Mariel, em
Cuba, a 45 Km de Havana, realizadas pela Odebrecht em parceria com a cubana Quality. A
obra custou 957 milhões de dólares, dos quais, 682 milhões foram financiados pelo BNDES,
e não doados como muito fizeram crer, com um empréstimos que o país caribenho deve
11
quitar até 2034. Em contrapartida, 802 milhões de dólares investidos na construção foram
gastos no Brasil através da compra de bens e serviços comprovadamente brasileiros,
acima, portanto, do montante indicado pelas regras dos créditos internacionais concedidos
pelo BNDES que limitariam este tipo de aquisições ao valor emprestado. A compra de
mercadorias e serviços movimentou a nossa economia, gerando 156 mil empregos, entre
diretos e indiretos.
Na época da aprovação dos empréstimos, o presidente dos Estados Unidos, Barack
Obama, mostrava-se favorável ao fim do embarco que, há décadas, o seu país impõe a
Cuba. Neste contexto, o porto de Mariel e a Zona Especial de Desenvolvimento a ser
construída em volta dele apresentavam um forte potencial na ampliação das rotas
comerciais e das exportações rumo aos mercados da América Central e do Norte, processo
no qual o Brasil seria favorecido por ter participado dos investimentos. 25
O objetivo da participação brasileira no negócio, portanto, não guardava relação com
a afinidade ideológica entre os governos petistas e de Raul Casto, em Cuba, não visava
apoiar uma ditadura comunista que desrespeita os direitos humanos, não colocava em risco
a saúde financeira do banco nem era sinônimo de descuidar dos problemas brasileiros para
investir fora do país.
Em contraposição à postura supostamente ideológica que orientou o empréstimo ao
governo de Havana, Bolsonaro tem afirmado em várias ocasiões que administrará o país
sem ideologia, mas baseado apenas em escolhas técnicas e pragmáticas.
As aparências e o tom do discurso dispensam qualquer comprovação e, aos olhos do
povo, tornam desnecessária uma análise das razões que sustentaram este e os demais
investimentos que o BNDES promoveu no exterior. Dados não faltam. Mas o trabalho de
procurá-los para averiguar o que se apresenta como verdade absoluta parece inútil diante
da força de uma ideologia que se disfarça de realidade.
Seguindo a trilha dos números, percebemos que de 1998 a setembro de 2018, “o
BNDES desembolsou o equivalente a US$ 274 bilhões para apoiar a infraestrutura no
Brasil, algo em torno de 27 vezes o valor destinado a financiar vendas de bens e serviços
usados em obras de empreiteiras brasileiras no exterior (US$ 10,5 bilhões)”.
Atualmente, o BNDES financia exportações de bens e serviços de alto valor
agregado para mais de 40 países, todos fornecidos por empresas brasileiras. Trata-se, por
exemplo, de aeronaves, ônibus, caminhões, bens e serviços de engenharia. “O maior
destino dessas operações são os Estados Unidos (US$ 17 bilhões de 1998 a 2017). Em
seguida, vêm Argentina (US$ 3,5 bilhões), Angola (US$ 3,4 bilhões), Venezuela (US$ 2,2 bi)
e Holanda (US$ 1,5 bi)”.26
Bastam estes valores para entendermos que os empréstimos a Cuba representam
bem pouco em termos de volume de dinheiro, mas são justamente eles a despertar algumas
perguntas necessárias.
25
Dados publicados em: https://www.cartacapital.com.br/internacional/por-que-o-brasil-esta-certo-ao-investir-em-cuba-
1890.html/ Acesso em 02/12/2018.
26
Todas as citações foram extraídas de: https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/consulta-operacoes-
bndes/perguntas-respostas/perguntas-respostas-sobre-apoio-a-exportacao Acesso em 27/11/2018.
12
Por que o empréstimo de 682 milhões de dólares a Cuba é condenado sem
atenuantes e os 17 bilhões de dólares concedidos aos EUA não são sequer mencionados,
assim como não há comentários em relação aos 3 bilhões e meio de dólares concedidos à
Argentina? O fato de serem, respectivamente, 25 e 5 vezes maiores nega o possível caráter
ideológico desses empréstimos? Ou isso se deve ao fato de que os grupos empresariais
que sustentam o governo de Donald Trump, nos EUA, e de Maurício Macri, na Argentina,
têm mais afinidades do que diferenças em relação às elites que abriram caminhos à eleição
de Bolsonaro? O fato de serem governos claramente de direita faz com que sua atuação
não tenha nenhum caráter “ideológico” e seja é “pragmática”? Ou quanto mais histéricas e
distantes da realidade forem as acusações, mais vão parecer verdadeiras por
desaconselhar uma reflexão desnecessária? Quando a doutrinação ideológica da direita
permeia o sentido dos acontecimentos, todos devem recebê-la de braços abertos como a
única verdade possível?
Em relação aos direitos humanos, é sempre bom lembrar que os EUA apoiam há
décadas governos totalitários, como o da Arábia Saudita. O fato de serem importantes
parceiros geopolíticos e comerciais é suficiente para Washington fazer vista grossa diante
dos seus abusos. Será que os bolsonarianos não ficaram sabendo que, em função dos
negócios entre os dois países, Trump retirou a ameaça de impor sanções comerciais à
Arábia Saudita após descobrir que todos os indícios apontavam o príncipe regente como
mandante do assassinado de um jornalista crítico do regime na embaixada do país em
Istambul? O fato de envolver países capitalistas de carteirinha faz com que as provas do
assassinato da liberdade da imprensa não tenham a menor importância em termos de
direitos humanos? Ou será que até o relatório de 2015 da Anistia Internacional denunciando
175 execuções sumárias em território saudita já foi completamente esquecido? 27
A demora em tratarmos dos investimentos relativos aos empréstimos para as obras
no porto de Mariel, em Cuba, é apenas uma amostra das dificuldades com as quais nos
deparamos no diálogo que busca questionar as percepções do senso comum.
A capacidade de entrar em sintonia com a visão de mundo do povo simples,
mostrada durante o processo eleitoral, coloca Bolsonaro em clara vantagem em termos de
capacidade de convencimento e confiabilidade em relação aos movimentos sociais, aos
sindicatos e aos partidos progressistas que o criticam. O caminho para virar o jogo não
passa por ficar simplesmente à espera que os fatos, por si só, deponham contra o novo
governo, à medida que, até o momento, o corte ideológico das interpretações de Bolsonaro
tem conseguido anular os questionamentos da própria realidade material.
Além da necessidade de formar uma frente ampla com um programa comum fora do
âmbito parlamentar, os próximos acontecimentos demandam das forças que se opõem à
ordem social das elites um grau de inserção no meio popular mais elevado. Sem esta

27
Estamos nos referindo ao brutal assassinado do jornalista Jamal Khashoggi. Em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-
internacional-46051794 Acesso em 04/12/2018.
Em 2015, o relatório da Anistia Internacional acusava a Arábia Saudita de ter executado 175 pessoas ao longo de 2014,
após serem submetidas a julgamentos injustos e sem chances mínimas de defesa. Em:
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150825_arabia_execucoes_tg Acesso em 04/12/2018.
13
condição imprescindível para transformar em realidade as proposta que serão formuladas,
esperar as próximas eleições na esperança de que o povo vai “votar certo” é sinônimo de
perder o trem da história.
Olhando para o futuro do Brasil e do mundo, é impossível não reconhecer que
Keynes tinha razão ao dizer que a economia é uma ciência que lida com a incerteza. As
nuvens que começam a se formar no horizonte da história prometem instabilidades e
turbulências. Nos conflitos sociais que se preparam Keynes não titubearia em ficar do lado
da burguesia educada, apesar da justiça e do bom senso influenciarem suas posições. Nós
torcemos para que as incertezas levantem ventos capazes de derrubar a exploração do ser
humano pelo próprio ser humano.

Brasil, dezembro de 2018.

You might also like