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CORREDENTORA

REVISTA ELETRÔNICA DO
MOSTEIRO DA SANTA CRUZ

Número 2 – Maio de 2011

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2
CORREDENTORA,
Revista eletrônica do
Mosteiro da Santa Cruz,
Estrada Alcino Cunha Ferraz, km 2
Janela das Andorinhas, Alto dos Michéis,
Nova Friburgo, Rio de Janeiro,
Telefone: 22 2540-1136.

É absolutamente livre a utilização ou reprodução


de qualquer artigo desta revista.
Pede-se apenas que se se cite a fonte
e não se faça nenhum uso que lhe desfigure os objetivos.

EDIÇÃO:
Equipe do Mosteiro da Santa Cruz

DIREÇÃO GERAL:
D. Tomás de Aquino,
Prior

FOTO DA CAPA:
Torre da Igreja do
Mosteiro da Santa Cruz

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SUMÁRIO

TRADIÇÃO VERSUS MODERNISMO ― p. 7

―A Encíclica Pascendi‖, por Dom Tomás de Aquino — p. 9

SOB O ESTANDARTE DE CRISTO REI ― p. 23

―Seminário Permanente de Estudos Sociopolíticos Santo Tomás de Aquino ― Spes


(Documento de Fundação)‖ ― p. 25

―Carta Pastoral sobre a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo‖, por D. Antônio de
Castro Mayer — p. 37

―Carta Encíclica Quas Primas ― Sobre Cristo Rei‖, de Pio XI — p. 69

SANTO TOMÁS VERSUS HUMANISMO ― p. 85

―Corte e Costura Humanista‖, por Carlos Nougué — p. 87

MÚSICA E LITURGIA ― p. 109

―Doutrina Pontifícia sobre a Música Sacra‖ — p. 111

A ARTE E O CATÓLICO — p. 135

―Dois Poemas de Fagundes Varela” — p. 137

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TRADIÇÃO VERSUS MODERNISMO

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A ENCÍCLICA PASCENDI

Dom Tomás de Aquino

SÃO PIO X AO TERMINAR a primeira parte de sua magistral encíclica Pascendi escreve
que no caminho que conduz ao aniquilamento de toda religião os protestantes deram o
primeiro passo, os modernistas o segundo e o próximo será o do completo ateísmo.
Vamos pois começar estudando este primeiro passo que foi dado pelos
protestantes, isto é, por Lutero e todos aqueles que sofreram sua influência. Em
seguida, examinaremos o segundo passo que é o modernismo, suas causas e seu
conteúdo doutrinal. Para terminar examinaremos brevemente o modernismo nas
reformas do Concílio Vaticano II.

I. LUTERO E SEUS DISCÍPULOS

Revoltando-se contra a autoridade doutrinal da Igreja, Lutero vai fazer da liberdade


individual o árbitro supremo em matéria religiosa. Com o seu ―livre exame‖, Lutero
abriu o caminho, como diz Leão XIII, às variações infinitas, às dúvidas e às negações a
respeito das mais graves questões.
Ele não só ataca a Igreja, mas também a própria razão.

―A razão, dizia ele, é diretamente oposta à Fé [...] Entre os fiéis ela devia ser
exterminada e enterrada (...) ela é a prostituta do demônio. Ela só pode blasfemar e
desonrar tudo o que Deus fez ou disse.‖1

Lutero, antecipando-se aos modernistas e aos neomodernistas, vai atacar o método


escolástico, que faz toda a solidez da teologia católica.
―É impossível reformar a Igreja‖, diz ele, ―se a teologia escolástica e a filosofia não
são inteiramente desenraizadas, assim como o Direito Canônico‖. E ainda: ―A lógica
não tem nenhuma utilidade em teologia, pois o Cristo não tem necessidade das
invenções humanas‖.2
Este tesouro da Igreja que é a teologia e a filosofia escolásticas será sempre
combatido pelos inimigos da Igreja. Descartes (1596-1650), filósofo francês, embora
sendo católico, vai igualmente desprezar a escolástica e dar início à filosofia moderna,
também chamada de filosofia separada. Após Descartes virá Kant, protestante, que

1 Pe. Bourmaud, Cent ans de Modernisme, Clovis 2003, p. 89


2 Apud idem.

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marcará a filosofia com o seu sistema. Kant (1724-1804) é um dos pais do idealismo.
Vamos tentar resumir o seu sistema.
Para Kant, nós só podemos conhecer as aparências das coisas, ou seja, a realidade
acessível aos sentidos, os fenômenos, como ele diz. Para Kant, a única ciência
verdadeira é a Física. A Física não atinge a essência das coisas, mas só o que está ao
alcance dos sentidos.
A essência das coisas, para Kant, é incognoscível. Eis porque, para Kant, a filosofia
não é uma ciência e nós não podemos conhecer nem a Deus, nem a alma, nem mesmo a
Revelação ou qualquer intervenção de Deus na vida dos homens.
No entanto, Kant vai, através da moral, afirmar a existência de Deus, da alma, do
Céu, etc. ―Eu destruí a razão para dar lugar à Fé‖, diz ele. Mas fazendo isso Kant tira
todo fundamento à Fé. Para Kant a existência de Deus é uma verdade prática. Deve-se
dizer que Deus existe porque é útil afirmar a sua existência, embora não se possa
prová-la. Sua existência é útil e mesmo necessária à moral. Eis o único fundamento
para afirmar a sua existência.
Assim, Kant vai separar as verdades em dois grupos: as verdades científicas, que
são as da Física e as verdades morais, que não são científicas. Deus, os milagres, a
revelação, nada disso pode ser conhecido com certeza, nada disso é objeto de ciência. É,
na verdade, o que pensam a maioria de nossos contemporâneos, sob a influência
dessas doutrinas.
O sistema de Kant é bastante complexo. Vamos reter sobretudo o seu agnosticismo,
isto é, a doutrina que nega que nós possamos conhecer a essência das coisas, ou seja,
que só podemos conhecer as aparências sensíveis. Nós veremos esse agnosticismo
presente no sistema dos modernistas.
Ao mesmo tempo que Kant professa o agnosticismo, ele ensina o imanentismo, isto
é, nós encontramos a verdade dentro de nós mesmos, como se ela fosse fabricação
nossa e não adequação de nossa inteligência com a realidade.
Agnosticismo e imanentismo serão os dois fundamentos do modernismo.
Após essa brevíssima incursão na filosofia de Kant, vejamos dois autores
protestantes que podemos chamar de precursores do modernismo: Ernest Daniel
Schleiermacher (1768- 1834) e David Friedrich Strauss (1808-1874).
Como Kant, Schleiermacher dirá que a religião não tem nenhum fundamento
racional. Os milagres, o pecado original, a divindade de Nosso Senhor nada disso tem
fundamento. Avançando por este caminho, ele dirá que pouco importa saber se Nosso
Senhor é Deus ou não, pois a religião é um sentimento, um puro sentimento.

―Você crê que outrora, há dezenove séculos, algo aconteceu fora de você e para
você. Nós, ao contrário, cremos que algo se passa em nós; temos nossa fé em Cristo.
Porque você quer saber o que é o Cristo em si mesmo, o que é a Revelação em si
mesma, e o que é o milagre em si mesmo? Esses juízos, não têm nenhum interesse
para a alma religiosa.‖3

3 Pe. Bourmaud, op. cit., p. 135.

10
Para Schleiermacher, o valor de um dogma, o valor da religião está na sua utilidade
prática. O resto não tem nenhuma importância. Desta forma, sonhava ele reunir todas
as confissões protestantes, reunindo-as na religião do sentimento, numa religião sem
dogma, sem doutrina, sem nenhum conteúdo intelectual.
Schleiermacher fala de sentimento, de experiência emotiva e piedosa, a Bíblia
mesma é só uma coleção de experiências religiosas que devem provocar em nós outras
experiências.
Para ele, o dogma tem um papel puramente simbólico para exprimir muito
imperfeitamente as diferentes experiências religiosas. O dogma não deve separar os
homens, pois o importante é a experiência, o sentimento religioso. Sobre esta base
pode-se fundar um ecumenismo tal como desejam os progressistas mais exaltados.
Após Schleiermacher, vejamos Strauss.
Strauss, assim como o seu mestre Ferdinand Christian Baur (1792-1860), vai se
interessar pelo estudo das Sagradas Escrituras e, seguindo a teoria de Kant sobre a
verdade prática e a verdade científica, ele vai opor o Jesus da história ao Jesus dos
Evangelhos. Ele escreverá uma vida de Jesus na qual ele tenta explicar todos os
milagres como sendo o fruto da imaginação das primeiras comunidades cristãs.
Haverá, então, duas histórias de Jesus. Uma verdadeira, sem milagres, e outra, mística,
com milagres.

II. O MODERNISMO NOS MEIOS CATÓLICOS

Praticamente todas as teses modernistas já haviam sido professadas pelos


protestantes. Nos meios católicos, alguns sacerdotes foram tomados pelo desejo de não
ficar atrás daquilo que lhes parecia ser um avanço científico dos protestantes alemães.
Alguns desses sacerdotes mal formados e desdenhosos da escolástica se lançaram na
leitura dos protestantes e dos filósofos modernos e adotaram em grande parte as suas
teses.
É de todo esse conjunto de falsa ciência, de curiosidade malsã e de orgulho que vai
nascer o modernismo.
Na França, o principal expoente do modernismo será o sacerdote Alfredo Loisy
(1857-1940). E vários outros autores na França como na Inglaterra e na Itália vão se
embrenhar pelo mesmo caminho. Em fevereiro de 1903, é condenado por Leão XIII um
primeiro livro de Loisy. Em seguida, o Santo Ofício põe no Índex (lista dos livros
proibidos) diversos livros do mesmo autor. Em 1907 São Pio X condena 65 proposições
modernistas no documento Lamentabili. No mesmo ano, no dia 8 de setembro, é
publicada a grande encíclica Pascendi.

III. PASCENDI

A encíclica está dividida em três partes principais


1. A doutrina modernista
2. A causa do modernismo

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3. Os remédios contra o modernismo
Veremos breve e incompletamente as duas primeiras partes da encíclica, mas
pensamos que será o suficiente para expor o essencial desta magnífica encíclica, que
merece ser lida integralmente e estudada com maior profundidade do que podemos
fazer neste breve artigo. Para indicar melhor o nexo do que acabamos de ver com a
própria encíclica Pascendi, vamos começar pelas causas do modernismo, isto é, pela
segunda parte.
A respeito da origem do modernismo, São Pio X indica três causas: duas morais e
uma intelectual. As causas morais são: a curiosidade e o orgulho; e a intelectual é a
ignorância.
a) A curiosidade, como diz São Pio X, se ela não é sabiamente regrada, basta para
explicar todos os erros. A curiosidade é a mesma coisa que o espírito de novidade. Foi
esse espírito de novidade que levou e continua a levar tantos católicos a ler os autores
protestantes assim como os autores modernistas e os filósofos modernos (Kant, Hegel,
Nietzsche, Bergson, Heidegger, Sartre, Teillard de Chardin, Rahner, De Lubac, Congar,
etc.) e, desta forma, acabaram virando modernistas e perdendo a Fé. É o que se passa
nos seminários progressistas.
b) A segunda causa, que é a mais importante, é o orgulho: ―Em verdade, diz São
Pio X, nenhum caminho leva mais diretamente e mais depressa ao modernismo do que
o orgulho‖.

―Que nos deem um leigo católico, que nos dêem um padre, diz São Pio X, que
tendo perdido de vista o princípio fundamental da vida cristã, a saber, que nós
devemos renunciar a nós mesmos se quisermos seguir Jesus Cristo, e que não tenha
arrancado o orgulho de seu coração: este leigo, este padre está maduro para todos
os erros do modernismo.‖

Quanto à ignorância, São Pio X diz:

―Sim, estes modernistas que se apresentam como doutores da Igreja, que elevam até
as nuvens a filosofia moderna e que olham com tanto desprezo a escolástica, eles
abraçaram esta filosofia moderna enredados pelas suas aparências enganadoras
porque, ignorando a escolástica, lhes faltou o instrumento necessário para discernir
os erros e dissipar os sofismas.‖

E São Pio X conclui:

―Sim, é da aliança entre a falsa filosofia e a Fé que nasceu, repleto de erros, o


sistema dos modernistas.‖

Passando depois às causas, não mais da origem, mas da propagação do


modernismo, São Pio X indica os ataques feitos contra a escolástica, contra a Tradição,
contra a autoridade dos Padres da Igreja e contra o Magistério.

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* * *

Mas é tempo de vermos a doutrina modernista, exposta e condenada pela Pascendi.


Trata-se, como já vimos, da 1ª parte da encíclica. Esta parte está dividida em sete itens,
que são como sete capítulos, nos quais vem exposta toda a doutrina modernista. Estes
capítulos são os seguintes:
1. O filósofo modernista
2. O fiel modernista
3. O teólogo modernista
4. O historiador modernista
5. O crítico (exegeta) modernista
6. O apologeta modernista
7. O reformador modernista
Nós veremos apenas o 1º, o 2º e o 7º capítulo, ou seja: o filósofo modernista, o fiel
modernista e o reformador modernista.

1. O filósofo modernista

Os princípios do filósofo modernista são praticamente os mesmos que já vimos em


Kant: o agnosticismo e o imanentismo. O agnosticismo é o princípio negativo e o
imanentismo é o princípio positivo. O agnosticismo diz que nós só podemos conhecer os
fenômenos, ou seja, as aparências sensíveis. Todo o resto é incognoscível. Daí se deduz
que os milagres são incognoscíveis, que a Revelação externa, assim como toda
manifestação de Deus na História, é impossível, pois nós não teríamos meios de
conhecê-la.
Assim também, as provas da existência de Deus, da existência da alma e toda a
filosofia são desprovidas de valor. Essas teorias, sobretudo a negação de que podemos
provar a existência de Deus, já foram condenadas pela Igreja. O Concílio Vaticano I
definiu solenemente que a razão pode provar a existência de Deus a partir das
criaturas.
Após destruir as bases do conhecimento, vem o princípio positivo, que será o
imanentismo.
Eis como São Pio X explica essa passagem do agnosticismo para o imanentismo.

―Eles passam de um a outro da seguinte maneira: natural ou sobrenatural, a


religião, tal como qualquer outro fato, pede uma explicação. Ora, a teologia natural
uma vez repudiada, todo acesso à revelação suprimido pela rejeição dos motivos de
credibilidade, toda a revelação externa inteiramente abolida, é claro que a
explicação da existência da religião não deve ser procurada fora do homem. É,
então, dentro do homem mesmo que ela se encontra, e como a religião é uma forma
de vida, a religião deve se encontrar na vida mesma do homem. Eis aí a ‗imanência
religiosa‘.‖

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E São Pio X prossegue:

―Todo fenômeno vital ― e a religião é um deles, como eles dizem ― tem por
primeiro estimulante uma necessidade, e como fundamento este movimento do
coração chamado sentimento.
Por conseguinte, como o objeto da religião é Deus, devemos concluir que a fé,
princípio e base de toda a religião, se deve fundar em um sentimento, nascido da
necessidade do divino.‖

Desses dois princípios vão decorrer inúmeras consequências.


Pelo primeiro princípio, que é o do agnosticismo, os modernistas negam que a
inteligência possa provar a existência de Deus. Daí se deduz que Deus não é objeto de
ciência e que Deus não pode ser objeto da história. Deste princípio, somado ao
princípio da imanência vital, isto é, de que a religião é objeto só de sentimento, se
conclui que:
1. A ciência, assim como a história, não tem Deus por objeto e, portanto, deve ser
ateia, na prática.
2. A Fé é um sentimento.
3. A Fé não vem ―pelo ouvido‖, como ensina São Paulo, mas vem do subconsciente
do próprio homem.
4. A revelação tem sua origem também nesse sentimento e, por isso, a consciência
religiosa de cada um não está submetida à autoridade da Igreja.
5. O sentimento religioso transformou os fatos reais dos Evangelhos, e, portanto, é
preciso suprimir dos Evangelhos tudo o que não está de acordo com a ciência.
6. Todas as religiões provêm do mesmo sentimento religioso e, portanto, todas as
religiões são verdadeiras.
7. A religião católica nasceu da consciência de Jesus Cristo segundo as leis da
imanência.
8. O dogma é uma expressão imperfeita do sentimento religioso e, portanto, o
dogma pode e deve evoluir na medida em que o sentimento religioso evolui.
9. As fórmulas religiosas (ou dogmas) devem ser vivas, assim como o sentimento
religioso.
10. Para permanecerem vivas, as fórmulas religiosas devem estar sempre adaptadas
ao fiel e à sua fé. No dia em que essa adaptação cessa, elas perdem a sua razão de ser.
Daí o pouco caso que os modernistas fazem do dogma.
Como se pode ver, e segundo a expressão de São Pio X, os modernistas chegaram a
esta loucura de perverter a eterna noção da verdade. Para eles, a verdade não é a
adequação da inteligência com a realidade (natural ou sobrenatural), mas sim a
adequação da inteligência com o sentimento, com a vida, isto é, com algo que não tem
conteúdo inteligível.
E, ao mesmo tempo que os modernistas se perdem em suas loucuras, eles têm a
audácia de repreender a Igreja por se apegar teimosamente e esterilmente a fórmulas

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vãs e vagas, segundo eles, enquanto que ela, a Igreja, deixa a religião correr à sua ruína,
dizem eles.
Como exemplo dessa audácia dos modernistas, podemos citar os ataques feitos à
palavra transubstanciação (a qual significa a transformação da substância do pão e do
vinho em Corpo e Sangue de Nosso Senhor, no momento da Consagração). Podemos
dar ainda como exemplo a definição da missa, a doutrina do reinado social de Nosso
Senhor e a própria encíclica Pascendi julgada antiquada pelos neomodernistas. Tudo
isso para os modernistas deve mudar com a vida e com o ―progresso‖ da humanidade
(os comunistas têm uma doutrina semelhante, ao dizer que o modo de pensar muda
cada vez que mudam as estruturas econômicas).

2. O fiel modernista

Para o filósofo modernista, Deus só é objeto de sentimento. Se Ele existe ou não,


isso não o interessa. Mas, para o fiel modernista Deus existe em si mesmo,
independentemente do homem. E como o fiel modernista chega a essa certeza? Pela
experiência individual. Assim, se os modernistas se separam dos racionalistas, é para
adotarem a doutrina dos protestantes e dos pseudomísticos.
Eis como os modernistas explicam essa certeza da existência de Deus. ―Se nós
penetramos o sentimento religioso, descobrimos aí facilmente certa intuição do
coração, graças à qual e sem nenhum intermediário, o homem atinge a realidade
mesma de Deus‖.
E se perguntamos que tipo de conhecimento pode produzir essa intuição do
coração, eles respondem: ―Uma certeza da existência de Deus que ultrapassa toda
certeza científica. Trata-se de uma verdadeira experiência, superior a todas as
experiências racionais‖. E se perguntamos por que há então homens que negam a
existência de Deus, o fiel modernista dirá que é porque eles não se põem nas condições
morais necessárias para fazer essa experiência. Desta forma, os modernistas suprimem
toda atividade propriamente racional da Fé. A Fé modernista é irracional; ela é puro
sentimento.
Tudo isso é evidentemente contrário à Fé católica e abre o caminho para o mais
completo relativismo, pois se isso fosse verdade, todas as religiões seriam verdadeiras.
E é isto que observa São Pio X ao escrever: ―Uns de maneira velada e outros
abertamente, todos eles afirmam que todas as religiões são verdadeiras‖. E como
poderiam eles negar essa conclusão? ―Isto não poderia ser feito senão mostrando a
falsidade do sentimento ou da fórmula (dogma) que o exprime. Mas, segundo eles, o
sentimento é sempre e em toda parte o mesmo, substancialmente o mesmo, e quanto à
fórmula religiosa, expressão do sentimento religioso, tudo o que eles pedem é que ela
esteja adaptada ao fiel e ao mesmo tempo à sua fé‖.
Mas os modernistas não reivindicam uma superioridade da religião católica sobre
as outras? Sim, mas uma superioridade de grau e de não de natureza, pois, dizem eles,
―ela é mais verdadeira porque ela é mais viva‖.

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De todos esses erros eles tiram consequências importantes a respeito da Tradição,
assunto que nos interessa de maneira toda especial, porque no documento que
excomungou Dom Lefebvre e Dom Antônio de Castro Mayer estava dito que eles não
tinham uma noção acertada de Tradição. Escutemos São Pio X:

―Outro ponto a respeito do qual os modernistas se põem em oposição flagrante com


a fé Católica é que eles transferem para a Tradição o princípio da experiência
religiosa. A Tradição, tal como a entende a Igreja, se encontra totalmente
arruinada‖.

Antes de demonstrar o conceito que os modernistas têm da Tradição, vejamos o


que ensina a Santa Igreja: A fonte da Fé é uma só: é a Revelação. Mas a Revelação foi
transmitida aos homens de duas formas. Escrita e oral. A escrita é a Sagrada Escritura,
a oral é a Tradição. Nesse sentido, diz o Concílio Vaticano I, seção III, cap. III Denz.
1792: ―Fide divina et catholica ea omnia credenda sunt, quae in verbo Dei scripto vel
tradito continentur...‖ (Deve ser crido com fé divina e católica tudo o que está contido
na palavra de Deus escrita ou transmitida). Aqui, a palavra ―transmitida‖ significa a
Revelação sob forma oral, na medida em que ela não faz parte da Sagrada Escritura.
A palavra Tradição se entende também como sendo todo o Magistério infalível da
Igreja, isto é, todos os dogmas ensinados pela Igreja. A Tradição possui uma
anterioridade sobre a Escritura, porque a Santa Igreja foi constituída por Nosso Senhor
antes que qualquer livro, Evangelho ou epístola, fosse escrito.
Vejamos agora o que dizem os modernistas. Para eles a Tradição é a ―comunicação
feita a outros de alguma experiência original, através da pregação e por meio de uma
fórmula intelectual‖. Que valor, que virtude atribuem eles a essa fórmula intelectual?
―A essa fórmula intelectual, além da sua virtude representativa, como eles dizem, eles
atribuem ainda uma virtude sugestiva‖. Qual o papel dessa virtude sugestiva? Seu
papel ―se exerce sobre o fiel, para despertar nele o sentimento religioso, adormecido
talvez, ou ainda para ajudá-lo a renovar as experiências já feitas ou para gerar nos
descrentes o sentimento religioso e conduzi-los às experiências que se deseja para
eles‖.
―É assim, dizem eles, que a experiência religiosa vai se propagando através dos
povos e não somente entre os contemporâneos, pela pregação propriamente dita, mas
também de geração em geração, por escrito ou pela transmissão oral‖. ―A verdade de
uma tradição seria, então, medida pela sua sobrevivência, de tal modo que se ela for
viva ela é verdadeira, se ela se perder ou diminuir, ela é falsa ou menos verdadeira ou
era verdadeira e não é mais‖, podemos concluir:
Um neomodernista antes do Concílio dizia: ―Toda teologia que não é atual é falsa‖.
Eis aí uma doutrina puramente modernista. Daí a importância dada pelos modernistas
à expressão ―Tradição viva‖. Aliás, os modernistas têm sempre a palavra vida e seus
derivados nos lábios. Tradição viva, magistério vivo, Rede Vida, imanência vital.
Algumas dessas expressões podem ter um significado correto, pois não se pode excluir
a palavra vida do vocabulário, mas é de se notar que são expressões caras aos

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modernistas e que, para eles, têm um significado especial. Para o modernista, tudo o
que tem vida é verdadeiro. Por isso, todas as religiões existentes, ou seja, vivas, são
verdadeiras.
Vejamos agora as relações entre a Fé e a ciência. Antes de mais nada, lembremos
que ao condenar o agnosticismo, São Pio X lembra que é de Fé definida que a razão
humana pode provar a existência de Deus a partir das criaturas. Este dogma foi
definido pelo Concílio Vaticano I. Ora, para os modernistas não há nada em comum
entre a Fé e a ciência. Deus não pode ser conhecido pela razão de modo algum. ―O
objeto da Fé é justamente o que a ciência declara ser ‗incognoscível‘. Daí dois campos
inteiramente distintos: a ciência se ocupa dos fenômenos e a Fé não tem nada a dizer
em relação a eles. Por sua vez, a Fé se ocupa do que é divino e a ciência não tem nada o
que dizer a respeito‖. Logo, não pode haver conflito entre a ciência e a Fé, já que cada
uma tem objetos inteiramente distintos. Como elas nunca se encontram, elas podem
discordar entre si.
Mas se nós objetarmos que há realidades visíveis, que são objetos tanto da ciência
como da Fé? Por exemplo, a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Que respondem os
modernistas? Eles dizem que foi a Fé que transfigurou a vida de Nosso Senhor e,
assim, a Fé subtraiu a vida de Nosso Senhor do alcance da ciência, transportando-a ao
nível do divino, que está acima da realidade sensível. Mas se nós perguntarmos: E os
milagres e as profecias? Nosso Senhor não fez milagres e não profetizou vários
acontecimentos? Não, responde a ciência agnóstica. Sim, responde a Fé modernista. Eis
aí a doutrina deles.
Mas isto não é uma flagrante contradição? Não, respondem eles, pois a negação dos
milagres e das profecias vem do filósofo falando a filósofos e, portanto, considerando a
vida de Jesus Cristo segundo a verdade histórica, enquanto que a afirmação do fiel se
dirige a outros fiéis. Ora, o fiel considera a vida de Jesus Cristo como ―vivida de novo‖
pela Fé e na Fé.
Eis aí o que parece ser uma loucura completa. No entanto, se nós procuramos ir
mais a fundo na teoria modernista, nós veremos que a Fé acaba sendo sujeitada à
ciência.
―Muito se enganaria, diz São Pio X, quem, postas estas teorias, se julgasse
autorizado a crer que a ciência e a fé são independentes uma da outra. Por parte da
ciência, essa independência está fora de dúvidas; mas, já não é assim por parte da fé,
que não por um só, mas por três motivos, se deve submeter à ciência‖. Podemos
resumir esses motivos como se segue:
1ª. Porque as fórmulas religiosas pertencem ao mundo dos fenômenos e, por isso,
estão submetidas à ciência.
2ª. Porque se a Fé tem Deus por objeto e, assim, escapa à ciência, a ideia que se faz
de Deus, pertencendo à ordem da lógica, está subordinada à ciência. A ciência deve
controlar a ideia de Deus e adaptá-la à evolução intelectual e moral dos povos.
3ª. A unidade da pessoa humana e do pensamento impõe a submissão da Fé à
ciência.

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Tudo isso é, evidentemente, contrário a toda a doutrina Católica, que ensina que a
filosofia é a serva da teologia e da Fé, e não o contrário.
É por causa dessas contradições, ao menos na aparência, que se nós lermos um livro
modernista encontraremos numa página a perfeita doutrina católica, e ao virar esta
página encontraremos uma doutrina cheia de heresias, como diz São Pio X.
Ao escrever a história, o modernista será um racionalista que nega o sobrenatural,
mas se ele prega numa igreja, ele fala a linguagem da Fé. Como historiador, ele
desdenha os Padres da Igreja e os Concílios, mas se ele dá o catecismo, ele cita essas
mesmas fontes com todo respeito.
Mas em tudo os modernistas dão a última palavra à sua falsa ciência, e arruínam a
Fé Católica.
Mas já é tempo de terminar. A matéria é vasta demais para ser exposta de uma só
vez, numa simples introdução à Pascendi. Vamos, pois, passar ao último ponto da
doutrina modernista, fazendo uma breve aplicação à situação atual e ao Concílio
Vaticano II, e assim terminaremos.

3. O reformador modernista

O sétimo e último item da doutrina modernista diz respeito ao reformador


modernista. Este reformador, diz São Pio X, quer tudo reformar na Igreja e suas
reformas se fazem pela ruptura com o que a Igreja sempre fez.
Este tema é importantíssimo na crise atual. É o tema da ruptura e da continuidade.
As reformas da Igreja se fazem sempre num espírito de continuidade. As reformas
modernistas se fazem num espírito de ruptura.
São Pio V reformou o missal em continuidade com o passado. Paulo VI publicou
um novo missal em ruptura com o que se fazia antes.
São Pio X fez o decreto da comunhão frequente em continuidade com o passado,
como ele mesmo disse no texto do decreto. O novo Direito Canônico permite que a
comunhão seja dada a não católicos e isto em ruptura com o que a Igreja sempre fez.
A proclamação dos dogmas está sempre em continuidade com a doutrina
professada pelos papas ao longo da História da Igreja. A Declaração sobre a Liberdade
Religiosa está em ruptura com o que a Igreja sempre ensinou. No entanto, Bento XVI
quer convencer o mundo católico de que entre o Vaticano II e a Tradição da Igreja não
há ruptura. Isto só faz adensar as trevas nas quais se encontram as inteligências de
hoje. Podemos dizer que isto é o suprassumo do modernismo, a não ser que Bento XVI
reforme a doutrina do Vaticano II, condenando-o vigorosamente em tudo o que ele se
opõe à Tradição. Mas será isto que ele fará? Quem viver verá. De nossa parte, tememos
que ele aumente a confusão doutrinal que assola a Igreja.
Mas vejamos o reformador modernista, a quem, como vimos, a ruptura com o
passado não assusta. Veremos como muitas das reformas pedidas por ele foram
atendidas pelo Concílio Vaticano II e os Papas pós-conciliares.
São Pio X fala da ―mania de reformar‖ dos modernistas.

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―Nada, absolutamente nada há no catolicismo que eles não ataquem‖, afirma São
Pio X.
Eis alguns exemplos, tirados todos da Pascendi.

a) Reforma da filosofia, sobretudo nos seminários.

―Eles (os modernistas) pedem que se relegue a filosofia escolástica à história da


filosofia, entre os sistemas ultrapassados e que se ensine a filosofia moderna‖.
É o que já está feito. Mesmo antes do Concílio, o Papa atual Bento XVI assim como
o seu antecessor João Paulo II não se formaram com a escolástica, mas sim com a
filosofia moderna, ou melhor, eles conheceram as duas, a escolástica e a filosofia
moderna, mas optaram pela filosofia moderna.

b) A separação entre a Igreja e o Estado

―Sim, diz São Pio X na Pascendi, os modernistas pedem a separação da Igreja e do


Estado, assim como a do católico e do cidadão‖. A razão dada é que para os
modernistas a Igreja não foi instituída diretamente por Deus.
―E não basta para os modernistas que o Estado seja separado da Igreja. Assim como
a Fé deve se subordinar à ciência, (...) assim é necessário que nos assuntos temporais a
Igreja se submeta ao Estado‖ dizem eles. E isto foi realizado pelo Concílio Vaticano II
com o documento Dignitatis Humanae e com a política do Vaticano, que fez pressão
junto aos governos católicos para que se retirasse da Constituição o artigo que fazia
desses países, países oficialmente católicos. Isto se deu com a Colômbia, Espanha e
alguns outros estados.

c) Reforma do governo da Igreja

―Que o governo eclesiástico seja reformado em todos os seus setores; sobretudo a


disciplina e a dogmática, dizem eles. Que o seu espírito e os seus procedimentos
externos sejam adaptados à consciência moderna, que se inclina para a democracia.
Que se confie uma parte do governo ao clero inferior e mesmo aos leigos. Que a
autoridade seja descentralizada‖.
Vaticano II com o decreto sobre a colegialidade, e as diversas medidas tomadas por
Paulo VI e seus sucessores, introduziu o princípio democrático dentro da Igreja.
A autoridade do Papa ficou diminuída diante dos Bispos.
A autoridade dos Bispos ficou diminuída por causa das conferências episcopais.
A autoridade dos párocos ficou diminuída por causa dos conselhos paroquianos.
Dentro das comunidades religiosas, a autoridade dos superiores ficou diminuída
por causa da vaga de contestação e de desobediência que penetrou em toda parte.

19
d) Reforma das Congregações Romanas, dos ritos dos Sacramentos, do Direito
Canônico, etc.

Os modernistas, como diz São Pio X na Pascendi, pedem sobretudo a reforma do


Santo Ofício e do Índex, duas congregações que velavam sobre a doutrina.
Ora, o Santo Ofício teve o seu nome modificado e sua importância diminuída.
Quanto ao Índex, ele foi suprimido. O Índex estabelecia o catálogo de livros proibidos.
Além destas reformas que indicamos, há várias outras, pois, como diz São Pio X, o
modernista tem a mania reformista.
Qual foi a instituição da Igreja, qual o Sacramento, qual foi o ritual, qual foi a
prática de piedade, qual o ponto de doutrina que não foi modificado, atacado ou
suprimido após o Concílio?
Todos os Sacramentos tiveram o seu rito modificado: Batismo, Confirmação,
Eucaristia, Penitência, Extrema-Unção, Ordem e Matrimônio. Todos sofreram
modificações.
O Direito Canônico foi refeito para adaptá-lo ao Concílio Vaticano II.
As congregações romanas foram profundamente modificadas.
Foi feito um novo catecismo, enquanto que o Catecismo do Concílio de Trento
(Catecismo Romano) e o Catecismo de São Pio X foram postos de lado.
A Via Sacra e o Rosário receberam acréscimos ou modificações.
As práticas de devoção tradicionais foram desprestigiadas. A disciplina das
indulgências foi modificada. O calendário dos dias litúrgicos foi alterado, assim como o
processo da canonização dos santos.
A doutrina, enfim, sofreu e sofre ainda ataques de toda parte, assim como a
exegese, que é o estudo da Sagrada Escritura. Apenas para recordar alguns pontos: o
dogma ―fora da Igreja não há salvação‖ foi atacado; o dogma ―A Igreja de Cristo é a
Igreja Católica‖ foi posto em dúvida e a existência do limbo é igualmente posta em
dúvida.
Seria difícil fazer a lista de todos os pontos de doutrina atacados pelos modernistas
de hoje. Basta dizer que o modernismo na sua forma atual triunfou no Concílio e
continua a triunfar, apesar de alguns atos contrários à correnteza revolucionária e
reformista que domina o Vaticano.
Para concluir, lembremos que São Pio X diz que o sistema dos modernistas é como
um corpo perfeitamente organizado. Não se pode adotar um ponto sem admitir todos
os outros. Lançando um olhar sobre todo o sistema modernista, São Pio X não pode
deixar de classificá-lo de encruzilhada ou reunião de todas as heresias. Se alguém, diz
ele, se desse ao trabalho de recolher todos os erros que já existiram contra a Fé e de
concentrar a substância como um suco formado de todos eles, ele não poderia fazer
nada de mais bem sucedido que o sistema modernista.
Após ter explicado minuciosamente este sistema, São Pio X sente a necessidade de
explicar como o agnosticismo tendo fechado a porta para Deus do lado da inteligência,
é em vão que ele tenta abrir outra porta do lado do sentimento, pois, diz São Pio X, o
que é o sentimento senão uma consequência diante da ação da inteligência ou dos

20
sentidos? Retirai da inteligência e o homem seguirá os piores instintos. A emoção, o
sentimento e tudo o que cativa a alma, longe de favorecer a descoberta da verdade,
entravam a sua aquisição. O sentimento e a experiência sozinhos, sem serem
esclarecidos e guiados pela razão, não conduzem a Deus. Por isso, o sistema
modernista conduz ao aniquilamento de toda religião e ao ateísmo. Pior do que isso, a
doutrina da imanência divina conduz diretamente ao panteísmo, porque ela não
distingue suficientemente o homem de Deus, e que, certamente, preparará a vinda do
Anticristo.
Para terminar, recordemos o que São Pio X nos diz desta queda progressiva do
espírito humano.
―O primeiro passo foi pelo protestantismo, o segundo, pelo modernismo; o
próximo será o do ateísmo‖. Com o Concílio Vaticano II, triunfou o modernismo ou
neomodernismo carregado nas costas pelo liberalismo, que procura, a todo custo, se
harmonizar com o mundo moderno. Desta forma, vimos algo nunca visto na história
da Igreja: um concílio ecumênico promover uma doutrina contrária à doutrina da
Igreja.
Diante deste fato, não podemos deixar de pensar no que diz São João no Apocalipse
(cap. XIII), quando ele viu uma besta subindo do mar, que representa o poder político,
o governo mundial e sobre sua cabeça ela trazia a blasfêmia. E os homens adoraram a
besta e o dragão que deu o poder à besta. E São João viu outra besta subindo da terra,
que tinha os chifres semelhantes ao Cordeiro, mas que falava como o dragão e induzia
os homens a adorarem a besta que saía do mar. Podemos pensar que esta misteriosa
figura representa os homens da Igreja, que trazem as insígnias do Cordeiro, isto é, de
Nosso Senhor, mas que falam como o dragão, isto é, o como demônio, ensinando a
heresia e, acima de tudo, o condensado de todas as heresias, que é o modernismo.
Que o exemplo de Dom Lefebvre e de Dom Antônio de Castro Mayer e a
intercessão de Nossa Senhora nos guardem sempre na pureza imaculada de nossa Fé e
que esta inspire todos os nossos atos, pois a Fé age pela caridade, a qual nos obtém a
vida eterna.

21
22
SOB O ESTANDARTE DE CRISTO REI

23
24
SEMINÁRIO PERMANENTE DE ESTUDOS SOCIOPOLÍTICOS
SANTO TOMÁS DE AQUINO

SPES 4

DOCUMENTO DE FUNDAÇÃO

―Dizei às nações: O Senhor é rei. [...] / Jubilem todas as


árvores das florestas / com a presença do Senhor, que
vem, pois Ele vem para governar a terra: julgará o
mundo com justiça, e os povos segundo a sua verdade.‖
Salmo 95

―Foi-me dado todo o poder no céu e na terra: ide, pois, e


instruí todas as nações.‖
NOSSO SENHOR JESUS CRISTO,
Evangelho de São Mateus

―Uma coisa é, para o príncipe, servir a Deus na qualidade


de indivíduo, e outra fazê-lo na qualidade de príncipe.
Como homem, ele o serve vivendo fielmente; como rei,
fazendo leis religiosas e sancionando-as com um vigor
conveniente. Os reis servem ao Senhor enquanto reis
quando fazem por sua causa o que só os reis podem
fazer.‖
SANTO AGOSTINHO,
Carta ao Governador Bonifácio

―É necessário que o fim da multidão humana, que é o


mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude,
mas antes, mediante uma vida virtuosa, alcançar a
fruição divina.‖
SANTO TOMÁS DE AQUINO,
De Regimini Principum

―[A Igreja tem em seu poder duas espadas (ou gládios)],


a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última

4O equivalente em português da palavra latina spes, ei é ―esperança‖. A Esperança é uma das três
virtudes teologais; as outras duas são a Fé e a Caridade.

25
deve ser usada para a Igreja, enquanto a primeira deve
ser usada pela Igreja. A espiritual deve ser manejada pela
mão do sacerdote; a temporal, pela mão dos reis e dos
soldados, mas segundo o império e a tolerância do
sacerdote. Uma espada deve estar sob a outra espada, e a
autoridade temporal deve ser submissa ao poder es-
piritual.‖
BONIFÁCIO VIII,
Unam Sanctam

―O homem é criado para louvar, prestar reverência e


servir a Deus nosso Senhor e, mediante isso, salvar sua
alma; e as outras coisas sobre a face da terra são criadas
para o homem, para o ajudarem a alcançar o fim para o
qual é criado. Donde se segue que o homem há de usar
delas na mesma medida em que o ajudem a alcançar seu
fim, e que ele há de privar-se delas na mesma medida em
que dele o afastem.‖

SANTO INÁCIO DE LOIOLA,


Exercícios Espirituais

―Se eu conseguir ganhar um rei, terei feito mais pela


causa de Deus do que se tivesse pregado centenas ou
milhares de missões. O que um soberano tocado pela
graça de Deus pode fazer no interesse da Igreja e das
almas, milhares de missões jamais o farão.‖
SANTO AFONSO M. DE LIGÓRIO,
apud P. Berthe, S. Alphonse

―Para os povos como para os indivíduos, para as


sociedades modernas como para as sociedades antigas,
para as repúblicas como para as monarquias, não há sob
o céu outro nome dado aos homens em que eles possam
ser salvos além do nome de Jesus Cristo.‖
CARDEAL PIE DE POITIERS,
Discours au Président
de la République (1870)

―Os que no governo dos estados pretendem descon-


siderar as leis divinas desviam o poder político de sua
própria instituição e da ordem prescrita pela própria
natureza.‖
LEÃO XIII,
Libertas Præstantissimum

26
―Na ordem das doutrinas, [o liberalismo] é pecado grave
contra a fé [...]. Na ordem dos fatos, é pecado contra os
diversos Mandamentos da Lei de Deus e de sua Igreja.‖
D. FÉLIX SARDÀ I SALVANY,
El liberalismo es pecado

―Não, a civilização não está por inventar [...]. Ela já


existiu, ela existe: é a civilização cristã, a cidade católica.
O que falta é instaurá-la e restaurá-la sem cessar sobre
seus fundamentos naturais e divinos contra os ataques
sempre renascentes da utopia malsã, da revolta e da
impiedade: Omnia instaurare in Christo.‖
SÃO PIO X,
Carta sobre Le Sillon.

―No juízo final, Jesus Cristo acusará os que o expulsaram


da vida pública e, em razão de tal ultraje, aplicará a mais
terrível vingança.‖
PIO XI,
Quas Primas

―Nós percebemos a numerosa classe daqueles que


consideram os fundamentos especificamente religiosos
da civilização cristã [...] sem valor objetivo [para os dias
de hoje], mas que gostariam de conservar o brilho exte-
rior dela para manter de pé uma ordem cívica que não
poderia passar sem tal. Corpos sem vida, acometidos de
paralisia, são eles mesmos incapazes de opor qualquer
coisa às forças subversivas do ateísmo.‖
PIO XII,
Discurso à União Internacional das Ligas Femininas Católicas

―O leigo, em certo sentido, está mais diretamente in-


teressado no desenvolvimento da realeza social de Nosso
Senhor Jesus Cristo, e isso na medida mesma em que se
encontra mais engajado que o clérigo na ordem social, na
ordem civil, na ordem secular, mais engajado nas coisas
sociais, mais diretamente interessado em matéria po-
lítica.‖
JEAN OUSSET,
Pour qu’Il règne

―Desta primeira verdade de fé, a divindade de Nosso


Senhor Jesus Cristo, segue-se uma segunda: sua Realeza,
e especialmente sua Realeza sobre as sociedades, a obe-

27
diência que devem ter as sociedades à vontade de Jesus
Cristo, a submissão que devem ter as leis civis com
respeito à lei de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mais ainda,
Nosso Senhor Jesus Cristo quer que as almas se salvem
[...] por uma sociedade civil cristã, plenamente submetida
ao Evangelho, que se preste a seu desígnio redentor e que
seja seu instrumento temporal.‖
DOM MARCEL LEFEBVRE,
Ils l’ont découronné,
Du libéralisme à l’apostasie
― La tragédie conciliaire

―Se não é o Príncipe da Paz quem estabelece a ordem da


justiça entre os povos por meio dos poderes que co-
municou a seu Vigário, será o Príncipe das trevas quem o
fará por meio dos poderes que fornecer a seu primo-
gênito, o Anticristo. A instauração de que reino, então, o
Concílio Vaticano II tende a preparar com todas as suas
forças?‖
PADRE ÁLVARO CALDERÓN,
Prometeo ― la religión del hombre

PELO REINADO TOTAL DE


NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

I. EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

1. Durante a última campanha eleitoral brasileira para a presidência da República,


pudemos todos constatar a falta de unidade entre os católicos com respeito ao voto.
Constituíram-se, então, uma larga maioria favorável a dar o voto a Serra como a um
―mal menor‖ e uma minguada minoria favorável ao voto nulo por considerar que
havia uma igualdade essencial e prática entre os dois principais candidatos.
2. Não nos importa, aqui e agora, resolver essa delicada questão ― que tem antes
que ver com a aplicação prática ou prudencial de princípios doutrinais ―, mas tratar,
isto sim, destes mesmos princípios. Ora, como já dizia Aristóteles (cf. Ética a Nicômaco,
I, 3, 1094b 21; VI, 4, 1140a 1-2), a política concerne a coisas que, se não são sempre do
mesmo modo, têm porém bem mais estabilidade que as ocasionais ou acidentais, razão
por que ela pode fundar-se sobre certos princípios (seus e/ou oriundos de uma ciência
superior); se assim não fosse, a política não seria ciência. Desse modo, se o Papa São
Pio X determinou para tal ou qual eleição o voto católico em candidatos menos

28
indignos, cabe-nos conhecer, sim, as condições concretas ― o contexto ― em razão das
quais o determinou, para as podermos comparar com as atuais de nosso país. Mas
temos, sobretudo, de conhecer os princípios doutrinais em que se baseava para fazê-lo.
3. Ora, não é difícil saber por que princípios doutrinais se pautava São Pio X. E se o
sabemos não podemos senão concluir, segundo tais princípios, que uma coisa é votar
num candidato menos indigno, e outra, completamente diferente e indigna do nome
católico, é fazê-lo repetindo e propagando ideias perfeitamente anticatólicas como o
são as liberais. Vezes sem conta, porém, durante a última campanha eleitoral, ouvimos
da boca e lemos pela pena de católicos a defesa (ainda que mitigada) da democracia
liberal, regime político condenado, todavia, pelo Magistério da Igreja ― especialmente
pelo próprio São Pio X ― até que o câncer humanista que já corroía sua hierarquia
atingisse, no ponto metastático máximo, o próprio Vigário de Cristo e o Concílio
Vaticano II. Repetiam-se infaustamente então, durantes as eleições passadas,
argumentos de notórios liberais, como, por exemplo, o de que a democracia liberal é
―melhor‖ ou ―menos má‖ que o comunismo, esquecendo-se de dizer não só que este é
rebento daquela e, atualmente, com ela se amalgama, mas que a democracia liberal
nasceu e se mantém com um único fim: impedir o Reinado Social de Nosso Senhor
Jesus Cristo, para impedir todo e qualquer Reinado Seu.5 Não é ―só‖ que seu triste
lema, ―liberdade, igualdade e fraternidade‖, seja um sucedâneo satânico das três
virtudes teologais, ―Fé, Esperança e Caridade‖. É-o, sem dúvida, mas é mais que isso: é
a barreira que os poderes infernais e mundanos tentam erguer contra a tripla petição
que o nosso mesmo Senhor nos prescreveu: ―Sic ergo vos orabitis a) santificado seja o
Vosso nome; b) venha a nós o Vosso reino; c) seja feita a Vossa vontade assim na terra
como no céu‖.6
4. Pois bem, constituímos o SEMINÁRIO PERMANENTE DE ESTUDOS SOCIOPOLÍTICOS
SANTO TOMÁS DE AQUINO ― SPES ― exatamente para o mais amplo estudo e divulgação
da doutrina católica prescrita por Nosso Senhor em seu Pater e desenvolvida pelo
magistério da Igreja e pelos Doutores católicos (em especial o Comum, Santo Tomás de
Aquino), doutrina segundo a qual:
• Como o próprio homem, tudo no mundo humano ― as ciências, as artes, a
economia, a política, etc. ― deve-se ordenar ao fim último do universo, Deus mesmo.
Com efeito, se as ciências visam a dar saber ao homem, se as artes visam a dar beleza
ao homem, se a economia visa a dar comodidade ao homem, se a política visa dar
virtudes ao homem, e se o homem se ordena a Deus, logo tais fins não serão senão fins

5 ―A democracia é uma religião mais universal que a Igreja [...]. Resulta do grande movimento de
apostasia organizado em todos os países para o estabelecimento de uma Igreja Universal que não
terá dogmas, nem hierarquia, nem regra para o espírito, nem freio para as paixões‖ (São Pio X, Carta
sobre Le Sillon).
6 ―O reino visível de Deus sobre a terra é o reino de seu Filho encarnado, e o reino visível de Deus

encarnado é o reino permanente de sua Igreja‖ (Cardeal Pie de Poitiers, Œuvres sacerdotales, III, 501).
Sobre esta identidade dos três reinos: o reino de Deus, o reino de Nosso Senhor Jesus Cristo e o reino
da Igreja, cf. ainda Cardeal Pie de Poitiers, Œuvres sacerdotales: I, 143-144, 317 a 320, 381, 499-500.

29
intermediários ou, mais precisamente, meios para a consecução pelo homem do fim
último;7
• Ora, tal ordenação de todo o humano ao fim último universal assumiu ― em
razão da própria história humana, que começa com o estado de justiça original e,
passando pelo pecado de nossos primeiros pais e pela queda da natureza específica do
homem, atinge sua consumação com a Redenção propiciada pela Paixão na Cruz ―,
assumiu, pois, a forma concreta de ordenação a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Seu reino
assim na terra como no céu. O Reino de Cristo não é, pois, senão o mesmo Reino de
Deus que, vertido do flanco de nosso Salvador, se constituiu em Igreja Católica. Esta
mesma Igreja Católica de que não só faz parte o conjunto de seus sacerdotes e fiéis ―
na terra, no purgatório, ou já no céu ―, mas de que também fizeram parte, de modo
particular, as próprias nações cristãs, as que constituíram a hoje extinta Cristandade.
Esta mesma Igreja Católica que, ao fim dos tempos, se transmutará gloriosamente na
definitiva Jerusalém Celeste;
• Por isso mesmo, ou seja, porque fora da Igreja Católica não há salvação para os
indivíduos humanos nem para suas cidades, por isso mesmo é que não há meio-termo:
ou os indivíduos humanos e suas cidades fazem parte do Reino de Cristo e vivem sob
Seu Reinado, ou se transformam em pasto dos demônios. Tertium non datur. Mas de
onde advém tal oniabrangente realeza, ante a qual todo joelho se há de dobrar para que
toda língua a possa louvar dignamente? Antes de tudo, do simples fato de que não
pode haver exceção ali onde Deus não deixou nenhum lugar para ela. Mas por que não
o deixou? Porque não pode haver exceção com respeito àquele que é o Rei universal, e
que o é a triplo título: a) por direito de nascimento ou geração eterna, a do Verbo, que é
o alfa e o ômega de toda a criação; b) por direito de natureza por sua União
Hipostática; e c) por direito de conquista, de redenção, de resgate do gênero humano
por sua Paixão e Morte na Cruz. Disse-o o mesmo Jesus: ―Omnia potestas data es mihi in
cœlo et in terra” (―Foi-me dado todo o poder no céu e na terra‖) (Mt 28, 18). E concluiu
São João: ―Todo espírito que dissolve Jesus Cristo não é de Deus, mas é justamente esse
Anticristo de que ouvistes que está para chegar e que no presente já se acha no
mundo‖... (1Jo 4, 3);
• E foi ainda Nosso Senhor quem, respondendo à pergunta de Pilatos: ―Ergo rex es
tu?‖ (―Então tu és rei?‖), o confirmou: ―Tu o disseste‖ (cf. Mt 27, 11; Mc 15, 2; Lc, 23, 3;
Jo 18, 33-34). Mas não disse Cristo também que seu reino não era deste mundo, e que se
devia dar a César o que é de César? Não indicariam essas duas afirmações,
respectivamente, uma autonomia essencial deste mundo com respeito ao Reino de
Cristo e uma divisão essencial entre as duas ordens terrestres, a civil ou temporal e a
eclesiástica ou espiritual? De modo algum, porque: a) se não é ―deste mundo‖, é por
isso mesmo que a Realeza de Cristo se exerce, e plenamente, ―sobre este mundo‖; e b)
se é verdade que Cristo estabeleceu a distinção entre jurisdição civil e jurisdição
eclesiástica, com o que resolvia graves dilemas pagãos como o de Platão em busca da

7E, com efeito, se uma obra de arte – um romance, uma peça teatral ou musical, um filme – leva o
homem a afastar-se de Deus por qualquer razão, já não O terá por fim, mas servirá aos inimigos
d‘Ele e da santidade; e diga-se o mesmo das ciências, da política, da vida econômica, etc.

30
república ideal, também é verdade, porém, que distinção não implica necessariamente
ausência de subordinação de fins, e de subordinação essencial. Com efeito, como disse
Santo Tomás de Aquino, a ordem temporal está para a ordem espiritual assim como o
corpo está para a alma no homem; assim como a natureza está para a graça no justo; e
assim como a razão está para a fé na sacra teologia.8 Ademais, a união entre a ordem
civil e a eclesiástica é comparada pelo Padre Álvaro Calderón à união que se dá no
matrimônio.9 Em outras palavras, a ordem civil, conquanto seja distinta da ordem
eclesiástica e conquanto, quanto às jurisdições, se subordine a esta indiretamente, a ela
porém se subordina, quanto aos fins, não acidental, mas essencialmente;
• Por fim, é dever ineludível de todo católico confessar ou professar aquilo que até
o Concílio Vaticano II o Magistério eclesiástico sempre sustentou, quer insistindo na
posse pela Igreja dos dois gládios (o temporal e o espiritual), quer, com São Pio X,
convocando todos a ―instaurare omnia in Christo‖ (―instaurar todas as coisas em
Cristo‖), quer pondo a pedra angular da doutrina ― na qual já tan-to insistira o Cardeal
Pie de Poitiers ― com a Quas Primas de Pio XI: ―é evidente que também em sentido
próprio e estrito pertence a Cristo como homem o título e a potestade de Rei‖; ―a força
e a natureza deste principado [consistem] num triplo poder‖: legislativo, judicial e
executivo; e ―o principado de nosso Redentor compreende todos os homens […]. ‗Sua
autoridade, com efeito [diz Leão XIII em Annum Sacrum], não se estende somente aos
povos que professam a fé católica […] a humanidade toda está realmente sob o poder
de Jesus Cristo.‘ E neste ponto não há diferença alguma entre os indivíduos e as
sociedades domésticas e civis‖. Ou seja: a Realeza de Cristo é Total, e cada católico tem
o imperioso dever de professá-la, sem atenuações, segundo seu estado e capacidade.

8 Para este tema, cf. muito especialmente Padre Álvaro Calderón (da FSSPX), La Ciudad de Dios en el
Concilio Vaticano II (primeira versão, em PDF), pp. 16-24. Quanto ao próprio Santo Tomás de Aquino,
cf. Suma Teológica, II-II, q. 60, a 6; De Regimini Principum, liv. I, cap. 15, e In II Sententiarum, dist. 44, q
1, a 3, ad 5 et corpus; Suma Teológica, I, q 1, a 4, e Suma contra os Gentios, liv. 4, cap. 72, n. 10.
9 ―Assim como o batismo não sana completamente as desordens da concupiscência senão depois da

morte, assim também o matrimônio entre o Ministério apostólico e a Cidade cristã não podia deixar
de ser conflituoso. [Nota:] Se aqui comparamos [a união do ministério eclesiástico e do político] com a
do matrimônio é, em primeiro lugar, porque é semelhante, já que esposo e esposa ‗vêm a ser dois
numa só carne‘ (Gn 2, 24). Ademais, porque se funda justamente no sacramento do matrimônio, por
meio do qual o poder eclesiástico santifica a ordem política. [...] Por fim, porque a modernidade se
funda no divórcio deste fecundíssimo matrimônio‖ (Padre Álvaro Calderón, Prometeo Ŕ la religión del
hombre..., Río Conquista, 2010, p. 164). Por seu lado, o Cardeal Pie de Poitiers dizia que o poder
temporal está para o espiritual assim como a natureza humana de Cristo está para sua natureza
divina. Parece-nos válida também esta analogia, com a desvantagem, porém, com respeito às outras,
de que entre as duas naturezas de Cristo não há nem pode haver nenhum conflito. Para esta analogia
do Cardeal Pie de Poitiers, cf. especialmente a Lettre à M. le ministre de l’instruction publique et des
cultes (16 de junho de 1861) e a Troisième instruction synodale sur les principales erreurs du temps présent.

31
II. AINDA É FACTÍVEL, NOS DIAS DE HOJE, A INSTAURAÇÃO
DO REINADO SOCIAL DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO?

5. Não só já se passou muito tempo desde que o Cardeal Pie de Poitiers, o Papa São
Pio X e o Papa Pio XI escreveram o que se leu acima, e não só desde então se estendeu
a tal ponto a democracia liberal e suas ervas daninhas, que hoje até a maioria dos
próprios batizados na Igreja Católica aceita o sexo livre, os métodos contraceptivos
antinaturais, o divórcio, etc. Muito mais que tudo isso: entre aqueles tempos e os dias
de hoje ocorreu o que, com a clareza e firmeza de sempre, Dom Marcel Lefebvre
chamou de ―golpe de mestre de Satanás‖: a abominação, a desolação do Concílio
Vaticano II e de sua perpetuação pelo magistério dos Papas que o seguem, incluído o
atual, cuja ―hermenêutica da continuidade‖ entre a tradição e o Concílio não passa de
uma das vertentes ― talvez a mais perigosa, por mais enganosa ― do câncer que tomou
quase toda a hierarquia da Igreja. Não necessitamos aqui, nem é o objetivo precípuo de
nosso SPES, estudar em si este fenômeno dramático e como que apocalíptico. Além de
muitos outros, já o fez à perfeição o mesmo Dom Lefebvre, e já o fez, especialmente, o
Padre Álvaro Calderón nos livros A Candeia Debaixo do Alqueire..., Prometeo ― la religión
del hombre e El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II (este ainda por publicar). A suas
conclusões aderimos inteiramente. Mas necessitamos, sim, afirmar aqui que
aparentemente já estamos na etapa da chamada Sétima Igreja, ou seja, na do fim dos
tempos ― o que se deve precisamente, em boa parte, ao que vem ocorrendo na Igreja
desde o Concílio Vaticano II.10 Não que a origem deste câncer seja recente; ela remonta
à própria Idade Média, à filosofia e teologia de um Duns Scot ou de um Guilherme de
Ockham, à já então progressiva rebelião dos poderes temporais contra o Papado, à
revolta humanista da carne contra as exigências da santidade, etc. Mas o fato é que,
como dito, o ponto máximo de sua metástase é atingido com o referido Concílio, o que
fez cair sobre os católicos que lutam pelo Reinado Total de Nosso Senhor Jesus Cristo
uma nova e pesadíssima realidade: agora eles têm de lutar não só contra o demônio, o
mundo e a carne, mas também contra a própria maioria da hierarquia da Igreja, que no
Concílio Vaticano II firmou um pacto de morte justamente com os nossos próprios
inimigos.
6. Mas uma coisa é afirmar que, dada a apostasia geral das nações e a quase geral
apostasia da própria hierarquia da Igreja, aparentemente estamos na etapa da Sétima
Igreja, e outra é dar a esta afirmação valor de certeza ― até porque há verdadeiras
autoridades, como Dom Williamson, Bispo da FSSPX, para as quais ainda não
atingimos tal etapa. Não o devemos fazer, nem, muito menos, podemos descrever
concretamente todos os passos que vão dar-se até a Parusia.11 Como quer que seja,
porém, estejamos efetivamente ou não na etapa da Sétima Igreja, e, caso estejamos, seja
qual for o tempo que nos separa da Parusia, a verdade é que jamais podemos deixar de
aderir interiormente à Realeza Total (incluída a Social) de Jesus Cristo, nem de

10 Que sinal temos disto? Diz-nos o próprio Cristo: justamente ―a abominação da desolação instalada
no Lugar Santo‖ (cf. Mt 24, 1-14; Mc 13, 1-3; Lc 21, 5-7).
11 Sobre a incerteza da hora do juízo, cf., por exemplo, Mateus, 24, 36-44.

32
confessá-la publicamente, até para não suceder que, de tanto a omitirmos, acabemos
nós mesmos por negá-la. Sim, porque é como uma lei: quem não vive tal como pensa,
acaba por pensar tal como vive.
7. Que implica, porém, efetivamente, este dever de confessar publicamente a
Realeza Total de Cristo? Como tal confissão é parte da nossa profissão global da fé,
vejamos como explica Santo Tomás de Aquino (in Suma Teológica, II-II, q. 3, a. 2) o
preceito de professar exterior e abertamente a fé cristã. Devemos, segundo o Aquinate,
considerá-lo por dois ângulos. Enquanto tal preceito implica uma proibição, sua
obrigação é de todos os momentos e de todas as situações da vida: nunca é permitido
ao católico fazer qualquer coisa, ou dizer qualquer coisa, ou escrever qualquer coisa
que seja uma negação de sua crença. Enquanto porém implica um ato positivo, o
preceito, conquanto permanente e contínuo, não obriga o católico a professar sua fé a
todo momento e em todo lugar. Ou seja, fazê-lo a todo momento e em todo lugar não é
necessário para sua salvação. No entanto, o que, sim, é necessário para sua salvação é
professá-la na devida hora e lugar, quer dizer, quando por omissão da declaração de
sua crença o católico deixasse de prestar a honra devida a Deus ou deixasse de
concorrer para a utilidade espiritual do próximo; como se, por exemplo, ao ser
interrogado sobre sua fé, ele se calasse, podendo resultar desse silêncio, para o
próximo, ou a conclusão de que a fé não é verdadeira, ou a perda dela ou a desistência
de abraçá-la. Como seja, o fato é que não nos basta a adesão interior à verdade divina,
incluída a Realeza Total de Cristo; é-nos de preceito confessá-la exteriormente pelo
menos nas condições indicadas por Santo Tomás. E são de Nosso Senhor mesmo estes
inequívocos dizeres: ―Todo aquele que não me tiver confessado diante dos homens, o
Filho do homem tampouco o confessará diante dos anjos de Deus. E aquele que me
tiver negado diante dos homens, esse será negado diante dos anjos de Deus‖ (Lc 12, 8-
9).
8. Além do mais, ainda que estejamos marchando para o fim dos tempos e que não
possamos tornar a instaurar, efetivamente, tudo em Cristo, devemos imbuir-nos
profundamente das seguintes palavras do Cardeal Pie de Poitiers, escritas há cerca de
um século e meio, e que citaremos extensamente: lutemos ―com esperança contra a
esperança mesma. Pois quero falar a esses cristãos pusilânimes, a esses cristãos que se
fazem escravos da popularidade, adoradores do sucesso, e que são desconcertados
pelo menor progresso do mal. Ah! afetáveis como eles são, praza a Deus que as
angústias da provação derradeira sejam mitigadas! Esta provação está próxima ou está
distante? Ninguém o sabe [...]. Mas o certo é que, à medida que o mundo se aproxime
de seu termo, os maus e os sedutores terão cada vez mais vantagem. Já quase não se
encontrará fé sobre a face da terra, ou seja, ela terá desaparecido quase completamente
de todas as instituições terrestres. Os próprios crentes mal ousarão fazer uma profissão
pública e social de suas crenças. A cisão, a separação, o divórcio das sociedades com
Deus, o que é dado por São Paulo como sinal precursor do fim, ‗nisi venerit discessio
primum‘, ir-se-á consumando, dia após dia. A Igreja, sociedade sem dúvida sempre
visível, será cada vez mais reduzida a proporções simplesmente individuais e
domésticas. Ela, que dizia em seus começos: O lugar me é estreito, abre-me um espaço

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em que eu possa habitar: Angustus mihi locus, fac spatium ut habitem, ela se verá disputar
o terreno palmo a palmo, ela será cercada, encerrada por todos os lados: tanto quanto
os séculos a tinham feito grande, tanto se aplicarão muitos agora a restringi-la. Enfim,
haverá para a Igreja da terra uma como verdadeira derrota, e será dado à Besta mover
guerra contra os santos e vencê-los. A insolência do mal atingirá o ápice.
―Ora, nesse extremo das coisas, nesse estado desesperado, neste globo entregue ao
triunfo do mal e que logo será invadido pelas chamas, o que deverão fazer todos os
verdadeiros cristãos, todos os bons, todos os santos, todos os homens de fé e de
coragem?
―Aferrando-se a uma impossibilidade mais palpável que nunca, eles dirão com
energia redobrada e tanto pelo ardor de suas preces como pela atividade de suas obras
e pela intrepidez de suas lutas: Ó Deus! Pai nosso que estais no céu, santificado seja o
vosso nome assim na terra como no céu; venha a nós o vosso reino assim na terra como
no céu; seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu! Eles murmurarão ainda
estas palavras, e a terra tremerá sob seus pés. E, assim como outrora, em seguida a um
espantoso desastre, se viu todo o senado de Roma e todas as ordens do Estado ir ao
encontro do cônsul vencido, e felicitá-lo por não se ter desesperado da república, assim
também o senado dos céus, todos os coros dos anjos, todas as ordens dos bem-
aventurados virão ter com os generosos atletas que terão sustentado o combate até o
fim, esperando contra a esperança mesma: contra spem in spem. E então este ideal
impossível, que todos os eleitos de todos os séculos tinham obstinadamente
perseguido, se tornará enfim uma realidade. Neste segundo e derradeiro advento, o
Filho entregará o Reino deste mundo a Deus seu Pai, e o poder do mal terá sido
evacuado, para sempre, para o fundo dos abismos; todo aquele que não tiver querido
assimilar-se, incorporar-se a Deus por Jesus Cristo, pela fé, pelo amor, pela observância
da lei será relegado à cloaca das imundícies eternas. E Deus viverá e reinará
plenamente e eternamente, não apenas na unidade de sua natureza e na sociedade das
três pessoas divinas, mas na plenitude do corpo místico de seu Filho encarnado e na
consumação dos santos!‖ (Œuvres sacerdotales, III, 527-528-529).

III. QUE SOMOS E COMO ATUAREMOS

9. Somos um grupo de leigos que constituímos o SEMINÁRIO PERMANENTE DE


ESTUDOS SOCIOPOLÍTICOS SANTO TOMÁS DE AQUINO ― SPES em concordância com todos
os princípios acima expostos e tendo em vista os seguintes objetivos:
• antes de tudo, o de estudarmos nós mesmos a doutrina da Igreja e de seus
principais Doutores sobre a Realeza Total de Nosso Senhor Jesus Cristo;
• mas também o de a divulgarmos mediante cursos, palestras, grupos de estudo,
vídeos, livros, textos, site próprio, etc., a quaisquer pessoas que o desejarem.
11. De modo algum nos confundimos com os grupos leigos caudatários do Vaticano
II e que, por isso mesmo, se consideram parte de um sacerdócio comum com os
clérigos. Ora, tal concepção, de todo contrária ao modo como Nosso Senhor instituiu
sua Igreja, só é possível porque a doutrina conciliar identifica o Reino de Deus não com

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a Igreja, mas com o mundo. Mas, se todos os homens (ou quase) se salvam pelo só fato
de serem homens, digamos, humanos ― com efeito, para o humanismo conciliar o
homem não deve ordenar-se a Deus e glorificá-lo como a seu fim último, mas ao
mesmo homem como glória de Deus ―, então de fato a parte do ―sacerdócio‖
constituída pelos leigos até sobreleva a constituída pelos eclesiásticos e tem a estes
como que a seu serviço.12
10. Ao contrário, defendemos estritamente a subordinação e ordenação dos leigos
aos sacerdotes (hoje em dia, é claro, apenas aos não aderentes de modo algum à
doutrina conciliar), e somos dirigidos teológica e espiritualmente, no SPES, por Dom
Tomás de Aquino, prior do Mosteiro da Santa Cruz (Nova Friburgo, RJ).

Que Nosso Senhor Jesus Cristo nos dê a força necessária para nunca cedermos ante
as pressões de um mundo iníquo e apóstata, e nunca deixarmos de arvorar o
estandarte de sua Realeza excelsa e única.

FUNDADORES

Frederico de Castro (COORDENADOR GERAL) (Belo Horizonte, MG)


José Carlos Gimberreis (Belo Horizonte, MG)
Renato Salles (Belo Horizonte, MG)
Marcel Assunção Barboza (Campo Grande, MS)
Euro B. de Barros (Corumbá de Goiás, GO)
Gustavo Barreto (Montreal, Canadá)
Carlos Nougué (Nova Friburgo, RJ)
Wellington Nery (Nova Friburgo, RJ)
Bruno Bertolli (Presidente Prudente, SP)
Paulo A. Hernandez (Rio de Janeiro, RJ)
Sidney Silveira (Rio de Janeiro, RJ)
Stefano Pasini (Salvador, BA)
Luiz Paulo de Alcantara (São Paulo, SP)

―Se estais condenados a ver o triunfo do mal, nunca o


aplaudais; nunca digais do mal ‗isso é bom‘; nunca digais
da decadência ‗isso é progresso‘; nunca digais da noite
‗isso é luz‘; nunca digais da morte ‗isso é vida‘.‖

CARDEAL PIE DE POITIERS

12 Cf. Padre Álvaro Calderón, Prometeo Ŕ la religión del hombre..., especialmente pp. 239-258.

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36
CARTA PASTORAL SOBRE

A REALEZA DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

D. Antônio de Castro Mayer,

Por Mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica,


Bispo Diocesano de Campos.

CARÍSSIMOS COOPERADORES E amados filhos


Ao encerrar-se o Ano Santo de 1925, o Santo Padre Pio XI instituiu a festa de Nosso
Senhor Jesus Cristo Rei. Fixou, como seu dia próprio, o último domingo de outubro, o
que precede à festa de Todos os Santos. O novo calendário transferiu-a para o
derradeiro domingo do Ano Litúrgico, que incide na última década de novembro.
Com a nova festa litúrgica, dedicada a solenizar especialmente a Realeza universal
de Nosso Senhor Jesus Cristo, visava o Papa opor um remédio eficaz ao Laicismo, à
peste que corrói a sociedade humana, ―peste de nossos tempos‖, diz o Papa.
Justificando sua expressão e externando sua esperança nos frutos que a nova
solenidade litúrgica iria produzir, escreveu Pio XI a memorável Encíclica Quas primas,
de 11 de dezembro daquele Ano Santo de 1925. Passados cinquenta anos, conserva seu
ensinamento toda a oportunidade, uma vez que os castigos desabados sobre a
Humanidade, especialmente com a grande guerra de 1939 a 1945, não demoveram os
homens de sua impiedade. Ainda os que professam fé religiosa, em boa parte,
continuam a viver como se Deus não existisse.
É, portanto, útil e mesmo necessário inculcar novamente, e sempre, nos fiéis, a
importância da festa de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei, a fim de movê-los a atualizar na
vida privada, bem como na familiar e social, a vassalagem devida ao Soberano do
Universo, evitando que se frustrem as esperanças dos frutos que essa festividade está
destinada a operar nas almas.
Eis a razão deste colóquio convosco, amados cooperadores e diletos filhos, com que
confiamos excitar-nos mutuamente ao zelo pela glória de Deus e salvação das almas.

I – SOBERANIA DIVINA

Avivemos, primeiramente, nossa fé na Realeza universal de nosso Divino Salvador.

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É Ele verdadeiramente Rei universal, isto é, tem soberania absoluta sobre todo o
Gênero Humano, sobre os homens todos, mesmo aqueles que se acham fora de seu
redil, a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Pois, realmente, toda pessoa é criatura de Deus. Deve-Lhe todo o ser, quer na
unidade da natureza, quer em cada uma das partes de que ela se compõe: corpo, alma,
faculdades, inteligência, vontade, sensibilidade; mesmo os atos dessas faculdades, bem
como de todos os órgãos, são dádivas de Deus, cujo domínio se estende até aos bens da
fortuna, frutos que são de sua inefável liberalidade. A simples consideração de que
ninguém escolhe ou pode escolher a família a que irá pertencer na terra, com a
respectiva posição social na sociedade, basta para nos convencer desta verdade
fundamental em nossa existência.
De onde Deus Nosso Senhor é o Soberano Senhor de todos os homens, tanto
individualmente considerados, como em grupos sociais, uma vez que, ao constituir as
várias comunidades, não perdem eles sua condição de criatura. Sendo que a existência
da própria sociedade civil obedece aos desígnios de Deus, que fez social a natureza do
homem. Todos os povos, portanto, todas as nações, desde as mais primitivas até as
mais civilizadas, desde as menores até as superpotências, todas estão sujeitas à
Soberania Divina, e, de si, têm obrigação de reconhecer esta suave dominação celeste.

Realeza de Jesus Cristo

Ora, esta soberania, confiou-a Deus ao seu Filho Unigênito, como atestam
frequentemente as Sagradas Escrituras.
São Paulo, de modo geral, declara que Deus ―constituiu a seu Filho herdeiro universal‖
(Heb., I, 2). São João, de sua parte, corrobora o pensamento do Apóstolo dos gentios
em muitos passos de seu Evangelho. Por exemplo, quando lembra que ―o Pai não julga a
ninguém, pois todo o julgamento entregou ao Filho‖ (Jo., V, 22). Pois a prerrogativa de
distribuir a justiça compete ao Rei; Quem a possui é porque está revestido de poder
soberano.
Esta realeza universal, que herdou ao Pai, não deve entender-se apenas como a
herança eterna, pela qual, com a natureza divina, recebeu o Filho todos os atributos
que O fazem igual e consubstanciai à Primeira Pessoa da SSma. Trindade, na unidade
da Essência Divina.
Ela é especialmente atribuída a Jesus Cristo como Homem, Mediador entre o Céu e
a Terra. Porquanto a missão do Verbo Encarnado foi precisamente esta, instaurar na
terra o Reino de Deus. Eis que as expressões da Sagrada Escritura relativas à realeza de
Jesus Cristo referem-se, sem sombra de dúvida, à sua condição de homem.
Como filho de Davi Rei é Ele apresentado ao mundo, aonde vem a herdar o trono
paterno, extenso como os extremos da terra, e eterno, sem cômputo de anos. Foi como
o Arcanjo Gabriel anunciou a dignidade do Filho de Maria: ―Darás à luz um Filho, ao
qual imporás o nome de Jesus. Ele será grande, e chamar-se-á Filho do Altíssimo. Dar-lhe-á o
Senhor o trono de Davi seu pai, e reinará eternamente na casa de Jacó, e seu reino não terá fim‖
(Lc., I, 31-33). É, outrossim, como Rei que O buscam os Magos vindos do Oriente a

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adorá-Lo: ―Onde nasceu o Rei dos Judeus?‖, perguntam a Herodes, ao chegarem a
Jerusalém (Mat., II, 2). A missão, pois, que confiou o Padre Eterno ao Filho, ao fazê-lo
Homem, foi instalar na terra um reino, o Reino dos Céus. É mediante a implantação
deste Reino que vai concretizar-se aquela inefável caridade com que Deus, desde toda
a eternidade, amou aos homens e os atraiu misericordiosamente a si: ―Dilexi te et atraxi
te miserans tui‖ (Jer., XXXI, 3).
Eis que Jesus consagra sua vida pública ao anúncio e instalação deste seu Reino, ora
apontado como Reino de Deus, ora como Reino dos Céus. À moda oriental, serve-se de
encantadoras parábolas, para inculcar a ideia e a natureza desse Reino que veio fundar.
E seus milagres visam convencer o povo de que seu Reino havia chegado, estava no
meio do povo. ―Si in digito Dei eiicio daemonia, profectu pervenit in vos Regnum Dei‖ ― “Se
expulso os demônios em nome de Deus, é sinal de que, sem dúvida possível, chegou até vós o
Reino de Deus” (Lc., XI, 20).
A constituição deste seu Reino absorveu de tal maneira sua atividade, que a
apostasia judaica aproveitou a ideia para justificar a acusação contra Ele levantada no
tribunal de Pilatos: ―Si hunc dimittis, non es amicus Caesari‖ ― ―Se o absolves, não és amigo
de César‖, vociferavam ao Procônsul, ―pois todo o que se faz rei se opõe a César‖ (Jo., XIX,
12). Corroborando a opinião de seus inimigos, confirma Jesus Cristo ao Procurador
romano que Ele é realmente Rei: ―Tu dizes, eu sou Rei‖ (Jo., XVIII, 37).

Rei no sentido próprio

Eis que não é possível pôr em dúvida o caráter real da obra de Jesus Cristo. Ele é
Rei.
Pede nossa Fé, no entanto, que conheçamos bem o alcance e o sentido da realeza do
Divino Redentor. Pio XI exclui, desde logo, o sentido metafórico com o qual chamamos
rei e real ao que há de mais excelente numa maneira de ser ou agir humano, como
quando falamos na rainha da bondade, no rei dos poetas, etc.
Não. Jesus Cristo não é rei nesse significado transposto. Ele é Rei no sentido próprio
da palavra. É exercendo prerrogativas reais de governo soberano, ditando leis e
cominando penas contra os transgressores que Ele aparece na Sagrada Escritura. No
célebre ―Sermão da montanha‖ (Mt., V, 4 ss.) pode dizer-se que o Salvador promulgou o
Código do seu Reino. Como verdadeiro soberano, exige obediência às suas leis sob
pena nada menos do que a condenação eterna. E o mesmo com a cena do julgamento ―
quando o Filho de Deus vier, para distribuição de sua justiça aos vivos e aos mortos ―,
em que Ele anuncia o fim do mundo: ―Virá então o Filho do Homem na sua majestade [...] e
separará os homens, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos [...] e dirá aos que estiverem à
direita: Vinde, benditos de meu Pai., e aos da esquerda: Ide, malditos, para o fogo eterno [...]. E
estes irão para o suplício eterno, e os justos para a vida eterna” (Mt., XXIV, 31 ss.).
Dulcíssima e tremenda sentença. Dulcíssima para os bons, pela excelência sem par
do prêmio que os aguarda. Tremenda e pavorosa para os maus, pelo alucinante castigo
a que são eternamente remetidos.

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Basta semelhante consideração para avaliar-se a importância suma que há para os
homens em bem discernir onde se encontra aqui na terra o Reino de Jesus Cristo, pois
pertencer-lhe ou não é decisivo de sua sorte eterna. Dizemos ―aqui na Terra‖, uma vez
que é neste mundo que o homem merece o prêmio ou o castigo de além-túmulo. Na
Terra, pois, hão de os homens se integrar nesse inefável Reino de Deus, temporal e
eterno, pois forma-se no mundo e floresce no Céu.

A Igreja Católica, o Reino de Deus

A mesma Sagrada Escritura que nos levou ao conhecimento da Realeza de Jesus


Cristo nos diz quais são, no mundo atual, como continuadores da missão do Divino
Mestre, os chefes autênticos de seu Reino. Condutores credenciados do rebanho de
Cristo são os legítimos sucessores dos Apóstolos; pois foi sobre os Apóstolos que o
Salvador edificou sua Igreja, ou seja, seu Reino, em cujo seio encaminham-se os
homens para o Céu.
Aos Apóstolos, com efeito, confiou Jesus seu poder, e para eles exigiu a mesma
obediência que Lhe era, a Ele, devida: ―Quem vos ouve a Mim ouve‖, disse-lhes o Divino
Mestre, ―quem vos rejeita a Mim rejeita‖ (Lc., X, 16). E noutro lugar, caracterizando o
poder de governar, de dirigir sua sociedade, a Igreja, declarou-lhes: ―Tudo quanto
ligardes na terra será ligado no Céu, tudo quanto desligardes na terra será desligado no Céu‖
(Mt., XVIII, 18).
Depois de sua Ressurreição, especifica o poder soberano concedido aos Apóstolos,
dizendo que atinge mesmo o perdão dos pecados, prerrogativa exclusiva de Deus: ―A
quem perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados, e a quem os retiverdes ser-lhe-ão retidos‖ (Jo.,
XX, 22). Depois de ter, durante sua vida, com várias expressões, significado que seu
poder de encaminhar os homens ao Céu Ele o passava aos Apóstolos, como que
compendiando essa sua disposição, ao despedir-se deste mundo para retornar ao seio
do Padre Eterno, entrega-lhes Jesus a direção de sua obra, que ainda continuará na
Terra, uma vez que, até o fim do mundo, Deus deverá ser glorificado e as almas salvas:
―Foi-me dado‖, diz Ele aos Apóstolos, ―todo o poder no Céu e na Terra. Ide, pois, e ensinai a
todos os povos, ensinando-os a praticar tudo quanto vos mandei‖ (Mt., XXVIII, 20). E às
ordens dos Apóstolos, como a legítimos superiores, há obrigação de obediência sob
pena de perder a alma: ―Quem crer e for batizado será salvo; quem não crer será condenado‖
(Mc., XVI, 16). Crer, isto é, aceitar e viver de acordo com a Doutrina dos Apóstolos, que
isso é propriamente ―crer‖ com toda a alma. Portanto, portar-se como súdito do Reino
de Jesus Cristo, da Santa Igreja. Porquanto, no mesmo momento em que transmitia
seus poderes aos Apóstolos, assegurou a permanência de sua obra, de sua Igreja, de
seu Reino ― três expressões que envolvem o mesmo significado ― ao declarar que
ficaria com os mesmos Apóstolos até o fim do mundo, ou seja, seriam os Apóstolos
legítimos sucessores, junto dos quais continuaria Nosso Senhor sua presença para que
eles mantivessem íntegra a herança recebida. ―E eis que estarei convosco até a consumação
dos séculos‖ (Mt., XXVIII, 20).

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Igreja hierárquica

Enfim, cuidando que não faltasse a unidade de governo, necessária em todo reino
para que se conserve, e, ordenadamente, atinja o fim por que se constitui, instituiu
Jesus a hierarquia sagrada que, na Santa Igreja, ensina, dirige e santifica seu povo. De
Pedro fez a rocha inexpugnável, sobre a qual edificou sua Igreja, dando-lhe as chaves
do Reino dos Céus, enfeixando nas suas mãos todo o poder outorgado aos Apóstolos
todos: ―Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. Dar-te-ei as chaves do Reino
dos Céus. Tudo quanto ligares na Terra será ligado no Céu e tudo quanto desligares na Terra
será desligado no Céu‖ (Mt., XVI, 16 ss.).
De maneira que a Igreja que tem o sucessor de Pedro e os sucessores dos Apóstolos,
esta é a Igreja de Cristo. Nela se acha o Reino de Jesus Cristo. Ora, esta Igreja, única no
mundo, que apresenta no Papa o sucessor de São Pedro e nos seus Bispos os sucessores
dos Apóstolos, é a Igreja Católica, Apostólica, Romana. É fazendo parte dela, e vivendo
segundo sua doutrina, que pertencemos ao Reino de Cristo, que nos mostramos fiéis
vassalos do Rei da Glória, que nos encaminhamos para o Reino do Céu, para a bem-
aventurança eterna.
Buscai, amados filhos, em outras confissões, que usurpam o título de cristãs: todas
elas têm uma data de nascimento posterior ao Divino Mestre. Somente a Igreja Católica
Romana sobe, em sua origem, até a época de Jesus Cristo. Porque somente Ela é
verdadeiramente apostólica, ou seja, vem em linha reta dos Apóstolos. É a Igreja de
Cristo.

II – REALEZA PRECIPUAMENTE ESPIRITUAL

Jesus é, pois, Rei no sentido próprio do termo. Sua soberania exerce-a Ele na terra
mediante sua Igreja, seu Corpo Místico, sociedade visível hierárquica, dotada de todos
os poderes para levar os homens ao fim para o qual foram criados: dar glória a Deus e
salvar a alma. De maneira que fazer parte da Igreja de Cristo, e viver como súdito dócil
e obediente do Rei dos reis, Jesus Cristo, é condição de bem-aventurança eterna.
Já essas considerações dizem que o Reino de Jesus Cristo é espiritual ― ―praecipuo
quodam modo‖, de modo especial ― diz Pio XI em sua Encíclica ―, é espiritual porque
versa sobre assuntos relacionados com a vida espiritual, a que transcende os limites da
vida terrena, o culto divino e a santificação das almas.
Foi, aliás, o que atestou o próprio Salvador no tribunal de Pilatos. À pergunta do
Procônsul ―És tu Rei?‖, respondeu Jesus afirmativamente: ―Tu dizes, eu o sou‖ (Jo.,
XVIII, 37). Pouco antes já explicara ao Magistrado romano a natureza especial de seu
reinado: ―Meu Reino não é deste mundo. Se fora deste mundo, meus ministros, sem a menor
dúvida, lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Como vês, meu reino não é daqui‖
(Jo., XVIII, 36); ou seja, não cuida dos negócios da terra que se circunscrevem a este
mundo. E no versículo seguinte Jesus é mais explícito, relacionando Seu Reino com o
império da Verdade: ―Eu para isto nasci, para isto vim ao mundo, para dar testemunho da
Verdade. Todo o que é da verdade ouve a minha voz.‖

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Embora, pois, a Jesus, na sua Humanidade, em virtude da união hipostática,
pertença todo o poder, mesmo na ordem civil, não obstante, tranquilizou o Salvador
aos soberanos da terra: Seu reino não é das coisas deste mundo. No mesmo sentido,
repete a Igreja, todos os anos, pela Epifania, que ―non eripit mortalia qui regna dat
coelestia‖ ― ―não usurpa os reinos mortais quem os dá celestes‖.

As duas potestades

Pelo exposto, vê-se que o Divino Mestre dispõe a coexistência de duas potestades
soberanas na terra: Uma que preside à vida temporal, encarnada na pessoa de César.
Poder que deve ser acatado, honrado, obedecido, pois manda o Senhor ―dar a César o
que é de César‖ (Mt., XXII, 21). E a razão é que este poder é, ele também, outorgado por
Deus Nosso Senhor, como declarou o Divino Mestre ao representante do imperador
romano, quando lhe disse: ―Nenhum poder terias sobre mim se não te fosse dado do alto‖
(Jo., XIX, 11). E o Apóstolo repete a lição: ―Todo o poder vem de Deus‖ (Rom., VIII, 1).
Devem, portanto, os cristãos aceitar o poder civil e a ele submeter-se amorosamente,
isto é, não pelo medo dos castigos, mas como à autoridade delegada por Deus, pois o
príncipe age como ministro de Deus (Rom., XIII, 4).
A outra potestade cuida dos interesses da alma que relacionam o homem com
Deus, e o encaminham à salvação eterna no Céu. Abarca os deveres religiosos, o culto
de Deus e a obediência às divinas ordenações. Poder este próprio do Reino de Jesus
Cristo, que, igualmente, deve ser respeitado e obedecido com especial veneração, uma
vez que seu menosprezo atinge o próprio Deus: ―quem vos rejeita, a Mim rejeita; e quem
Me rejeita, rejeita Aquele que me enviou‖ (Lc., X, 16).
Todos os homens estão obrigados a obedecer, como supremas, a duas potestades:
nas coisas temporais, ao poder civil, ainda aqueles que participam do governo
religioso; nas coisas de Deus, ao poder espiritual, mesmo as autoridades civis. Embora
soberana, a autoridade do Estado cede o passo à autoridade religiosa, pois ―é preciso
obedecer antes a Deus que aos homens‖ (At., V, 29). Em caso de conflito, portanto,
prevalecem os deveres religiosos, pois dizem respeito ao destino eterno das almas.

Relação entre a Igreja e o Estado

De maneira que a estrutura natural do governo da sociedade humana, na ordem


histórica — isto é, em face da Revelação e constituição da Santa Igreja para presidir aos
assuntos espirituais —, pede uma colaboração mútua entre as duas potestades
supremas, a Igreja e o Estado. A Igreja reconhecerá o poder civil e levará os fiéis ao
sincero acatamento da autoridade do Estado, à qual dará colaboração leal, em tudo
quanto redunde em benefício da sociedade e não se oponha à lei de Deus. De seu lado,
o Estado reconhecerá a única Igreja a que confiou Deus o cuidado das coisas
espirituais: o culto divino e a salvação das almas. E, como a vida do homem na terra
deve orientar-se para a salvação eterna, deve o Estado não somente não se opor à ação
específica da Igreja, mas também auxiliá-la, positivamente, criando na sociedade um

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ambiente que favoreça a prática da virtude, a piedade, a Fé, e dificulte o pecado, a
impiedade, e em geral, a proliferação do vício.
Leão XIII enuncia, com precisão, este pensamento: ―Todos nós, enquanto existimos,
somos nascidos e educados em vista de um bem supremo e final, ao qual é preciso referir tudo,
colocado que está nos céus, além desta frágil e curta existência. Já que disso é que depende a
completa e perfeita felicidade dos homens, é do interesse supremo de cada um alcançar esse fim.
Como, pois, a sociedade civil foi estabelecida para a utilidade de todos, deve, favorecendo a
prosperidade pública, prover ao bem dos cidadãos de modo não somente a não opor qualquer
obstáculo, mas a assegurar todas as facilidades possíveis à procura e à aquisição desse bem
supremo e imutável ao qual eles próprios aspiram. A primeira de todas consiste em fazer
respeitar a santa a inviolável observância da Religião, cujos deveres unem o homem a Deus.
Quanto a decidir qual religião é a verdadeira, isso não é difícil a quem quiser julgar sobre esta
matéria com prudência e sinceridade. Efetivamente, provas numerosíssimas e evidentes, a
verdade das profecias, a multidão dos milagres, a prodigiosa celeridade da propagação da fé,
mesmo entre os seus inimigos e a despeito dos maiores obstáculos, o testemunho dos mártires e
outros argumentos semelhantes, provam claramente que a única religião verdadeira é a que o
próprio Jesus Cristo instituiu e deu à sua Igreja a missão de guardar e propagar” (Enc.
Immortale Dei, de 1.º de novembro de 1885).
Já vedes, amados filhos, que tão somente num Estado constituído de acordo com
esta doutrina se pode efetivar plenamente a Realeza de Jesus Cristo. Explica-se, pois,
tenha ela sido inculcada constantemente pelo Magistério Eclesiástico.

Padres da Igreja

Assim, São Gregório Nazianzeno ( 390) declara que os magistrados imperiais


estão submetidos à autoridade dos Bispos como a carne ao espírito e as coisas terrestres
às celestes (Hom. XVII); São João Crisóstomo ( 407) explana as relações entre a
autoridade espiritual e a temporal mediante a comparação entre o sol e a lua (Hom. XV
sobre 2 Cor.); Santo Ambrósio, na carta a Valentiniano contra Auxêncio, declara que ―o
imperador está dentro da Igreja, e não acima da Igreja; com efeito, o bom imperador procura o
auxilio da Igreja, não o recusa‖. Santo Agostinho, no cap. 24 do livro V de sua obra A
Cidade de Deus, enumera, entre as obrigações do imperador, colocar seu poder ao
serviço da Majestade divina, para dilatar-lhe o reinado; e em carta ao Conde Bonifácio,
encarregado do governo da África, comentando a palavra do salmo, ―servi ao Senhor, no
temor‖, ensina que os reis servem ao Senhor proibindo e punindo as transgressões aos
mandamentos de Deus; e nisto difere o modo de servir a Deus próprio dos reis e o de
cada indivíduo: o indivíduo serve a Deus vivendo segundo sua fé, enquanto o rei o faz
estabelecendo, com conveniente severidade, leis mandando o que é justo e proibindo o
que é contra a justiça. E depois de dar vários exemplos do Antigo Testamento, nos
quais salienta as ordens dos soberanos contra as obras da impiedade, conclui: os reis
servem ao Senhor, como reis, fazendo para servi-Lo o que somente os reis podem fazer.
Em meados do século V, São Leão I, Papa (de 440-461), escreve ao imperador Leão de
Constantinopla para urgir a manutenção dos decretos do Concilio de Constantinopla

43
contra as manobras dos eutiquianos (monofisitas) e lembra-lhe que ―o poder real lhe foi
dado não somente para o governo do mundo, mas sobretudo para a defesa da Igreja‖ (Ep. 156,
3).

Os Romanos Pontífices e os imperadores

Foi mais especialmente nas relações com os imperadores de Constantinopla que


teve a Igreja oportunidade de reafirmar estes princípios da Doutrina Católica. Assim,
São Félix II, Papa, em agosto de 484, adverte ao imperador Zenão que deve proteger a
liberdade da Igreja, e que ele mesmo imperador precisa se submeter ao sacerdócio nas
causas de Deus, submissão salutar mesmo para o Estado. São Gelásio, igualmente
Papa, teve que repetir a mesma lição sagrada ao imperador Anastácio I. Em 494,
enviou-lhe o célebre documento sobre as duas potestades existentes na Terra, e a
harmonia que entre elas deve manter-se: ―Rogo à tua piedade que não julgues uma
arrogância o exercício dos encargos divinos: não se venha a pensar que um Príncipe Romano
leve à conta de injúria a verdade que lhe é proposta. Portanto, dois são, imperador augusto, os
principados que regem este mundo: a autoridade sagrada dos Pontífices e o poder real. Entre
eles, é tão mais séria a autoridade dos sacerdotes quanto até mesmo dos próprios reis devem eles
dar contas no juízo divino. Sabes, com efeito, filho clementíssimo, que, embora, pela tua
dignidade, presidas ao Gênero Humano, contudo, aos que estão à testa das coisas divinas,
devotamente te sujeitas, e deles esperas os meios da tua salvação [...]. Se, com efeito, no que
respeita à ordem pública, sabendo que o império te foi outorgado por disposição superior, até
mesmo os Prelados religiosos obedecem às tuas leis, para não parecerem seguir, nas coisas deste
mundo, opiniões rejeitadas; como não te convém obedecer devotamente àqueles que têm a
incumbência de administrar os venerandos mistérios?‖ (Carta ao Imperador Anastácio, em
492).
Por volta do ano 506, torna o Papa, desta vez, São Símaco, a lembrar ao mesmo
Imperador Anastácio a doutrina católica. Prevenindo uma possível objeção de seu
augusto correspondente, escreve o Pontífice: ―Talvez digas: ― está escrito: devemos estar
sujeitos a toda potestade‖. Ao que contesta o Papa: ―Nós acatamos as autoridades humanas,
enquanto não levantam contra Deus suas vontades. Aliás, se todo o poder vem de Deus, com
maior razão vem aquele que preside às coisas divinas. Serve a Deus em nós, e nós serviremos a
Deus em ti.‖
Mais tarde, é a vez de São Nicolau I (Papa de 858 a 867) despertar a memória do
imperador Miguel III sobre os dois poderes supremos a que estão os homens sujeitos
neste mundo e à subordinação, nas coisas espirituais, do império ao sacerdócio, como à
dos ministros sagrados ao império nas coisas de ordem temporal (Ep. de 28-9-865,
―Proposueramos quidem‖).

Na Idade Média

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Ao se constituírem as novas nações europeias, como consequência do
esfacelamento do Império Romano, continuou a Igreja a inculcar sua doutrina sobre as
obrigações do Estado em matéria religiosa.
Já no século VII, Santo Isidoro de Sevilha ( 636) reconhecia que os reis têm
plenitude de governo nas coisas seculares, mas não podem descurar seus deveres com
respeito a Deus, nem sua deferência à Igreja, ―quam a Christo tuendam susceperunt‖ ―
―cuja defesa receberam de Cristo‖ (Sent. III, 51). O pensamento do Arcebispo de Sevilha,
ao lado de análogo de Santo Agostinho, reaparece nos mestres eclesiásticos dos séculos
seguintes. Servem-se eles de várias imagens para explanar o ensinamento tradicional
da Igreja. Alguns, a exemplo de São Bernardo, falam de duas espadas, o gládio do
espírito manejado pela Igreja e que atende às coisas da alma, e o gládio temporal, a ser
empregado em benefício da Igreja. Ora, é a união íntima entre o corpo e a alma que
serve de símile para ilustrar a harmonia e mútua dependência existente entre as duas
autoridades supremas que orientam os homens à plenitude da vida terrena
subordinada à vida eterna, como o faz o Papa Inocêncio III. Ora, como Graciano,
comparam as relações entre a Igreja e o Estado às que vigem entre o sol e a lua. Como
este satélite da terra se beneficia da luz do sol, a fim de, por seu turno, ser benéfico à
terra, assim, guiado pela Igreja, é que o Estado atende à sua finalidade própria, que é
tornar felizes seus súditos.
Nas relações políticas entre a Igreja e os vários soberanos é esta doutrina tradicional
que decorre dos atos do poder eclesiástico. Assim, o Papa Urbano II escreve a Afonso
VI de Espanha: ―Duas dignidades, ó rei Afonso, governam principalmente este mundo: a dos
sacerdotes e a dos reis; contudo, a dignidade sacerdotal, filho caríssimo, avantaja-se tanto à
dignidade régia, que dos próprios reis temos nós que dar conta exata ao Rei de todos‖ (ML. 151,
289 — apud Villoslada, Hist. de la Igl. II, Ed. Med. 2ª., 409).
Santo Tomás de Aquino enuncia e justifica tanto na Suma Teológica como
especialmente no Tratado sobre o governo civil, escrito para o Rei de Chipre, o
ensinamento comum da Igreja sobre este assunto. Partindo do princípio de que o fim
da sociedade não pode opor-se ao fim de cada um dos seus membros, e como o destino
último destes é o gozo de Deus, deverá o governo da coisa pública cuidar também que
os homens reunidos em sociedade alcancem, mediante a vida virtuosa, aquela fruição
divina (De Regimine Principum, L. I, c. 14). ―Porém‖, continua Santo Tomás, ―como guiar
ou conduzir a este fim não corresponde ao governo humano, e sim ao divino [...], e sendo
distintas as coisas terrenas das espirituais, o reinado sobre estas não se concedeu aos reis da
Terra, e sim aos sacerdotes, e principalmente ao Sumo Sacerdote, sucessor de São Pedro e
Vigário de Cristo, o Romano Pontífice, ao qual devem estar sujeitos todos os reis cristãos‖
(Idem, ibidem). E, no capítulo seguinte, acrescenta o Doutor Angélico: ―[...] pertence, pois,
ao ofício do Rei cuidar por todos os meios convenientes que os súditos vivam segundo a virtude
para que alcancem a celestial bem-aventurança, ordenando o que a ela conduza, e tratando de
impedir ou dificultar quanto desvia do último fim” (Idem, L. I. c. 15).

A civilização cristã

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Assim, como verdadeira pedagoga do Gênero Humano, conduz a Igreja a
sociedade àquela situação ideal de equilíbrio e bem-estar da convivência social, graças
à natural subordinação de toda a atividade terrena ao fim último, no qual atinge a
perfeição a felicidade a que aspira a natureza racional. Leão XIII recorda que tal foi a
condição da sociedade na Idade Média. Escreve, com efeito, na Encíclica Immortale Dei,
de 1.º/11/1885: ―Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados [...].
Então o sacerdócio e o império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e pela permuta
amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda
expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros
documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer.‖
Realizava-se nessa época o que Yves de Chartres considerava lei imprescindível nas
relações entre a Igreja e a sociedade civil: ―Quando o império e o sacerdócio vivem em boa
harmonia, o mundo é bem governado‖, escrevia ele a Pascoal II (Papa de 1099 a 1118), ―a
Igreja é florescente e fecunda. Mas, quando a discórdia se interpõe entre eles, não somente as
pequenas coisas não crescem, mas as próprias grandes deperecem miseravelmente” (Ep. 238).

III – A APOSTASIA DO DIREITO NOVO

Infelizmente, amados filhos, os tempos modernos registram a ruptura da perfeita


harmonia entre o sacerdócio e o império, enaltecida por Leão XIII, como fonte de tantos
benefícios para a convivência humana.
Foram, primeiro, os soberanos cristãos que mal toleraram a autonomia do Papa.
Seguiu-se a dissolução da unidade religiosa do Ocidente, para chegar-se ao que o
citado Pontífice chama de direito novo do século XVIII. Neste, em nome da igualdade e
dignidade comuns a todos os homens, rejeita-se qualquer autoridade cuja origem não
seja a mesma vontade humana. ―Segue-se‖, explana Leão XIII, ―que o Estado não se julga
vinculado a nenhuma obrigação para com Deus, não professa oficialmente nenhuma religião
[...], deve apenas a todas atribuir igualdade de direito civil, com o único fim de impedi-las de
perturbar a ordem pública‖ (Immortale Dei).
Um pouco de reflexão, amados filhos, sobre semelhante teoria, mostra como, numa
ordem político-social assim concebida, desaparece a realeza de Jesus Cristo, e se
dificulta enormemente a salvação das almas. Pois uma sociedade assim estruturada,
pura e simplesmente, não reconhece a soberania de Deus Nosso Senhor. Como poderá
dizer-se ela cristã, se representantes legítimos da mesma, ainda que individualmente se
professem católicos e piedosos cumpridores de seus deveres religiosos, como pessoas
públicas não podem reconhecer qual a Vontade de Deus expressa na sua verdadeira
Igreja? Cremos, amados filhos, que não seja preciso salientar que, dentro de uma
ordenação jurídica como essa, a salvação e santificação das almas, longe de ser
auxiliada, encontra, ao invés, o maior obstáculo: falta-lhes o ambiente propício que lhes
daria uma legislação patentemente preocupada com os direitos de Deus.

O Estado leigo, ideal das forças secretas

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Aliás, o mesmo Leão XIII, na Encíclica Humanum Genus, de 20/4/1884, denuncia o
Estado leigo, rigorosamente neutro em matéria religiosa, como o meio considerado
apto pelas forças secretas para aniquilar e ―destruir toda disciplina religiosa e social‖
cristãs. Com semelhante fim, inculcam que, ―nas diversas formas religiosas, não há razão
alguma de se preferir uma à outra, pois todas devem ser postas em pé de igualdade‖. Adverte o
Papa que ―semelhante princípio basta para arruinar todas as religiões, e particularmente a
Religião católica, porquanto, sendo a única verdadeira, não pode ela, sem sofrer a última das
injúrias e das injustiças, tolerar lhe sejam igualadas as outras religiões‖.
Corolário lógico de semelhante princípio é o laicismo do Estado, ―o grande erro do
tempo presente‖, que consiste em relegar para a categoria das coisas indiferentes o
cuidado da Religião.
Por isso, dizíamos, amados filhos, que em um regime político-social assim
concebido é impossível à Igreja realizar plenamente sua missão de instaurar na terra o
Reino de Jesus Cristo.

Inversão de valores

Digno de registro é, outrossim, amados filhos, que no Direito Novo inverte-se a


posição social da Religião. De guia e ordenadora dos atos humanos, passa a uma das
muitas manifestações da alma individual, sujeita, como as demais, às restrições
impostas pela ordem pública. Com efeito, segundo o magistério tradicional, de acordo,
aliás, com o bom senso, o Estado, que deve cuidar dos bens de ordem temporal,
subordina-se, nas suas atividades, ao fim último dos cidadãos, nada estabelecendo que
dificulte a consecução deste último fim, antes auxiliando o conhecimento da verdadeira
Religião e a prática da virtude. Na nova concepção, é a Igreja que se subordina ao
Estado, porquanto é Ela que deve, nas suas atividades, abster-se de tudo quanto o
Estado julgue contrário à ordem pública. — Que excelência e que soberania de Deus
tornaria a Igreja presente neste mundo, quando é Ela mesma aviltada a mero interesse
particular, que o Estado alarga ou restringe, segundo melhor lhe parecer? — Em
semelhante concepção, não se vê como censurar um governo comunista, quando, por
exemplo, em nome da ordem pública, condena um sacerdote porque batiza uma
criança, ainda que seja com o consentimento dos pais.

Ordem pública objetiva

E se alguém vos objetar, amados filhos, que não se trata de qualquer ordem pública,
arbitrariamente suposta, mas da única ordem pública verdadeira, daquela que é
objetiva, que constitui indiscutivelmente o bem comum, e por isso é defendida contra
os abusos da autoridade, quando alguém vos opuser esse sofisma, ser-vos-á fácil
responder que, em semelhante hipótese, já se abandona o direito novo. Convém
acentuar, a propósito, que sem a aceitação de uma moral objetiva e uma noção exata de
bem que nos dá a Moral não se concebe ordem pública objetiva, sendo impossível
entender-se o bem comum. Ora, abstraindo-se da verdadeira Religião, também não se

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concebe uma reta moral objetiva. Apelando-se, portanto, para a ordem pública, para o
bem comum contra os abusos da autoridade, abandona-se, por isso mesmo, o direito
novo, que não reconhece norma superior ao homem, uma vez que declara que a
vontade humana é a fonte de todo direito.
Bem comum, ordem pública objetiva são termos que só se entendem relacionados
com a concepção de Moral superior ao homem, que serve de norma para os atos da
criatura racional. Semelhante Moral objetiva termina obrigando o ser humano a cultuar
a Deus, de acordo com a Vontade Soberana deste Senhor Altíssimo. Ou seja, obriga o
homem a professar a Verdadeira Religião. Muito a propósito, ponderava São Pio X
contra Le Sillon, movimento leigo visando ao apostolado de aproximação com todas as
religiões: ―Não há verdadeira civilização sem civilização moral, e não há verdadeira moral sem
verdadeira religião‖ (Carta Apostólica Notre charge apostolique, de 25/8/1910).

As meias verdades

A citação da Carta Apostólica de São Pio X sobre Le Sillon leva-nos a advertir,


nossos amados filhos, contra a maneira como a heterodoxia se aninha em nosso meio:
aplicamos à Fé uma norma de agir própria das virtudes morais.
Há, com efeito, uma prudência no agir que pede certa indulgência, quando se tratar
com homens portadores de uma natureza decaída, e tem por fim evitar que se extinga
uma chama ainda bruxuleante. ―Se for necessário cortar feridas, apalpai-as antes com mão
ligeira‖, dizia São Gregório Magno (cit. por São Pio X na Enc. Iucunda sane).
Transpor, porém, para o campo dos princípios semelhante prudência é o que pode
haver de mais desastroso. ―A verdade‖, afirmava o mesmo São Pio X, ―é una e indivisível,
eternamente a mesma, e não se submete aos caprichos dos tempos‖ (Enc. Iucunda sane, 1904).
Por isso ela é intransigente, e, como tal, perece com divisões e amortecimentos. De
onde não lhe ser aplicável a condescendência com que a virtude moral suporta algum
ajustamento às diversas situações, paciência prudencial que sintetiza o aforismo já
consignado por Cícero: ―summun jus summa injuria‖ (De Of. I, 10). Pois a ordem moral
das ações, sem sacrifício das normas reguladoras do comportamento humano, leva em
conta as deficiências humanas, à imitação da paciência divina, que dissimula os
pecados dos homens em vista de sua penitência e conversão (cf. Sb., XI, 23).
A verdade não está neste campo do agir. Ela é da ordem do ser, do que é ou não é.
Compreende-se um ato humano inacabado; não se concebe uma verdade inacabada,
porquanto a ideia verdadeira corresponde a algum ser ao qual se reporta. Se há
adequação entre o conceito e a realidade, há verdade: do contrário, o conceito não é
inacabado. E simplesmente falso.
Uma condescendência com a fragilidade humana que transponha o princípio
prudencial do agir para a ordem do ser e da verdade, através de meios-termos que não
são certos, mas que não aparecem abertamente errados, uma espécie de meia verdade,
mina e destrói a Fé na mente dos fiéis. Autores de semelhante catástrofe são aqueles
que, ao surgirem sistemas falsos, procuram uma acomodação, um compromisso com
tais ideologias, através de movimentos chamados apostólicos, mas suficientemente

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vagos e indecisos para não ferirem a suscetibilidade dos que estão de fora do grêmio
da Igreja. Agem como quintas-colunas no seio dos fiéis, solapando-lhes o edifício da
Fé.

Concordância das religiões

Semelhante maneira de proceder teria sua justificação doutrinária num princípio


que vemos proclamado no século XVI pelo célebre Erasmo de Roterdã: ―Todo homem
possui a teologia verdadeira.‖ No bojo dessa sentença está a afirmação de que, em última
análise, há uma concordância religiosa profunda entre todos os homens, apesar de suas
divergências doutrinárias. Pois somente assim se compreenderia que ―todo homem
possuía teologia verdadeira‖. Como consequência, não haveria motivo para conflito entre
religiões opostas, porquanto só na aparência seriam opostas. Não passariam de
manifestações diversas da mesma teologia verdadeira, que todo homem possui.
Sondando mais a fundo o pensamento religioso, à primeira vista divergente dos
demais, encontraríamos uma identidade única na base das diferenças. Seguir-se-ia que
a melhor maneira de agir com novas teorias religiosas, com crenças não católicas, seria
evitar colisões, polêmicas, acirramento de posições, e manter-se o fiel num campo
equidistante entre os vários credos, uma vez que todo o homem acha sua unidade na
teologia verdadeira de que é possuidor. Por debaixo das várias profissões religiosas há
uma concordância, um fundo comum. Em outras palavras, não há propriamente erros.
Há distorções.
Essa atitude mental, generalizada pela difusão do livre exame dos
pseudorreformadores protestantes, preparou os espíritos para o compromisso com a
apostasia, quando apareceu o direito novo, com o surto do liberalismo suscitado pelos
filósofos do século XVIII.

Estado vitalmente cristão

Conheceis, de fato, amados filhos, a posição que, nesta matéria, assumiram os


homens do jornal francês do século passado L’Avenir, Lamennais, Lacordaire,
Montalembert. Posição que, apesar das censuras oficiais de que foi objeto por parte da
Santa Igreja, reaparece no movimento social Le Sillon, já citado, e na famosa concepção
de certos filósofos católicos, preconizando uma sociedade vitalmente cristã que
floresceria num Estado oficial e legitimamente leigo.
De acordo com o pensamento de tais autores, a sociedade teria evoluído de um
Estado sacral da Idade Média para o Estado leigo moderno. Evolução histórica,
natural, que teria mesmo marcado um aprofundamento doutrinário. Pois, nesta última
fase, manter-se-ia melhor a autonomia das duas potestades, a espiritual e a temporal, a
religiosa e a civil, a Igreja e o Estado. Melhor compreendendo os limites de sua ação e
poder, permaneceria o Estado inteiramente alheio ao problema religioso, contentando-
se em dar à Igreja ― como aos cidadãos da Qual são membros e às seitas religiosas
existentes, ou futuramente introduzidas entre o povo — plena liberdade civil para que

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realize sua obra, mediante ação, de caráter mais bem privado, nas almas dos
indivíduos e no seio das famílias. O Estado não seria cristão; mas também não seria
opressor. Dentro deste quadro jurídico, a Igreja, com sua ação apostólica, criaria uma
sociedade vitalmente cristã num Estado autônomo e sem pressões religiosas, campo no
qual é, de modo absoluto, incompetente. Ainda de acordo com esta opinião, tal Estado
estaria ajustado aos tempos atuais, em que há, entre os povos, e mesmo dentro da
mesma nação, um pluralismo de crenças. Por outro lado, esse Estado atenderia melhor
à dignidade do homem e à Revelação divina, pois uma e outra pediriam livre
determinação da criatura na eleição de seu credo religioso.
Seria esta a maneira de superar, no plano dos princípios, e portanto radicalmente,
as incompreensões entre a Igreja e o Estado, registradas ao longo da História.

Desconhecimento do Direito Natural e da Doutrina católica

Quão distante esteja da razão natural e da Revelação cristã tal maneira de entender
a posição religiosa do Estado, quão nociva seja ela à missão da Igreja de restaurar todas
as coisas em Jesus Cristo, evidencia, além das reflexões de bom senso, toda a Tradição
do Magistério Eclesiástico. Este, longe de aceitar no problema do Estado em face da
Religião uma deflexão da doutrina patrística, à luz da evolução histórica, empenhou-se
em afirmar o ensinamento de sempre, sublinhando os males incalculáveis e inevitáveis
decorrentes da recusa formal ao reconhecimento público dos direitos de Deus sobre o
Estado e a sociedade.

IV – A VERDADEIRA DOUTRINA DA IGREJA SOBRE A MATÉRIA

Com efeito, a Igreja jamais aceitou que, por princípio, o Estado deva ser laico, ou
seja, neutro em matéria religiosa. O que é fácil de perceber-se, percorrendo a História
da Igreja desde os fins da Idade Média.
Com efeito, o que afirmamos está contido na definição de Bonifácio VIII (Papa de
1294 a 1303) segundo a qual para a salvação é necessário que toda criatura se submeta
ao Romano Pontífice (Bula Unam Sanctam, de 18 de novembro de 1302). Contém-se,
mais ainda, na ininterrupta condenação do indiferentismo religioso, apontado como a
causa da apostasia das nações, pois o indiferentismo religioso tem um nexo necessário
com a proposição de que, por princípio, o Estado deve ser leigo. Ora, essa decorrência
lógica do ateísmo oficial consagrado no Estado leigo, que é o indiferentismo religioso,
denunciam-na os Sumos Pontífices, especialmente desde a Revolução Francesa, como o
maior obstáculo à plena realização do Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo.

De Pio VI a Gregório XVI

Pio VI, em sua primeira Encíclica, Inscrutabile Divinae Sapientiae Consilium, no Natal
de 1775, Leão XII na Encíclica “Ubi primum‖, de 5 de maio de 1824, Pio VIII (Papa de
1829 a 1830) na Traditi, única Encíclica escrita no início de seu efêmero pontificado de

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20 meses — todos como Vigários de Cristo na terra, zelosos pela glória de Deus e
salvação das almas, angustiados ―, unanimemente apontam o indiferentismo religioso
como a causa dos males que afligem a sociedade e impedem a ação da Igreja.
Pio VII, que governou a Igreja no período dificílimo da hegemonia napoleônica
(1800-1823), não deixou de censurar a igualdade de cultos visada por Bonaparte: ―Sob a
igual proteção de todos os cultos‖, advertia o Papa, ―esconde-se e disfarça-se a mais perigosa
perseguição, a mais astuciosa que seja possível imaginar contra a Igreja de Jesus Cristo, e,
infelizmente, a mais bem combinada para lançar n’Ela a confusão e mesmo para destruí-lA, se
fosse possível às forças e astúcias do inferno prevalecer contra Ela.” ― Com a restauração dos
Bourbons, Pio VII lamentou posição análoga tomada pela Carta Constitucional de Luís
XVIII, favorável também ela à liberdade de todos os cultos.
Gregório XVI já teve que reprimir esse ―delírio‖ ― como ele denomina o
indiferentismo religioso e a liberdade de todos os cultos no seio da Igreja ―, pois o
mesmo era professado, como vimos, por eclesiásticos e leigos de influência, e com
tamanha cegueira, que eles não duvidavam em apresentá-lo como medida de grande
proveito para a causa de Religião (Encíclica Mirari Vos, de 15/8/1832).

A Encíclica Quanta cura e o Syllabus

Apesar de tão autorizados esclarecimentos e condenações, amados filhos,


avolumou-se a avalanche das ideias novas, crescendo as ameaças ―à causa da Igreja, à
salvação das almas e ao bem da própria sociedade humana‖. Retoma, por isso, Pio IX a
tradição magisterial de seus predecessores, para, repetidamente, condenar de novo tais
desvarios da mente humana em várias Encíclicas, alocuções consistoriais e outras
Cartas Apostólicas. No entanto, a importância da matéria para a missão da Igreja era
tão grande, que o Papa julgou de seu munus de Vigário de Cristo emitir um documento
especial e mais solene do Magistério pontifício, no qual tornasse patente a oposição
visceral entre as novas concepções naturalistas do Estado, da cultura e da civilização e
a doutrina católica.
Mandou, assim, compor um elenco reunindo todos esses erros em proposições que
os exprimissem de modo insofismável, e, ao mesmo tempo, mostrassem o nexo lógico
que há entre eles: o ato do Magistério papal conhecido com o nome de Syllabus e que
Pio IX encaminhou aos Bispos do mundo inteiro com a Encíclica Quanta Cura, de
8/12/1864.
Proscreve aí o Pontífice a tese do laicismo do Estado, porque impede a ação que,
por mandato divino, compete à Igreja realizar: ―Estas perversas opiniões‖, escreve Pio IX,
―são especialmente para detestar, porque visam suprimir a virtude salutar que a Igreja Católica,
por instituição e mandato de seu Divino Autor, deve livremente, até a consumação dos séculos,
infundir não somente nos indivíduos, como também nas nações, nos povos e nos governantes.
Como corolário, também colimam tais opiniões afastar a harmonia e concórdia existente entre o
Sacerdócio e o Império, que foi sempre fecunda em beneficio tanto da vida espiritual como da
civil.‖ Pio IX chama, em consequência, de ousada impiedade o empenho daqueles que,
de acordo com o princípio ímpio e absurdo do naturalismo, ensinam que ―a forma mais

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perfeita do Estado e o progresso civil exigem imperiosamente que a sociedade humana seja
constituída e governada sem consideração alguma à Religião, e como se esta não existira, ou ao
menos, sem fazer diferença alguma entre a verdadeira Religião e as religiões falsas. E‖,
continua o Papa, ―contradizendo a doutrina da Sagrada Escritura, da Igreja e dos Santos
Padres, não temem afirmar que o melhor governo é aquele no qual não se reconhece ao poder
político a obrigação de reprimir com sanções penais os violadores da Religião católica, salvo
quando a tranquilidade pública assim o exija‖ (Encíclica Quanta cura, de 8/12/1864).

A Tradição em Leão XIII

Não obstante, amados filhos, toda a vigilância de Pio IX, as ideias novas
continuaram a difundir-se e a pôr em risco a existência da Igreja como sociedade de
direito público que realiza na terra o Reino de Deus com vista à salvação eterna dos
homens. Foi necessário, pois, ao sucessor de Pio IX reafirmar o ensinamento católico
contra o naturalismo e o laicismo do Estado, que solapavam o edifício do Reinado
social de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Feriu Leão XIII a raiz do mal ao denunciar o princípio básico sobre o qual se assenta
o Estado leigo, indiferente em matéria espiritual, inteiramente autônomo em face de
qualquer confissão religiosa, a saber, o princípio de que o poder vem do povo.
―Todo poder vem de Deus‖, ensina o Espírito Santo pela boca do Apóstolo (Rom., XIII,
1). ―Todo poder vem do povo”, dogmatiza a Revolução, o direito novo. Opõe este Deus e o
homem, como duas pessoas totalmente alheias, autônomas uma em relação à outra. No
homem, na vontade livre, soberana ― afirma o direito novo ― deita raízes o Estado,
como em sua fonte primeira, de maneira que a sociedade política não aceita nada
superior que não seja o povo, cuja vontade se conhece através do sufrágio universal.
Aponta aí Leão XIII a causa da apostasia social. Pois semelhante princípio
justificaria um Estado agnóstico e mesmo ateu, muito condescendente, se for neutro em
questões de religião.
Nesse princípio, aliás, se consuma a rebeldia da criatura, pois é ele a expressão
social do grito satânico ―non serviam‖ ― ―não servirei‖; como é, outrossim, a expressão
do ideal ímpio sugerido pelo anjo das trevas a nossos primeiros pais: ―sereis como
deuses, decidindo por vós mesmos o que é bom e o que é mau” (Gên., III, 5).
Eis que, para cortar o mal pela raiz, na Encíclica Diuturnum illud, de 29 de junho de
1881, trata Leão XIII amplamente da origem da autoridade política, para expor com
exatidão a doutrina da Fé, corroborada pela razão e frontalmente contrária ao
ensinamento do direito novo, e cuja aceitação é indispensável à Igreja para a plenitude
de sua missão na terra. ― Recorda assim aquele Pontífice, apoiando-se em São Paulo
(Rom., XIII, 1) e São Pedro (I, 11), que todo o poder vem de Deus. Portanto, quem
resiste ao poder resiste a uma ordenação divina, o que poderá acarretar a própria
condenação; pois os que governam, o fazem como ministros de Deus.
Este princípio primário da ordenação civil da sociedade envolve as duas
consequências indispensáveis para que no Estado se constitua publicamente o Reino de
Deus: não podem as autoridades civis realizar nada contra a lei do Senhor. Pois, se

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governam como mandatários de Deus, têm seu poder circunscrito pelos decretos
d‘Aquele por cuja vontade exercem o poder. Em segundo lugar, entre as mais
importantes obrigações do Poder Público está, em virtude daquele princípio
fundamental, o de prestar culto oficial a Deus, seu Senhor Soberano. E não um culto
qualquer, mas o culto desejado por Deus. Ou seja, o culto verdadeiro, aquele que Lhe é
dado pela Igreja Católica. ―A ninguém é licito‖, lembra o Papa, ―descurar seus deveres para
com Deus [...], assim também as sociedades não podem sem crime comportar-se como se Deus
absolutamente não existisse, ou prescindir da Religião, como estranha e inútil, ou admitir uma
indiferentemente, segundo seu beneplácito. Honrando a Deus, devem elas seguir estritamente as
regras e o modo segundo os quais o próprio Deus declarou querer ser honrado‖ (Encíclica
Immortale Dei).
A doutrina, pois, sobre a origem divina do Poder Público desdobra-se logicamente
nas duas concernentes à atitude religiosa do Estado: na da harmonia entre a sociedade
religiosa e a civil, a Igreja e o Estado; e na da subordinação deste Àquela nos assuntos
religiosos, espirituais. Estamos, como vedes, amados filhos, na senda da mesma
doutrina dos primeiros séculos da Igreja, aplicando o princípio de São Vicente de
Lerins, canonizado pelo primeiro Concilio do Vaticano: ―Na Igreja Católica deve-se ter o
máximo empenho em professar aquilo que em todo o lugar, sempre e por todos foi crido‖
(Commonitorium, 2, 5, in Kirch, Enchiridion Fontium Historiae Ecclesiasticae Antiquae, 742).
Assunto de tão grande importância, numa época em que se acentuava a apostasia
das nações, pedia atenção especial por parte da Santa Sé. Leão XIII correspondeu à
expectativa dos fiéis através de várias Encíclicas, especialmente a Immortale Dei, de 19
de novembro de 1885, sobre a constituição cristã dos Estados. Ainda hoje, amados
filhos, a leitura desses documentos do Magistério papal é de grande oportunidade.

A tolerância do mal

No ensinamento político de Leão XIII, a doutrina tradicional sobre os dois poderes,


o espiritual e o temporal, a Igreja e o Estado, é apresentada sob a forma de uma
exposição sistemática e clara, que dissipa qualquer dúvida a respeito. É natural que a
ele se reportem os Papas posteriores. Assim São Pio X, na Encíclica Vehementer, de 11
de fevereiro de 1906, sobre a ruptura das relações diplomáticas por parte do governo
francês com a Santa Sé, e também na Carta Apostólica Notre charge apostolique, de 25 de
agosto de 1910, sobre os erros do já citado movimento Le Sillon; Bento XV, em sua
primeira Encíclica, Ad Beatissimi, de 1.º de novembro de 1914; Pio XI, em vários
documentos, mas especialmente naquele que acima comentamos, sobre a Realeza de
Jesus Cristo, onde conclama os fiéis a se unirem para debelar a ―peste de nossos tempos, o
laicismo‖; Pio XII, em sua primeira Encíclica, Summi Pontificam, de 20 de outubro de
1939, retoma o argumento da Encíclica Quas primas, de Pio XI, de 11/12/1925, para
inculcar novamente, de modo insistente, a Realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Pio XII, aliás, no seu longo pontificado, em várias oportunidades abordou este
assunto. Assim, na Alocução aos participantes do V Congresso de Juristas Católicos Italianos,
de 6/12/1953, fixa o mesmo princípio já estabelecido por Leão XIII: ―O que não

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corresponde à verdade e à norma moral não tem objetivamente direito nem à existência, nem à
propaganda, nem à ação.‖ O homem, de fato, foi criado para a verdade e o bem. E, no
esforço para chegar ao conhecimento da verdade e à prática do bem, desfruta ele, em
virtude de sua natureza social, do direito de ser auxiliado pelo ambiente criado na
sociedade pelo Estado. Ora, um Estado que, por princípio, permitisse ou favorecesse a
profissão e a prática pública de religiões falsas ou de princípios contrários à norma de
moralidade, de fato, mais dificultaria do que auxiliaria a plenitude da vida racional de
seus membros. Aliás, esta é a razão invocada por Pio XII para justificar sua intolerância
doutrinária: ―É contrário à natureza [...] considerar coisas indiferentes o erro e o mal. Nem
Deus poderia dar uma autorização positiva de ensinar ou fazer o que fosse contrário à verdade
religiosa ou ao bem moral, porque estaria em contradição com sua absoluta veracidade e
santidade‖ (Alocução supracitada, de 6/12/1953). De si, portanto, o Estado tem grave
obrigação de favorecer a Religião verdadeira e de coibir os cultos falsos. Porém a
aplicação deste princípio deve ser matizada. Em outras palavras, está nos desígnios da
Providência que o Poder Público pondere bem a situação de fato do povo ou federação
de povos em matéria religiosa. E, segundo peçam as circunstâncias, tolere ou não, ao
lado da Religião verdadeira, cultos falsos ou supersticiosos. Jamais poderá aprovar,
positivamente, a existência e a propaganda de tais cultos. Não obstante, podem as
condições reais em que se acha a sociedade ser tais, que um ato legislativo permitindo
a existência e mesmo a propaganda de determinadas crenças falsas constitua uma ação
de duplo efeito: o mau que é a permissão pública da superstição; e o bom — o
apaziguamento de conflitos que tornariam a vida comum impossível — ou outros bens
semelhantes. Pode, pois, o Estado, nessas circunstâncias concretas, tolerar a existência e
a prática de religiões falsas, desde que o bem comum o exija, o qual é a norma
reguladora dos direitos e deveres do Estado.

Situação anormal

Como Leão XIII, também Pio XII deixa bem claro que semelhante situação não é a
ideal no tocante às relações do Estado com a Religião e o culto divino. Jamais, de modo
algum, aceitam a tese do Estado leigo, baseada na finalidade própria da sociedade civil,
finalidade que seria meramente temporal. São levados, no entanto, a justificar a
tolerância do mal que é a neutralidade religiosa do Estado, desde que, e somente
quando, um imperativo de exigência social a tome imprescindível. Cauciona a
tolerância, na ordem prática, no modo de agir do próprio Deus Nosso Senhor, o Qual
deseja que o homem chegue à Fé através de uma determinação livre de sua vontade.
Maneira de agir que ilustra-se com a parábola evangélica da cizânia, semeada pelo
homem inimigo no campo onde o pai de família plantara trigo. Embora a existência de
cizânia seja um mal, não obstante, permite o Senhor que ela cresça em meio do trigo,
pois o bem que seria sua erradicação poderia redundar em maior mal ou impedir
algum bem excelente. Na parábola, o perigo de se perder também o trigo.
Santo Tomás de Aquino elucida como possa a autoridade civil tolerar alguns males
na sociedade. ―O regime humano‖, ensina o Doutor Angélico, ―deriva do governo divino e

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deve imitá-lo. Acontece que Deus, embora seja onipotente e sumamente bom, permite, não
obstante, que se dêem certos males no universo (que Ele poderia impedir), para que se não
venham a perder maiores bens com a ausência daqueles males, ou então não venham a suceder
males maiores ainda. Assim, no governo das coisas humanas, licitamente os governantes podem
tolerar algum mal para que não se impeçam certos bens, ou então para que não ocorram coisas
piores‖ (Suma Teológica II-II, q. 10, a. 11).
Todavia, é preciso não esquecer que a tolerância diz respeito somente às coisas más
(Santo Agostinho, En. in Sal. I, 20). Por isso, jamais é um bem em si. Não pode, por
conseguinte, arrogar-se direitos.

A Fé deve ser livre

Iria, de fato, contra toda a doutrina tradicional da Igreja quem, com base na
liberdade que deve caracterizar o ato de Fé, deduzisse o direito do homem à liberdade
de professar publicamente a religião que melhor lhe aprouvesse, ou então uma religião
falsa, porque está convencido de que é verdadeira. Tal coisa jamais ensinou a Tradição
apostólica. E não se pode, amados filhos, invocar a parábola da cizânia e do trigo (Mt.,
XIII, 24-30) em abono de algum pseudodireito do homem a professar religiões falsas,
pois não há, no ensino tradicional, uma interpretação dessa parábola em tal sentido.
Santo Agostinho, que durante algum tempo mostrou-se favorável a compromissos com
os hereges, não demorou em admitir que é justo sejam eles reprimidos. São João
Crisóstomo julga correta toda repressão da atividade pública dos hereges, excetuando
apenas a pena capital. Também Santo Tomás de Aquino acha natural impedir a
atividade religiosa dos hereges.
E, realmente, quando se diz que a Fé deve ser admitida mediante um ato livre da
vontade, em absoluto não se está dando foros de cidadania ao erro. Uma vez que na
adesão ao erro ou ao mal não há nenhuma perfeição, quer da inteligência, quer da
vontade. Há uma deficiência. De maneira que o homem, como ser racional, tem o
direito de aderir livremente à Verdade revelada e de praticar livremente a virtude. Não
lhe cabe o direito de deformar sua inteligência pela aceitação do erro, ou sua vontade
pela prática do vício. O próprio Nosso Senhor afirma que aquele que peca não é livre, e
sim escravo do pecado. E Santo Tomás de Aquino explica: ―A condição de escravo se dá
quando uma pessoa age não segundo sua natureza, mas sob a pressão de outro. Ora, o homem,
de sua natureza, é racional. Quando, pois, procede de acordo com a razão, age segundo sua
natureza, levado por uma moção que lhe é própria. E nisto consiste a liberdade. Quando, porém,
peca, procede de maneira contrária à razão, e é como se fosse movido por outro. Eis por que quem
peca é escravo do pecado‖ (Comentário sobre o Ev. de S. João, L. IV, c. VIII; ver também
Encíclica de Leão XIII Libertas praestantissimum, de 20/6/1888).
Caso não tivesse o Estado a obrigação de patrocinar a verdadeira Religião e de
modo exclusivo, falharia ele substancialmente quanto à sua finalidade. Esta, como é
intuitivo, consiste em ministrar aos cidadãos os meios para que possam eles chegar à
conveniente perfeição da vida na terra, subordinada, porém, ao seu fim último, que
somente se alcança com a profissão e prática da verdadeira Religião. Por isso, ensina

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Pio XII que nem Deus pode dar ao Estado o direito de, segundo seu alvedrio, ser
indiferente em matéria religiosa. Em resumo, a tolerância é sempre um mal, que pode
ser admitido em circunstâncias concretas, sempre que a consecução de um bem
necessário ou superior o exija, ainda que seja apenas o afastamento de uma condição
que torne impossível ou nociva a convivência em sociedade.
Com muito zelo, chama Gregório XVI de ―sentença absurda e errônea‖, melhor, de
―delírio‖ a liberdade de consciência que permite a cada um praticar publicamente sua
religião (Encíclica Mirari Vos, de 15/8/1832). Diz bem Santo Agostinho que ―não há
morte pior para a alma do que a liberdade do erro‖ (Ep. 166). Não é porque o orgulho e a
sensualidade conseguiram impregnar a mentalidade contemporânea de um espírito de
rebeldia, que tenta sacudir qualquer jugo imposto pela Fé e pela Moral, que vamos
negar a verdade ensinada pela reta razão e pelo Magistério eclesiástico em sucessão
ininterrupta.

Liberdade e responsabilidade no ato de Fé

Encerremos este capítulo, amados filhos, com uma derradeira consideração que
sublinha a sabedoria com que age a Misericórdia de Deus e, consequentemente, sua
Igreja.
Quer Deus Nosso Senhor que o ato de Fé, pelo qual ingressa o homem no Reino de
Cristo, seja livre e meritório. Dá, para tanto, a todos os homens a graça necessária sem a
qual seria impossível o ato sobrenatural da Fé, digno da vida eterna. À vista de sua
benevolência, de sua graça, que não nega a ninguém, Nosso Senhor torna o ato de Fé
obrigatório para a salvação.
Na sua infinita misericórdia, entretanto, suporta nesta terra o pecador, para que não
morra eternamente, mas se converta e viva (Ez., XXXIII, 11).
Constitui corolário dessas verdades da Religião Católica não se poder impor ao
homem, no foro interno da consciência, o ato de Fé. Pode a infidelidade ser pecado e
pecado grave. Não é lícito, contudo, forçar a vontade do homem a não cometê-lo. É o
indivíduo que, auxiliado pela graça, livremente afastará, horrorizado, semelhante
impiedade de não atender à Revelação Divina. Como consequência, nenhum poder
humano pode forçar a pessoa a aderir à Fé verdadeira. O uso da violência para obrigar
à conversão foi sempre condenado pela Igreja.
Daí encarar o Magistério a possibilidade de alguém, temporária ou
excepcionalmente, estar na ignorância invencível da verdadeira Religião. Tal indivíduo
merece respeito e acatamento, uma vez que sua incredulidade é apenas material. Não
deformou ele sua vontade vinculando-a responsavelmente ao mal. Semelhante engano,
porém, não lhe dá direito a professar seu erro, pois, objetivamente, está no erro; e o
erro ―não tem direito nem à existência, nem à propaganda, nem à ação‖ (Pio XII, Alocução aos
participantes do V Congresso de Juristas Católicos Italianos, de 6/12/1953).
Recordamos convosco, amados filhos, a doutrina católica sobre a Realeza de Jesus
Cristo aqui na terra, porque o laicismo dos tempos modernos facilmente a oblitera na
mente dos fiéis, e, sem uma convicção sólida daquilo que devemos crer, nosso

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apostolado perde o ardor indispensável para que seja eficaz. A debilidade do amor à
verdade por parte dos bons é, em grande parte, responsável pelo progresso da
apostasia na sociedade de hoje.
O princípio que enunciamos, amados filhos, é válido, embora nossa ação apostólica
se restrinja ao meio em que vivemos e ao campo que nos é facultado atingir, porquanto
é sempre a mesma doutrina que fecunda todo o apostolado, desde o plano mais
modesto até o mais amplo e profundo.

V – RESUMO E CONSIDERAÇÕES PASTORAIS

Por isso, antes de ponderar as consequências pastorais do ensinamento exposto,


amados filhos, vamos resumi-lo para que se fixe melhor em vossas mentes.
1. Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e Homem verdadeiro, foi, como Mediador entre
o Céu e a terra e Redentor do Gênero Humano, constituído pelo Padre Eterno Rei
Universal, no sentido pleno da palavra. É mediante a implantação de seu Reino de
Verdade, Justiça e Paz que se realiza sua missão, orientada para a glória de Deus e a
salvação das almas. Embora, de direito, seja Jesus também Rei temporal, de fato, Ele se
reservou apenas a soberania sobre as coisas que relacionam o Homem com Deus e
dizem respeito à salvação eterna.
2. Como a implantação desse Reino na terra é a razão de ser da Igreja de Cristo, a
Igreja Católica, Apostólica, Romana, a Realeza de Jesus Cristo, de si, pede que a
sociedade política se constitua de acordo com a única Igreja de Cristo.
3. Todavia, a realeza de Jesus Cristo não deve ser imposta pela força, pela violência.
Pois é mediante um ato livre da vontade que o homem adere à Fé e ingressa no Reino
de Cristo. Esta condição ― a saber, que é pelo exercício de um ato livre que o homem
entra no Reino de Cristo ― não cria para o erro ou o vício direito algum à pacífica
existência no Estado; menos ainda à propaganda e à ação. Pois, feito para a Verdade e o
Bem, nada há no homem que lhe dê direito de impunemente aderir ao erro ou
consentir no vício.
4. Se não cria direito, justifica, no entanto, a tolerância, por parte do Estado, em
relação às confissões religiosas falsas, desde que circunstâncias concretas a peçam, em
vista de um grande bem a obter, ou de um mal que se deve evitar.
A tolerância de religiões falsas, bem como de certos procedimentos contrários à
norma de moralidade, é, pois, sempre um mal menor, e por isso não pode ser
considerada uma situação definitiva. Erraria quem pretendesse ver alçada à categoria
de princípio a condição de mistura de bem e mal figurada na parábola da cizânia e do
trigo. Pois a parábola prediz um fato, não estabelece um direito. Prediz o fato da
situação dos bons no mundo que, segundo os desígnios da Providência, terão sempre
em torno pessoas más que, na explanação de Santo Agostinho, os exercitem na prática
da virtude e os firmem na Fé. Em absoluto, não pretende a parábola indicar o direito
do erro ou do mal à existência, como se, por princípio, a situação normal do Estado
comportasse ou exigisse a liberdade de existência e propaganda a todos os credos
religiosos.

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5. Não se pode, aliás, eximir o Estado de seus deveres para com a verdadeira
Religião, a pretexto de que deve cuidar apenas das coisas da terra; pois, ao tratar de seu
fim específico, não deve nem pode o Estado esquecer a subordinação dos bens terrenos
ao destino último, ultraterreno dos seus cidadãos. Só o fará convenientemente se ele
mesmo se subordinar à verdadeira Religião, que é a Católica, Apostólica, Romana,
dotada de características claramente manifestas. De maneira que, de modo geral,
ninguém pode escusar-se de não conhecê-lA ou de não viver segundo seus
mandamentos.

Nossos deveres ante a Realeza de Jesus Cristo

A implantação do Reinado de Jesus Cristo na sociedade é meta apostólica que


incumbe a todos os fiéis. Deve, porém, ser propulsada sempre de maneira ordeira e
pacífica, à imitação de Jesus Cristo e dos Apóstolos, que obedeceram e mandaram
obedecer aos poderes públicos constituídos, excetuando-se apenas os casos em que o
poder impunha leis ou ordenava algo contra a Vontade de Deus. Dos primeiros
cristãos afirma Leão XIII que ―eram exemplares na lealdade aos imperadores e obedientes às
leis enquanto era lícito. Entretanto, espalhavam um resplendor magnífico de santidade,
procurando outrossim ser úteis aos seus irmãos e atrair os demais à Sabedoria de Cristo:
dispostos, porém, sempre a retirar-se e a morrer valentemente se não podiam reter as honras,
dignidades e cargos públicos sem faltar à consciência‖ (Immortale Dei).

Nossa conversão

A obrigação que diz respeito a cada um de nós, caríssimos filhos, no sentido da


implantação do Reinado de Jesus Cristo, começa pela própria conversão. Antes de mais
nada, é preciso que Jesus Cristo reine em nosso ser, pela conformidade da própria
vontade, dos atos e do proceder em relação à Vontade Santíssima de Deus, expressa em
Seus Mandamentos e na orientação de Sua Santa Igreja, e, sobretudo, pela assimilação
de seu espírito. Semelhante vassalagem nos obriga a fugir das solicitações do mundo.
Foi assim que os primeiros cristãos reformaram completamente a sociedade pagã,
convertendo-a e construindo, sobre suas ruínas, a cidade de Deus, a civilização cristã.
Ouçamos Leão XIII: ―Desse modo, as instituições cristãs penetraram rapidamente não
somente nas casas particulares, senão também nas casernas, nos tribunais e na mesma corte
imperial [...]. Até o ponto que, quando se deu liberdade de professar publicamente o Evangelho, a
Fé cristã apareceu não dando vagidos como uma criança de berço, mas sim adulta e vigorosa, na
maioria das cidades‖ (Immortale Dei).

Nas famílias

A ação pessoal desdobra-se na família. Quando há, no seio da família, a austeridade


da vida cristã e o ambiente do lar se impregna de Fé e convida à prática da virtude,

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sentem as pessoas maior facilidade de vencer os aliciamentos para a impiedade e o
vício, suscitados pelas paixões, pelo demônio, pelo espírito do mundo.
Importa aqui, amados filhos, sublinhar a responsabilidade enorme dos pais na
formação católica dos filhos; pois de sua vigilância e positiva ação educadora depende
o espírito que irá animar mais tarde todo o procedimento de sua prole. Sem uma ação
decisiva dos pais, é impossível implantar-se na sociedade o Reinado de Jesus Cristo.
Acenemos, amados filhos, neste ponto, à nefasta influência que desempenha no
ambiente do lar a televisão, as revistas e os livros maus ou simplesmente levianos.
Compreendeis, amados filhos, que boas famílias relacionam-se em grupos sociais
maiores, dos quais é formada a sociedade civil. E eis como, por uma ação firme embora
paciente, podemos nós contribuir para a renovação do Estado, de modo a cristianizá-lo.
Segundo predisse o Divino Salvador, na parábola do fermento (Mt., XIII, 33), é através
de uma irradiação contínua do bom odor de Cristo Jesus que o fervor dos fiéis
reconquistará o mundo para a vassalagem do Rei da glória.

Na vida pública

Eis a razão, pois, amados filhos, por que tece o demônio insídias de todo gênero à
integridade da família cristã, quer na sua constituição, em seus deveres ou no teor
normal de sua vida.
Vedes, portanto, que, embora de importância capital e imprescindível, nosso
empenho para que Jesus Cristo seja Senhor Soberano da sociedade não pode limitar-se
às ações particulares, pessoais ou em família. Temos que agir também na vida pública,
tanto de modo positivo como para impedir que as famílias sejam asfixiadas pelas
desordens de toda espécie, toleradas segundo a mal compreendida liberdade moderna.
Como adverte Leão XIII ao sublinhar esta obrigação dos fiéis, a ação na vida
pública há de se fazer de modo ordeiro e pacífico. Sem provocar lutas de classes, sem
excitar os espíritos contra a ordem estabelecida. Mas agindo, além do bom exemplo,
arma absolutamente indispensável, mediante todos os meios legais ― escritos,
manifestos, representações coletivas, etc. —, no sentido de impedir a aprovação de leis
ou costumes contrários à Fé e à Moral cristãs, como o divórcio, o aborto provocado sob
qualquer pretexto, a permissão da venda de anticoncepcionais, seu uso em hospitais e
maternidades, a educação sexual nas escolas, a licenciosidade pública, a difusão da
pornografia, a liberação de filmes injuriosos a Jesus Cristo, ofensivos ao Dogma,
desagregadores da família, etc.
Idêntica atividade se faça no sentido positivo, com o fito de obter uma ordem
pública inspirada no espírito cristão, que prepara as almas dos cidadãos a aderirem à
verdadeira Fé em Jesus Cristo, como a proclama sua Igreja, a Católica, Apostólica,
Romana.

A Escola

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Está dentro deste apostolado, amados filhos, e dos direitos dos pais uma ação
concertada contra o monopólio escolar, que, a pretexto de eficiência educacional, vai se
delineando em nossa Pátria.
Primeiramente, porque, na situação real do povo brasileiro, o ensino oficial será
leigo. Ora, numa escola de ensino oficialmente leigo, não é possível dar aos alunos uma
formação católica. Esta pede, com efeito, que todas as disciplinas sejam concebidas
num todo harmônico, de maneira que se integrem, animadas do mesmo espírito, o
espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Sabedoria de Deus, a cuja glória deve orientar-
se toda ciência. Dizia com razão o saudoso Carlos de Laet que o ensino leigo é por
essência faccioso. E dava o exemplo da caligrafia, matéria na aparência indiferente, mas
em cujo ensino o professor perdia necessariamente sua neutralidade ao ter que
explicar, por exemplo, porque Deus se escreve com letra maiúscula.
E semelhante mal não é sanado com o ensino religioso nos estabelecimentos
oficiais. Antes de mais nada, porque a condição mais de favor do ensino religioso em
tais estabelecimentos, ou, em qualquer caso, sua presença numa concepção que não o
coloca no lugar que lhe cabe, já deforma o desabrochar da mentalidade católica.
Depois, como observa Pio XI, uma instrução religiosa no ambiente de uma escola na
qual, em outras disciplinas, ignora-se ou trabalha-se contra a Religião é absolutamente
insuficiente para dar formação católica a qualquer pessoa.
Aceitando, pois, a introdução do ensino religioso no currículo das matérias
escolares, como afirmação de um princípio ― que a educação não pode prescindir da
Religião ―, devem os pais católicos cuidar diligentemente da formação religiosa de
seus filhos fora da escola, de tal forma que esta corrija os males a que aludimos acima.
E devem, de modo especial, empenhar-se contra o monopólio escolar, para que sejam,
deveras, em toda a plenitude, reconhecidos e respeitados seus direitos à educação dos
filhos, pleiteando o favorecimento e o auxílio à escola particular, cujo controle podem
assumir, ou, ao menos, em cujas atividades têm a possibilidade de influir.
É oportuno lembrar aqui as observações que fazia Pio XI aos pais a propósito das
escolas nazistas: ―Os pais, conscientes e conhecedores de sua missão educadora, têm, antes de
ninguém, um direito essencial à educação dos filhos que Deus lhes deu, segundo o espírito da
verdadeira Fé e coerente com seus princípios e prescrições. As leis e disposições semelhantes que
não levem em consideração a vontade dos pais em matéria escolar, ou a tornem ineficaz com
ameaças ou com violência, estão em contradição com o direito natural e são intima e
essencialmente imorais‖; ―Nenhum poder terreno pode eximir-vos do vinculo de
responsabilidade, imposto por Deus, com relação a vossos filhos‖; ―Diante do Juiz supremo,
ninguém em vosso lugar poderá responder quando Ele vos dirigir esta pergunta: Onde estão os
que eu vos dei? Que cada um de vós possa responder: Não perdi nenhum dos que me destes (Jo.,
XVIII, 9)‖ (Encíclica Mit brennender Sorge, de 4/3/1937).

Afrouxamento da Fé

Quando fazemos convosco, amados filhos, estas considerações, aperta-se-nos o


coração diante da indiferença com que muitos católicos encaram o problema da

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educação das novas gerações. Boa parte deles se limita, quando muito, a buscar um
colégio que tenha o rótulo de católico. Dispensam informações mais exatas e se eximem
de qualquer outra responsabilidade no caso. De onde vem tamanha falta de Fé?
Em boa parte ela se origina do comodismo de quem foi picado pelo liberalismo da
civilização moderna, feita do gozo imoderado, próprio da sociedade de consumo. Mas
também ela procede de uma desconfiança na Graça, mais grave em certo sentido.
Na realidade, muitos de nós pensamos que a graça de Deus se tornou insuficiente
para vencer a malícia em que está hoje imerso o mundo. Ainda que não se enuncie
claramente, de fato julgamos que a apostasia da sociedade e consequentemente dos
Estados é tão profunda, que já não é mais possível falar em Reinado social de Nosso
Senhor. Seria preciso contentar-nos com um modus vivendi, no qual procurássemos
salvar o maior número possível de almas, desistindo, porém, de propugnar, mesmo a
longo prazo, por um Estado católico. Daí a acomodação de muitos que fazem profissão
de fé católica acrescente a paganização da sociedade. O naturalismo levou-os a confiar
em suas forças e a desconfiar da Graça. Cuidam eles que têm de realizar tudo e,
constatando sua incapacidade de vencer o monstro do laicismo, julgam que o único
caminho viável é o das concessões. O raciocínio que caberia a eles fazer deveria ser
outro. Sentindo de sua parte fraqueza e impossibilidade de vencer o espírito moderno,
deveriam tais pessoas retornar à Graça, certos da sua onipotência contra todos os
inimigos de Deus.
Por ocasião do aniversário da morte de São Gregório Magno, destacou São Pio X
que seu admirável predecessor salientou-se precisamente porque desconheceu a
prudência da carne, ―quer na pregação do Evangelho, quer nas obras admiráveis que realizou
para aliviar as misérias humanas”. ―Ele se apegou‖, declara São Pio X, ―ao exemplo dos
Apóstolos, que pregavam a Jesus Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os
gentios. E isso‖, sublinha o Papa, ―num tempo em que o socorro da prudência humana parecia
certamente oportuno; pois os espíritos não estavam de nenhum modo preparados para acolher a
nova doutrina, que repugnava tão vivamente às paixões que por toda parte reinavam, e chocava-
se frontalmente com a brilhante civilização dos gregos e romanos‖ (Encíclica Iucunda sane, de
12 de março de 1904).

Religião nos limites humanos

Amados filhos. Esta desconfiança na eficácia da Graça, e excessiva confiança na


própria capacidade, delineava-se já nos tempos do Divino Mestre. Que outra coisa, de
fato, indica a atitude dos discípulos do Salvador que julgaram duras suas palavras e
impossíveis de ser seguidas? ―Durus est hic sermo et quis potest eum audire?‖ (Jo., VI, 61).
Que pretendiam esses discípulos senão uma mensagem cristã que eles, por si mesmos,
seriam capazes de executar? Que recusavam eles senão uma graça tão poderosa que os
fizesse superar suas próprias misérias?
No fundo, pois, tratava-se de encontrar um compromisso entre a austeridade do
Evangelho pregado por Jesus Cristo e as máximas do mundo; uma religião, enfim, que
―compreendesse‖ as condições humanas e se ―ajustasse‖ às suas fraquezas.

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Entretanto, nem sempre tiveram esses discípulos imitadores em todas as suas
atitudes. Eles, não desejando alinhar-se segundo as normas traçadas pelo Salvador, O
abandonaram. No futuro, nem todos os que iriam participar de seu orgulho e
consequente desconfiança da Graça os imitariam nesse abandono claro. Muitos
ficariam no seio da Igreja, para deformá-lA e criar uma Nova Igreja, mais próxima do
século, mais acessível às paixões, e por isso mesmo inautêntica, falsa. Assim
apareceram as heresias.

Como nascem as heresias

Com efeito, segundo um processo normal da psicologia humana, procura o homem


uma razão que legitime seu modo de proceder. Por falta de confiança na Graça e pelo
entibiamento da Fé, acomoda-se a uma convivência normal e pacífica com o erro e o
mal existentes na sociedade, e busca um princípio que caucione seu procedimento e lhe
dê uma espécie de coerência entre o que faz e o que pensa.
Tal fenômeno, que está na base das heresias do passado, encontra-se também hoje
em vários movimentos surgidos no seio da Igreja, na aparência generosos, porquanto
votados à conversão daqueles que estão do lado de fora do redil de Cristo. Sua
generosidade, porém, é comodista. Para aplainar o caminho, recorrem a uma
apresentação da moral e da doutrina reveladas menos arestosa, se assim nos podemos
exprimir, e, por isso, mais acessível aos espíritos habituados a viver mais ou menos ao
sabor das máximas do mundo. Na realidade, tais movimentos tiram à Revelação a
nitidez de seus Dogmas, e, assim, a falseiam, pois, na palavra de Nosso Senhor, o sim
deve ser sim, e o não deve ser não. O que dilui tais precisões vem do maligno (cf. Mt., V,
37).

Imortificação

Esses movimentos são conhecidos, precisamente, pela ação apostólica mediante o


compromisso que atenua a austeridade tradicional. Com isso, enfraquecem eles os
preceitos da Moral, evitando a insistência sobre uma vida habitualmente séria e
austera, e permitindo-se liberdades que chocam as almas, acostumadas com a imagem
do fiel, dócil seguidor da Escritura e da Tradição. Imagem feita de confiança, sem
dúvida, mas também de santo e reverente temor de Deus.
Mais pela maneira de proceder do que propriamente por ensinamentos claros,
inculcam os referidos movimentos um cristianismo no qual sejam consideradas
inteiramente normais e sem importância relevante a leviandade de costumes e a
liberdade de palavras, comuns no mundo paganizado de hoje. Tivemos oportunidade
de alertar-vos, amados filhos, contra os ―palavrões‖, o nivelamento social, a
vulgaridade de maneiras, a irreverência no trato com Nosso Senhor, verificados nos
ambientes criados pela ideologia ou espírito oriundos da literatura cursilhista. Consta-
nos que outros movimentos semelhantes padecem dos mesmos defeitos. Seriam
semelhantes movimentos a ponte entre o Cristianismo e a vida ao sabor da sensualidade,

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a capitulação diante das tendências más da natureza herdadas do pecado original.
Seria a importação de uma Igreja nova que, ao mesmo tempo, não confia na
onipotência da Graça ― que pôde tombar e levantar um São Paulo ― e avilta a
sublimidade da Religião de Cristo, para colocá-lA ao nível das deficiências humanas.

Autonomia

Uma segunda característica desses movimentos, ligada esta ao orgulho ― a outra


tendência fundamental da natureza decaída ―, é o espírito de independência com
respeito à Tradição. Os corifeus dos mencionados movimentos não ocultam sua
pretensão a um cristianismo renovado; procuram, porém, convencer seus semelhantes
de que com segurança descobriram, enfim, o fundo verdadeiro da mensagem cristã,
que os exageros tradicionais teriam ocultado. Por isso mesmo são contumazes. Pois
eles é que têm o segredo da aplicação da palavra do Evangelho aos tempos presentes.
Idêntica autonomia mantêm em face da Hierarquia. Externamente, muito
respeitosos, procuram ― como era comum ouvir-se anos atrás ― uns assistentes
eclesiásticos que os ―compreendam‖, isto é, que aceitem sua posição.
Como gente superiormente convencida de possuir mentalidade genuinamente
cristã, nada respondem aos argumentos que, com base na Sagrada Escritura e na
Tradição, lhes são opostos. E... continuam aferrados a suas ideias e a seu proselitismo.
Como sentem que somente conservando ligação com a Igreja são ouvidos, apelam para
alguma aprovação eclesiástica, cuja existência nem sempre provam, cujo teor, quando
existente, cuidadosamente não aprofundam. Alguns, como os chamados
pentecostalistas ―católicos‖, vão mais longe: confiam numa influência direta, e mais ou
menos sensível, do ―Espírito‖, sem interferência da Hierarquia.
Todos esses movimentos, sem julgar as intenções de seus fautores, inspiram-se, de
fato, na mentalidade modernista, cujas normas de ação eram: permanecer dentro da
Igreja, para renová-lA em seu íntimo; na Igreja, superar os limites da Hierarquia para
atingir a essência do Cristianismo, existente no subconsciente de todo homem. Como
tática, empregavam o silêncio sobre as publicações e os argumentos que lhes eram
contrários, e tentavam desacreditar seus opositores (Cf. Fogazzaro, Il Santo, e São Pio X,
Encíclica Pascendi dominici gregis, de 8/9/1907).

O antídoto: viver de Fé

Vedes, amados filhos, que, com semelhante mentalidade, é inadmissível cogitar-se


na implantação da Realeza do Divino Crucificado. Esta se volta contra o ambiente
social, causado pelo predomínio das paixões suscitadas pelo pecado original. A
referida mentalidade está toda empenhada em um compromisso que resguarde a Fé,
sem romper com as ―conquistas‖ do homem, em virtude da autonomia que
indiretamente lhe teria proporcionado a ausência da Graça, quando o pecado o reduziu
a suas condições naturais.

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Como defesa contra a assimilação de tão nefasto espírito, irradiado por movimentos
deste tipo, é mister, amados filhos, que aviveis o espírito de Fé.
Fixando, antes de mais nada, nas vossas inteligências o conceito exato da Fé
indispensável para a salvação, aquela sem a qual, diz São Paulo, ―é impossível agradar a
Deus‖ (Heb., XI, 6). Esta Fé é uma virtude sobrenatural, infundida por Deus, cujo objeto
são as verdades reveladas. Assim a conceitua o Concilio do Vaticano: ―Esta Fé que é o
inicio da salvação humana, a Igreja a define como uma virtude sobrenatural, pela qual, sob o
impulso e o auxílio da graça de Deus, cremos que é verdade o que Ele revelou, não em virtude da
evidência intrínseca percebida pela luz da razão natural, mas em virtude da autoridade de Deus,
que revela e que não pode nem enganar-se, nem enganar” (Ses. EI, cap. III).
Assim, a condição fundamental para pertencer ao redil de Cristo é aceitar as
verdades reveladas, no seu conceito exato, como no-las propõe a Santa Igreja. Pensar
de outra maneira, reduzir a Fé a um ato de confiança ou a mero sentimento, é resvalar
para a heresia. De maneira que todo movimento, associação ou núcleo de fiéis que se
pretende católico, especialmente se ele estiver dirigido ao apostolado, à irradiação do
espírito de Jesus Cristo no ambiente social em que se encontra, deve, acima de tudo, ter
em vista dar uma adesão firme e meticulosa à Doutrina Revelada; e, além disso, aceitar
com humildade e gratidão as verdades que a Bondade Divina se dignou manifestar ao
homem, como as expõe a Santa Igreja, única Mestra infalível, a quem confiou Deus
Nosso Senhor o depósito da sua Revelação.
Sem uma dócil submissão da inteligência a essa verdade revelada, cuidadosa antes
de tudo em não deformar de modo algum o que Deus se dignou manifestar através de
sua Igreja, não há Catolicismo autêntico. Há apenas aparência, que pode iludir o
próximo e, por isso mesmo, oferece o perigo de transviá-lo para uma concepção
igualmente errônea da Fé.
Semelhante atitude, repitamos, fundamental para o católico, envolve a sujeição da
pessoa a uma dupla autoridade externa: à verdade que é proposta pela Revelação, e à
Igreja, que a transmite.
Por isso, porque exige a confissão de nossa inferioridade, de nossa limitação,
rebela-se contra ela o espírito moderno, em nome da razão e dos direitos do homem. É
tal espírito de rebeldia que anima ― ainda que talvez subconscientemente ― os
movimentos aqui lembrados. O antídoto à contaminação desse espírito encontra-se na
obediência humilde e amorosa ao Magistério autêntico, aceitando o Dogma revelado
no sentido em que sempre o ensinou a Igreja. Sem esta Fé, pura, sem reservas, não se
está imunizado contra o vírus da acomodação ao século, censurada por São Paulo.

A vida segundo a Fé

Com a mesma docilidade, sem envolvê-las nas sinuosidades de nosso amor-


próprio, é que devemos entender e praticar as normas apresentadas pelo Divino
Mestre, para que Ele reine em nós, e para que sejamos elementos eficazes na difusão de
seu reinado nas almas.

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―Quem quiser vir após mim renuncie a si mesmo, tome sua cruz, todos os dias, e siga-me”
(Lc., IX, 23). Essa a regra áurea, insubstituível. Sem o ―renuncie a si mesmo‖, sem a
abnegação do próprio egoísmo, de nossos gostos, nossos desejos, para só fazer a
Vontade de Deus, a santificação é ilusória, o apostolado, na realidade, estéril e exposto
ao perigo de desviar-se no sentido de um compromisso com o mundo.
Tal renúncia pede a mortificação de todos os dias, porquanto, quotidianamente,
devemos tomar a cruz que Nosso Senhor nos envia, a cruz no cumprimento exato de
nossos deveres de estado, na paciência com o próximo, no domínio do respeito
humano.
Semelhante preceito, entendido na dimensão de sua verdade objetiva, é
incompatível com as máximas do mundo. Somente um espírito de Fé, que vive da
esperança das realidades futuras que se vão revelar apenas na Eternidade, é capaz de
aceitá-lo e propor-se lealmente a vivê-lo. Bem assimilado, ele nos faz ver como todos os
movimentos que almejam instaurar uma Nova Igreja, mais atualizada com as maneiras
de ser e comportar-se da sociedade moderna, marcam um perigoso desvio no caminho
que conduz à glória de Deus e à salvação eterna.

O espírito do mundo

Convenhamos, amados filhos, que a tentação de buscar uma concordância entre a


doutrina da salvação e o espírito do século é aliciante. Para ela nos impele, além do
pendor próprio de nossa natureza pecadora, uma falsa caridade, fruto de uma
consideração naturalista da existência.
Por isso mesmo, o Divino Mestre não se cansa de alertar seus discípulos contra uma
vida segundo os preceitos do mundo. Na grande oração sacerdotal, após a última ceia,
pede Jesus ao Padre Eterno especialmente que preserve os seus do contágio do século
(Jo., XVII, 9-15). E a razão desse pedido é que o mundo está todo ele sob o influxo do
maligno (I Jo., V, 19), constituído que é de atrativos da sensualidade, da vaidade e do
orgulho (I Jo., II, 16). No mesmo teor, São Paulo é insistente na exortação a que fujamos
da solicitação para nos conformarmos com o espírito deste século (Rom., XII, 2).
Se, auxiliados pela oração confiante e fervorosa, nos mantivermos fiéis a esta
vigilância que aqui salientamos, Deus Nosso Senhor se apiedará de nós e conceder-
nos-á a graça de não nos envolvermos nas malhas de um aparente, mas falso,
apostolado. Ação apostólica que, se não renuncia simplesmente ao Reinado social de
Jesus Cristo no mundo de hoje, conforma-se com um meio cristianismo, concebido à
maneira de um conúbio entre dois espíritos opostos: a austeridade cristã e os devaneios
da vida moderna. O resultado de semelhante amálgama só poderá ser a náusea de que
fala o Apocalipse (III, 16), e que provoca a reprovação do Senhor.
Amados filhos, na Encíclica Immortale Dei Leão XIII faz eco às advertências de Jesus
Cristo, chamando a atenção dos que se dedicam ao apostolado da difusão do Reino de
Deus na sociedade sobre dois perigos que os rondam: a conivência com as opiniões
falsas e uma resistência menos enérgica do que aquela exigida pela verdade.

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Evitemos, pois, amados filhos, que nossa caridade degenere em apoio ao erro ou ao
vício. E nossa paciência jamais seja um incentivo à perseverança no mal.

Oração

―Sine me nihil potestis facere‖ ― ―Sem mim, nada podeis fazer‖ (Jo., XV, 5). A união com
Jesus Cristo, amados filhos, para que Ele reine em nós e para que nós sejamos cruzados
ao serviço de sua Realeza, é absolutamente necessária.
Esta vinculação com o Redentor da humanidade, fruto da Graça, é alimentada e
intensificada pela recepção dos santos Sacramentos e pelo exercício das virtudes
cristãs, especialmente da caridade, que nos induz a evitar, em nossa vida, tudo quanto
desagrade a Deus Nosso Senhor, e aviva em nós o interesse real por nosso próximo,
sobretudo por sua santificação.
Meio indispensável para conservar a união com Jesus Cristo e o zelo pela glória de
Deus e salvação das almas, bem como a eficácia em nosso apostolado, é a oração,
instrumento soberano que o Salvador divino nos legou para obtermos todos os favores
do Céu.
Exortamos-vos, pois, amados filhos a que empregueis sempre esta eficacíssima
arma, para a implantação do Reino de Jesus Cristo na terra, primeiro em vós mesmos,
depois na sociedade em que viveis. ―Pedi e recebereis‖ (Jo., XVI,24), disse a palavra
infalível, que pode cumprir e cumpre o que promete. Se nosso País, portanto, não é
inteiramente católico como deveria ser, a culpa, em ponderável parte, é nossa. Se
rezássemos com fé e confiança, certamente ter-nos-íamos santificado e sido atendidos.
Orai, pois, amados filhos, rezai com vontade ardente de receber o que pedis.
Tão necessária é a oração, que Jesus, Ele mesmo, nos ensinou a rezar. Compôs para
nós a mais bela e mais completa das orações: o Padre-Nosso. É a prece que devemos
dizer todos os dias. Pois nela pedimos precisamente a graça de que chegue até nós o
Reino de Deus. ― Que outra coisa suplicamos, com efeito, na segunda petição do
Padre-Nosso, senão que venha a nós o Reino de Deus ― ―Venha a nós o Vosso Reino‖?
(Mt., VI, 10). Eia, recitemos o Padre-Nosso com fervor, considerando bem o que
pedimos, e implorando com vontade ardente de vê-lo realizado: ―Venha a nós o Vosso
Reino!‖ Podem nos faltar todos os outros meios para difundir o Reinado de Jesus Cristo
― ciência, saúde, atrativo pessoal, capacidade de empolgar multidões, enfim, tudo. O
meio da oração não nos falta. No entanto, é o indispensável. Os outros, sem este, são
ineficazes. Ao passo que, por meio da prece, obtemos também a capacidade para o
apostolado que, segundo os desígnios da Providência, cumpre-nos realizar. Ora, a
prece encontra-se ao nosso alcance. Utilizemo-la com desejo ardente de sermos
atendidos. Deus leva muito em consideração o fervor de nosso desejo quando Lhe
pedimos alguma graça. Roguemos, pois, com todas as veras de nossa alma, e a
obteremos.
Especialmente se interpusermos a intercessão d‘Aquela que é a Medianeira de
todas as graças, a Rainha dos Céus e da Terra, Maria Santíssima, Senhora nossa.
Entreguemos a seus cuidados nossos anseios e preocupações. E Ela, contra toda a

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esperança humana ― ―in spem contra spem‖ (Rom., IV, 18) ― fará reinar seu Divino Filho
no mundo de hoje, cumprindo a amável e suave promessa que proclamou em Fátima:
―Por fim o meu Imaculado Coração triunfará!‖
Com Nossa cordial bênção em Nome do Padre e do Filho e do Espírito  Santo,
pedimos à Virgem Santíssima, Mãe de Deus, conceda a Nossos caríssimos
cooperadores e amados filhos a perseverança no amor de Jesus Cristo para glória de
Deus e bem das almas.

Dada a passada em Nossa Episcopal Cidade de Campos, aos oito dias do mês de
dezembro de mil e novecentos e setenta e seis, solenidade da Imaculada Conceição da
Bem-aventurada Virgem Maria.

 Antonio, Bispo de Campos

MANDAMENTO

Nomine Domini invocato,


Mandamos que esta Nossa Carta Pastoral seja lida e explanada aos fiéis, e um
exemplar da mesma arquivado na Paróquia.
Campos, 8 de dezembro de 1976

Antonio, Bispo de Campos

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QUAS PRIMAS ― SOBRE CRISTO REI*

Pio XI

CARTA ENCÍCLICA

AOS VENERÁVEIS IRMÃOS PATRIARCAS, Primazes, Arcebispos, Bispos e Outros


Ordinários em paz e comunhão com a Sé Apostólica: sobre Cristo Rei.

PIO PAPA XI
Veneráveis Irmãos, saúde e bênção apostólica.

INTRODUÇÃO

1. Na primeira Encíclica, dirigida, em princípios do nosso Pontificado, aos Bispos


do mundo inteiro, indagamos a causa íntima das calamidades que, ante os nossos
olhos, avassalam o gênero humano. Ora, lembra-nos haver abertamente declarado
duas coisas: uma — que esta aluvião de males sobre o universo provém de terem a
maior parte dos homens removido, assim da vida particular como da vida pública,
Jesus Cristo e sua lei sacrossanta; a outra — que baldado era esperar paz duradoura
entre os povos, enquanto os indivíduos e as nações recusassem reconhecer e proclamar
a Soberania de Nosso Salvador. E por isso, depois de afirmarmos que se deve procurar
―a paz de Cristo no reino de Cristo‖, manifestamos que era intenção nossa trabalhar
para este fim, na medida de nossas forças. ―No reino de Cristo‖, — dizíamos; porque,
para restabelecer e confirmar a paz, outro meio mais eficiente não deparávamos do que
reconhecer a Soberania de Nosso Senhor. Com o correr do tempo, claramente
pressentimos o raiar de dias melhores, quando vimos o zelo dos povos em acudir, —
uns pela primeira vez, outros com renovado ardor, — a Cristo e à sua Igreja, única
dispensadora da salvação: sinal manifesto de que muitos homens, até o presente como
que desterrados do reino do Redentor, por desprezarem sua autoridade, preparam,
ainda bem, e levam a efeito sua volta à obediência.

*II edição, 1950, Editora Vozes Ltda., Petrópolis, R. J. Rio de Janeiro-São Paulo. Imprima-se por
comissão especial do Exmo. e Revmo. Sr. Dom Manuel Pedro da Cunha Cintra, Bispo de Petrópolis.
Frei Lauro Ostermann O. F. M, Petrópolis, 9-11-1950.

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PREPARAÇÃO PROVIDENCIAL DA NOVA FESTA. O ANO SANTO

2. Quanto, ao depois, sobreveio, quanto aconteceu no decorrer do ―Ano Santo‖,


digno, na verdade, de eterna memória, porventura não concorreu eficazmente para a
honra e glória do Fundador da Igreja, de sua soberania, de sua suprema realeza?

Exposição Missionária

Realizou-se, primeiro, a ―Exposição Missionária‖, que, nos corações e nos espíritos


dos homens, produziu tão profunda impressão. Ali vimos os incansáveis trabalhos
empreendidos pela Igreja, para dilatar cada vez mais o reino de seu Esposo, em todos
os continentes, em todas as ilhas, até nas mais longínquas, perdidas no oceano. Vimos
quantos países conquistaram ao catolicismo à custa de seus suores, de seu sangue,
nossos heroicos e destemidos missionários. Vimos as imensas regiões que ainda ficam
por sujeitar ao domínio benfazejo de nosso Rei.

Peregrinações jubilares

Realizaram-se, em seguida, romarias, vindas a Roma, durante o Ano Santo, de


todas as partes do mundo, e guiadas por seus Bispos ou sacerdotes. Que motivos
impeliam esses peregrinos, senão o desejo de purificarem suas almas e de
proclamarem, junto ao Sepulcro dos Apóstolos e em Nossa presença, que estão e
querem permanecer sob a autoridade de Cristo?

Canonizações

Por fim, conferimos a seis Confessores ou Virgens as honras dos Santos, depois de
cabalmente provadas suas admiráveis virtudes. Não brilhou, nesse dia, com novo
fulgor, o reino de Jesus? Que gozo, que consolação não foi para Nossa alma, depois de
proferirmos os decretos definitivos, ouvir, no majestoso recinto de S. Pedro, a imensa
multidão os fiéis aclamar com uma só voz, entre cantos de ação de graças, a realeza
gloriosa de Cristo — ―Tu Rex gloriae, Christe!‖ Num tempo em que indivíduos e
estados, joguetes das sedições nascidas do ódio e discórdias civis, se precipitam para a
ruína e a morte, a Igreja de Deus, prosseguindo a dar ao gênero humano o alimento da
vida espiritual, gera e continua a educar para Cristo gerações sucessivas de Santos e
Santas, e Cristo, por sua vez, não cessa de chamar à eterna felicidade do seu reino
celeste quantos se Lhe demonstraram súditos fiéis e submissos de seu reino terrestre.

Centenário do Concílio de Niceia

Com o grande jubileu coincidiu o 16.° centenário do Concílio de Niceia. Mandamos


festejar este aniversário secular, e Nós mesmo o comemoramos na Basílica Vaticana,

70
com tanto melhor grado, que este Concílio definiu e proclamou dogma de fé católica a
―consubstancialidade‖ do Unigênito de Deus com seu Pai, e, inserindo em sua fórmula
de fé, ou ―Credo‖, as palavras: ―cujo reino não terá fim — cujus regni non erit finis‖ —
com isto mesmo afirmou a dignidade real de Cristo.

Súplica em favor de Cristo-Rei

3. Portanto, já que este ano jubilar, em mais de uma ocasião, contribuiu para pôr em
realce a realeza de Cristo, julgamos cumprir um dos atos mais próprios do Nosso ofício
apostólico, acedendo às súplicas, assim individuais como coletivas, de numerosos
Cardeais, Bispos ou fiéis, e encerrar este ano com introduzir na liturgia da Igreja uma
festa especial em honra de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei. Este argumento temo-lo
tanto a peito, Veneráveis Irmãos, que desejamos entreter-nos dele convosco alguns
instantes. Empenho vosso será, depois, tornar, acessível à inteligência e aos
sentimentos populares quanto dissermos sobre o culto de ―Cristo-Rei‖, de modo que a
nova festa anual produza agora e no porvir múltiplos frutos.

FUNDAMENTO DOUTRINAL DA NOVA FESTA

Cristo-Rei no sentido metafórico

4. Muito há que a linguagem corrente dá a Cristo o nome de ―Rei em sentido


metafórico e transposto‖. ―Rei‖ é Cristo, com efeito, atenta a eminente e suprema
perfeição com que sobrepuja a todas as criaturas. Assim, dizemos que ―reina sobre as
inteligências humanas‖, por causa da penetração do seu espírito e da extensão de sua
ciência, mas sobretudo porque é a própria Verdade em pessoa, de quem, portanto, é
força que recebam rendidamente os homens toda verdade. Dizemos que ―reina sobre
as vontades humanas‖, porque n'Ele se alia a indefectível santidade do divino querer
com a mais reta, a mais submissa das vontades humanas; e também porque suas
inspirações entusiasmam nossa vontade livre pelas causas mais nobres. Dizemos,
enfim, que é ―Rei dos corações‖, por causa daquela inefável ―caridade que excede a
toda humana compreensão‖ (Ef 3, 19); e porque sua doçura e sua bondade atraem os
corações: pois nunca houve, no gênero humano, e nunca haverá quem tanto amor
tenha ateado como Cristo Jesus.

Cristo Deus-Homem Rei da Humanidade em sentido próprio

5. Aprofundemos sempre mais o nosso argumento. É manifesto que o nome e o


poder de ―Rei‖, no sentido próprio da palavra, competem a Cristo em sua
Humanidade, porque só de Cristo enquanto homem é que se pode dizer: do Pai
recebeu ―poder, honra e realeza‖ (Dan 7, 13-14). Enquanto Verbo, consubstanciai ao
Pai, não pode deixar de Lhe ser em tudo igual e, portanto, de ter, como Ele, a suprema
e absoluta soberania e domínio de todas as criaturas.

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Testemunho ao Antigo Testamento

6. Que Cristo seja Rei, não o lemos nós na Escritura? Ele é o ―Dominador oriundo
de Jacob‖ (Num 24, 19), Ele o ―Rei, dado pelo Pai a Sião, sua Santa Montanha, para
receber em herança as nações, e dilatar seu domínio até os confins da Terra‖ (Sl 2, 6. 8),
Ele o verdadeiro ―Rei vindouro‖ de Israel, que o cântico nupcial nos representa sob os
traços de um soberano opulento e poderoso, a quem se dirigem estas palavras: ―O teu
trono, ó Deus, subsistirá por todos os séculos: a vara de retidão é a vara de teu reino‖
(Sl 44, 7). Omitindo muitos passos análogos, deparamos além, como, para delinear com
maior nitidez a fisionomia de Cristo, vem predito que seu reino desconhecerá
fronteiras e desfrutará os tesouros da justiça e da paz. ―Nos dias d'Ele, aparecerá justiça
e abundância de paz... E dominará de mar a mar, e desde o rio até os confins da Terra‖
(SL 71, 7-8). A esses testemunhos, juntam-se mais numerosos ainda os oráculos dos
Profetas, e notadamente a tão conhecida profecia de Isaías: ―Já um Pequenino se acha
nascido para nós, e um filho nos foi dado, e foi posto o principado sobre o seu ombro; e
o nome com que se apelide será Admirável, Conselheiro, Deus, Forte, Pai do futuro
século, Príncipe da Paz. O seu império se estenderá cada vez mais, e a paz não terá fim;
assentar-se-á sobre o trono de David e sobre o seu reino, para o firmar e fortalecer em
juízo e justiça, desde então e para sempre‖ (Is 9, 6-7).
7. Não é outro o modo como se expressam os demais Profetas. Assim fala Jeremias,
quando prenuncia à descendência de David ―um germe de justiça‖, esse filho de
David, que reinará como Rei, ―será sábio e obrará segundo a equidade e justiça na
Terra‖ (Jer 23, 5). Assim Daniel, quando prediz a constituição por Deus de um reino
―que não será jamais dissipado... e que durará eternamente‖ (Dan 2, 44). E pouco
depois acrescenta: ―Eu considerava estas coisas numa visão de noite, e eis que vi um,
como o Filho do Homem, que vinha com as nuvens do Céu, e que chegou até o Antigo
dos dias; e eles o apresentaram diante d'Ele. E Ele Lhe deu o poder, e a honra, e o reino;
todos os povos, e tribos e línguas o servirão: o seu poder é um poder eterno, que Lhe
não será tirado, e o seu reino tal, que não será jamais corrompido‖ (Dan 7, 13-14).
Assim Zacarias, quando profetiza a entrada em Jerusalém, entre as aclamações do
povo, do ―Justo e Salvador‖, do Rei cheio de mansidão ―montado sobre uma jumenta, e
sobre o potrinho da jumenta‖ (Zac 9, 9). E não apontaram os Evangelistas o
cumprimento desta profecia?

Testemunho do Novo Testamento

8. Esta doutrina de ―Cristo Rei‖, que acabamos de esboçar segundo os livros do


Antigo Testamento, bem longe de apagar-se nas páginas do Novo, vem ali, ao invés,
confirmada do modo mais esplêndido e em termos admiráveis. Bastará lembrar apenas
a mensagem do Arcanjo à Virgem, a anunciar-lhe que dará à luz um Filho; a este Filho,
Deus outorgará ―o trono de David, seu pai, e reinará eternamente na casa de Jacob, e
seu reino não terá fim‖ (Lc 1, 32-33). Ouçamos agora o testemunho do próprio Cristo

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no tocante à sua soberania. Sempre que se Lhe oferece ensejo, — em seu último
discurso ao povo, sobre a recompensa e os castigos que, na vida eterna, aguardam os
justos e os maus; em sua resposta ao governador romano que Lhe perguntara se era
Rei; depois de sua ressurreição, quando confia aos Apóstolos a missão de instruírem e
batizarem todas as nações, — reivindica o título de ―Rei‖ (Mt 25, 31-40), e
publicamente declara que é ―Rei‖ (Jo 18, 37) e que ―todo poder Lhe foi dado no Céu e
sobre a Terra‖ (Mt 28, 18). Que entende com isto, senão afirmar a extensão de sua
potência, a imensidade do seu reino? À vista disto, deverá fazer-nos estranheza que S.
João o proclame ―Príncipe dos reis da terra? (Apoc 1, 5) ou que, aparecendo o próprio
Jesus ao mesmo Apóstolo em suas visões proféticas ―traga escrito no vestido e na coxa:
Rei dos reis e Senhor dos senhores‖? (Apoc 19, 16). O Pai, com efeito, constituiu a
Cristo ―herdeiro de todas as coisas‖ (Heb 1, 1). Cumpre que reine até o fim dos tempos,
quando ―arrojará todos os seus inimigos sob os pés de Deus e do Pai‖ (1 Cor 15, 25).

Testemunho da Liturgia

9. Desta doutrina comum a todos os livros santos, naturalmente dimana a seguinte


consequência: justo é que a Igreja Católica, reino de Cristo na Terra, chamada a
estender-se a todos os homens, a todas as nações do universo, multiplicando os preitos
de veneração, celebre, no ciclo anual da Liturgia Santa, a seu Autor e Instituidor como
a Rei, como a Senhor, como a Rei dos reis. Com admirável variedade de fórmulas, estas
homenagens expressam um e o mesmo pensamento; desses títulos servia-se a Igreja
outrora no divino ofício e nos antigos sacramentados; repete-os ainda agora, nas preces
públicas, que todos os dias dirige à Infinita Majestade e na oblação da Hóstia
Imaculada. Nesse louvor ininterrupto de Cristo-Rei, nota-se para logo a formosa
harmonia dos nossos ritos com os ritos orientais, verificando-se aqui também a
verdade, do prolóquio: ―as normas da oração confirmam os princípios da Fé‖.

Argumento teológico

10. O fundamento sobre que pousa esta dignidade e poder de Nosso Senhor,
define-o exatamente S. Cirilo de Alexandria, quando escreve: ―Numa palavra, possui o
domínio de todas as criaturas, não pelo ter arrebatado com violência, senão em virtude
de sua essência e natureza‖ (In Lucam, 10). Esse poder dimana daquela admirável
união que os teólogos chamam de ―hipostática‖. Portanto, não só merece Cristo que
anjos e homens O adorem como a seu Deus, senão que também devem homens e anjos
prestar-Lhe submissa obediência como a Homem. E assim, só em força dessa união, a
Cristo cabe o mais absoluto poder sobre todas as criaturas, posto que, durante sua vida
mortal, renunciasse ao exercício desse domínio.
— Mas haverá, outrossim, pensamento mais suave do que refletir que Cristo é
nosso Rei não só por direito de natureza, mas também a título de Redentor? Lembrem-
se os homens esquecidos de quanto custamos a nosso Salvador. ―Não fostes resgatados
a preço de coisas perecíveis, prata e outro, mas com o sangue precioso de Cristo, como

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de cordeiro sem mancha nem defeito‖ (1 Ped 1, 18-19). Já nos não pertencemos, pois
que deu Cristo por nós ―tão valioso resgate‖ (1 Cor 6, 20). Até nossos corpos são
―membros de Cristo‖ (1 Cor 6, 15).

ÍNDOLE DA REALEZA DE CRISTO

A CRISTO-REI CABE O PODER LEGISLATIVO, JUDICIAL, EXECUTIVO

11. Para dizer, em poucas palavras, a importância e índole desta realeza, será
apenas necessário asserir que abrange um tríplice poder constitutivo, essencial de toda
realeza verdadeira. Provam-no de sobejo os testemunhos de toda a Escritura no tocante
à dominação universal de nosso Redentor, e é artigo de fé católica: Cristo Jesus foi
dado aos homens não só como Redentor, que lhes merece toda confiança, mas também
como Legislador, a quem devemos prestar obediência (Conc. Trid., Sess. 6, can. 21). E,
com efeito, não dizem os Evangelhos tão só que promulgou leis, mas no-lo
representam no ato de promulgar as leis. A quantos observarem os seus preceitos,
declara o Divino Mestre, em várias ocasiões e de diversos modos, que com isto mesmo
Lhe hão de provar o seu amor e permanecer em sua caridade (Jo 14, 15); 15, 10). —
Quanto ao ―poder judicial‖, declara o próprio Jesus havê-lo recebido de seu Pai, em
resposta aos judeus, que o haviam acusado de violar o descanso do sábado, curando
milagrosamente, neste dia, a um paralítico. ―O Pai, disse-lhes o Salvador, não julga a
ninguém, mas deu todo juízo ao Filho‖ (Jo 5, 22). Esse poder judicial igualmente inclui
o ―direito‖, — que se não pode dele separar, — de ―premiar‖ e ―punir‖ aos homens,
mesmo durante a vida. — A Cristo compete o ―poder executivo‖, porquanto devem
todos sujeitar-se ao seu domínio, e quem for rebelde não poderá evitar a condenação e
os suplícios, que Jesus prenunciou.

Realeza espiritual

12. Esta realeza, porém, é principalmente interna e respeita sobretudo a ordem


espiritual. Provam-no com toda evidência as palavras da Escritura acima referidas, e,
em muitas circunstâncias, o proceder do próprio Salvador. Quando os judeus, e até os
Apóstolos, erradamente imaginavam que o Messias libertaria seu povo para restaurar
o reino de Israel, Jesus desfez o erro e dissipou a ilusória esperança. Quando, tomada
de entusiasmo, a turba, que O cerca, O quer proclamar rei, com a fuga furta-se o
Senhor a estas honras, e oculta-se. Mais tarde, perante o governador romano, declara
que seu reino ―não é deste mundo‖. Neste reino, tal como no-lo descreve o Evangelho,
é pela penitência que devem os homens entrar. Ninguém, com efeito, pode nele ser
admitido sem a fé e o batismo; mas o batismo, conquanto seja um rito exterior, figura e
realiza uma regeneração interna. Este reino opõe-se ao reino de Satanás e ao poder das
trevas; de seus adeptos exige o desprendimento não só das riquezas e dos bens
terrestres, como ainda a mansidão, a fome e sede da justiça, a abnegação de si mesmo,

74
para carregar com a cruz. Foi para adquirir a Igreja que Cristo, enquanto ―Redentor‖,
verteu o seu sangue; para isto é, que, enquanto ―Sacerdote‖, se ofereceu e de contínuo
se oferece como vítima. Quem não vê, em consequência, que sua realeza deve ser de
índole toda espiritual, e participar da natureza deste seu duplo ofício?
13. Todavia, fora erro grosseiro denegar a Cristo Homem a soberania sobre as
coisas temporais todas, sejam quais forem. Do Pai recebeu Jesus o mais absoluto
domínio das criaturas, que Lhe permite dispor delas todas como Lhe aprouver.
Contudo, enquanto viveu sobre a Terra, absteve-se totalmente de exercer este domínio
temporal, e desprezou a posse e regimento das coisas humanas, que deixou — e deixa
ainda — ao arbítrio e domínio dos homens. Verdade graciosamente expressa no
conhecido verso: ―Não arrebata diademas terrestres, quem distribui coroas celestes. —
Non eripit mortalia, qui regna dat caelestia‖ (Hino Crudelis Herodes, of. da Epif.).

Realeza universal

14. Assim, pois, a realeza do nosso Redentor abraça a totalidade dos homens. Sobre
este ponto, de muito bom grado fazemos Nossas as palavras seguintes de Nosso
Predecessor Leão XIII, de imortal memória: ―Seu império não abrange tão só as nações
católicas ou os cristãos batizados, que juridicamente pertencem à Igreja, ainda quando
dela separados por opiniões errôneas ou pelo cisma: estende-se igualmente e sem
exceções aos homens todos, mesmo alheios à fé cristã, de modo que o império de Cristo
Jesus abarca, em todo rigor da verdade, o gênero humano inteiro‖ (Encícl. Annum
Sacrum, 25 de Maio de 1899). E, neste particular, não cabe fazer distinção entre os
indivíduos, as famílias e os estados; pois os homens não estão menos sujeitos à
autoridade de Cristo em sua vida coletiva do que na vida individual. Cristo é fonte
única de salvação para as nações como para os indivíduos. ―Não há salvação em
nenhum outro; porque abaixo do Céu nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo
qual nós devamos ser salvos‖ (At 4, 12). Dele provêm ao estado como ao cidadão toda
prosperidade e bem-estar verdadeiro. ―Uma e única é a fonte da ventura, assim para as
nações como para os indivíduos, pois outra coisa não é a cidade mais que uma
multidão concorde de indivíduos‖ (S. Aug., Epist. ad Macedonium, c. 3). Não podem,
pois, os homens de governo recusar à soberania de Cristo, em seu nome pessoal e no
de seus povos, públicas homenagens de respeito e submissão. Com isto, sobre estearem
o próprio poder, hão de promover e aumentar a prosperidade nacional.

BENEFÍCIOS SOCIAIS DESTA REALEZA

Crise da autoridade

15. Ao subirmos à cátedra pontifical, deplorávamos o lastimável decaimento em


que vemos abatido o prestígio do direito e a reverência à autoridade. Quanto então
dizíamos não é hoje menos atual ou oportuno. ―Excluídos da legislação e dos negócios
públicos Deus e Jesus Cristo, e derivando, os que regem, o seu poder, não já do alto,

75
mas dos homens, aconteceu que ruiu o próprio fundamento da autoridade, em
consequência de estar removida a razão fundamental do direito que a uns assiste de
mandar, e da obrigação consequente que têm outros de obedecer. Seguiu-se daí
forçosamente um abalo na humana sociedade inteira, falha assim de amparo e
sustentáculo firme‖ (Encícl. Ubi arcano, DP 19). Se soubessem resolver-se os homens a
reconhecer a autoridade de Cristo em sua vida particular e pública, para logo deste ato
dimanariam em toda a humanidade incomparáveis benefícios: —: uma justa liberdade,
a ordem e o sossego, a concórdia e a paz.

No interior dos estados

16. Com dar à autoridade dos príncipes e chefes de governo certo caráter sagrado, a
dignidade real de Nosso Senhor enobrece com isto mesmo os deveres e a sujeição dos
cidadãos. Tanto assim que o Apóstolo S. Paulo, depois de prescrever às mulheres
casadas e aos escravos de reconhecerem a Cristo na pessoa de seus maridos e senhores,
lhes recomendava, ainda assim, de obedecerem não servilmente, como a homens, mas
tão só em espírito de fé como a representantes de Cristo, porque ,é indigno de uma
alma resgatada por Cristo obedecer com servilismo a um homem. ―Fostes resgatados
com grande preço: não estejais sujeitos já como escravos a homens‖ (1 Cor 7, 23). Se os
príncipes e governos legitimamente constituídos tivessem a persuasão de que regem
menos no próprio nome do que em nome e lugar do Rei Divino, é manifesto que
usariam do seu poder com toda a prudência, com toda a sabedoria possíveis. Em
legislar e na aplicação das leis, como haveriam de atender ao bem comum e à
dignidade humana de seus súbditos! Então floresceria a ordem, então víramos
difundir-se e firmar-se a tranquilidade e a paz; embora o cidadão reconhecesse nos
príncipes e chefes de governo homens iguais a si pela natureza ou mesmo, por algum
respeito, indignos ou repreensíveis, não deixara por isto de lhes obedecer, por
depreender neles a imagem e autoridade de Cristo, Deus-Homem.

Vantagens sociais para as nações

17. Pelo que respeita à concórdia e à paz, é manifesto que, quanto mais vasto é um
reino, quanto mais largamente abraça o gênero humano, tanto é maior a consciência
em seus membros do vínculo de fraternidade que os une. Esta consciência, assim como
remove e dissipa os frequentes conflitos, assim também atenua e suaviza os amargores
que dos conflitos nascem. E se o reino de Cristo abarcara de fato, como de direito
abarca, as nações todas, porque deveríamos perder a esperança dessa paz que à Terra
veio trazer o Rei pacífico, esse Rei que veio ―para reconciliar todas as coisas‖ (Col 1,
20), ―que não veio para ser servido, mas para servir aos outros‖ (Mc 10, 45) e que,
embora ―Senhor de todos‖ (Gál 4, 1), deu exemplo de humildade e principalmente
inculcou esta virtude, de envolta com a caridade, acrescentando: ―Meu jugo é suave, e
é leve minha carga‖ (Mt 11, 30). Oh! que ventura não pudéramos gozar, se os
indivíduos, se as famílias, se a sociedade se deixasse reger por Cristo! ―Então,

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finalmente — para citarmos as palavras que, há 25 anos, Nosso Predecessor Leão XIII
dirigia aos Bispos do mundo inteiro — então fora possível sanar tantas feridas; o
direito recobrara seu antigo viço, seu prestígio de outras eras; então tornaria a paz com
todos os seus encantos e cairiam das mãos armas e espadas, quando todos de bom
grado aceitassem o império de Cristo, Lhe obedecessem, e toda língua proclamasse que
―Nosso Senhor Jesus Cristo está na glória de Deus Padre‖ (Ene. Annum Sacrum).

A FESTA DE JESUS CRISTO-REI

18. E a fim de que a sociedade cristã goze largamente de tão preciosas vantagens e
para sempre as conserve, é mister que se divulgue quanto possível o conhecimento da
dignidade real de Nosso Salvador. Ora, nada pode, pelo que Nos parece, conseguir
melhor este resultado, do que a instituição de uma festa própria e especial em honra de
Cristo-Rei.

Influência da liturgia na vida cristã

19. Com efeito, para instruir o povo nas verdades da fé e levá-lo assim às alegrias
da vida interna, mais eficazes que os documentos mais importantes do Magistério
eclesiástico são as festividades anuais dos sagrados mistérios. Os documentos do
Magistério, de fato, apenas alcançam um restrito número de espíritos mais cultos, ao
passo que as festas atingem e instruem a universalidade dos fiéis. Os primeiros, por
assim dizer, falam uma vez só, as segundas falam sem intermitência de ano para ano;
os primeiros dirigem-se, sobretudo, ao entendimento; as segundas influem não só na
inteligência, mas também no coração, quer dizer — no homem todo. Composto de
corpo e alma, precisa o homem dos incitamentos exteriores das festividades, para que,
através da variedade e beleza dos sagrados ritos, recolha no ânimo a divina doutrina, e,
transformando-a em substância e sangue, tire dela novos progressos em sua vida
espiritual.

Origem histórica e providencial das festas na Igreja

20. Além disso, ensina-nos a própria história, que estas festividades litúrgicas foram
introduzidas, no decorrer dos séculos, umas após outras, para responder a
necessidades ou vantagens espirituais do povo cristão. Foram-se constituindo para
fortalecer os ânimos em presença de algum perigo comum, para premunir os espíritos
contra os ardis da heresia, para mover e inflamar os corações a celebrar com mais
ardente piedade algum mistério de nossa fé ou algum benefício da divina graça. Assim
é que, desde os primeiros tempos da era cristã, quando, acossados das mais cruentas
perseguições, os fiéis começaram, com sagrados ritos, a comemorar os mártires, para
que — como diz S. Agostinho — ―as solenidades dos mártires fossem exortação ao
martírio‖ (Sermo 47, de Sanctis). As honras litúrgicas, mais tardes decretadas aos
confessores, às virgens, às viúvas, contribuíram singularmente para promover nos fiéis

77
o zelo pela virtude, indispensável mesmo em tempo de paz. Especialmente as festas em
honra da Virgem Beatíssima fizeram com que o povo cristão não só tributasse à Mãe de
Deus, sua Protetora por excelência, culto mais assíduo, senão que ao mesmo tempo
fosse de contínuo crescendo seu amor filial à Mãe que o Redentor lhe deixara como que
em testamento. Dentre os benefícios que dimanaram do culto público e legitimamente
prestado à Mãe de Deus e aos Santos do Céu, não é o menor a vitória constante com
que a Igreja se cobriu de louros, ao debelar e repelir a heresia e o erro. E nisto devemos
admirar os desígnios da Divina Providência, que, segundo costuma, tira o bem do mal.
Permitiu que, de tempos a tempos, entibiasse a fé e a piedade popular; permitiu que
doutrinas errôneas armassem insídias à piedade católica, mas sempre com o intuito de
fazer finalmente fulgir a verdade com novo esplendor e mover os fiéis, espertos da
tibieza, a tenderem com novo zelo a graus mais elevados de santidade e perfeição
cristã. Idêntica é a origem, idênticos os frutos que produziram as solenidades
recentemente introduzidas no calendário litúrgico. Tal é a festa do ―Corpus Christi‖,
instituída quando se esfriava a reverência e o culto para com o SS. Sacramento;
celebrada com brilho singular, protraída por oito dias de suplicações coletivas, a nova
solenidade devia reconduzir os povos à adoração pública do Senhor. Tal é a festa do
Coração Santíssimo de Jesus estabelecida na época em que, abatidos e desalentados
pelas tristes doutrinas e o rigorismo sombrio do jansenismo, os fiéis sentiam seus
corações regelados e com escrúpulo deles excluíam todo sentimento de amor de Deus e
a esperança de conseguirem a eterna salvação.

Oportunidade da festa

21. Para Nós também soou a hora de provermos às necessidades dos tempos
presentes e de opormos um remédio eficaz à peste que corrói a sociedade humana.
Fazemo-lo, prescrevendo ao universo católico o culto de Cristo-Rei. Peste de nossos
tempos é o chamado ―laicismo‖, com seus erros e atentados criminosos.

Excessos do laicismo

22. Como bem sabeis, Veneráveis Irmãos, não é num dia que esta praga chegou à
sua plena maturação; há muito, estava latente nos estados modernos. Começou-se,
primeiro, a negar a soberania de Cristo sobre todas as nações; negou-se, portanto, à
Igreja o direito de doutrinar o gênero humano, de legislar e reger os povos em ordem à
eterna bem-aventurança. Aos poucos, foi equiparada a religião de Cristo aos falsos
cultos e indecorosamente rebaixada ao mesmo nível. Sujeitaram-na, em seguida, à
autoridade civil, entregando-a, por assim dizer, ao capricho de príncipes e governos.
Houve até quem pretendesse substituir à religião de Cristo um simples sentimento de
religiosidade natural. Certos estados, por fim, julgaram poder dispensar-se do próprio
Deus e fizeram consistir sua religião na irreligião e no esquecimento consciente e
voluntário de Deus.

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Frutos perniciosos do laicismo

23. Os frutos sobremodo amargosos que, tantas vezes e com tanta persistência,
produziu esta apostasia dos indivíduos e dos estados, que desertam a Cristo,
expendemo-los na Encíclica “Ubi arcano”. Tornamos a lamentá-los hoje. Frutos desta
apostasia são os germes de ódio esparsos por toda parte, as invejas e rivalidades entre
nações, que alimentam as discórdias internacionais e dificultam ainda agora a
restauração da paz; frutos desta apostasia as ambições desenfreadas, que muitas vezes
se encobrem com a máscara do interesse público e do amor da pátria, e suas tristes
consequências: dissensões civis, egoísmo cego e desmedido, sem outro fito nem outra
regra mais que vantagens pessoais e proveitos particulares. Fruto desta apostasia a
perturbação da paz doméstica, pelo esquecimento e desleixo das obrigações familiares,
o enfraquecimento da união e estabilidade no seio das famílias, e por fim o abalo na
sociedade toda, que ameaça ruir.

Pusilanimidade de certos católicos

24. A festa, doravante ânua, de ―Cristo-Rei‖ dá-nos a mais viva esperança de


acelerarmos a tão desejada volta da humanidade a seu Salvador amantíssimo. Fora,
com certeza, dever dos católicos, apressar e preparar esta volta com diligente empenho;
a muitos deles, contudo, pelo que parece, não toca, na sociedade civil, o posto e a
autoridade que conviriam aos apologistas da fé. Talvez deva este fato atribuir-se à
indolência e timidez dos bons que se abstêm de toda resistência, ou resistem com
moleza, donde provém, nos adversários da Igreja, novo acréscimo de pretensões e de
audácia. Mas, desde que a massa dos fiéis se compenetre de que é obrigação sua
combater com valentia e sem tréguas sob os estandartes de Cristo-Rei, o zelo apostólico
abrasará seus corações, e todos se esforçarão de reconciliar com o Senhor as almas que
o ignoram ou dele desertaram; todos, enfim, se esforçarão por manter inviolados os
direitos do próprio Deus.

Protesto e reparação

25. Mas não basta. Uma festa, anualmente celebrada por todos os povos em
homenagem a Cristo-Rei, será sobremaneira eficaz para condenar e ressarcir, de algum
modo, esta apostasia pública, tão desastrada para as nações, gerada pelo laicismo. Com
efeito, quanto mais vergonhosamente se passa em silêncio, quer nas conferências
internacionais, quer nos Parlamentos, o nome suavíssimo do nosso Redentor, tanto
mais alto o devemos aclamar, tanto mais devemos reconhecer os direitos que a Cristo
conferem sua dignidade e poder real.

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CONVENIÊNCIAS ATUAIS DA INSTITUIÇÃO DA FESTA

Precedentes da festa de Cristo-Rei

26. E quem não vê que, desde os últimos anos do século passado, se ia, de modo
admirável, preparando o caminho à instituição desta festa? Ninguém, com efeito,
ignora como, com livros que se escreveram nas várias línguas do mundo inteiro, este
culto foi explicado e doutamente defendido. Sabem todos que a autoridade e realeza de
Cristo foi já reconhecida pela piedosa prática de se consagrarem e dedicarem ao
Sagrado Coração de Jesus famílias inumeráveis. E não só famílias, mas também estados
e reinos praticaram o mesmo ato. Antes, por iniciativa e direção de Leão XIII, o
universo gênero humano foi felizmente consagrado a este Coração Santíssimo, no
correr do Ano Santo de 1900. Não podemos preterir os congressos eucarísticos que
nossa época viu multiplicar-se em tão grande número. Tão bem serviram à causa da
solene proclamação humana. Reunidos para apresentar à veneração e às homenagens
populares de uma diocese, de uma província, de uma nação, ou mesmo do mundo
inteiro, Cristo-Rei, oculto sob os véus eucarísticos, esses congressos, em conferências
realizadas nas suas assembleias, em sermões proferidos nas igrejas, por meio da
exposição pública ou da adoração em comum do Santíssimo Sacramento e de
grandiosas procissões, enaltecem a Cristo como a Rei que de Deus receberam os
homens. Este Jesus, que os ímpios recusaram acolher quando veio a seu reino, pode-se
dizer, com toda a verdade, que o povo cristão, movido de uma inspiração divina, vai
arrancá-l‘O ao silêncio e, por assim dizer, à obscuridão dos templos, para levá-l‘O, qual
triunfador, pelas ruas das grandes cidades e reintegrá-l‘O em todos os direitos de sua
realeza.

Excelentes disposições dos fiéis ao saírem do jubileu

27. Para a realização deste Nosso desígnio, de que acabamos de falar, oferece-Nos
ensejo sumamente oportuno o ―Ano Santo‖ que finda. Este ano veio relembrar ao
espírito e ao coração dos fiéis os bens celestes que sobrepujam todo sentimento natural.
Em sua bondade infinita, Deus restitui a uns a sua graça, e confirma a outros no bom
caminho, infundindo-lhes novo ardor para aspirarem a dons mais perfeitos. Quer
atendamos às numerosas súplicas que nos foram dirigidas, quer consideremos os
acontecimentos que se dirigidas, quer consideremos os acontecimentos que se deram
no correr do ―Ano Santo‖, sobeja razão nos assiste de pensarmos que deveras para Nós
soou a hora de proferirmos a sentença tão ansiosamente de todos aguardada e que
decretemos uma festa especial em honra de Cristo, Rei de todo o gênero humano.
Durante este ano, com efeito, como a princípio dissemos, este divino Rei, deveras
admirável em seus Santos, conquistou novos triunfos, com a elevação às honras dos
altares de mais um manípulo de soldados seus. Durante este ano, uma exposição
extraordinária pôs ante os olhos do mundo as fadigas e, de algum modo, os próprios
trabalhos dos arautos do Evangelho, e todos puderam admirar as vitórias ganhas por

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esses campeões de Cristo, para a extensão do seu reino; durante este ano, finalmente,
com o centenário do Concílio de Niceia, comemoramos, contra os seus detratores, a
defesa e definição do dogma da consubstancialidade do Verbo Humanado com seu
Pai, verdade na qual descansa, como em fundamento, a soberania de Cristo sobre
todos os povos.

Data e modalidade da festa

28. Portanto, em virtude de Nossa autoridade apostólica, instituímos a festa de


―Nosso Senhor Jesus Cristo Rei‖, mandando que seja celebrada cada ano, no mundo
inteiro, no último domingo de Outubro imediato à solenidade de Todos os Santos.
Prescrevemos igualmente que, cada ano, se renove, nesse dia, a consagração do gênero
humano ao Coração de Jesus, que já Nosso Predecessor de saudosa memória Pio X
ordenara se fizesse anualmente. Contudo, queremos que, neste ano, a renovação se faça
a 31 de Dezembro; nesse dia, celebraremos missa pontifical em honra de ―Cristo-Rei‖, e
mandaremos proferir, em Nossa presença, o ato de consagração. Quer parecer-Nos que
não pode haver melhor encerramento do ―Ano Santo‖, e que destarte daremos a
―Cristo, Rei Imortal dos séculos‖, o testemunho mais eloquente de nossa gratidão e do
reconhecimento do universo católico, de quem Nos fazemos intérpretes, pelos
benefícios que, neste período de graças, concedeu a Nós mesmo, à Igreja, à cristandade
toda.

Objeto formal da nova festa

29. É escusado, Veneráveis Irmãos, explicar-vos longamente os motivos de uma


festa especial em honra de ―Cristo-Rei‖. Pois, conquanto outras festas, já existentes,
enalteçam e de algum modo glorifiquem sua dignidade real, basta, contudo, observar
que, se todas as festas de Nosso Senhor têm a Cristo, segundo a linguagem dos
teólogos, por ―objeto material‖, de modo algum é o poder e apelativo de Rei ―objeto
formal‖ das mesmas.

Seu lugar no ciclo litúrgico

30. Fixando a nova festa em um domingo, quisemos que o clero fosse o único em
prestar suas homenagens a ―Cristo-Rei‖, com a celebração do Santo Sacrifício e a reza
do Santo Ofício, mas que o povo, desimpedido de suas ocupações ordinárias, e
animado de santa alegria, pudesse dar a Cristo, como a seu Senhor e Soberano, um
manifesto testemunho de obediência. Finalmente mais apropriado Nos pareceu o
último domingo de Outubro, porque este domingo, em certo modo, encerra o ciclo do
ano litúrgico; destarte, os mistérios da vida de Jesus Cristo, comemorados no decorrer
do ano que finda, terão na solenidade de ―Cristo-Rei‖ seu como termo e coroa, e antes
de celebrar a glória de todos os Santos, a liturgia proclamará e enaltecerá a glória
d'Aquele que em todos os Santos e em todos os eleitos triunfa. É dever, é direito vosso,

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Veneráveis Irmãos, fazer preceder a festa por uma série de instruções que se dêem, em
dias determinados, nas diferentes paróquias, para instruir acuradamente o povo da
natureza, significado e importância desta festa, por onde os fiéis regulem a sua vida em
modo a torná-la digna de súbditos leais e submissos de coração à soberania do Divino
Rei.

Esperanças e augúrios

31. Ao fecharmos esta carta, quiséramos ainda, Veneráveis Irmãos, expor-vos


brevemente os frutos, que, tanto para a Igreja e a sociedade civil, como para cada um
dos fiéis, esperamos deste culto público prestado a Cristo-Rei.

Melhor compreensão dos direitos da Igreja

32. A obrigação de tributar à soberania de Nosso Senhor as homenagens, a que nos


referimos, relembra, juntamente, aos homens os direitos da Igreja. Instituída por Cristo,
que lhe deu a forma orgânica de sociedade perfeita, exige, em virtude deste direito, que
dimana de sua origem divina e que ela não pode abdicar, a plena liberdade, a
independência absoluta do poder civil. No desempenho de sua divina missão, de
ensinar, reger e conduzir à eterna felicidade todos os membros do reino de Cristo, não
pode, de modo algum, depender de vontade estranha. Antes, idêntica liberdade deve o
estado conceder às ordens e congregações religiosas de ambos os sexos, pois são os
auxiliares mais firmes dos Pastores da Igreja, os que mais eficazmente se empenham
em difundir e confirmar o reinado de Cristo, primeiro debelando em si, com a
profissão religiosa, o mundo e sua tríplice concupiscência, e depois, pelo fato de
haverem abraçado uma profissão de vida mais perfeita, fazendo resplandecer aos olhos
de todos, com fulgor contínuo e cada dia crescente, esta santidade de que o divino
Fundador quis fazer uma nota distinta de sua Igreja autêntica.

Restauração do culto público e oficial

33. Com a celebração ânua desta festa hão de relembrar-se, outrossim, os Estados
que aos governos e à magistratura incumbe a obrigação, bem assim como aos
particulares, de prestar culto público a Cristo e sujeitar-se às suas leis. Lembrar-se-ão
também os chefes da sociedade civil do juízo final, quando Cristo acusará aos que o
expulsaram da vida pública, e a quantos, com desdém, o desprezaram ou
desconheceram; de tamanha afronta há de tomar o Supremo Juiz a mais terrível
vingança; seu poder real, com efeito, exige que o Estado se reja totalmente pelos
mandamentos de Deus e os princípios cristãos, quer se trate de fazer leis, ou de
administrar a justiça, quer da educação intelectual e moral da juventude, que deve
respeitar a sã doutrina e a pureza dos costumes.

Grande impulso à piedade dos fiéis

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34. Que energias, além disso, que virtude não poderão os fiéis haurir da meditação
destas verdades, para amoldar seus espíritos aos princípios verdadeiros da vida cristã!
Se todo o poder foi dado ao Senhor Jesus, no céu e na terra, se os homens, resgatados
pelo seu sangue preciosíssimo, se tornam, com novo título, súditos de seu império, se,
finalmente, este poder abraça a natureza humana em seu conjunto, é claro que
nenhuma de nossas faculdades se pode subtrair a essa realeza. É mister, pois, que reine
em nossas inteligências: com plena submissão, com adesão firme e constante, devemos
crer as verdades reveladas e os ensinos de Cristo. É mister que reine em nossas
vontades: devemos observar as leis e os mandamentos de Deus. É mister que reine em
nossos corações: devemos mortificar nossos afetos naturais, e amar a Deus sobre todas
,as coisas. É mister que reine em nossos corpos e em nossos membros: devemos
transformá-los em instrumentos, ou, para falarmos com S. Paulo (Rom 6, 13), ―em
armas de justiça, oferecidas a Deus‖, para aumento da santidade de nossas almas. Eis
os pensamentos que, propostos à reflexão dos fiéis e atentamente ponderados, hão de
facilmente levá-los a mais elevada perfeição.

Augúrio final

35. Praza a Deus, Veneráveis Irmãos, que os homens, afastados da Igreja, procurem
e aceitem, para salvação de suas almas, o jugo suave de Cristo. Quanto a nós todos, por
divina misericórdia, súbditos e filhos seus, queira Deus que levemos este jugo, não de
má vontade, mas com prazer, mas com amor, mas santamente. Assim, no decorrer de
uma vida pautada pelas leis do reino do céu, recolheremos, alegres, grande cópia de
frutos, e mereceremos que Cristo, reconhecendo-nos por bons e fiéis servidores de seu
reino terrestre, nos admita, depois, a participar com Ele da eterna felicidade e da glória
sem fim em seu reino celeste.
Aceitai, Veneráveis Irmãos, ao decorrerem as festas natalícias do Senhor, este
presságio e este augúrio, como prova de Nosso paternal afeto, e, como penhor de
divinos favores, recebei a bênção apostólica, que, com toda a alma, vos concedemos a
Vós, Veneráveis Irmãos, ao vosso clero e à vossa grei.

Dada em Roma, junto a S. Pedro, aos 11 de Dezembro do


Ano Santo de 1925, quarto do Nosso Pontificado.
PIO PP. XI

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SANTO TOMÁS VERSUS HUMANISMO

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CORTE E COSTURA HUMANISTA13

Carlos Nougué

QUANDO QUEREM DEMONSTRAR-SE tomistas da mais pura ortodoxia, os humanistas


integrais ao estilo de Jacques Maritain se aplicam com afinco e arte a um corte e costura
das Escrituras, do magistério da Igreja e da obra do Aquinate... corrigimo-nos: sempre
com afinco, mas nem sempre com arte, porque não raro é muito fácil desfazer-lhes a
costura e exibir o corte.
Eis um exemplo clássico (e que verdadeiramente surpreende por seu longevo
vigor): o uso e abuso da passagem de Santo Tomás na Suma Teológica, II-II, q. 10, a. 10
(―Se podem os infiéis ter governo [praelationem] e domínio sobre os fiéis‖), corpus, onde
se lê: ―Ius divinum, quod est ex gratia, non tollit ius humanum, quod est ex naturali
ratione‖ (O direito divino, que vem da graça, não suprime o direito humano, que vem
da razão natural). Vejamos o que diz com respeito a esta passagem Charles Journet,
justamente o principal parceiro de Jacques Maritain (e considerado por muitos e por
muito tempo como da mais estrita observância tomista). E, vendo-o, como escreve o
Padre Calderón num de seus livros, ―é difícil pensar que Journet o diga sem plena
advertência de estar falseando o pensamento do Doutor Angélico‖. Com efeito, em sua
obra La Juridiction de l’Eglise sur la Cité,14 o então futuro Cardeal afirma que o que se lê
naquela passagem de Santo Tomás é o ―princípio supremo‖ da política cristã. E
prossegue: ―Deste princípio supremo, cujas consequências são incalculáveis, deduz-se
imediatamente que, sendo a Igreja de direito divino e as diferentes formas da
sociedade civil de direito humano, a Igreja e a Cidade [esta também com maiúscula,
como convém a um humanista] serão ao mesmo tempo distintas e ordenadas entre si,
como o são a natureza e a graça. Os dois princípios próximos da política cristã são a
distinção entre a Igreja e a Cidade, e a subordinação da segunda à primeira‖ (pp. 26-
27). Mas de que distinção e de que subordinação se trata? Em primeiro lugar, a
distinção: ―Deve-se chamar temporal, com todos os teólogos [sic], ao que é ordenado,
como a seu fim imediato e primeiro, ao bem comum (material e moral) da cidade
terrestre, bem que concerne substancialmente à ordem natural […]. E deve-se chamar
espiritual, com os teólogos, ao que é ordenado como a seu fim imediato e primeiro ao
bem comum sobrenatural da Igreja‖ (ibid., pp. 28-29) Donde, em segundo lugar, este

13 Este artigo é uma reunião e refundição de vários artigos aparecidos no blog Contra Impugnantes e
no número 1 desta mesma revista.
14 Paris, Desclée, 1931.

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tipo preciso de ―subordinação‖ do material ao espiritual: se a cidade tem uma
―soberania essencial‖ nas coisas temporais, terá uma ―subordinação acidental‖ com
respeito à Igreja (cf. Padre Calderón), ―na medida em que as coisas de que [o poder
político] se ocupa, e que são regularmente temporais, vêm a ser ocasionalmente
espirituais‖ (Journet, ibid., pp. 70-72); razão por que ―o fim da Igreja, longe de englobar
o fim do Estado, permanece absolutamente distinto‖ (idem, p. 75). Mais ainda: quanto
ao citado texto da Suma, afirma Journet que é um ―princípio fundamental de Santo
Tomás como expressão‖ nada menos que ―do pensamento tradicional da Igreja‖ (ibid.,
p. 40).
Aqui, digamos apenas, en passant: primeiro, que o que é subordinação acidental não
é, em verdade, subordinação propriamente dita, que per se sempre será essencial:
afinal, como diz ainda o Padre Calderón, ―também o Papa está subordinado
acidentalmente a seu dentista!‖; segundo, que nem pela melhor costura do mundo tal
princípio é ―expressão do pensamento tradicional da Igreja‖, como já o veremos. Mas
será pelo menos um ―princípio fundamental de Santo Tomás‖?
Como o poderia ser, se à referida passagem de II-II, q. 10, a. 10 se seguem
imediatamente (insista-se: imediatamente, como próximas frases do mesmo parágrafo ou
corpus!) estas plavras: ―Por isso, a distinção entre fiéis e infiéis, considerada em si
mesma, não suprime o domínio ou governo dos infiéis sobre os fiéis. No entanto
[ATENÇÃO!], o direito de domínio ou governo pode ser suprimido por uma sentença ou
ordem da Igreja, [ATENÇÃO!!] cuja autoridade vem de Deus, porque [ATENÇÃO!!!] os
infiéis, em razão de sua infidelidade, merecem perder o poder [potestatem] sobre os
fiéis, [ATENÇÃO!!!!] que se transformam em filhos de Deus‖? Como o poderia ser, se, do
alto de seu inigualável realismo e bom senso, diz o Aquinate (na mesma questão, ad 1)
―que o governo [praelatio] de César preexistia à distinção entre fiéis e infiéis e não
cessava com a conversão de alguns à fé‖, e que, mais que isso, ―era útil alguns fiéis
terem lugar na casa do Imperador para a defesa de outros fiéis. Assim, o bem-
aventurado Sebastião, enquanto via os cristãos desfalecer em seus tormentos,
confortava-os, continuando, oculto sob a clâmide militar, a fazer parte da família de
Diocleciano‖? Como o poderia ser, se, por fim, também diz o Aquinate (na mesma
questão, ad 3) ―que os escravos estão sujeitos a seus senhores por toda a vida, e os
súditos a seus superiores; mas os ajudantes dos artífices lhe estão sujeitos [somente]
para determinados trabalhos. Portanto, é mais perigoso que os infiéis recebam domínio
ou governo sobre os fiéis do que uma colaboração em algum serviço especial. [...]
Salomão também pediu ao rei de Tiro mestres de obras para que cortassem madeira,
como se lê em III Reis, V, 6. E, no entanto, se de tal comunhão ou convivência se temer
a ruína dos fiéis, deve ela ser totalmente proibida‖?
Por não ser nosso objetivo neste artigo, como de fato não é, demonstrar
exaustivamente a justiça e verdade do verdadeiro ―princípio fundamental‖ de Santo
Tomás, que efetivamente expressa ―o pensamento tradicional da Igreja‖ a este respeito,
basta tal mostra, de per si evidente, do corte e costura feito com pouquíssima arte pelo
então futuro Cardeal Charles Journet (e fonte de que beberá Maritain para tomar o
caminho do ―humanismo integral‖). Nosso objetivo aqui, porém, tem efetiva e

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diretamente que ver com a péssima arte desses homens que, não obstante, eram mentes
poderosas e realmente lidas, estudadas; e que por isso mesmo foram capazes de
nefastamente influenciar uma multidão de pequenos costureiros da realidade nem de
longe talentosos, lidos e estudados como eles, mas que hoje pululam nos media, tesoura
e linha na mão, a alinhavar de modo ainda mais bisonho os textos alheios ― e quase
sempre a se considerar ou dizer tomistas e católicos da mais pura ortodoxia. E chega a
tal ponto a vertigem, que vemos até não católicos brandir não só o referido ―princípio
fundamental‖ de Santo Tomás, mas também o próprio ―pensamento tradicional da
Igreja‖ a respeito das relações entre poder espiritual e poder temporal...
E tal triste espetáculo, de fato, vimo-lo renovar-se por ocasião da última encíclica do
Papa Bento XVI, Caritas in Veritate, documento em perfeito acordo com os princípios
humanistas do Concílio Vaticano II. Com efeito, uma multidão de liberais não
católicos, católicos liberais, católicos humanistas e humanistas nada católicos ― entre os
quais tentar estabelecer fronteiras perfeitamente nítidas seria uma empresa, para
parafrasear Aristóteles, para um deus ou para uma besta... ― dividiu-se, com relação à
referida encíclica, em dois campos principais. (Naturalmente, excluímos dessa multidão
tanto os que criticaram a encíclica do ângulo do magistério infalível e de Santo Tomás
quanto os que, sendo embora católicos tradicionais, não quiseram ver nela o que porém
é mais que patente.) 1) UM, contrário a ela, pelo argumento de que um governo ou uma
liderança mundial, como proposta por Bento XVI na encíclica, contrariaria a
sacrossanta liberdade da pessoa humana e dos povos, razão por que, ainda segundo
este campo, iria contra alguns princípios católicos mais profundos, e de passagem
feriria os direitos da Igreja. Como veremos, este grupo recorta, além da verdadeira
doutrina católica sobre a liberdade, sobre o direito divino positivo e sobre as relações
entre poder espiritual e poder temporal, o Apocalipse joanino ― para dos retalhos fazer
uma colcha de nítido fundo liberal-ortodoxo. 2) O OUTRO, favorável a ela, pelo
argumento de que tal governo ou liderança mundial proposta por Bento XVI não só
absolutamente não contrariaria a sacrossanta liberdade da pessoa humana e dos povos,
mas de modo particular absolutamente não iria contra os princípios católicos das
relações entre Igreja e Estado nem, de modo algum, feriria os direitos da Igreja. Como
veremos, este campo recorta, além da verdadeira doutrina católica sobre a liberdade e
sobre o direito divino positivo, a doutrina do magistério infalível sobre as relações
entre poder eclesiástico e poder civil (valendo-se, em particular, em seu afã recortador,
de documentos ou pronunciamentos de Bento XV e de Pio XII), e identifica a doutrina
de Santo Tomás a respeito desta matéria com a de pretensos seguidores seus, em
especial: Dante Alighieri (1265-1321) e seu De Monarchia; o dominicano espanhol
Francisco de Vitória (1483-1512); e o teólogo jesuíta, também espanhol, Francisco
Suárez (1548-1617) ― para dos retalhos fazer uma colcha de nítido caráter humanista
integral e vaticano-segundo.15
De fato, esta última posição é caudatária da Constituição Pastoral Gaudium et spes,
onde se lê: ―Enquanto houver risco de guerra e faltar uma autoridade internacional

15Sobre Francisco de Vitória e Francisco Suárez e o tema que nos ocupa aqui, cf. PADRE ÁLVARO
CALDERÓN, El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II, versão em PDF.

89
competente e munida de meios eficazes, uma vez esgotados todos os recursos pacíficos
da diplomacia, não se poderá negar o direito de legítima defesa aos governos‖ (GS 79);
―Devemos procurar com todas as nossas forças preparar uma época em que, por
acordo das nações, possa ser absolutamente proibida qualquer guerra. Isto requer o
estabelecimento de uma autoridade pública universal reconhecida por todos, com
poder eficaz para garantir a segurança, o cumprimento da justiça e o respeito dos
direitos‖ (GS 82). Pois bem, como diz o Padre Calderón, ―por necessidade teológica, a
única autoridade com poder eficaz para impedir as guerras que não seja a do Vigário
de Cristo será a do Anticristo. Prezado Leitor, não estamos fazendo apocalipse-ficção!
Se não é o Príncipe da Paz quem estabelece a ordem da justiça entre os povos por meio
dos poderes que lhe comunicou seu Vigário, será o Príncipe das trevas quem o fará por
meio dos poderes que lhe fornecer seu primogênito, o Anticristo. São as forças que há
em jogo, e não é possível outra coisa. O Concílio Vaticano II tende a preparar com
todas as suas forças a instauração não do Reino de Deus, mas do Reino do Inimigo!‖
Verdadeiramente, a paz e a cooperação internacionais ou se darão sob as bandeiras da
Realeza de Nosso Senhor, ou sob o pavilhão de Satanás.
Mas o que realmente importa segundo o escopo deste artigo não é propriamente
demonstrar a maldade intrínseca desta posição nem da sua ―contrária‖, ou melhor, da
referida anteriormente a ela, porque em verdade as duas têm muitíssimos pontos e um
fundo comuns. O que realmente importa aqui, no pequeno âmbito deste artigo, é
demonstrar até que ponto vai o atrevimento desses costureiros da realidade em sua
arte pífia e nada lisa. É o que faremos em seguida.16

II

NA PRESIDÊNCIA DO CONCÍLIO VATICANO I (o vigésimo ecumênico, sobre a fé e a Igreja),


Sua Santidade o Papa Pio IX definiu o seguinte: ―1838. Mas, como nestes nossos
tempos, em que mais do que nunca se precisa da salutífera eficácia do ministério
apostólico, muitos há que combatem esta autoridade, julgamos absolutamente
necessário afirmar solenemente esta prerrogativa que o Filho Unigênito de Deus se
dignou ajuntar ao supremo ofício pastoral. 1839. Por isso Nós, apegando-nos à
Tradição recebida desde o início da fé cristã, para a glória de Deus, nosso Salvador,
para exaltação da religião católica, e para a salvação dos povos cristãos, com a
aprovação do Sagrado Concílio, ensinamos e definimos como dogma divinamente
revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no
desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua
suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a
Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza
daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma
doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são

16O fato de tal arte não ser nada lisa independe da ciência atual que seus cultores tenham dessa falta
de lisura. Afinal, a ignorância não só pode ser causa de pecado, mas pode ter razão de culpa e pois
ser ela mesma pecado (cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, De malo, q. 3, aa. 6-7).

90
por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis. 1840.
[Cânon]: Se, porém, alguém ousar contrariar esta nossa definição, o que Deus não
permita — seja anátema.‖ Por que o citamos? Porque, se o objetivo deste artigo é
patentear o corte e costura que, por ocasião da encíclica do Papa Bento XVI Caritas in
Veritate, uma multidão de não católicos e de católicos liberais operou nas Escrituras e
no magistério infalível da Igreja (bem como na obra do Aquinate), uns para justificar
sua crítica àquela encíclica, os outros para apoiá-la, não o podemos fazer senão
partindo de pressupostos católicos católicos (com repetição necessária nos dias de hoje),
sem os quais não se evidenciaria aquele corte e costura.
E o primeiro desses pressupostos tem de ser, necessariamente, a infalibilidade
papal, porque é fundando-nos nele que podemos dizer: ou se crê na infalibilidade
papal e, por isso mesmo, se crê na integralidade da doutrina cristã que constitui o
depósito da fé, ou não se pode crer em nada desta mesma doutrina ou depósito. A fé e
a doutrina católicas não são um baú de ideias que podemos selecionar ao nosso arbítrio
e bel-prazer, aceitando algumas e rejeitando as demais. Proceder assim é já pôr-se fora
do campo católico (ou no campo católico liberal ou humanista, que, como diz o Padre
Calderón, só se pode dizer católico ao modo de um câncer), e tal recorte em nossa
íntegra doutrina é já, de per si, nada liso. Mas o que se acaba de dizer requer respostas
a algumas objeções.
1) Por que a doutrina católica ou é integralmente verdadeira ou absolutamente não
o será? Ora, quem a impõe são os Romanos Pontífices, que, cumpridas todas as
condições vaticanas da infalibilidade, são individualmente infalíveis em matéria de fé e
costumes ou moral, razão por que não pode haver contradição entre eles nesta matéria.
Logo, ou o conjunto dos magistérios da sequência temporal dos Papas é infalível como
cada um deles, ou esta última afirmação não seria verdadeira. Logo, porque cremos na
infalibilidade papal individual e pois em que o conjunto dos magistérios papais é
ininterruptamente infalível em matéria de fé e costumes, por isso mesmo ou a
integralidade da doutrina católica que emana dessa sequência é absolutamente
verdadeira (e, pois, em nada contraditória), ou nenhuma das partes dela o será.
2) Se tal é verdade, então por que se rejeita o magistério dos chamados Papas
conciliares (ou seja, o magistério fundado nas teses aprovadas no Concílio Vaticano II),
tal como, de fato, aqui se rejeita a referida encíclica do Papa Bento XVI? Como tal é
possível, se é inegável que a maioria dos fiéis e sacerdotes católicos atuais aprova essa
mesma encíclica ou ao menos não se opõe a ela? Sucede, porém, que ―a propriedade de
infalibilidade deste ato não provém exclusiva, nem principal, nem formalmente da fé
do povo cristão, mas do Magistério da Igreja, cujo sujeito não é a Igreja universal, mas
o Papa e os bispos [sob ele], e cujo princípio não é a fé, mas o carisma da infalível
verdade‖ (Padre Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire). Com efeito, ―o magistério da
Igreja é regra próxima da fé comum dos cristãos, porque só a ele foi prometida a
assistência do Espírito Santo para conservar integralmente e propor indefectivelmente
o depósito da fé‖ (ibid.). Por isso, a infalibilidade in credendo da Igreja universal se
reduz estritamente à infalibilidade in docendo da Hierarquia eclesiástica — e esta
sentença, conquanto ainda não se possa dizer dogma de fé, ―é todavia doutrina católica

91
certa‖ (ibid.; grifo nosso). Mas os Papas conciliares não o aceitam, porque,
coerentemente com o espírito do Concílio Vaticano II e conforme aos princípios liberal-
democratistas que o fundaram, para eles o sentir comum dos fiéis é que é a regra
próxima do magistério, ―porque a assistência do Espírito Santo teria sido prometida
em primeiro lugar à comunidade dos fiéis para viver em cada época o Evangelho, e só
em segundo lugar o magistério é assistido para compreender, expressar e autorizar o
que o Espírito diz à Igreja‖ (ibid.). Não seriam os fiéis, portanto, quem deveria seguir as
definições do Magistério, mas o Magistério quem deveria acompanhar, digamos, as
tendências dos fiéis. Ora, como pensam assim, os Papas conciliares, em vez de querer
impor doutrina, depõem sua própria autoridade para fazê-lo; ademais, como diz Mons.
Gasser, relator da Deputação da Fé no Vaticano I, ―é necessária [para a infalibilidade] a
intenção manifestada de definir a doutrina, ou de impor um fim à flutuação com
respeito a certa doutrina ou coisa por definir, dando uma sentença definitiva, e
propondo essa doutrina para ser defendida por toda a Igreja. Este elemento é
certamente algo intrínseco a toda e qualquer definição dogmática sobre a fé ou os
costumes ensinada pelo pastor e doutor da Igreja universal e que deve ser defendida
por toda a Igreja‖ (apud ibid.). Como, pois, os Papas conciliares não querem nunca
impor doutrina, nem, muito menos, impô-la no sentido dado por M. Gasser, mas tão
somente sugerir temas para o debate entre os fiéis e teólogos; como, ademais, pelo fato
mesmo de deporem a autoridade que têm para impor doutrina, eles deixam de ter a
assistência do Espírito Santo e perdem o carisma da infalibilidade; por isso mesmo não
somos obrigados a aceitar seu magistério, sendo antes, pelo contrário, obrigados a
rejeitá-lo sempre e quando se oponha à doutrina ininterruptamente definida e imposta
pelo Magistério ao longo do tempo.
3) Mas, segundo ainda a referida definição dada por Pio IX e pelo Concílio Vaticano
I, a assistência do Espírito Santo ocorre ―quando o Romano Pontífice fala ex cathedra‖ e
―sobre fé e moral‖. Sendo assim, todas as demais formas de declaração papal não
derivariam de tal assistência e, portanto, não trariam o selo da infalibilidade? A correta
resposta a esta questão tem por princípio doutrinal os chamados ―graus de autoridade
nos atos de magistério‖, graus cuja existência, como diz ainda o Padre Calderón (ibid.),
está suficientemente estabelecida, mas cuja natureza não fora tão explicada como a
infalibilidade. Com efeito, não só o magistério infalível (ou seja, aquele derivado de
pronunciamentos ex cathedra sobre fé e costumes) tem a assistência do Espírito Santo;
também a tem o magistério simplesmente autêntico, que por isso mesmo também exige
dos fiéis religiosa submissão do intelecto e da vontade. Sucede, porém, que ―a
assistência do Espírito Santo é comprometida em diversos graus, segundo a natureza
dos diversos atos magisteriais‖ (ibid.). Explica-o o esquema De Ecclesia, preparatório do
Concílio Vaticano II (e, como se sabe, posto de lado no decorrer do mesmo concílio).
Com efeito, segundo ele, é doutrina católica certa que o magistério simplesmente
autêntico (ou seja, não ex cathedra) se impõe aos fiéis segundo diversos graus de
autoridade, dependentes da maneira diversa de expressar-se: ―É necessário prestar
obediência religiosa da vontade e da inteligência ao magistério autêntico do pontífice
romano, mesmo quando não fala ex cathedra, de maneira que seu magistério supremo

92
seja realmente reconhecido, e que se adira sinceramente ao ensinamento que propõe;
fazendo-o segundo o espírito e a vontade por ele manifestados, que se reconhecem quer pela
matéria dos documentos, quer pela frequência da proposição da mesma doutrina, quer
pela maneira de expressar-se‖ (apud ibid.). Seguia-se nisto, por exemplo, a Pio XII, de
acordo com o qual, ―para que não se privem de uma ajuda dada por Deus com tão
generosa bondade, devem necessariamente prestar esta obediência não só às definições
solenes da Igreja, mas também, guardando o modo devido – servato modo –, às outras
constituições e decretos pelos quais algumas opiniões são proscritas e condenadas
como perigosas ou más‖. Ora, exatamente por isso é que ―o critério de verdade do
magister eclesiástico é a assistência do Espírito Santo atualizada por sua intenção ministerial,
pois para falar em nome de Cristo ele não tem senão de fazê-lo intencionalmente; de
maneira que [...], quanto mais impositiva for a intenção com que propõe sua sentença,
mais assistida será pelo Espírito Santo e menos margem de erro terá‖ (Padre Calderón,
ibid.). Se assim é, o magistério simplesmente autêntico da Hierarquia goza da
assistência do Espírito Santo ―em maior ou menor grau, tendo então sua sentença
maior ou menor autoridade diante do católico fiel, segundo os diversos graus da
intenção magisterial, que vão da probabilidade à certeza; devendo estes julgar-se more
humano, quer dizer, segundo os critérios com que os homens costumam julgar as
sentenças de seus mestres: ou pelo que expressamente dizem, ou pela matéria, ou pela
solenidade do ato, ou pela frequência com que são ensinadas‖ (ibid.). Ora, pelo dito, o
discurso de ocasião do Papa Pio XII, ao fim da II Guerra Mundial, em que exaltou a
democracia em geral não pode ter o mesmo grau de autoridade que o de seus mesmos
escritos em que condena a democracia liberal. Mas o magistério dos Papas conciliares,
pela razão de nele não se comprometer em nenhum grau a infalibilidade pontifícia, não
tem nenhum grau de autoridade doutrinal (nem sequer naquilo em que eventualmente
coincida com o magistério anterior, porque, com efeito, quem o tem é este, dado que no
conciliar, ainda nisto, segue havendo defeito absoluto de intenção magisterial).
4) A polêmica com respeito à Encíclica Caritas in Veritate girava em torno do
―direito das gentes‖, das relações internacionais e de um possível governo mundial, o
que evidentemente se vincula ao assunto das relações entre Igreja e estado. Mas será
este assunto matéria de fé e costumes? Ou seja, será matéria capaz de infalibilidade
papal ou de assistência (em qualquer grau) do Espírito Santo? Comece-se por
responder a isto com outra pergunta: é matéria de fé e de moral o tema físico da origem
do universo, ou seja, se teve início com um big bang ou não? Enquanto tema físico,
certamente não o é; mas, admitido o big bang enquanto hipótese, já seria matéria de fé o
afirmar ou negar que foi Deus quem criou do nada e no tempo aquela ínfima e
altamente concentrada partícula de energia (como se diz modernamente) ou de luz
(como dizia o Bispo Robert Grosseteste no século XIII...) — sendo anátema o negá-lo.
Similarmente, não é matéria de fé nem de moral escolher em determinado país entre dois ou
mais regimes políticos naturalmente legítimos; mas, sim, o será se se trata de afirmar ou negar
que todo e qualquer regime político tem de ordenar-se ao fim último do homem, Deus, e ao poder
encarregado por Deus mesmo de prover o espiritualmente necessário para a salvação não só de
cada indivíduo, mas também das multidões de indivíduos que constituem as cidades ou estados

93
— sendo igualmente anátema o negá-lo. Pois bem, como veremos na próxima parte
deste artigo, o que se acaba de dizer tem por fundamento solidíssimo as próprias
Escrituras.

[Resta ainda uma dupla objeção, que não pode ficar sem resposta. Por um lado,
documentos pontifícios como Au milieu des sollicitudes (Leão XIII), como afirmam
setores católicos tradicionais, parecem contrariar a doutrina de sempre da Igreja sobre
as relações entre ela e os estados, para estimular, no caso, um ilegítimo ralliement; por
outro lado, ao mesmo tempo que lança a Carta Magna da política católica que é a Quas
primas, Pio XI parece errar gravemente, na prática, ao contribuir de algum modo para o
esmagamento do movimento cristero pelo regime revolucionário-maçônico do México;
e coisas semelhantes que se deram no pontificado de outros papas. Resposta. Quanto à
primeira, pode um Papa num mesmo documento cometer algum erro de caráter prático
e manter, paralelamente, a pureza e justeza doutrinais; também pode num documento
de caráter eminentemente prático equivocar-se em toda a linha, sem com isso se
equivocar em questões de doutrina. Tratar-se-á, neste caso, de equívoco puramente
prudencial. Quanto à segunda, questão delicada que especialmente os leigos devemos
quanto possível evitar, diga-se algo similar, mas complementar, ao que se disse quanto
à primeira: Cristo não prometeu indefectível assistência do Espírito Santo à prática de
governo dos Papas; nem os Papas empenham sua infalibilidade em atos concretos de
governo; em termos de indefectibilidade, tal assistência e tal infalibilidade têm que ver
apenas com a autoridade magisterial ou doutrinal do papado.]

III

―LOUVAI AO SENHOR DO ALTO dos céus, louvai-O nas alturas. Louvai-O, todos os seus
anjos; louvai-O, todos os seus exércitos. Louvai-O, sol e lua; louvai-O, todas as estrelas
e a luz. Louvai-O, céus dos céus, e todas as águas que estão sobre os céus. Louvai o
nome do Senhor. Porque Ele disse e tudo foi feito; ordenou e tudo foi criado.
Estabeleceu-o para sempre, e pelos séculos dos séculos; impôs uma lei que não passará.
Louvai ao Senhor, vós da terra, monstros marinhos e todos os abismos do mar. Fogo e
granizo, neve e gelo, ventos de tempestades que obedecem à sua palavra; Montes e
colinas, árvores frutíferas e todos os cedros; Animais selvagens e todos os rebanhos,
serpentes e pássaros; Reis da terra e todos os povos, príncipes e todos os juízes da terra;
Jovens e virgens, velhos e meninos, louvai o nome do Senhor! Sua glória está acima do
céu e da terra [...].‖ Assim reza o Salmo 148. E semelhantemente rezam outros Salmos,
como o 2: ―Por que se agitam as nações, e tramam em vão os povos? Os reis da terra se
levantam, conspiram os príncipes contra o Senhor e seu Cristo: ‗Vamos, quebremos
seus grilhões, sacudamos de nós o seu jugo!‘ Aquele que está sentado no céu [...] lhes
falará na sua cólera, os espantará no seu furor: ‗Fui eu que o sagrei meu rei em Sião,
minha montanha santa.‘ [...] E agora, ó reis, compreendei; juízes da terra, instruí-vos.
Servi ao Senhor com respeito, beijai-lhe os pés com tremor [...].‖ E o 7: ―[...] Despertai, ó
Deus, para o julgamento que convocas. Que a assembleia das nações Vos circunde, e

94
sobre elas, o Vosso trono. O Senhor vai julgar os povos [...].‖ E o 9, I: ―Abatestes [ó
Deus] os pagãos, ao ímpio destruístes, apagastes o seu nome para sempre. [...]
Demolistes, suas cidades são ruínas eternas. Mas eis que o Senhor está para sempre
sentado, armou seu trono para o julgamento. Pois julgará o mundo com equidade,
pronunciará sobre as nações sentença justa [...].‖ E ainda o 9, II: ―[...] Fazei tombar
sobre eles [os pagãos], Senhor, o vosso terror; compreendam os povos que não passam
de homens. [...] O Senhor é rei para sempre; desaparecei da terra, pagãos! [...]‖ Poder-
se-iam multiplicar aqui, quase inumeravelmente, as citações do Antigo Testamento em
que Deus aparece como Rei e Juiz das nações e dos povos, e estes, e seus reis, e seus
príncipes, e seus próprios juízes como devendo prestar-Lhe, a Seus pés, a devida glória
e louvor.
Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo, a) por direito de nascimento eterno e de
consubstancialidade divina (―No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o
Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feiras por Ele,
e nada do que foi feito foi feito sem Ele‖ — Jo., I, 1-2), b) por descendência carnal de
Davi e c) por direito de conquista, resgate e redenção mediante sua própria Paixão e
Morte na Cruz, herdou a suprema Realeza e Magistratura sobre toda a terra e suas
nações, e seus povos, e seus reis, e seus príncipes, e seus juízes. Disse-o Ele mesmo,
ressurreto, num monte da Galileia, a alguns Apóstolos que duvidavam: ―Omnia
potestas data est mihi in coelo et in terra‖ (―Foi-me dado todo o poder no céu e na
terra‖) (Mat., XXVIII, 18).
Com efeito, ser rei é ter ordenados a si todos os seus súditos como a seu bem
comum, assim como ser general é ter ordenados a si todos os seus subordinados como
a seu bem comum. Como dizia Aristóteles em passagem luminosa, ―Devemos
considerar de que modo a realidade do universo possui o bom e o ótimo, se como algo
separado em si e por si, ou como a ordem, ou ainda de ambos os modos, como
acontece com um exército. De fato, o bem do exército está na ordem, mas também está
no general; antes, mais neste que naquela, porque o general não existe em virtude da
ordem, mas a ordem em virtude do general. Todas as coisas estão de certo modo
ordenadas em conjunto, mas nem todas do mesmo modo: peixes, aves, plantas; e o
ordenamento não ocorre de modo que uma coisa não tenha relação com outra, mas de
modo que haja algo de comum [entre elas]. De fato, todas as coisas são coordenadas a
um único fim. Assim, numa casa, aos homens livres não cabe agir ao acaso; ao
contrário, todas ou quase todas as suas ações são ordenadas [...]. Quero dizer que todas
as coisas, necessariamente, tendem a distinguir-se; mas, por outros aspectos, todas
tendem para o todo‖.17
(Que terror não haverá de causar essa passagem a um liberal! ―Como assim?‖,
perguntar-se-á ele, sentindo abrir-se-lhe sob os pés o chão, tão aparentemente sólido,
do bem comum posto a serviço do indivíduo humano... Pois tal terror é o mesmo que
sente o católico liberal ou humanista ao ler tudo quanto nas Sagradas Escrituras, no
magistério da Igreja e na obra de Santo Tomás diz algo semelhante, mas de ainda maior
razão formal, das relações entre Cristo Rei e os estados. E é por causa desse terror que

17 Metafísica, Λ 10, 1075 a 11-25.

95
ele entra a cortar e recortar tanto as Sagradas Escrituras quanto o magistério da Igreja e
a obra do Aquinate, a fim de com os retalhos compor uma colcha com que cobrir-se
para não fitar a luz deslumbrante da verdade.)18
Insurge-se, porém, o católico liberal ou humanista, brandindo, como derradeiro e
desesperado recurso, duas passagens dos Evangelhos que lhe parecem, enfim, dar-lhe
toda a razão:
a) ―Dai a César‖, diz Nosso Senhor mesmo, ―o que é de César, e a Deus o que é de
Deus‖ (Mat., XX, 21);
b) ―Meu reino não é deste mundo‖, diz o Redentor a Pilatos; ―se meu reino fosse
deste mundo, certamente os meus ministros se haviam de esforçar para que eu não
fosse entregue aos judeus; mas meu reino‖, insiste, ―não é daqui‖ (Jo., XVIII, 36). Ou
seja, em meio a seu afã recortador, quer crer o nosso católico humanista que com essas
duas passagens se firmam duas verdades de fulcro liberal:
a) Há dois poderes, um sobrenatural (ou espiritual, representado pela Igreja) e
outro temporal (representado pelos poderes terrenos), e não há ordenação essencial
deste àquele, havendo-a no máximo acidental ou indireta. Em outras palavras: Deus e
César, cada qual em seu âmbito e cada qual com seu fim, como o afirma Dante em seu
De Monarchia, e como o afirmarão tantos humanistas, tantos católicos mais ou menos
contaminados de humanismo e liberalismo e até (por razões que se explicarão em
outro momento, e sempre contraditoriamente com seus próprios princípios) destacados
católicos antiliberais: no primeiro grupo, por exemplo, Marsílio de Pádua; no segundo,
também por exemplo, Francisco de Vitória, Francisco Suárez, Jacques Maritain, Louis
Lachance, Étienne Gilson; no terceiro, ainda por exemplo, o grande Cardeal Billot, o
mesmo que renunciou ao cardinalato após a condenação de Maurras e da Action
Française por Roma.
b) O reino de Cristo é, segundo as próprias palavras de Nosso Senhor, puramente
sobrenatural — ou espiritual, exercendo-se sobretudo no íntimo da alma de cada fiel.
Ao longo de muitos séculos de investida do catolicismo humanista-liberal, tem servido
este último fundamento para alicerçar a ―verdade‖ anterior, porque, com efeito, se o
fim último de cada homem é a beatitude da visão face a face de Deus, então bastaria,
para tal efeito, que o reino de Cristo se exercesse no domínio das almas individuais.
Sucede, todavia, que antes de tudo o negam as próprias Escrituras. Com efeito, se
assim não fosse, por que teria dito Cristo que lhe ―foi dado todo o poder no céu e na
terra‖, e não ―todo o poder no céu e ‗nas almas humanas‘‖? E por que o mesmo Cristo

18 E pergunte-se: como é possível um liberal de qualquer matiz dizer-se aristotélico ou platônico?


Cegar-se-á ele no momento de pôr os olhos sobre a passagem aristotélica acima transcrita ou sobre
tantas passagens platônicas de mesmo teor na República como nas Leis? Pois, como se vê, não só as
Sagradas Escrituras, o magistério da Igreja e Santo Tomás são objeto de corte e costura; também o é
Aristóteles, e também o é Platão. Não por nada, aliás, foram Platão e Aristóteles os dois filósofos
pagãos que, respectivamente, Santo Agostinho e Santo Tomás instrumentalizaram em ordem às suas
respectivas Teologias: é que, certamente com o auxílio de graças atuais segundo o desenho histórico
da Divina Providência, tinham aqueles dois gregos aprendido a pensar, e a tal ponto, que concluíram
com certeza que o bem comum não é um butim por partilhar entre indivíduos ávidos de ―liberdade‖
e empanzinados de amor-próprio.

96
nos teria mandado rezar ―venha a nós o vosso reino, assim na terra como no céu‖, e não
―venha a nós o vosso reino, assim ‗nas almas‘ como no céu‖? Naturalmente, a terra
inclui aqui as almas humanas. Mas, se só delas se tratasse, por que o uso de tal
generalidade local? Ademais, após Nosso Senhor dizer que seu reino ―não é deste
mundo‖, retruca-Lhe Pilatos: ―Ergo, rex es tu‖ (―Logo, tu és rei‖). Ao que responde
Jesus: ―Tu o dizes, sou rei. Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade;
todo aquele que está pela verdade escuta a minha voz‖ (Jo., XVIII, 37). Ora, com esse
―nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade‖ Jesus reclama ―não tanto o
direito de soberania divina da segunda pessoa da Santíssima Trindade‖ (Jean Ousset,
Pour qu’Il regne, Paris, La Cité Catholique, 1959); trata-se, antes, do direito soberano
descrito numa visão: ―Porquanto um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado; a
soberania repousa sobre seus ombros, e ele se chama: Conselheiro Admirável, Deus
Forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz. Seu império se estenderá cada vez mais, e a paz não
terá fim; sentar-se-á sobre o trono de Davi e sobre seu reino, para o firmar e fortalecer
pelo direito e pela justiça, desde agora e para sempre; fará isto o zelo do Senhor dos
exércitos‖ (Is., IX, 6-7). O mesmo direito de soberania visto, ainda mais claramente, por
Daniel: ―Eu estava, pois, observando estas coisas durante uma visão noturna, e eis que
vi alguém, que parecia o Filho do homem, vir sobre as nuvens do céu: ele avançou para
o Ancião, diante de quem foi conduzido. E este lhe deu poder, glória e reino, e todos os
povos, nações e línguas o serviram. Seu domínio é um domínio eterno que não passará,
e seu reino jamais será destruído‖ (Dan., VII, 13-14). Com efeito, como escreve São
Boaventura, ―é enquanto homem que o Salvador foi magnificado acima de todos os
reis da terra por causa da assunção de sua Humanidade na unidade de uma pessoa
divina‖.19 ―A alma de Cristo‖, diz por seu lado Santo Tomás, ―é alma de rei; ela rege
todos os entes, porque a união hipostática a coloca acima de toda e qualquer criatura.‖
Mais adiante, veremos o fundamento da doutrina tomista a este respeito. Diga-se,
no entanto, desde já:
a) É impreciso afirmar, sin más, que o fim último do homem seja a beatitude ou
visão face a face de Deus. Como diz o Padre Calderón, deve-se ―esclarecer que o fim
último em sentido próprio é Deus em si mesmo, e que ‗a beatitude se diz fim último no
sentido em que a obtenção do fim se chama fim‘ (I-II, q. 3, a. 1, ad 3)‖. Ora, essa
imprecisão aparentemente pequena tem grande implicação na visão católica humanista
que nos ocupa. É baseados nela que mesmo os católicos humanistas mais próximos da
verdadeira doutrina da Igreja esquecem que toda a nossa vida deve servir antes de
tudo à glória de Deus e que nossa mesma salvação é propriamente consequência desse
render glória a Cristo Rei de toda a nossa alma e coração.
b) O reino de Cristo, assim na terra como no céu, assim nas almas deste vale de
lágrimas como nas almas já em glória ou reunidas a seu corpo na Jerusalém Celeste, é o
reino da Verdade, como o diz o mesmo Nosso Senhor a Pilatos. Ora, embora a
falsidade comporte graus, não assim a verdade; ou é integral, ou simplesmente não é
verdade. Logo, ou o reino da Verdade será total, ou não o será.
c) Logo, o reino de Cristo de fato não é deste mundo, mas se exerce sobre este mundo.

19 Serm. I in dom. Palm. IX, 243a.

97
d) Mais ainda: o Reino de Cristo é a própria Igreja (―Regnum Christi, quod est
Ecclesia‖, Catecismo do Concílio de Trento).20 Já o dissera Tobias em sua profecia sobre
Jerusalém, que é figura da Igreja: ―Tu brilharás com uma refulgente luz; e todas as
extremidades da terra se prostrarão diante de ti. As nações virão a ti de longe, e,
trazendo-te dádivas, adorarão em ti o Senhor, e terão a tua terra por santa. [...] Serão
malditos os que te desprezarem, e serão condenados todos os que blasfemarem contra
ti; e serão benditos os que te edificarem‖ (Tob., XIII, 13-16).
e) E mais ainda: porque a Cristandade e suas cidades são parte da Igreja, Jerusalém
também é figura sua. E lembremo-nos de que foi sobre uma Jerusalém apóstata e
votada à ruína que chorou seu mesmo Rei.

IV

ASSIM, POIS, O REINO DE CRISTO é o Reino da Verdade; e, como nos ensinou Ele mesmo,
devemos pedir que venha a nós esse reino, e seja feita a vontade de seu Rei, ―assim na
terra como no céu‖. Mais claro impossível: a vontade de um rei é império, e a que se
manda cumprir no Padre-nosso é a de um rei cujo reino não é deste mundo, mas se
exerce sobre este mundo — desde o interior das almas individuais até a multidão dos
indivíduos humanos que constitui as cidades. Não o disse o mesmo Cristo, ressurreto:
―Omnia potestas data est mihi in coelo et in terra‖? Com isso, derruem-se os
fundamentos dos que querem ver nas palavras de Cristo ―Dai a César o que é de César,
e a Deus o que é de Deus‖ a confirmação da sua tese humanista-liberal de
subordinação no máximo indireta do poder temporal ao espiritual. Não obstante, para
que se patenteie tal derruimento, é preciso demonstrar antes que de fato Nosso Senhor
Jesus Cristo não se contradiz ao enunciar as duas passagens acima (como se tal fosse
possível...). E tal se faz mostrando:
● primeiro, que de fato Cristo instituiu duas jurisdições — uma, a de César, e outra,
a da Igreja;21
● e, depois, que uma jurisdição (a temporal, a de César) se ordena essencialmente e
não indiretamente à outra (a espiritual, a Igreja); e que, conquanto até se possa dizer
que a potestade desta sobre aquela é, de certo modo, indireta, não assim com respeito à
ordenação daquela a esta, que será essencial assim como essencial é a ordenação do

20IV part., cap. II, § 73.


21Com isso, diga-se brevemente, Cristo resolvia um dilema de Platão, que ansiava por um governo
dos filósofos: ―Se os filósofos não reinarem nas cidades, ou não vierem a coincidir a filosofia e o
poder político, não haverá trégua para os males das cidades, nem para os do gênero humano‖ (A
República, 473; cf. PADRE ÁLVARO CALDERÓN, ―El gobierno de los filósofos. La solución cristiana al
dilema de Platón‖, em A la luz de un ágape cordial, SS&CC ediciones, Mendoza 2007, pp. 101-132). Era
o modo possível de um pagão perceber os grilhões por que estava ligado seu mundo, e que pelas
Escrituras sabemos serem os grilhões do demônio: com efeito, a tal ponto escravizava ele o mundo
antigo, que ―pôde oferecer a Nosso Senhor todos os reinos da terra: ‗Omnia tibi dabo‘ (Mt., IV, 9)‖)

98
corpo à alma no ente humano; como o é a ordenação da natureza à graça no justo; e,
por fim, como o é a ordenação da razão à fé na Teologia.22
Para chegarmos cabalmente a tal mostração, porém, devemos proceder
ordenadamente, ou seja, segundo as partes da própria Teologia: de seus princípios (os
dados da fé) para as conclusões teológicas últimas (dadas pelos teólogos), passando
pelas primeiras conclusões teológicas (dadas pelo magistério da Igreja), que são ao
mesmo tempo, como já se disse, a regra próxima da fé. Sigamos, antes de tudo, portanto,
com os dados das Escrituras.
Com efeito, a confirmação de que Jesus se diz rei não só no interior das almas
humanas, mas também sobre as cidades dos homens, nos é dada pelos próprios judeus,
que, após o diálogo entre Pilatos e Nosso Senhor em que aquele pergunta a Este se é rei
e Ele responde que, sim, ―Tu o dizes, sou rei‖, concluem: ―Que mais testemunho nos é
necessário? Nós mesmos o ouvimos [ou seja, que Jesus se disse rei] de sua própria
boca.‖ Ora, se tanto o horizonte de Pilatos como o dos judeus é aqui, patentemente, o
dos reinos terrestres, o de Cristo, embora obviamente não se cinja, muito pelo
contrário, àquele, também obviamente o inclui, porque de outro modo Ele nem sequer
teria assentido, ainda que vagamente, à pergunta do romano. E não confirmará o que
dizemos o importantíssimo capítulo V do Apocalipse? Citamo-lo integralmente (com
destaques e colchetes nossos): ―E vi na mão direita do que estava sentado no trono
[Deus Pai, cuja realeza Cristo herda por direito de nascimento eterno e de consubstancialidade
divina] um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos. E vi um anjo forte
que clamava em alta voz: Quem é digno de abrir o livro e desatar os seus selos? E
ninguém podia, nem no céu, nem na terra, nem debaixo da terra, abri-lo nem olhar
para ele. E eu chorava muito, porque não se tinha encontrado ninguém que fosse digno
de abrir o livro nem de olhar para ele. Então um dos anciãos me disse: Não chores: eis
que o Leão da tribo de Judá [Cristo, rei por descendência carnal], da estirpe de Davi,
venceu de modo que possa abrir o livro, e desatar os seus sete selos. E olhei, e eis que,
no meio do trono e dos quatro animais, e no meio dos anciãos, estava de pé um
Cordeiro [Cristo, rei por direito de conquista, resgate e redenção mediante sua própria Paixão e
Morte na Cruz], parecendo ter sido imolado, o qual tinha sete chifres e sete olhos, que
são os sete espíritos de Deus, enviados por toda a terra. E veio, e recebeu o livro da
mão direita do que estava sentado no trono. // E, tendo ele aberto o livro, os quatro
animais e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro, tendo cada um
uma cítara e taças de ouro cheias de perfumes, que são as orações dos santos; e
cantavam um cântico novo, dizendo: Digno sois, Senhor, de receber o livro, e de
desatar os seus selos; porque fostes morto, e nos resgatastes para Deus com teu sangue,
de toda tribo, e língua, e povo, e nação; e nos fizestes para o nosso Deus reis e
sacerdotes [que melhor comprovação de que o poder temporal e o espiritual, a cidade e a Igreja,
são dois coprincípios, essencialmente ordenados um ao outro?]; e reinaremos sobre a terra
[precisamente, como poder temporal e espiritual enquanto coprincípios]. // E olhei, e ouvi a

22Para tais analogias, cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, De regimini principum, Liv. I, cap. 5; Suma
Teológica, II-IIe, q. 60, a. 6, 3a. obj. e ad 3; e PADRE ÁLVARO CALDERÓN, El Reino de Dios en el Concilio
Vaticano II, versão em PDF, pp. 16-24.

99
voz de muitos anjos em volta do trono, e dos animais, e dos anciãos, e era o número
deles de miríades de miríades, os quais diziam em alta voz: Digno é o Cordeiro, que foi
morto, de receber a virtude [ou seja, a potestade ou poder], e a divindade, e a sabedoria, e
a fortaleza, e a glória, e a honra, e o louvor. // E a todas as criaturas que há no céu, e
sobre a terra, e debaixo da terra, e as que há no mar, e a todas as coisas que nestes
(lugares) se encontram, as ouvi dizer [tal como no Salmo 148 são convocadas a fazer]: Ao
que está sentado no trono e ao Cordeiro, louvor e honra, e glória, e poder pelos séculos
dos séculos. E os quatro animais diziam: Amém! E os vinte e quatro anciãos
prostraram-se sobre o rosto, e adoraram aquele que vive pelos séculos dos séculos.‖
Examinemos, por fim, duas passagens muito citadas pelos católicos humanistas ou
liberais em favor de sua tese: a) Romanos XIII, 1-7; e b) I Pedro, II, 13-17. Segundo eles,
tais passagens provariam suficientemente a autonomia da jurisdição temporal, e que,
portanto, razão tinha Dante ao afirmar que o Império e a Igreja são dois poderes
independentes e respectivamente vinculados aos dois fins últimos do homem, um
natural e o outro sobrenatural. Vejamo-lo, dizendo desde já: tal conclusão não passa de
meia-verdade, razão por que não é verdade alguma. Com efeito, ou a verdade é total,
ou não passa de falsidade. a) ―Toda e qualquer alma‖, escreve São Paulo, ―esteja sujeita
aos poderes superiores, porque não há poder que não venha de Deus; e os (poderes)
que existem foram instituídos por Deus. Aquele, pois, que resiste à autoridade resiste à
ordenação de Deus. E os que resistem atraem para si próprios a condenação. Porque os
príncipes não são para temer pelas ações boas, mas pelas más. Queres, pois, não temer
a autoridade? Faz o bem, e terás o louvor dela; porque (o príncipe) é instrumento de
Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é debalde que ele traz a
espada. Porquanto ele é ministro de Deus vingador, para punir aquele que faz o mal. É,
pois, necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por temor do castigo, mas
também por motivo de consciência. Porque também por esta causa é que pagais os
tributos; pois são ministros de Deus, servindo-o nisto mesmo. Pagai, pois, a todos o
que lhes é devido; a quem tributo, o tributo; a quem imposto, o imposto; a quem temor,
o temor; a quem honra, a honra.‖ b) ―Sede, pois, submissos‖, escreve por sua vez São
Pedro, ―a toda e qualquer instituição humana, por amor de Deus; quer ao rei, como a
soberano; quer aos governadores, como a enviados por ele para tomar vingança dos
malfeitores, e para louvar os bons; porque é esta a vontade Deus, e que, fazendo o bem,
façais emudecer a ignorância dos homens insensatos; (procedendo) como (homens)
livres, e não como tendo a liberdade por véu para encobrir a malícia, mas como servos
de Deus. Honrai a todos, amai os irmãos, temei a Deus, respeitai o rei.‖
Ora, dessas duas passagens não se podem inferir senão os seguintes corolários
imediatos:
● Deus instituiu, efetivamente, duas jurisdições;
● a própria jurisdição temporal e seus poderes provêm de Deus;
● os cristãos devem submissão, obediência e honra aos reis ou príncipes na medida
mesma em que estes, como ministros de Deus, louvam os que praticam o bem e trazem
a espada para a vindita, ou seja, para punir os que fazem o mal;

100
● mas não o devem fazer por temor ao mal, porque, com efeito, como já dizia
Aristóteles,23 grande diferença há entre um ato justo (por exemplo, pagar uma dívida
porque se tem medo do credor) e um ato de justiça (por exemplo, pagar uma dívida
porque se está convicto de que sempre é justo pagar o devido); e porque, ademais, se a
Antiga Lei obrigava sobretudo no ato exterior, a Nova obriga sobretudo no ato interior;24
● nem, muito menos, os cristãos devem proceder com malícia, usando da liberdade
como rebuço para ocultar um mau proceder (não é isso precisamente o que se faz no
reino do demo-liberalismo?), mas como homens verdadeiramente livres, ou seja, como
servos de Deus, uma vez que ser servo de Deus é não ser escravo das paixões, dos
pecados, do demônio.
Por outro lado, de tais duas passagens não se podem inferir as duas proposições
que se seguem:
► a jurisdição temporal e seus poderes não se ordenam essencialmente ao poder
espiritual — porque, com efeito, o mero fato de esta jurisdição ter sida instituída por
Deus mesmo e de seus poderes provirem (ainda que não diretamente) d‗Ele pode antes
indicar o contrário, ou seja, que tais poderes, pelo próprio fato de provir de Deus,
devem ordenação e submissão a Ele e, por conseguinte, ao poder espiritual que Cristo
mesmo instituiu diretamente (a Igreja);
► os cristãos devem sempre obedecer e honrar aos reis terrenos — porque afirmá-lo
seria dizer que os cristãos devem obedecer a estes reis ainda quando queiram obrigá-
los a desobedecer à lei natural (ou seja, a parte da lei eterna que rege a vida moral dos
homens) e à lei divina positiva ou eclesiástica (ou seja, a lei do Espírito Santo
positivada); em outras palavras, quando queiram obrigá-los a obedecer a leis humanas
iníquas.25
Além disso, o que os católicos humanistas ou liberais nunca viram naquelas duas
passagens é o que se pode inferir sem grande dificuldade deste pequeno passo de São
Pedro: para ―que, fazendo o bem, façais emudecer a ignorância dos homens
insensatos‖, ou seja, daqueles mesmos homens que condenariam tantos cristãos ao
martírio. Ora, o emudecimento da ignorância desses insensatos, muito mais que um
modo de evitar o martírio (que, afinal, sempre é para o cristão uma palma de vitória),
seria claramente a antessala de sua conversão. Pode-se sensatamente duvidar que, após
lhes ter falado Cristo ressurreto, e após lhes ter vindo em Pentecostes o Espírito Santo,
não soubessem os Apóstolos que os insensatos pagãos romanos um dia se renderiam a
Cristo e seu Vigário? Não por nada São Pedro, auxiliado por São Paulo, vai enraizar a
Igreja no solo da Cidade ―Eterna‖: por certo, estavam eles divinamente orientados para
colocar a Pedra no centro de uma civilização que a mesma Providência Divina

23 Cf. Ética Nicomaqueia, V, 1, 1129a 3-26; 2, 1129a 26-10, 1135a 14; 10, 1135a 15-15, 1138b 5; 14, 1137a
31-15, 1138b 13.
24 Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I-II, questões 98-108, especialmente esta última.

25 Quanto aos graus desta iniquidade e quanto a se os cristãos devem, por razões de prudência,

obedecer em foro externo às menos iníquas, cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I-II, questão
96, especialmente artigo 4.

101
preparara para, ao preço da efusão lustral do sangue cristão, ser batizada e dar à luz a
Cristandade.

OS DOCUMENTOS PAPAIS representativos da posição verdadeiramente católica acerca


das relações entre Igreja e cidade, posição de todo contrária à dos humanistas integrais,
falam por si. Basta-nos, pois, dar aqui uma relação dos que parecem os mais
importantes. Ei-la:
• Documento de excomunhão e deposição de Henrique IV (São Gregório VII);
• Epístola Sicut universitatis (Inocêncio III);
• Bula Unam Sanctam (Bonifácio VIII);
• Constituição Licet iuxta doctrinam (Erros de Marsílio de Pádua e de João de Jandun
sobre a constituição da Igreja; João XX);
• Encíclica Quanta cura (Pio IX);
• o Syllabus (Erros sobre a Igreja e seus direitos; Erros sobre a sociedade civil
considerada quer em si mesma, quer em suas relações com a Igreja; Erros sobre o
principado civil do Romano Pontífice; Pio IX);
• Encíclica Etsi multa luctuosa (Pio IX);
• Encíclica Quod Apostolici muneris (Pio IX);
• Encíclica Diuturnum illud (Leão XIII);
• Immortale Dei (Leão XIII);
• Encíclica Libertas, praestantissimus (Leão XIII);
• Encíclica Sapientiae christianae (Leão XIII);
• Encíclica Annum Sacrum (Leão XIII);
• Encíclica Rerum novarum (Leão XIII);
• Encíclica Graves de Communi Re (Leão XIII);
• Encíclica Vehementer Nos (S. Pio X);
• Encíclica Ubi arcano (Pio XI);
• Encíclica Quas primas (Pio XI);
• Encíclica Divini illius magistri (Pio XI);
• Encíclica Quadragesimo anno (Pio XI);
• Encíclica Firmissimam constantiam (Pio XI);
• e Encíclica Summi Pontificatus (Pio XII).

VI

MOSTRADO POIS O QUE NOS dizem as Escrituras e indicado o que impera o magistério
infalível da Igreja acerca do tema que nos ocupa aqui, devemos passar, para concluir
esta breve mostração do corte e costura operado pelos humanistas integrais nesta
doutrina católica, ao que diz Santo Tomás de Aquino sobre a impossibilidade de o
homem ter dois fins últimos.

102
Dante Alighieri — e todos os que de algum modo lhe seguiram e seguem nisto —
afirma que não há ordenação essencial do poder temporal ao espiritual, havendo-a no
máximo acidental ou indireta. Ora, isso supõe, como diz claramente o mesmo Dante em
De Monarchia, a atribuição ao homem de dois fins últimos: um sobrenatural e o outro
natural, propiciando o poder espiritual a consecução do fim sobrenatural (a salvação
das almas individuais), e o temporal a consecução do fim natural (a felicidade terrena
possível, com o atendimento das necessidades materiais e a formação das virtudes
morais do homem no âmbito da pólis).
Donde as perguntas: antes de tudo, convém aos entes ter um fim último? Se sim, é
possível um mesmo ente ter dois fins últimos? Se não, qual o único fim último do
homem e qual o caráter de seus demais fins?
Responde a isso Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica, ao longo dos oito
artigos da questão 1 (De ultimo fine hominis, O fim último do homem) da I-II.
Acompanhemos-lhe a questão passo a passo, imbuindo-nos da precisão quase
matemática do Aquinate na demonstração, para pisarmos terreno filosófica e
teologicamente de todo seguro ao terminar nosso breve estudo.

1) Procedendo sempre ordenadamente, pergunta-se antes de tudo o Angélico


―utrum homini conveniat agere propter finem‖ (se convém ao homem agir em vista de
um fim). E parece que não. Mas, entre as ações realizadas pelo homem, ―só podem
considerar-se propriamente humanas aquelas que são próprias do homem enquanto
homem‖.26 Com efeito, o fato de ser dono de seus atos é o que diferencia o homem das
criaturas irracionais, razão por que só aquelas mesmas ações de que ele é senhor
podem propriamente chamar-se humanas. Pois bem, é por ser dotado de razão e
vontade que tem o homem domínio sobre seus atos, e a faculdade ou potência conjunta
de razão e vontade é o que se chama livre-arbítrio. Se pois as ações do homem que não
procedem de uma vontade deliberada e instruída pela razão podem ser ditas,
precisamente, do homem, não podem, porém, pelo já dito — ou seja, por não
pertencerem ao homem enquanto homem —, chamar-se com propriedade humanas.
Ora, ―todas as ações que procedem de uma potência são causadas por ela em razão de
seu objeto‖, e o objeto da vontade não é senão o bem e o fim. ―Logo, é necessário que
todas as ações humanas tenham em vista um fim.‖
2) É preciso agora saber ―utrum agere propter finem sit proprium rationalis
naturae‖ (se agir por um fim é próprio [apenas] da natureza racional). E parece que
sim. Sucede, porém, que todo e qualquer agente obra necessariamente por um fim.
Com efeito, numa seqüência de causas ordenadas entre si, não se pode suprimir a
primeira sem que se suprimam igualmente as demais. Ora, ―a primeira de todas as
causas é a final‖. Assim é porque, se a matéria não adquire a forma sem a moção de um
agente (uma vez que nada pode por si mesmo passar da potência ao ato), esse mesmo
agente obra necessariamente em vista de um fim: porque, se qualquer agente não
visasse a algo concreto, não faria uma coisa em vez de outra. Ou seja, faria qualquer
coisa, o que não é próprio de um agente. O agente sempre tende a determinado efeito, o

26 Tudo quanto vier entre aspas será tradução do corpus do respectivo artigo.

103
que supõe esteja ele determinado a algo certo: e isso ―tem razão de fim‖. Tal
determinação se dá, nos entes racionais, pelo apetite racional que chamamos vontade,
enquanto nos demais entes, os irracionais, se dá mediante uma inclinação natural ou
apetite natural. Com efeito, um ente pode tender de dois modos a um fim: em primeiro
lugar, quando se move por si mesmo a ele, como faz o homem; e, em segundo lugar,
quando é dirigido ao fim por outro, como se dá não só com uma pedra atirada por
alguém contra algo, mas também com os animais irracionais. Sim, porque, se os entes
racionais se dirigem por si mesmos ao fim em razão do senhorio sobre seus atos que o
livre-arbítrio lhes proporciona, os animais irracionais não podem tender ao fim senão
por um apetite natural, que, dada esta mesma naturalidade e aquela mesma
irracionalidade, não pode ser senão como um instrumento; o que implica serem os
entes irracionais movidos não por si mesmos, mas por um agente que se utilize de tal
instrumento. Com efeito, os entes irracionais são incapazes da noção de fim, razão por que
―toda a natureza irracional está para Deus assim como um instrumento está para um
agente principal‖. É verdade que os animais irracionais tendem ao fim por um apetite
natural resultante de certa apreensão estimativa da realidade, enquanto os demais
entes irracionais a ele se dirigem privados de todo e qualquer conhecimento (mesmo
estimativo) dele. Mas todos os entes irracionais, como explicado, são atuados ou
conduzidos ao fim por outro, tendo razão de instrumento para o agente principal que é
Deus; enquanto os entes dotados de razão agem e tendem por si mesmos ao fim. Como
visto, portanto, de um modo ou de outro todos os entes, e não só os de natureza racional,
agem por um fim.
3) Cabe agora perguntar ―utrum actus hominis recipiant speciem ex fine‖ (se os
atos do homem recebem a espécie do fim). E parece que não. Sucede porém que os entes
compostos de matéria e forma se constituem em suas espécies por suas respectivas
formas, e isso justamente porque as coisas em geral se constituem em suas espécies não
pela potência, mas pelo ato. Ora, semelhantemente se deve pensar do movimento. Com
efeito, se o movimento se divide, de algum modo, em ação e paixão, ambas recebem sua
espécie do ato: aquela, do ato que é princípio do agir; esta, do ato que é termo do
próprio movimento. Assim, ―a ação de esquentar nada mais é que uma moção
procedente do calor, e sua paixão nada mais é que um movimento para o calor‖,
manifestando-se assim a razão da espécie. Ora, também os atos humanos recebem do
fim sua espécie, consideremo-los ou como ativos ou como passivos, porque, com efeito,
o homem ao mesmo tempo se move e é movido por si mesmo. Mas, como já visto, os
atos humanos só se podem dizer propriamente humanos quando procedem da
vontade deliberada, que, como igualmente visto, tem por objeto o bem e o fim. Logo, o
fim é não só necessariamente ―o princípio dos atos humanos enquanto são humanos‖,
mas também seu termo, ―porque aquilo em que terminam os atos humanos é o que a
vontade busca como fim‖. É assim que os atos morais recebem propriamente sua
espécie do fim, razão por que são o mesmo os atos morais e os atos humanos.
4) Corolário fundamental, a que adequadamente não se poderia seguir senão a
pergunta de ―utrum sit aliquis ultimus finis humanae vitae‖ (se há um fim último da
vida humana). E parece que não. Sucede porém que, assim como com relação à série de

104
motores ou à de causas eficientes, ―é impossível proceder ao infinito nos fins‖. Com
efeito, se assim se procedesse com relação às causas motoras, deixaria de haver um
primeiro motor, e, na ausência deste, os demais motores não poderiam mover, uma vez
que recebem o movimento justamente do primeiro motor. Similarmente quanto às
coisas que se ordenam umas às outras como a um fim: se se suprimisse a primeira,
desapareceriam obrigatoriamente todas as demais. Ora, nos fins distinguem-se duas
ordens: a da intenção e a da execução, e em ambas as ordens deve haver algo que seja
primeiro. ―O primeiro na ordem da intenção é como o princípio que move o apetite‖,
razão por que, se se suprime o princípio, ou seja, se se suprime o motor, se imobiliza o
apetite. Por sua vez, é no que é princípio na ordem da execução que tem começo a
operação, razão por que, se se elimina este princípio, tampouco se pode começar a agir.
―O princípio da intenção é o último fim; o princípio da execução é a primeira das coisas
que se ordenam ao fim.‖ Como se vê, em ambos os casos é impossível proceder ao
infinito, porque, se não houvesse último fim, não se apeteceria nada nem, por
conseguinte, se levaria a efeito ação alguma; e, pelo mesmo motivo, tampouco a
intenção do agente encontraria termo ou repouso. Insista-se: dessa maneira, não
haveria ação alguma nem, pois, se chegaria a nenhuma resolução — proceder-se-ia
assim, precisamente, ao infinito. (Note-se, todavia, que se trata aqui das coisas que se
ordenam entre si essencialmente ou per se. As que se ordenam entre si per accidens
comportam, sim, infinitude potencial, precisamente porque as causas que são per
accidens supõem indeterminação. Por isso, considerada essa indeterminação, pode
haver infinitude per accidens não só nas coisas que se ordenam aos fins, mas nos
próprios fins.)
5) Cabe agora, portanto, responder a ―utrum unius hominis possint esse plures
ultimi fines‖ (se para um homem pode haver muitos fins últimos). E parece que sim,
porque, com efeito, é possível a vontade de um homem querer, simultaneamente, como
a últimos fins, duas coisas ou mais. Sucede porém que, ao contrário do que se objeta,
pelo menos três argumentos mostram ser tal impossível. Diga-se pois em primeiro lugar
que, em razão de todos desejarem sua própria perfeição, cada um só pode desejar por
fim último aquilo que ele considere o bem não só perfeito, mas capaz de aperfeiçoá-lo
cabalmente; ou antes, capaz de atender tão perfeitamente aos desejos do homem, que
fora dele não reste nada de desejável. Ora, exatamente por sua perfeição e sua
capacidade de aperfeiçoar o homem e de atender plenamente seus desejos é que tal
bem ou fim último não requer nada fora dele para aperfeiçoá-lo. Logo, é impossível ao
apetite desejar dois bens ou fins enquanto perfeitos. Diga-se pois em segundo lugar que,
assim como no processo da razão o que é princípio é naturalmente conhecido, assim
também no processo do apetite racional ou vontade é princípio aquilo que é
naturalmente desejado. Ora, o que naturalmente se apetece ou deseja não pode senão
ser único, porque, em razão de toda e qualquer natureza tender inexoravelmente a
uma só coisa, ou seja, à unidade de seu princípio formal, o princípio do apetite racional
ou vontade não pode ser senão o próprio fim último. Logo, é necessário que seja único
aquilo que a vontade busca enquanto fim último. E diga-se em terceiro lugar que, devido
ao fato de as ações humanas receberem sua espécie do fim, é necessário que igualmente

105
recebam seu gênero do fim último comum, tal como se dá nos entes naturais, que têm
seu gênero de uma razão formal comum. Ora, enquanto tais, todas as coisas apetecíveis
pela vontade estão num mesmo gênero. Logo, porque em cada gênero há um só
primeiro princípio, e, como se viu, porque o fim último tem caráter de primeiro
princípio, o fim último igualmente não pode deixar de ser único. Assim, a relação entre
o último fim do homem e o conjunto do gênero humano é a mesma do fim último de
um homem singular e o de qualquer outro homem singular. Por isso, assim como a
totalidade dos homens tende a um único fim último, assim também a vontade de cada
homem se ordena a um só fim último.
6) Se assim é, indague-se agora ―utrum homo omnia quae vult, velit propter
ultimum finem‖ (se tudo quanto o homem deseja, o deseja em vista do fim último). E
parece que não. Sucede porém que por duas razões o homem é levado,
necessariamente, a desejar em ordem ao fim último tudo quanto deseja. Antes de tudo,
tudo quanto o homem deseja, o deseja enquanto tem razão de bem. Se, todavia, este
bem desejado não for o bem perfeito e, pois, o fim último, ele o terá de desejar
necessariamente enquanto tendente ao bem perfeito: porque, com efeito, a incoação ou
começo de algo, seja este algo natural ou artificial, sempre se ordena a seu
aperfeiçoamento ou consumação. Logo, o começo de toda e qualquer perfeição não
pode senão ordenar-se à perfeição total ou completa, que só pode encontrar-se no fim
último. Além disso, porém, deve-se dizer que o fim último, enquanto move o apetite,
está para o movimento deste assim como o primeiro motor está para os demais
movimentos. Ora, como se sabe, as causas segundas não movem senão na medida em
que são movidas exatamente pelo primeiro motor. As coisas desejadas segundamente,
por conseguinte, só podem mover o apetite em ordem ao último fim, que, como visto, é
o desejado primeiramente; e por isso mesmo todos os bens que não sejam o bem
apetecido primeiramente enquanto fim último não podem ser com relação a este
senão meios ou fins intermediários.27
7) Por isso, não se pode deixar de insistir e perguntar ―utrum sit unus ultimus finis
omnium hominum‖ (se há um só fim último para todos os homens). E parece que não.
Sucede, porém, que se pode considerar o fim último por dois ângulos. Pelo primeiro,
quer dizer, quanto à razão de último fim ou de perfeição, todos os homens
necessariamente o apetecem, porque, como vimos, todos apetecem sua própria
perfeição. Mas pelo segundo, quer dizer, quanto àquilo em que se encontra tal razão de
fim último ou de perfeição, divergem os homens. Sim, porque uns apetecem, como a
fim último ou bem perfeito, a fama; outros, o poder político; outros, as riquezas; outros,
ainda, os prazeres da carne ou da mesa; etc., etc., etc.; do mesmo modo como a música
é agradável a todos, mas uns preferem a música de um compositor, outros a de outro,

27 Para a subordinação dos fins e dos agentes em geral, com o consequente caráter de meio dos fins
intermediários, cf. também RÉGINALD GARRIGOU-LAGRANGE, O.P., El realismo del principio de finalidad
(trad. R. P. Joaquín Ferrandis, Escolapio), cap. V, ―Principios subordinados al de finalidad‖, Buenos
Aires, DEDEBEC/EDICIONES DESCLÉE, DE BROWER, 1947, pp. 99-114; e SANTO TOMÁS DE AQUINO, In librum
De Causis, lect. 1, n. 41, apud PADRE ÁLVARO CALDERÓN, El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II,
versão em PDF, p. 18.

106
etc. Deve-se dizer, porém, que a música melhor ou efetivamente mais agradável é
aquela que satisfaz o gosto da pessoa mais refinada ou que mais refinadamente saiba
apreciar a música. Logo, o bem mais perfeito e desejado enquanto fim último será
aquele apetecido por quem tiver o afeto mais bem ordenado ou disposto.
8) Visto todo o anterior, pergunte-se por fim ―utrum in illo ultimo fine aliae
creaturae conveniant‖ (se as demais criaturas convêm nesse último fim). E parece que
sim. Sucede, porém, que também se pode falar do fim segundo se trate da própria coisa
em que se encontra o bem ou segundo se trate de sua consecução ou fruição. Assim, o
fim de quem tem ambição política é, pelo ângulo da própria coisa apetecida, o poder;
mas, pelo outro ângulo, é sua posse ou usufruto. Ora, se se trata do fim último do
homem enquanto é a coisa mesma que é fim, então todas as demais criaturas convêm
com ele: porque, com efeito, é Deus mesmo o fim último não só do homem,28 mas de
todos os entes, visíveis como invisíveis. Se todavia se trata do último fim do homem
enquanto consecução ou fruição deste fim, então é patente que as criaturas irracionais
não têm em comum com o homem o fim último deste, porque o homem, como as
outras criaturas racionais, atinge seu último fim conhecendo intelectivamente e
amando este mesmo fim último, que é Deus, enquanto as criaturas irracionais não o
podem conhecer intelectivamente nem amar. E isso é assim porque os entes irracionais
não atingem o fim último do universo senão por participação de alguma semelhança
de seu Criador: seja porque são, porque vivem, ou ainda porque podem conhecer (ao
modo sensível e estimativo).

28 Note-se porém que para nós, nesta vida, a necessária identidade entre Deus e o fim último do
homem – ou seja, a felicidade ou beatitude – não é evidente, ou seja, o homem não a reconhece
necessariamente, ao contrário do que se dá, por exemplo, com o fato de o quadrado ter lados e ângulos
iguais ou com o de 1 + 1 ser igual a 2: o reconhecimento deles pelo intelecto é de caráter necessitante.
Com efeito, diz o Aquinate: ―Há bens particulares que não têm vinculação necessária com a
beatitude, porque se pode ser beato [bem-aventurado] sem eles. A tais bens a vontade não adere
necessariamente. Mas há outros bens que têm vinculação necessária com a beatitude, ou seja, aqueles
pelos quais o homem adere a Deus, unicamente no qual se encontra a verdadeira beatitude. Antes
porém que a necessidade dessa vinculação seja demonstrada pela certeza da visão da divindade [a
visão beatífica], a vontade não adere necessariamente a Deus nem às coisas que são de Deus. Mas a
vontade de quem vê a Deus em sua essência adere necessariamente a Deus, assim como agora
queremos necessariamente ser felizes. É patente, portanto, que a vontade não quer necessariamente
tudo o que ela quer‖ (Suma Teológica, I, q. 82, a. 2, corpus). Para que nesta vida se reconheça a
identidade entre Deus e a felicidade do homem, é preciso, antes de tudo, conhecer que Deus é, e,
ademais, contar com a própria revelação divina dessa identidade; ora, nem aquele conhecimento
nem o objeto desta revelação são evidentes; logo, tal identidade nunca se mostrará, nesta vida, com
caráter necessitante. Cf. ainda para o tema SANTO TOMÁS DE AQUINO, De veritate, X, 12, especialmente
ad 5; XXII, 7; Suma contra os Gentios, I, I, 6 e 11; Suma Teológica, I, q. 2, a. 1, ad 1; I, q. 82, aa. 1-2; etc.; e
P. G. M. Manser, O.P., La esencia del tomismo, trad. Valentín Ga. Yebra, Madri, Consejo Superior de
Investigaciones Científicas/Instituto ―Luis Vives‖ de Filosofía, Serie B. – Núm. 7, 1947, pp. 398-426.
Em sentido contrário, cf. por exemplo R. GARRIGOU-LAGRANGE, El realismo del principio de finalidad, op.
cit., pp. 201-219; e Dios. I. Su existencia, Madri, Ediciones Palabra, 1976, pp. 240-270.

107
108
MÚSICA E LITURGIA

109
110
DOUTRINA PONTIFÍCIA SOBRE A MÚSICA SACRA

ESCOLHEMOS DOIS DOCUMENTOS pontifícios, entre muitos, sobre a Música Sacra: um Motu
Proprio de São Pio X e uma encíclica de Pio XII. O segundo é um complemento do primeiro;
guarda os mesmos princípios. Se o Concílio Vaticano II houvesse conservado esses
princípios, não haveria os abusos atuais. Estes dois documentos confirmam que a liturgia
antes do Concílio, a liturgia tradicional, é cristocêntrica, isto é, tem a Cristo como centro, é o
culto a Cristo. A liturgia atual, ao contrário, é antropocêntrica. É o culto ao homem. A
música atual da Igreja Conciliar é para agradar ao homem e não um meio para elevar a alma
a Deus.

MOTU PROPRIO

TRA LE SOLLECITUDINI
DO SUMO PONTÍFICE PIO X

SOBRE A MÚSICA SACRA

INTRODUÇÃO

ENTRE OS CUIDADOS do ofício pastoral, não somente desta Suprema Cátedra, que
por imperscrutável disposição da Providência, ainda que indigno, ocupamos,
mas também de todas as Igrejas particulares, é, sem dúvida, um dos principais
o de manter e promover o decoro da Casa de Deus, onde se celebram os
augustos mistérios da religião e o povo cristão se reúne, para receber a graça
dos Sacramentos, assistir ao Santo Sacrifício do altar, adorar o augustíssimo
Sacramento do Corpo do Senhor e unir-se à oração comum da Igreja na
celebração pública e solene dos ofícios litúrgicos.
Nada, pois, deve suceder no templo que perturbe ou, sequer, diminua a
piedade e a devoção dos fiéis, nada que dê justificado motivo de desgosto ou de
escândalo, nada, sobretudo, que diretamente ofenda o decoro e a santidade das
sacras funções e seja por isso indigno da Casa de Oração e da majestade de
Deus.
Não nos ocupamos de cada um dos abusos que nesta matéria podem
ocorrer. A nossa atenção dirige-se hoje para um dos mais comuns, dos mais
difíceis de desarraigar e que às vezes se deve deplorar em lugares onde tudo o

111
mais é digno de máximo encômio para beleza e suntuosidade do templo,
esplendor e perfeita ordem das cerimônias, frequência do clero, gravidade e
piedade dos ministros do altar. Tal é o abuso em matéria de canto e Música
Sacra. E de facto, quer pela natureza desta arte de si flutuante e variável, quer
pela sucessiva alteração do gosto e dos hábitos no correr dos tempos, quer pelo
funesto influxo que sobre a arte sacra exerce a arte profana e teatral, quer pelo
prazer que a música diretamente produz e que nem sempre é fácil conter nos
justos limites, quer, finalmente, pelos muitos preconceitos, que em tal assunto
facilmente se insinuam e depois tenazmente se mantêm, ainda entre pessoas
autorizadas e piedosas, há uma tendência contínua para desviar da reta norma,
estabelecida em vista do fim para que a arte se admitiu ao serviço do culto, e
expressa nos cânones eclesiásticos, nas ordenações dos Concílios gerais e
provinciais, nas prescrições várias vezes emanadas das Sagradas Congregações
Romanas e dos Sumos Pontífices Nossos Predecessores.
Com verdadeira satisfação da alma nos apraz recordar o muito bem que
nesta parte se tem feito nos últimos decênios, também nesta nossa augusta
cidade de Roma e em muitas Igrejas da Nossa pátria, mas em modo muito
particular em algumas nações, onde homens egrégios e zelosos do culto de
Deus, com aprovação desta Santa Sé e dos Bispos, se uniram em florescentes
sociedades e reconduziram ao seu lugar de honra a Música Sacra em quase
todas as suas Igrejas e Capelas. Este progresso está todavia ainda muito longe
de ser comum a todos; e se consultarmos a nossa experiência pessoal e tivermos
em conta as reiteradas queixas, que de todas as partes Nos chegaram neste
pouco tempo decorrido, desde que aprouve ao Senhor elevar a Nossa humilde
Pessoa à suprema culminância do Pontificado Romano, sem protrairmos por
mais tempo, cremos que é nosso primeiro dever levantar a voz para reprovação
e condenação de tudo o que nas funções do culto e nos ofícios eclesiásticos se
reconhece desconforme com a reta norma indicada.
Sendo de facto nosso vivíssimo desejo que o espírito cristão refloresça em
tudo e se mantenha em todos os fiéis, é necessário prover antes de mais nada à
santidade e dignidade do templo, onde os fiéis se reúnem precisamente para
haurirem esse espírito da sua primária e indispensável fonte: a participação
ativa nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja. E
debalde se espera que para isso desça sobre nós copiosa a bênção do Céu,
quando o nosso obséquio ao Altíssimo, em vez de ascender em odor de
suavidade, vai pelo contrário repor nas mãos do Senhor os flagelos, com que
uma vez o Divino Redentor expulsou do templo os indignos profanadores.
Portanto, para que ninguém doravante possa alegar a desculpa de não conhecer
claramente o seu dever, e para que desapareça qualquer equívoco na
interpretação de certas determinações anteriores, julgamos oportuno indicar
com brevidade os princípios que regem a Música Sacra nas funções do culto e
recolher num quadro geral as principais prescrições da Igreja contra os abusos
mais comuns em tal matéria.

112
E por isso, de própria iniciativa e ciência certa, publicamos a Nossa presente
instrução; será ela como que um código jurídico de Música Sacra; e, em virtude
da plenitude de Nossa Autoridade Apostólica, queremos que se lhe dê força de
lei, impondo a todos, por este Nosso quirógrafo, a sua mais escrupulosa
observância.

I. Princípios gerais

1. A música sacra, como parte integrante da Liturgia solene, participa do seu


fim geral, que é a glória de Deus e a santificação dos fiéis. A música concorre
para aumentar o decoro e esplendor das sagradas cerimônias; e, assim como o
seu ofício principal é revestir de adequadas melodias o texto litúrgico proposto
à consideração dos fiéis, assim o seu fim próprio é acrescentar mais eficácia ao
mesmo texto, a fim de que por tal meio se excitem mais facilmente os fiéis à
piedade e se preparem melhor para receber os frutos da graça, próprios da
celebração dos sagrados mistérios.
2. Por isso a música sacra deve possuir, em grau eminente, as qualidades
próprias da liturgia, e nomeadamente a santidade e a delicadeza das formas, donde
resulta espontaneamente outra característica, a universalidade.
Deve ser santa, e por isso excluir todo o profano não só em si mesma, mas
também no modo como é desempenhada pelos executantes.
Deve ser arte verdadeira, não sendo possível que, doutra forma, exerça no
ânimo dos ouvintes aquela eficácia que a Igreja se propõe obter ao admitir na
sua liturgia a arte dos sons. Mas seja, ao mesmo tempo, universal no sentido de
que, embora seja permitido a cada nação admitir nas composições religiosas
aquelas formas particulares, que em certo modo constituem o caráter específico
da sua música própria, estas devem ser de tal maneira subordinadas aos
caracteres gerais da música sacra que ninguém doutra nação, ao ouvi-las, sinta
uma impressão desagradável.

II. Gêneros de Música Sacra

3. Estas qualidades se encontram em grau sumo no canto gregoriano, que é


por consequência o canto próprio da Igreja Romana, o único que ela herdou dos
antigos Padres, que conservou cuidadosamente no decurso dos séculos em seus
códigos litúrgicos e que, como seu, propõe diretamente aos fiéis, o qual estudos
recentíssimos restituíram à sua integridade e pureza.
Por tais motivos, o canto gregoriano foi sempre considerado como o modelo
supremo da música sacra, podendo com razão estabelecer-se a seguinte lei
geral: uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se
aproxima no andamento, inspiração e sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos
digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo supremo.

113
O canto gregoriano deverá, pois, restabelecer-se amplamente nas funções do
culto, sendo certo que uma função eclesiástica nada perde da sua solenidade,
mesmo quando não é acompanhada senão da música gregoriana.
Procure-se nomeadamente restabelecer o canto gregoriano no uso do povo,
para que os fiéis tomem de novo parte mais ativa nos ofícios litúrgicos, como se
fazia antigamente.
4. As sobreditas qualidades verificam-se também na polifonia clássica,
especialmente na da Escola Romana, que no século XVI atingiu a sua maior
perfeição com as obras de Pedro Luís de Palestrina [Giovanni Pierluigi da
Palestrina], e que continuou depois a produzir composições de excelente
qualidade musical e litúrgica. A polifonia clássica, aproximando-se do modelo
de toda a música sacra, que é o canto gregoriano, mereceu por esse motivo ser
admitida, juntamente com o canto gregoriano, nas funções mais solenes da
Igreja, quais são as da Capela Pontifícia. Por isso também essa deverá
restabelecer-se nas funções eclesiásticas, principalmente nas mais insignes
basílicas, nas igrejas catedrais, nas dos Seminários e outros institutos
eclesiásticos, onde não costumam faltar os meios necessários.
5. A Igreja tem reconhecido e favorecido sempre o progresso das artes,
admitindo ao serviço do culto o que o gênio encontrou de bom e belo através
dos séculos, salvas sempre as leis litúrgicas. Por isso é que a música mais
moderna é também admitida na Igreja, visto que apresenta composições de tal
qualidade, seriedade e gravidade que não são de forma alguma indigna das
funções litúrgicas.
Todavia, como a música moderna foi inventada principalmente para uso
profano, deverá vigiar-se com maior cuidado por que as composições musicais
de estilo moderno, que se admitem na Igreja, não tenham coisa alguma de
profana, não tenham reminiscências de motivos teatrais, e não sejam compostas,
mesmo nas suas formas externas, sobre o andamento das composições
profanas.
6. Entre os vários gêneros de música moderna, o que parece menos próprio
para acompanhar as funções do culto é o que tem ressaibos de estilo teatral, que
durante o século XVI esteve tanto em voga, sobretudo na Itália. Este, por sua
natureza, apresenta a máxima oposição ao canto gregoriano e à clássica
polifonia, por isso mesmo às leis mais importantes de toda a boa música sacra.
Além disso, a íntima estrutura, o ritmo e o chamado convencionalismo de tal
estilo não se adaptam bem às exigências da verdadeira música litúrgica.

III. Texto Litúrgico

7. A língua própria da Igreja Romana é a latina. Por isso é proibido cantar


em língua vulgar, nas funções litúrgicas solenes, seja o que for, e muito
particularmente, tratando-se das partes variáveis ou comuns da Missa e do
Ofício.

114
8. Estando determinados, para cada função litúrgica, os textos que hão de
musicar-se e a ordem por que se devem cantar, não é lícito alterar esta ordem,
nem substituir os textos prescritos por outros, nem omiti-los na íntegra ou em
parte, a não ser que as Rubricas litúrgicas permitam suprir, com órgão, alguns
versículos do texto, que são simplesmente recitados no coro. É permitido
somente, segundo o costume romano, cantar um motete em honra do S.
Sacramento depois do Benedictus da Missa solene. Permite-se outrossim que,
depois de cantado o ofertório prescrito, se possa executar, no tempo que resta,
um breve motete sobre palavras aprovadas pela Igreja.
9. O texto litúrgico tem de ser cantado como se encontra nos livros
aprovados, sem posposição ou alteração das palavras, sem repetições
indevidas, sem deslocar as silabas, sempre de modo inteligível.

IV. Forma externa das composições sacras

10. As várias artes da Missa e Ofício devem conservar, até musicalmente, a


forma que a tradição eclesiástica lhes deu, e que se encontra admiravelmente
expressada no canto gregoriano. É, pois, diverso o modo de compor um
Introitus, um Gradual, uma Antífona, um Salmo, um Hino, um Gloria in excelsis,
etc.
11. Observem-se, em particular, as normas seguintes:
a) O Kyrie, o Gloria, o Credo, etc., da Missa, devem conservar a unidade de
composição própria do texto. Por conseguinte, não é lícito compô-las como
peças separadas, de modo que cada uma destas forme uma composição musical
tão completa que possa separar-se das restantes e ser substituída por outra.
b) No ofício de Vésperas deve seguir-se, ordinariamente, a norma do
Caeremoniale Episcoporum que prescreve o canto gregoriano para a salmodia, e
permite a música figurada nos versículos do Gloria Patri e no hino.
Contudo, é permitido, nas maiores solenidades, alternar o canto gregoriano
do coro com os chamados ―falsibordoni‖ ou com versos de modo semelhante
convenientemente compostos. Poderá também conceder-se, uma vez por outra,
que cada um dos salmos seja totalmente musicado, contanto que, em tais
composições, se conserve a forma própria da salmodia, isto é, que os cantores
pareçam salmodiar entre si, já com motivos musicais novos, já com motivos
tirados do canto gregoriano, ou imitados deste.
Ficam proibidos, nas cerimônias litúrgicas, os salmos de concerto.
c) Conserve-se, nas músicas da Igreja, a forma tradicional do hino. Não é
permitido compor, por exemplo, o Tantum ergo de modo que a primeira estrofe
apresente a forma de romanza, cavatina ou adágio e o Genitori a de allegro.
d) As antífonas de Vésperas têm de ser cantadas, ordinariamente, com a
melodia gregoriana que lhes é própria. Porém, se em algum caso particular se
cantarem em música, não deverão nunca ter a forma de melodia de concerto,
nem a amplitude dum motete ou de cantata.

115
V. Os cantores

12. Excetuadas as melodias próprias do celebrante e dos ministros, que


sempre devem ser em gregoriano, sem acompanhamento de órgão, todo o
restante canto litúrgico faz parte do coro dos levitas. Por isso, os cantores, ainda
que leigos, realizam, propriamente, as funções de coro eclesiástico, devendo as
músicas, ao menos na sua maior parte, conservar o caráter de música de coro.
Não se entende com isto excluir, de todo, os solos; mas estes não devem
nunca predominar de tal maneira que a maior parte do texto litúrgico seja assim
executada; deve antes ter o caráter de uma simples frase melódica e estar
intimamente ligada ao resto da composição coral.
13. Os cantores têm na Igreja um verdadeiro ofício litúrgico e, por isso, as
mulheres sendo incapazes de tal ofício, não podem ser admitidas a fazer parte
do coro ou da capela musical. Querendo-se, pois, ter vozes agudas de sopranos
e contraltos, empreguem-se os meninos, segundo o uso antiquíssimo da Igreja.
14. Finalmente, não se admitam a fazer parte da capela musical senão
homens de conhecida piedade e probidade de vida, os quais, com a sua devota
e modesta atitude, durante as funções litúrgicas, se mostrem dignos do santo
ofício que exercem. Será, além disso, conveniente que os cantores, enquanto
cantam na igreja, vistam hábito eclesiástico e sobrepeliz e que, se o coro estiver
muito exposto à vista do público, seja resguardado por grades.

VI. Órgão e Instrumentos

15. Posto que a música própria da Igreja é a música meramente vocal,


contudo também se permite a música com acompanhamento de órgão. Nalgum
caso particular, com as convenientes cautelas, poderão admitir-se outros
instrumentos nunca sem o consentimento especial do Ordinário, conforme as
prescrições do Caeremoniale Episcoporum.
16. Como o canto tem de ouvir-se sempre, o órgão e os instrumentos devem
simplesmente sustentá-lo, e nunca encobri-lo.
17. Não é permitido antepor ao canto extensos prelúdios, ou interrompê-lo
com peças de interlúdios.
18. O som do órgão, nos acompanhamentos do canto, nos prelúdios,
interlúdios e outras passagens semelhantes, não só deve ser de harmonia com a
própria natureza de tal instrumento, isto é, grave, mas deve ainda participar de
todas as qualidades que tem a verdadeira música sacra, acima mencionadas.
19. É proibido, na Igreja, o uso do piano bem como o de instrumentos
fragorosos, o tambor, o bombo, os pratos, as campainhas e semelhantes.
20. É rigorosamente proibido que as bandas musicais toquem nas igrejas, e
só em algum caso particular, com o consentimento do Ordinário, será permitida
uma escolha limitada, judiciosa e proporcionada ao ambiente de instrumentos

116
de sopro, contanto que a composição seja em estilo grave, conveniente e
semelhante em tudo às do órgão.
21. Nas procissões, fora da igreja, pode o Ordinário permitir a banda
musical, uma vez que não se executem composições profanas. Seria para desejar
que a banda se restringisse a acompanhar algum cântico espiritual, em latim ou
vulgar, proposto pelos cantores ou pias congregações que tomam parte na
procissão.

VII. Amplitude da Música Sacra

22. Não é licito, por motivo do canto, fazer esperar o sacerdote no altar mais
tempo do que exige a cerimônia litúrgica. Segundo as prescrições eclesiásticas, o
Sanctus deve ser cantado antes da elevação, devendo o celebrante esperar que o
canto termine, para fazer a elevação. A música da Glória e do Credo, segundo a
tradição gregoriana, deve ser relativamente breve.
23. É condenável, como abuso gravíssimo, que nas funções eclesiásticas a
liturgia esteja dependente da música, quando é certo que a música é que é parte
da liturgia e sua humilde serva.

VIII. Meios principais

24. Para o exato cumprimento de quanto fica estabelecido, os Bispos, se


ainda não o fizeram, instituam, nas suas dioceses, uma comissão especial de
pessoas verdadeiramente competentes na música sacra, à qual confiarão o cargo
de vigiar as músicas que se vão executando em suas igrejas para que sejam
conformes com estas determinações. Nem atender somente a que sejam boas as
músicas, senão também a que correspondam ao valor dos cantores, para haver
boa execução.
25. Nos Seminários e nos Institutos eclesiásticos, segundo as prescrições
tridentinas, consagrem-se todos os alunos ao estudo do canto gregoriano e os
superiores sejam liberais em animar e louvar os seus súbditos. Igualmente,
onde for possível, promova-se entre os clérigos a fundação de uma Schola
Cantorum para a execução da sagrada polifonia e da boa música litúrgica.
26. Nas lições ordinárias de Liturgia, Moral e Direito Canônico, que se dão
aos estudantes de teologia, não se deixe de tocar naqueles pontos que, de modo
mais particular, dizem respeito aos princípios e leis da música sacra, e procure-
se completar a doutrina com alguma instrução especial acerca da estética da
arte sacra, para que os clérigos não saiam dos seminários ignorando estas
noções, tão necessária à plena cultura eclesiástica.
27. Tenha-se o cuidado de restabelecer, ao menos nas igrejas principais, as
antigas Scholae Cantorum, como se há feito já, com ótimo fruto, em muitos
lugares. Não é difícil, ao clero zeloso, instituir tais Scholae, mesmo nas igrejas de

117
menor importância, e até encontrará nelas um meio fácil para reunir em volta
de si os meninos e os adultos, com proveito para eles e edificação do povo.
28. Procure-se sustentar e promover, do melhor modo, as escolas superiores
de música sacra, onde já existem, e concorrer para fundá-las, onde as não há. É
sumamente importante que a mesma igreja atenda à instrução dos seus mestres
de música, organistas e cantores, segundo os verdadeiros princípios da arte
sacra.

IX Conclusão

29. Por último, recomenda-se aos mestres de capela, aos cantores, aos
clérigos, aos superiores dos Seminários, Institutos eclesiásticos e comunidades
religiosas, aos párocos e reitores de igrejas, aos cônegos das colegiadas e
catedrais, e sobretudo aos Ordinários diocesanos, que favoreçam, com todo o
zelo, estas reformas de há muito desejadas e por todos unanimemente pedidas,
para que não caia em desprezo a autoridade da Igreja que repetidamente as
propôs e agora de novo as inculca.

Dado no Nosso Palácio do Vaticano, na festa da Virgem e Mártir Santa Cecília, 22


de Novembro de 1903, primeiro ano do nosso pontificado.

PAPA PIO X

* * *

II

CARTA ENCÍCLICA DO PAPA PIO XII

MUSICAE SACRAE DISCIPLINA


SOBRE A MÚSICA SACRA

AOS VENERÁVEIS IRMÃOS Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários


de lugar, em paz e comunhão com a Sé Apostólica.

INTRODUÇÃO

1. Sempre tivemos sumamente em consideração a disciplina da música sacra;


donde haver-nos parecido oportuno tratar ordenadamente dela, e, ao mesmo
tempo, elucidar com certa amplitude muitas questões surgidas e discutidas
nestes últimos decênios, a fim de que esta nobre e respeitável arte contribua

118
cada vez mais para o esplendor do culto divino e para uma mais intensa vida
espiritual dos fiéis. Quisemos, a um tempo, vir ao encontro dos votos que
muitos de vós, veneráveis irmãos, na vossa sabedoria, exprimistes, e que
também insignes mestres desta arte liberal e exímios cultores de música sacra
formularam por ocasião de Congressos sobre tal matéria, e ao encontro também
de tudo quanto a esse respeito têm aconselhado a experiência da vida pastoral e
os progressos da ciência e dos estudos sobre esta arte. Assim, nutrimos
esperança de que as normas sabiamente fixadas por São Pio X no documento
por ele com toda razão chamado ―código jurídico da música sacra‖29 serão
novamente confirmadas e inculcadas, receberão nova luz, e serão corroboradas
por novos argumentos; de tal sorte que a nobre arte da música sacra, adaptada
às condições presentes e, de certo modo, enriquecida, corresponda sempre mais
à sua alta finalidade.

I. HISTÓRIA

2. Entre os muitos e grandes dons de natureza com que Deus, em quem há


harmonia de perfeita concórdia e suma coerência, enriqueceu o homem, criado
à sua ―imagem e semelhança‖,30 deve-se incluir a música, que, juntamente com
as outras artes liberais, contribui para o gozo espiritual e para o deleite da alma.
Com razão assim escreve dela Agostinho: ―A música, isto é, a doutrina e a arte
de bem modular, como anúncio de grandes coisas foi concedida pela divina
liberalidade aos mortais dotados de alma racional‖.31

No Antigo Testamento e na Igreja primitiva

3. Nada de admirar, pois, que o canto sacro e a arte musical também tenham
sido usados, conforme consta de muitos documentos antigos e recentes, para
ornamento e decoro das cerimônias religiosas sempre e em toda parte, mesmo
entre os povos pagãos; e que sobretudo o culto do verdadeiro e sumo Deus
desde a antiguidade se tenha valido dessa arte. O povo de Deus, escapando
incólume do mar Vermelho por milagre do poder divino, cantou a Deus um
cântico de vitória; e Maria, irmã do guia Moisés, dotada de espírito profético,
cantou ao som dos tímpanos, acompanhada pelo canto do povo.32 E,
posteriormente, enquanto se conduzia a arca de Deus da casa de Abinadab para
a cidade de Davi, o próprio rei e ―todo Israel dançavam diante de Deus com
instrumentos de madeira trabalhada, cítaras, liras, tímpanos, sistros e
címbalos‖.33 O próprio rei Davi fixou as regras da música a usar-se no culto

29 Motu Proprio Entre as solicitudes do múnus pastoral: Acta Pii X, vol. I, p. 77.
30 Cf. Gn 1,26.
31 Epist.161, De origine animae hominis, l, 2; PL 33, 725.

32 Cf. Ex 15,1-20.

33 2Sm 6,5.

119
sagrado, e do canto;34 regras que foram restabelecidas após o regresso do povo
do exílio, e fielmente conservadas até a vinda do divino Redentor. Depois, que
na Igreja fundada pelo divino Salvador o canto sacro desde o princípio estivesse
em uso e honra, é claramente indicado por são Paulo apóstolo, quando aos
efésios assim escreve: ―Sede cheios do Espírito Santo, recitando entre vós
salmos e hinos e cânticos espirituais‖35 e que esse uso de cantar salmos estivesse
em vigor também nas assembleias dos cristãos, indica-o ele com estas palavras:
―Quando vos reunis, alguns entre vós cantam o salmo‖. 36 E que o mesmo
acontecesse após a idade apostólica é atestado por Plínio, que escreve haverem
os que tinham renegado a fé afirmado que ―esta era a substância da falta de que
eram inculpados, a saber: o costumarem a reunir-se num dado dia antes do
aparecer da luz e cantarem um hino a Cristo como a Deus‖.37 Essas palavras do
procônsul romano da Bitínia mostram claramente que nem mesmo no tempo da
perseguição emudecia de todo a voz do canto da Igreja; isto confirma-o
Tertuliano quando narra que nas assembleias dos cristãos ―se leem as
Escrituras, cantam-se salmos, promove-se a catequese‖.38

O canto gregoriano

4. Restituída à Igreja a liberdade e a paz, muitos testemunhos se têm, dos


padres e dos escritores eclesiásticos, que confirmam serem de uso quase diário
os salmos e os hinos do culto litúrgico. Antes, pouco a pouco se criaram mesmo
novas formas e se excogitaram novos gêneros de cantos, cada vez mais
aperfeiçoados pelas escolas de música, especialmente em Roma. O nosso
predecessor, de feliz memória, são Gregório Magno, consoante a tradição
reuniu cuidadosamente tudo o que havia sido transmitido, e deu-lhe sábia
ordenação, provendo, com oportunas leis e normas, a assegurar a pureza e a
integridade do canto sacro. Da santa cidade a modulação romana do canto aos
poucos se introduziu em outras regiões do ocidente, e não somente ali se
enriqueceu de novas formas e melodias, como também começou mesmo a ser
usada uma nova espécie de canto sacro, o hino religioso, às vezes em língua
vulgar. O próprio canto coral, que, pelo nome do seu restaurador, são Gregório,
começou a chamar-se ―Gregoriano‖, a começar dos séculos VIII e IX, em quase
todas as regiões da Europa cristã, adquiriu novo esplendor, com o
acompanhamento do instrumento musical chamado ―órgão‖.

O canto polifônico

34 Cf. 1Cr 23,5; 25,2-31.


35 Ef 5,18s; cf. Col 3,16.
36 1Cor 14,26.

37 Plínio, Epist. X, 96, 7.

38 Cf. Tertuliano, De anima, c. 9; PL 2, 701; e Apol. 39; PL 1, 540.

120
5. A partir do século IX, pouco a pouco a esse canto coral se juntou o canto
polifônico, cuja teoria e prática se precisaram cada vez mais nos séculos
subsequentes, e que, sobretudo no século XV e no XVI, por obra de sumos
artistas alcançou admirável perfeição. A Igreja também teve sempre em grande
honra este canto polifônico, e de bom grado admitiu-o para maior decoro dos
ritos sagrados nas próprias basílicas romanas e nas cerimônias pontifícias. Com
isso se lhe aumentaram a eficácia e o esplendor, porque à voz dos cantores se
aditou, além do órgão, o som de outros instrumentos musicais.

A vigilância da Igreja

6. Desse modo, por impulso e sob os auspícios da Igreja, a disciplina da


música sacra no decurso dos séculos percorreu longo caminho, no qual, embora
talvez com lentidão e a custo, paulatinamente realizou contínuos progressos:
das simples e ingênuas melodias gregorianas até às grandes e magníficas obras
de arte, a que não só a voz humana, mas também o órgão e os outros
instrumentos aduzem dignidade, ornamento e prodigiosa riqueza. O progresso
dessa arte musical, ao passo que mostra claramente o quanto a Igreja se tem
preocupado com tornar cada vez mais esplêndido e agradável ao povo cristão o
culto divino, por outra parte explica como a mesma Igreja tenha tido, às vezes,
de impedir que se ultrapassem nesse terreno os justos limites, e que, juntamente
com o verdadeiro progresso, se infiltrasse na música sacra, deturpando-a, certo
quê de profano e de alheio ao culto sagrado.
7. A esse dever de solícita vigilância sempre foram fiéis os sumos pontífices;
e também o concílio de Trento sabiamente proscreveu: ―as músicas em que, ou
no órgão ou no canto, se mistura algo de sensual e de impuro‖. 39 Deixando de
parte não poucos outros papas, o nosso predecessor de feliz memória Bento
XIV, em carta encíclica de 19 de Fevereiro de 1749, em preparação ao ano
jubilar, com abundante doutrina e cópia de argumentos exortou de modo
particular os bispos a proibirem por todos os meios, os reprováveis abusos que
indebitamente se haviam introduzido na música.40 O mesmo caminho seguiram
os nossos predecessores Leão XII, Pio VIII,41 Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII.42
Todavia, em bom direito pode-se afirmar haver sido o nosso predecessor, de
feliz memória, São Pio X, quem realizou uma restauração e reforma orgânica da
música sacra, tornando a inculcar os princípios e as normas transmitidos pela
antiguidade, e oportunamente reordenando-os segundo as exigências dos
tempos modernos.43 Finalmente, tal como o nosso imediato predecessor Pio XI,

39 Conc. Trid., Sess. XXII: Decretum de obseruandis et vitandis in celebratione Missae.


40 Cf. Bento XIV, Carta enc. Annus qui; Opera omnia, (ed. Prati, Vol.17,1, p. 16).
41 Cf. Carta apost., Bonum est confiteri Domino, (2 de agosto de 1828). Cf. Bullarium Romanum, ed. Prati,

ed. Typ. Aldina, t. IX, p. 139ss.


42 Cf. Acta Leonis XIII,14(1895), pp. 237-247; cf. AAS 27(1894), pp. 42-49.

43 Cf. Acta Pii X, vol. I, pp. 75-87; AAS 36(1903-04), pp. 329-339; 387-395.

121
de feliz memória, com a constituição apostólica ―Divini cultus sanctitatem‖, de 20
de Dezembro de 1929,44 também nós mesmos, com a encíclica ―Mediator Dei”, de
20 de novembro de 1947, ampliamos e corroboramos as prescrições dos
pontífices precedentes.45

II. A ARTE E SEUS PRINCÍPIOS NA LITURGIA

8. A ninguém, certamente, causará admiração o fato de interessar-se tanto a


Igreja pela música sacra. Com efeito, não se trata de ditar leis de caráter estético
ou técnico a respeito da nobre disciplina da música; ao contrário, é intenção da
Igreja que esta seja defendida de tudo que possa diminuir-lhe a dignidade,
sendo, como é, chamada a prestar serviço num campo de tamanha importância
como é o do culto divino.

A liberdade do artista deve estar sujeita à lei divina

9. Nisto a música sacra não obedece a leis e normas diversas das que
regulam todas as formas de arte religiosa, antes a própria arte em geral. Na
verdade, não ignoramos que nestes últimos anos alguns artistas, com grave
ofensa da piedade cristã, ousaram introduzir nas Igrejas obras destituídas de
qualquer inspiração religiosa, e em pleno contraste até mesmo com as justas
regras da arte. Procuram eles justificar esse deplorável modo de agir com
argumentos especiosos, que eles pretendem fazer derivar da natureza e da
própria índole da arte. Afinal, dizem eles que a inspiração artística é livre, que
não é lícito subordiná-la a leis e normas estranhas à arte, sejam elas morais ou
religiosas, porque desse modo se viria a lesar gravemente a dignidade da arte e
a criar, com vínculos e ligames, óbices ao livre curso da ação do artista sob a
sagrada influência do estro [entusiasmo artístico, riqueza de imaginação].
10. Com argumentos tais é suscitada uma questão sem dúvida grave e difícil,
atinente a qualquer manifestação de arte e a qualquer artista; questão que não
pode ser resolvida com argumentos tirados da arte e da estética, mas que, em
vez disso, deve ser examinada à luz do supremo postulado do fim último, regra
sagrada e inviolável de todo homem e de toda ação humana. De fato, o homem
diz ordem ao seu fim último ― que é Deus ― por força de uma lei absoluta e
necessária, fundada na infinita perfeição da natureza divina, de maneira tão
plena e perfeita, que nem mesmo Deus poderia eximir alguém de observá-la.
Com essa lei eterna e imutável fica estabelecido que o homem e todas as suas
ações devem manifestar, em louvor e glória do Criador, a infinita perfeição de
Deus, e imitá-la tanto quanto possível. Por isso o homem, destinado por sua
natureza a alcançar esse fim supremo, deve, no seu agir, conformar-se ao divino
Arquétipo, e nessa direção orientar todas as faculdades da alma e do corpo,

44 Cf. AAS 21(1929), pp. 33ss.


45 Cf. AAS 39(1947), pp. 521-595.

122
ordenando-as retamente entre si, e devidamente domando-as para alcançar o
seu fim. Portanto, também a arte e as obras artísticas devem ser julgadas com
base na sua conformidade, com o fim último do homem; e, por certo, deve a
arte contar-se entre as mais nobres manifestações do engenho humano, porque
atinente ao modo de exprimir por obras humanas a infinita beleza de Deus, de
que é ela o revérbero. Razão pela qual, a conhecida expressão ―a arte pela arte‖
― com a qual, posto de parte aquele fim que é ingênito em toda criatura,
erroneamente se afirma que a arte não tem outras leis senão aquelas que
promanam da sua natureza, ― essa expressão ou não tem valor algum, ou
importa grave ofensa ao próprio Deus, Criador e fim último. Depois, a
liberdade do artista ― liberdade que não é um instinto, cego para a ação,
regulado somente pelo arbítrio ou por certa sede de novidade ―, pelo fato de
estar sujeita à lei divina em nada é coarctada ou sufocada, mas, antes,
enobrecida e aperfeiçoada.

A arte religiosa exige artistas inspirados pela fé e pelo amor

11. Isso, se vale para toda a obra de arte, claro é que deve aplicar-se também
a respeito da arte sacra e religiosa. Antes, a arte religiosa é ainda mais vinculada
a Deus e dirigida a promover o seu louvor e a sua glória, visto não ter outro
escopo a não ser o de ajudar poderosamente os fiéis a elevar piedosamente a
sua mente a Deus, agindo ela, por meio das suas manifestações, sobre os
sentidos da vista e do ouvido. Daí que, o artista sem fé, ou arredio de Deus com
a sua alma e com a sua conduta, de maneira alguma deve ocupar-se de arte
religiosa; realmente, não possui ele aquele olho interior que lhe permite
perceber o que é requerido pela majestade de Deus e pelo seu culto. Nem se
pode esperar que as suas obras, destituídas de inspiração religiosa ― mesmo se
revelam a perícia e certa habilidade exterior do autor ―, possam inspirar aquela
fé e aquela piedade que convêm à majestade da casa de Deus; e, portanto,
nunca serão dignas de ser admitidas no templo da igreja, que é a guardiã e o
árbitro da vida religiosa.
12. Ao invés, o artista que tem fé profunda e leva conduta digna de um
cristão, agindo sob o impulso do amor de Deus e pondo os seus dotes a serviço
da religião por meio das cores, das linhas e da harmonia dos sons, fará todo o
esforço para exprimir a sua fé e a sua piedade com tanta perícia, beleza e
suavidade, que esse sagrado exercício da arte constituirá para ele um ato de
culto e de religião, e estimulará grandemente o povo a professar a fé e a cultivar
a piedade. Tais artistas são e sempre serão tidos em honra pela Igreja; esta lhes
abrirá as portas dos templos, visto comprazer-se no contributo não pequeno
que, com a sua arte e com a sua operosidade, eles dão para um mais eficaz
desenvolvimento do seu ministério apostólico.

123
A finalidade da música sacra

13. Essas leis da arte religiosa vinculam com ligame ainda mais estreito e
mais santo a música sacra, visto estar esta mais próxima do culto divino do que
as outras belas-artes, como a arquitetura, a pintura e a escritura; estas procuram
preparar uma digna sede para os ritos divinos, ao passo que aquela ocupa lugar
de primeira importância no próprio desenvolvimento das cerimônias e dos ritos
sagrados. Por isso, deve a Igreja, com toda diligência; providenciar para
remover da música sacra, justamente por ser esta a serva da sagrada liturgia,
tudo o que destoa do culto divino ou impede os féis de elevarem sua mente a
Deus.
14. E, de fato, nisto consiste a dignidade e a excelsa finalidade da música
sacra, a saber, em ― por meio das suas belíssimas harmonias e da sua
magnificência ― trazer decoro e ornamento às vozes quer do sacerdote
ofertante, quer do povo cristão que louva o sumo Deus; em elevar os corações
dos fiéis a Deus por uma intrínseca virtude sua, em tornar mais vivas e
fervorosas as orações litúrgicas da comunidade cristã, para que Deus uno e
trino possa ser por todos louvado e invocado com mais intensidade e eficácia.
Portanto, por obra da música sacra é aumentada a honra que a Igreja dá a Deus
em união com Cristo seu chefe; e, outrossim, é aumentado o fruto que,
estimulados pelos sagrados acordes, os fiéis tiram da sagrada liturgia e
costumam manifestar por uma conduta de vida dignamente cristã, como mostra
a experiência cotidiana e como confirmam muitos testemunhos de escritores
antigos e recentes. Falando dos cânticos ―executados com voz límpida e com
modulações apropriadas‖, assim se exprime santo Agostinho: ―Sinto que as
nossas almas se elevam na chama da piedade com um ardor e uma devoção
maior por efeito daquelas santas palavras quando elas são acompanhadas pelo
canto, e todos os diversos sentimentos do nosso espírito acham no canto uma
sua modulação própria, que os desperta por força de não sei que relação oculta
e íntima‖.46

Seu papel litúrgico

15. Por aqui, facilmente se pode compreender como a dignidade e a


importância da música sacra, seja tanto maior quanto mais de perto a sua ação
se relaciona com o ato supremo do culto cristão, isto é, com o sacrifício
eucarístico do altar. Não pode ela, pois, realizar nada de mais alto e de mais
sublime do que o ofício de acompanhar com a suavidade dos sons a voz do
sacerdote que oferece a vítima divina, do que responder alegremente às suas
perguntas juntamente com o povo que assiste ao sacrifício, e do que tornar mais
esplêndido com a sua arte todo o desenvolvimento do rito sagrado. Da
dignidade desse excelso serviço aproximam-se, pois, os ofícios que a mesma

46 S. Agostinho, Confess., 1. X, c. 33, PL 32, 799ss.

124
música sacra exerce quando acompanha e embeleza as outras cerimônias
litúrgicas, e em primeiro lugar a recitação do breviário no coro. Por isso, essa
musica ―litúrgica‖ merece suma honra e louvor.

Seu papel extralitúrgico

16. Não obstante isso, em grande estima se deve ter também a música que,
embora não sendo destinada principalmente ao serviço da sagrada liturgia,
todavia, pelo seu conteúdo e pelas suas finalidades, importa muitas vantagens à
religião, e por isso com toda razão é chamada música ―religiosa‖. Na verdade,
também este gênero de música sacra ― que teve origem no seio da Igreja, e que
sob os auspícios desta pôde felizmente desenvolver-se, está, como o demonstra
a experiência, no caso de exercer nas almas dos fiéis uma grande e salutar
influência, quer seja usada nas igrejas durante as funções e as sagradas
cerimônias não litúrgicas, quer fora de igreja, nas várias solenidades e
celebrações. De fato, as melodias desses cantos, compostos as mais das vezes
em língua vulgar, fixam-se na memória quase sem esforço e sem trabalho, e, ao
mesmo tempo também, as palavras e os conceitos se imprimem na mente, são
frequentemente repetidos e mais profundamente compreendidos. Daí segue
que até mesmo os meninos e as meninas, aprendendo na tenra idade esses
cânticos sacros, são muito ajudados a conhecer, a apreciar e a recordar as
verdades da nossa fé, e assim o apostolado catequético tira deles não leve
vantagem. Depois, esses cânticos religiosos, enquanto recreiam a alma dos
adolescentes e dos adultos, oferecem a estes um casto e puro deleite, emprestam
certo tom de majestade religiosa às assembleias e reuniões mais solenes, e até às
próprias famílias cristãs trazem santa alegria, doce conforto e espiritual
proveito. Razão pela qual, também este gênero de música religiosa popular
constitui uma eficaz ajuda para o apostolado católico, e, assim, com todo
cuidado deve ser cultivado e desenvolvido.

A música sacra é um meio eficaz de apostolado

17. Portanto, quando exaltamos as prendas múltiplas da música sacra e a sua


eficácia em relação ao apostolado, fazemos coisa que pode tornar-se de sumo
prazer e conforto para aqueles que, de qualquer maneira, se hão dedicado a
cultivá-la e a promovê-la. Afinal, todos quantos ou compõem música segundo o
seu próprio talento artístico, ou a dirigem ou a executam vocalmente ou por
meio de instrumentos musicais, todos esses, sem dúvida, exercitam um
verdadeiro e real apostolado, mesmo de modo vário e diverso, e por isso
receberão em abundância, de Cristo nosso Senhor, as recompensas e as honras
reservadas aos apóstolos, à medida que cada um houver desempenhado
fielmente o seu cargo. Por isso estimem eles grandemente essa sua incumbência,
em virtude da qual não são apenas artistas e mestres de arte, mas também

125
ministros de Cristo nosso Senhor e colaboradores no apostolado, e esforcem-se
por manifestar também pela conduta da vida a dignidade desse seu mister.

III. QUALIDADE DA MÚSICA SACRA E REGRAS QUE


PRESIDEM SUA EXECUÇÃO NA LITURGIA

18. Tal sendo, como já dissemos, a dignidade e a eficácia da música sacra e


do canto religioso, grandemente necessário é cuidar-lhes diligentemente da
estrutura em toda a parte, para tirar deles utilmente os frutos salutares.

Santidade, caráter artístico e universalidade da música litúrgica

19. Necessário é, antes de tudo, que o canto e a música sacra, mais


intimamente unidos com o culto litúrgico da Igreja, atinjam o alto fim a eles
consignado. Por isso ― como já sabiamente advertia o nosso predecessor S. Pio
X ― essa música ―deve possuir as qualidades próprias da liturgia, e em
primeiro lugar a santidade e a beleza da forma; por onde de per se se chega a
outra característica sua, a universalidade‖.47
20. Deve ser ―santa‖; não admita ela em si o que soa de profano, nem
permita que se insinue nas melodias com que é apresentada. A essa santidade
se presta sobretudo o canto gregoriano, que desde tantos séculos se usa na
Igreja, a ponto de se poder dizê-lo patrimônio seu. Pela íntima aderência das
melodias às palavras do texto sagrado, esse canto não só quadra a este
plenamente, mas parece quase interpretar-lhe a força e a eficácia, instilando
doçura na alma de quem o escuta; e isso por meios musicais simples e fáceis,
mas permeados de tão sublime e santa arte, que em todos suscitam sentimentos
de sincera admiração, e se tornam para os próprios entendedores e mestres de
música sacra uma fonte inexaurível de novas melodias. Conservar
cuidadosamente esse precioso tesouro do canto gregoriano e fazer o povo
amplamente participante dele, compete a todos aqueles a quem Jesus Cristo
confiou a guarda e a dispensação das riquezas da Igreja. Por isso, aquilo que os
nossos predecessores S. Pio X, com toda a razão chamado restaurador do canto
gregoriano,48 e Pio XI,49 sabiamente ordenaram e inculcaram, também nós
queremos e prescrevemos que se faça, prestando-se atenção às características
que são próprias do genuíno canto gregoriano; isto é, que na celebração dos
ritos litúrgicos se faça largo uso desse canto, e se providencie com todo o
cuidado para que ele seja executado com exatidão, dignidade e piedade. E, se
para as festas recém-introduzidas se deverem compor novas melodias, seja isso

47 Acta Pii X, 1, p. 78.


48 Carta ao Card. Respighi, Acta Pii X,1, pp. 68-74; v pp. 73ss; AAS 36(1903-04), pp. 325-329; 395-398; v.
398.
49 Pio XI, Const. apost. Divini cultus; AAS 21(1929), pp. 33ss.

126
feito por mestres verdadeiramente competentes, de modo que se observem
fielmente as leis próprias do verdadeiro canto gregoriano, e as novas
composições porfiem, em valor e pureza, com as antigas.
21. Se em tudo essas normas forem realmente observadas, vir-se-á outrossim
a satisfazer pelo modo devido uma outra propriedade da música sacra, isto é,
que ela seja ―verdadeira arte‖; e, se em todas as Igrejas católicas do mundo
ressoar incorrupto e íntegro o canto gregoriano, também ele, como a liturgia
romana, terá a nota de ―universalidade‖, de modo que os féis em qualquer
parte do mundo ouçam essas harmonias como familiares e como coisa de casa,
experimentando assim, com espiritual conforto, a admirável unidade da Igreja.
É esse um dos motivos principais por que a Igreja mostra tão vivo desejo de que
o canto gregoriano esteja intimamente ligado às palavras latinas da sagrada
liturgia.

Somente a Santa Sé pode dispensar o uso do latim e do canto gregoriano nas


missas solenes

22. Bem sabemos que, por graves motivos, a própria Sé Apostólica tem
concedido, a esse respeito, algumas exceções bem determinadas, as quais,
entretanto, não queremos sejam estendidas e aplicadas a outros casos sem a
devida licença da mesma Santa Sé. Antes, lá mesmo onde se possam utilizar tais
concessões, cuidem atentamente os ordinários e os outros sagrados pastores,
que desde a infância os fiéis aprendam ao menos as melodias gregorianas mais
fáceis e mais em uso, e saibam valer-se delas nos sagrados ritos litúrgicos, de
modo que também nisso brilhe sempre mais a unidade e a universalidade da
Igreja.
23. Todavia, onde quer que um costume secular ou imemorial permita que
no solene sacrifício eucarístico, depois das palavras litúrgicas cantadas em
latim, se insiram alguns cânticos populares em língua vulgar, permiti-lo-ão os
ordinários ―quando julgarem que pelas circunstâncias de lugar e de pessoas tal
(costume) não possa ser prudentemente removido‖,50 firme permanecendo a
norma de que não se cantem em língua vulgar as próprias palavras da liturgia,
como acima já foi dito.

Para que os féis compreendam melhor os textos latinos, sejam eles explicados

24. Depois, a fim de que os cantores e o povo cristão entendam bem o


significado das palavras litúrgicas ligadas à melodia musical, fazemos nossa a
exortação dirigida pelos padres do concílio de Trento, especialmente ―aos
pastores e aos que têm simples cura de almas, no sentido de, com frequência,
durante a celebração da missa, explicarem, diretamente ou por intermédio de
outros, alguma parte daquilo que se lê na missa, e, entre outras coisas,

50 CIC, cân. 5.

127
esclarecerem algum mistério deste santo sacrifício, especialmente nos
Domingos e nos dias de festa‖,51 fazendo isso sobretudo no tempo em que se
explica o catecismo ao povo cristão. Isso mais fácil e mais factível se torna hoje
em dia do que nos séculos passados, visto se terem as palavras da liturgia
traduzidas em vulgar, e a sua explicação em manuais e livrinhos que,
preparados por pessoas competentes em quase todas as nações, podem
eficazmente ajudar e iluminar os fiéis, a fim de que também eles compreendam
e como que compartilhem a dicção dos ministros sagrados em língua latina.

A Santa Sé vigia para conservar e promover os cantos litúrgicos de outros ritos


não romanos

25. Óbvio é que o quanto aqui expusemos acerca do canto gregoriano diz
respeito sobretudo ao rito latino romano da Igreja; mas pode respectivamente
aplicar-se aos cantos litúrgicos de outros ritos, quer do ocidente, como o
Ambrosiano, o Galicano, o Moçarábico, quer aos vários ritos orientais. De fato,
todos esses ritos, ao mesmo passo que mostram a admirável riqueza da Igreja
na ação litúrgica e nas fórmulas de oração, por outra parte, pelos diversos
cantos litúrgicos, conservam tesouros preciosos, que cumpre guardar e impedir
não só de desaparecerem, como também de sofrerem qualquer atenuação ou
deturpação. Entre os mais antigos e importantes documentos da música sacra,
têm, sem dúvida, lugar considerável os cantos litúrgicos dos vários ritos
orientais, cujas melodias tiveram muita influência na formação das da Igreja
ocidental, com as devidas adaptações à índole própria da liturgia latina. É nosso
desejo que uma seleção de cantos dos ritos sagrados orientais ― na qual está
prazerosamente trabalhando o Pontifício Instituto para os estudos orientais,
com o auxílio do Pontifício Instituto para a música sacra ― seja felizmente
levada a termo tanto na parte doutrinal como na parte prática; de modo que os
seminaristas do rito oriental, bem preparados também no canto sacro, feitos um
dia sacerdotes possam, também nisso, eficazmente contribuir para aumentar o
decoro da casa de Deus.

A música polifônica

26. Com o que havemos dito para louvar e recomendar o canto gregoriano,
não é intenção nossa remover dos ritos da Igreja a polifonia sacra, a qual, desde
que exornada das devidas qualidades, pode contribuir bastante para a
magnificência do culto divino e para suscitar piedosos afetos na alma dos fiéis.
Afinal, bem sabido é que muitos cantos polifônicos, compostos sobretudo no
século XVI, brilham por tal pureza de arte e riqueza de melodias, que são
inteiramente dignos de acompanhar e como que de tornar mais perspícuos os
ritos da Igreja. E, se, no curso dos séculos, a genuína arte da polifonia pouco a

51 Conc. Trid., Sess. XXII, De sacrificio Missae, c. VIII.

128
pouco decaiu, e não raramente lhe são entremeadas melodias profanas, nos
últimos decênios, mercê da obra indefesa de insignes mestres, felizmente ela
como que se renovou, mediante um mais acurado estudo das obras dos antigos
mestres, propostas à imitação e emulação dos compositores hodiernos.
27. Destarte sucede que, nas basílicas, nas catedrais, nas igrejas dos
religiosos, podem executar-se quer as obras-primas dos antigos mestres, quer
composições polifônicas de autores recentes, com decoro do rito sagrado; antes
sabemos que, mesmo nas igrejas menores, não raramente se executam cantos
polifônicos mais simples, porém compostos com dignidade e verdadeiro senso
de arte: A Igreja favorece todos estes esforços; realmente, consoante às palavras
do nosso predecessor de feliz memória são Pio X, ela ―sempre favoreceu o
progresso das artes e ajudou-o, acolhendo no uso religioso tudo o que o
engenho humano tem criado de bom e de belo no curso dos séculos, desde que
ficassem salvas as leis litúrgicas‖.52 Estas leis exigem que, nesta importante
matéria, se use de toda prudência e se tenha todo cuidado a fim de que se não
introduzam na Igreja cantos polifônicos que, pelo modo túrgido e empolado, ou
venham a obscurecer, com a sua prolixidade, as palavras sagradas da liturgia,
ou interrompam a ação do rito sagrado, ou, ainda, aviltem a habilidade dos
cantores com desdouro do culto divino.

O órgão

28. Devem essas normas aplicar-se, outrossim, ao uso do órgão e dos outros
instrumentos musicais. Entre os instrumentos a que é aberta a porta do templo
vem, de bom direito, em primeiro lugar o órgão, por ser particularmente
adequado aos cânticos sacros e aos sagrados ritos, por conferir às cerimônias da
Igreja notável esplendor e singular magnificência, por comover a alma dos fiéis
com a gravidade e doçura do seu som, por encher a mente de gozo quase
celeste, e por elevar fortemente a Deus e às coisas celestes.

Outros instrumentos de música que podem ser utilizados

29. Além do órgão, há outros instrumentos que podem eficazmente vir em


auxílio para se atingir o alto fim da música sacra, desde que nada tenham de
profano, de barulhento, de rumoroso, coisas essas destoantes do rito sagrado e
da gravidade do lugar. Entre eles vêm, em primeiro lugar, o violino e outros
instrumentos de arco, os quais, ou sozinhos ou juntamente com outros
instrumentos e com o órgão, exprimem com indizível eficácia os sentimentos,
de tristeza ou de alegria, da alma. Aliás, acerca das melodias musicais
inadmissíveis no culto católico já falamos claramente na encíclica ―Mediator
Dei‖. ―Quando eles não tiverem nada de profano ou de destoante da santidade
do lugar e da ação litúrgica, e não forem em busca do extravagante e do

52 Acta Pii X,1, p. 80.

129
extraordinário, tenham também acesso nas nossas igrejas, podendo contribuir
não pouco para o esplendor dos ritos sagrados, para elevar a alma para o alto, e
para afervorar a verdadeira piedade da alma‖.53 É o caso apenas de advertir
que, quando faltarem a capacidade e os meios para tanto, melhor será abster-se
de semelhantes tentativas, do que fazer coisa menos digna do culto divino e das
reuniões sacras.

Os cânticos populares e seu uso

30. A esses aspectos que têm mais estreita ligação com a liturgia da Igreja
juntam-se, como dissemos, os cantos religiosos populares, escritos as mais das
vezes em língua vulgar, os quais se originam do próprio canto litúrgico, mas,
sendo mais adaptados à índole e aos sentimentos de cada povo em particular,
diferem não pouco entre si, conforme o caráter dos povos e a índole particular
das nações. A fim de que semelhantes cânticos religiosos proporcionem fruto
espiritual e vantagem ao povo cristão, devem ser plenamente conformes ao
ensinamento da fé cristã, expô-la e explicá-la retamente, usar linguagem fácil e
melodia simples, fugir da profusão de palavras empoladas e vazias, e,
finalmente, mesmo sendo breves e fáceis, ter uma certa dignidade e gravidade
religiosa. Quando esses cânticos sacros possuem tais dotes, brotando como que
do mais profundo da alma do povo, comovem fortemente os sentimentos e a
alma, e excitam piedosos afetos; quando se cantam como uma só voz nas
funções religiosas da multidão reunida, elevam com grande eficácia a alma dos
fiéis às coisas celestes. Por isso, embora, como dissemos, nas missas cantadas
solenes não possam eles ser usados sem especial permissão da Santa Sé, todavia
nas missas celebradas em forma não solene podem eles admiravelmente
contribuir para que os fiéis assistam ao santo sacrifício não tanto como
espectadores mudos e quase inertes, mas de forma que, acompanhando com a
mente e com a voz a ação sacra, unam a própria devoção às preces do sacerdote,
e isso desde que tais cantos sejam bem adaptados às várias partes do sacrifício,
como sabemos que já se faz em muitas partes do mundo católico, com grande
júbilo espiritual.
31. Quanto às cerimônias não estritamente litúrgicas, tais cânticos religiosos,
uma vez que correspondam às condições supraditas, podem contribuir de
modo notável para atrair salutarmente o povo cristão, para amestrá-lo, para
formá-lo numa sincera piedade, e para enchê-lo de santo regozijo; e isso tanto
nas Igrejas como externamente, especialmente nas procissões e nas
peregrinações aos santuários, e do mesmo modo nos congressos religiosos
nacionais e internacionais. De modo especial serão eles úteis quando se tratar
de instruir na verdade católica os meninos e as meninas, como também nas
associações juvenis e nas reuniões dos pios sodalícios, tal como muitas vezes o
demonstra claramente a experiência.

53 AAS 39 (1947), p. 590.

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32. Por isso, não podemos deixar de exortar-vos vivamente, veneráveis
irmãos, a vos dignardes, com todo cuidado e por todos os meios, de favorecer e
promover nas vossas dioceses esse canto popular religioso. Não vos faltarão
homens experientes para recolher e reunir juntos esses cânticos onde não se
haja feito, a fim de que por todos os fiéis possam eles ser mais facilmente
aprendidos, cantados com desembaraço e bem gravados na memória. Aqueles a
quem está confiada a formação religiosa dos meninos e das meninas não
deixem de valer-se, pelo modo devido, desses eficazes auxílios, e os assistentes
da juventude católica usem deles retamente na grave tarefa que lhes foi
confiada. Desse modo pode-se esperar obter mais outra vantagem, que está no
desejo de todos, a saber: a de que sejam eliminadas essas canções profanas que,
ou pela moleza do ritmo, ou pelas palavras não raro voluptuosas e lascivas que
o acompanham, costumam ser perigosas para os cristãos, especialmente para os
jovens, e sejam substituídas por essas outras que proporcionam um prazer casto
e puro, e que, ao mesmo tempo, alimentam a fé e a piedade; de modo que já
aqui na terra o povo cristão comece a cantar aquele cântico de louvor que
cantará eternamente no céu: ―Àquele que se senta no trono e ao Cordeiro seja
bênção, honra, glória e poder pelos séculos dos séculos‖ (Ap 5,13).

Condições especiais em países de missão

33. O que até aqui escrevemos vigora sobretudo para as nações pertencentes
à Igreja nas quais a religião católica já está solidamente estabelecida. Nos países
de missão, certamente não será possível pôr tudo isso em prática antes de haver
crescido suficientemente o número dos cristãos, antes de se haverem construído
igrejas espaçosas, antes de serem convenientemente frequentadas pelos filhos
dos cristãos as escolas fundadas pela Igreja, e, finalmente, antes de haver lá um
número de sacerdotes igual à necessidade. Todavia, vivamente exortamos os
obreiros apostólicos que lidam nessas vastas extensões da vinha do Senhor,
entre os graves cuidados do seu ofício, se dignarem de ocupar-se seriamente
também dessa incumbência. É maravilhoso ver o quanto se deleitam com as
melodias musicais os povos confiados aos cuidados dos missionários, e quão
grande parte tem o canto nas cerimônias dedicadas ao culto dos ídolos.
Improvidente seria, portanto, que esse eficaz subsídio para o apostolado fosse
tido em pouca conta, ou completamente descurado, pelos arautos de Cristo
verdadeiro Deus. Por isso, no desempenho do seu ministério, os mensageiros
do evangelho nas regiões pagãs, deverão fomentar largamente este amor do
canto religioso que é cultivado pelos homens confiados aos seus cuidados, de
modo que, aos cânticos religiosos nacionais, não raro admirados até mesmo
pelas nações civilizadas, esses povos contraponham análogos cânticos sacros
cristãos, nos quais se exaltam as verdades da fé, a vida de nosso Senhor Jesus
Cristo, da Beata Virgem e dos santos na língua e nas melodias peculiares dos
mesmos povos.

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34. Lembrem-se, outrossim, os missionários de que, desde os antigos tempos
a Igreja católica, enviando os arautos do evangelho à regiões ainda não
iluminadas pela luz da fé, juntamente com os ritos sagrados, quis que eles
levassem também os cantos litúrgicos, entre os quais as melodias gregorianas, e
isto no intuito de que, atraídos pela doçura do canto, os povos a chamar a fé
fossem mais facilmente movidos a abraçar as verdades da religião cristã.

IV. RECOMENDAÇÕES AOS ORDINÁRIOS

35. Para que obtenha o desejado efeito tudo quanto, seguindo as pegadas
dos nossos predecessores, nós nesta carta encíclica recomendamos ou
prescrevemos, vós, ó veneráveis irmãos, com solícito empenho adotareis todas
as disposições que vos impõe o alto encargo a vós confiado por Cristo e pela
Igreja, e que, como resulta da experiência, com grande fruto são, em muitas
igrejas do mundo cristão, postas em prática.

Os coros dos fiéis

36. Antes de tudo tende o cuidado de que na igreja catedral e, na medida em


que as circunstâncias o permitirem, nas maiores igrejas da vossa jurisdição, haja
uma distinta ―Scholae cantorum‖, que sirva aos outros de exemplo e de estímulo
para cultivar e executar com diligência o cântico sacro. Onde, contudo, não se
puderem ter as ―Scholae cantorum‖ nem se puder reunir número conveniente de
―Pueri cantores‖, concede-se que ―um grupo de homens e de mulheres ou
meninas, em lugar a isso destinado e localizado fora do balaústre, possa cantar
os textos litúrgicos na missa solene, contanto que os homens fiquem
inteiramente separados das mulheres e meninas, e todo o inconveniente seja
evitado, onerada nisso a consciência dos Ordinários‖.54

Nos seminários e colégios religiosos

37. Com grande solicitude é de providenciar-se, para que todos os que nos
seminários e nos institutos missionários religiosos se preparam para as sagradas
ordens sejam retamente instruídos, segundo as diretrizes da Igreja, na música
sacra e no conhecimento teórico e prático do canto gregoriano, por mestres
experimentados em tais disciplinas, que estimem tradições, usos e obedeçam
em tudo às normas preceptivas da Santa Sé.
38. E, se entre os alunos dos seminários e dos colégios religiosos houver
algum dotado de particular tendência e paixão por essa arte, disso não deixem
de vos informar os reitores dos seminários ou dos colégios, a fim de que possais
oferecer a esse tal ensejo de cultivar melhor tais dotes, e possais enviá-lo ao
Pontifício Instituto de música sacra nesta cidade, ou a algum outro ateneu do

54 Decr. S.C. Rituum, nn. 3964; 4201; 4231.

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gênero, contanto que ele se distinga por bons costumes e virtudes, e com isso dê
motivo a se esperar venha a ser um ótimo sacerdote.

Um perito em música sacra no seio do conselho diocesano de arte sacra

39. Além disso, convirá providenciar, para que os ordinários e os superiores


maiores dos institutos religiosos escolham alguém, de cujo auxílio se sirvam em
coisa de tanta importância a que, entre outras tantas e tão graves ocupações, por
força de circunstâncias eles não possam facilmente atender. Coisa ótima para
esse fim é que no conselho diocesano de arte sacra haja alguém perito em
música sacra e em canto, o qual possa habilmente vigiar na diocese em tal
terreno e informar o ordinário de tudo o que se tem feito e se deva fazer,
acolhendo-se e fazendo-se executar as prescrições e disposições dele. E, se em
qualquer diocese existir alguma dessas associações que sabiamente têm sido
fundadas para cultivar a música sacra, e que têm sido louvadas e recomendadas
pelos sumos pontífices, na sua prudência poderá o ordinário ajudar-se dela
para satisfazer as responsabilidades desse seu encargo.

Os pios sodalícios consagrados à música sacra

40. Os pios sodalícios, constituídos para a instrução do povo na música sacra


ou para aprofundar a cultura desta última, os quais, com a difusão das ideias e
com o exemplo, muito podem contribuir para dar incremento ao canto sacro,
amparai-os, veneráveis irmãos, e promovei-os com o vosso favor, para que eles
floresçam de vigorosa vida e obtenham ótimos mestres idôneos, e em toda a
diocese diligentemente deem desenvolvimento à música sacra e ao amor e ao
costume dos cânticos religiosos, com a devida obediência às leis da Igreja e às
nossas prescrições.

CONCLUSÃO

41. Tudo isso, movido por uma solicitude toda paternal, quisemos tratar com
certa amplitude; e nutrimos plena confiança de que vós, veneráveis irmãos,
dedicareis todo o vosso cuidado pastoral a tal questão de interesse religioso
muito importante para a celebração mais digna e mais esplêndida do culto
divino. Aqueles, pois, que na Igreja, sob a vossa direção, têm em suas mãos a
direção do que concerne a música, esperamos achem nesta nossa carta encíclica
incitamento para promover com novo e apaixonado ardor e com generosidade
operosamente hábil esse importante apostolado. Assim, conforme auguramos,
sucederá que essa arte tão nobre, muito apreciada em todas as épocas pela
Igreja, também nos nossos dias será cultivada de modo a ver-se reconduzida
aos lídimos esplendores de santidade e de beleza, e conseguirá perfeição
sempre mais alta, e com o seu contributo produzirá este feliz efeito: que, com fé

133
mais firme, com esperança mais viva, com caridade mais ardente, os filhos da
Igreja prestem nos templos a devida homenagem de louvores a Deus uno e
trino, e que, mesmo fora dos edifícios sagrados, no seio das famílias e nas
reuniões cristãs, verifique-se aquilo que S. Cipriano fazia objeto de uma famosa
exortação a Donato: ―Ressoe de salmos o sóbrio banquete: e, como tens
memória tenaz e voz canora, assume esse ofício segundo o costume em moda: a
pessoas a ti caríssimas ofereces maior nutrimento se da nossa parte houver uma
audição espiritual, e se a doçura religiosa deleitar o nosso ouvido‖.55
42. Enquanto isso, na expectativa dos resultados sempre mais ricos e felizes
que esperamos tenham origem desta nossa exortação, em atestado do nosso
paternal afeto e em penhor de dons celestes, com efusão de alma concedemos a
bênção apostólica a vós, veneráveis irmãos, a quantos, tomados singular e
coletivamente, pertençam ao rebanho a vós confiado, e em modo particular
àqueles que, secundando os nossos votos, se preocupam de dar incremento à
música sacra.

Dado em Roma, junto a São Pedro, no dia 25 de dezembro, festa do Natal de nosso
Senhor Jesus Cristo, do ano de 1955, XVII do nosso pontificado.

PIO PP. XII

55 S. Cipriano, Epist. ad Donatum (Epistola 1, n. XVI); PL 4, 227.

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A ARTE E O CATÓLICO

135
136
DOIS POEMAS DE FAGUNDES VARELA

LUIZ NICOLAU FAGUNDES VARELA nasceu em Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro,
em 1841 e faleceu em Niterói em 1878. Poeta romântico com todas as mazelas próprias
do movimento, foi porém autor de alguns belos poemas. Escrevia quase de improviso e
não teve tempo de corrigir seus escritos. Tendo perdido a mulher e um filho, adquiriu
o amor da solidão e muitas vezes se embrenhava pelos sertões ― hábito que conservou
mesmo depois de ter contraído segundas núpcias.
Os dois poemas seus que apresentamos abaixo são de efetiva beleza católica.
O segundo é um conseguido carmen figuratum (―poema figurativo‖, chamado
em grego technopaignion), ou seja, uma composição poética em que a disposição
gráfica do texto acompanha a forma do objeto a que se refere ― no caso, a Cruz
de Cristo.

AVE MARIA

A noite desce, lenta e triste


Cobrem as sombras a serrania,
Calam-se os gênios: ― Ave, Maria!

Na torre estreita de pobre templo


Ressoa o sino da freguesia,
Abrem-se as flores, Vésper desponta,
Cantam os anjos: ― Ave, Maria!

No tosco albergue de seus maiores,


Onde só reinam a paz e alegria,
Entre os filhinhos o bom colono
Repete as vozes: ― Ave, Maria!

E longe, longe, na velha estrada,


Para e saudades à pátria envia
Romeiro exausto que o céu contempla,
E fala aos ermos: ― Ave, Maria!

Incerto nauta por feios mares,


Onde se estende névoa sombria,

137
Se encosta ao mastro, descobre a fronte.
Reza baixinho: ― Ave, Maria!

Nas soledades, sem pão nem água,


Sem pouso e tenda, sem luz nem guia,
Triste mendigo, que as praças busca,
Curva-se e clama: ― Ave, Maria!

Só nas alcovas, nas salas dúbias,


Nas longas mesas de longa orgia
Não diz o ímpio, não diz o avaro,
Não diz o ingrato: ― Ave, Maria!

Ave Maria! ― No céu, na terra!


Luz da aliança! Doce harmonia!
Hora divina! Sublime estância!
Bendita sejas! ― Ave, Maria!

* * *

Estrelas
singelas,
luzeiros,
fagueiros
esplêndidos orbes, que o mundo aclarais!
Desertos e mares ― florestas vivazes!
Montanhas audazes que o céu topetais!
Abismos
profundos,
cavernas
externas,
extensos,
imensos
espaços
a z u i s!
Altares e tronos,
humildes e sábios, soberbos e grandes!
Dobrai-vos ao vulto sublime da cruz!
Só ela nos mostra da glória o caminho,
só ela nos fala das leis de Jesus!

138
139
“Se estais condenados a ver o triunfo do mal,
nunca o aplaudais; nunca digais do mal „isso é
bom‟; nunca digais da decadência „isso é
progresso‟; nunca digais da noite „isso é luz‟;
nunca digais da morte „isso é vida‟.”

CARDEAL PIE DE POITIERS

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