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10/12/2018 'O estado é racista, mas se falo isso é mimimi', diz advogada algemada no Rio - 12/09/2018 - Cotidiano - Folha

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'O estado é racista, mas se falo isso é mimimi', diz


advogada algemada no Rio
Valéria foi algemada por policiais durante uma audiência judicial na Baixada
Fluminense

A advogada Valéria Lucia dos Santos, 48 - Zô Guimarães/Folhapress

12.set.2018 às 18h42

Marina Estarque

SÃO PAULO A advogada Valéria Lucia dos Santos, 48, foi algemada por policiais


na última segunda-feira (10) (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/09/advogada-e-algemada-
por-pms-durante-audiencia-judicial-no-rio-de-janeiro.shtml) durante uma audiência em Duque de

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Caxias, no estado do Rio (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/riodejaneiro/). Valéria e a juíza


leiga discutiram, porque a advogada exigia ter acesso à peça da defesa. A
juíza negou o pedido e chamou os policiais.

Pessoas na sala gravaram vídeos da discussão, mas não é possível ver todos
os momentos ou o início do episódio. Segundo a OAB, Valéria estava
“absolutamente correta”, e o ato foi uma grave violação. Questionado,
o Tribunal de Justiça do Rio disse, em nota, que a juíza leiga pediu a presença
de policiais “para conter uma advogada que não havia acatado orientações
da magistrada”.

Valéria afirma que sofre diariamente com preconceito no trabalho e não se


sente representada no Judiciário. Ela evita, entretanto, associar o seu caso ao
racismo (https://m.folha.uol.com.br/folha-topicos/racismo/?pg=2).

A OAB-RJ vai entrar com com representação contra os policiais e a juíza. A


pedido da ordem, a audiência foi anulada e remarcada para 18 de setembro,
quando será presidida por um juiz togado —o juiz leigo é um advogado que
auxilia a Justiça em alguns juizados especiais, mas a decisão final é de um juiz
togado.

A seguir, o depoimento de Valéria à Folha.

A ficha do racismo só caiu quando eu estava no chão, algemada. Os policiais


me pegaram cada um por um braço na sala de audiência e me arrastaram em
pé até o corredor. Não fui violenta com ninguém, só não me movi. Quando
chegou do lado de fora da sala, me deram uma rasteira e eu caí sentada.
Depois colocaram as algemas.

Nesse momento chegou o delegado da OAB. Ele foi muito firme: “Tira a
algema dela agora!”. Os policiais obedeceram na hora. Já eram quatro a essa
altura. Aí você pensa: Como é a formação da nossa sociedade? Vamos dar os
nomes: tem o senhor de engenho, a senhorinha, o capitão do mato. E quem
estava no chão algemado? Eu.

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O Estado é racista (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/07/brasil-e-o-pais-mais-racista-do-mundo-diz-


ex-consulesa-francesa-na-flip.shtml),
entendeu? Mas se eu falo isso é mimimi, é vitimismo,
por isso que eu não queria atrelar esse caso a racismo, porque eu não quero
ouvir essa resposta. A minha luta ali era garantir o meu direito de trabalhar.
O racismo vai voltar a acontecer. Eu tento abstrair, ignoro. Mas não dá para
tirar o meu ganha pão.

Naquele dia, a juíza leiga já tinha começado a audiência com uma pergunta
não muito amigável. A minha cliente também é negra, e a juíza falou: “vocês
são irmãs?”. A cliente respondeu, eu fingi que não tinha ouvido e continuei o
meu trabalho.

Episódios assim acontecem quase todo dia, mas muitos colegas não falam
porque acham que não vale a pena ou não querem criar problema. Vou dar
um exemplo simples. O direito tem várias formalidades. Tem uma cadeira
para o advogado e uma para o cliente. Eu sento na cadeira do advogado e os
juízes me perguntam: “a senhora é o quê?”. Ou eles falam para os outros
advogados na sala que já os conhece, mas eu preciso mostrar a carteira da
OAB. Não adianta eu dar o número, preciso mostrar o documento.

Não vou te enganar, eu entro nas audiências e não me sinto representada. A


gente está em minoria na estrutura institucional do Judiciário
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/atual-sistema-de-acompanhamento-externo-do-judiciario-nao-e-

suficiente.shtml).
A última vez que um desses episódios aconteceu, eu me
acovardei, não quis arrumar tumulto. Naquele dia em Caxias, decidi que
isso não ia se repetir. Eu tinha direito de ver a peça da defesa.

A juíza leiga negou. Eu saí da audiência para buscar o delegado da OAB, mas
ele não estava na sala dele. Avisei à atendente. Quando voltei, a juíza tinha
encerrado a audiência e me mandou esperar do lado de fora. Me recusei.
Disse que eles, como representantes do Estado, não estavam respeitando a
lei. Ela decidiu chamar a força policial.

Tanto foi uma violação que a audiência foi remarcada, com um juiz togado.
Aquele ato ali, tanto meu, se eu extrapolei, quanto o dela, foi anulado. Na
hora eu não chorei, mas por dentro eu chorava. Fiquei muito mal. Quando
cheguei em casa, sozinha, desabei.

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Na OAB, quando uma outra advogada negra me abraçou e disse que tinha se
sentido representada pela minha atitude, também fiquei muito comovida.
Não esperava essa acolhida.

No dia seguinte tentei espairecer, fazer a minha corrida em Mesquita, na


Baixada Fluminense, onde eu moro. Eu sempre fui atleta. Fiz atletismo e
joguei basquete profissionalmente, muito antes do Direito chegar na minha
vida. Meu pai era caminhoneiro e minha mãe, costureira.

Na adolescência, fui convidada para jogar no Iguaçu Basquete Clube e no


América. Aos 17, me mudei para Santa Catarina para ser atleta em Criciúma e
depois em Concórdia. Morava em uma república de jogadoras, treinava de
manhã, ia para escola, estudava de tarde e treinava de novo. Recebia um
salário, tudo direitinho. Joguei contra a Paula, a Hortência
(http://aovivo.folha.uol.com.br/2016/04/19/4733-m.shtml), várias atletas famosas.

Com 24, voltei para o Rio para fazer faculdade. Comecei com fisioterapia,


depois mudei para educação física na Universidade Federal Rural. Fui a
primeira da família a entrar na faculdade.  

Antes de concluir, recebi uma bolsa para estudar e jogar nos Estados Unidos,
na Oral Roberts University, em Tulsa, Oklahoma. Morei lá dez anos, casei
com um americano e tive dois filhos. Quando fiquei grávida, perdi a bolsa.
Fiz um curso técnico e me tornei auxiliar de enfermagem.

Em 2005, minha mãe foi diagnosticada com câncer de pulmão, e eu decidi


voltar ao Brasil. Meu casamento já não estava bom, e nos divorciamos. As
crianças vieram comigo, conheceram a avó. Retornei para a Baixada e segui
com a enfermagem.

Aos poucos, o desejo de terminar a faculdade voltou. A saúde no Brasil estava


muito precária e escolhi cursar direito. Passei em uma universidade
particular, com o Prouni. Mas me angustiava com a situação dos meus filhos.

Infelizmente, com a implantação das UPPs na cidade do Rio, a Baixada ficou


muito perigosa. Meus dois irmãos foram assassinados em Mesquita. Eu
olhava para os meus filhos dormindo e pensava: 'Meu Deus…' Eles faziam

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várias atividades, futebol, natação, judô, mas eu tinha aquele receio de mãe.
Eu trabalhava muito, fazia faculdade. Pensava: 'E se eu vacilar, não for tão
atenta? Com o tráfico e aquela violência toda…'

O Brasil não investe no ser humano, e eles vão ficando pelo meio do
caminho. Tem uns que têm uma força muito grande e, mesmo com todas as
dificuldades, conseguem quebrar barreiras. Outros não, e são esses que nós
perdemos.

Então na época eu liguei para o meu ex-marido e chegamos a um acordo. Era


melhor para os nossos filhos que eles voltassem para os EUA. Não consegui
viajar para visitá-los ainda, faz sete anos que não os vejo. Sou advogada
autônoma, no começo da carreira, me formei em 2016. Ganho pouco, cerca
de R$ 1.500 por mês. Trabalho de casa, em Mesquita, e duas vezes por
semana em um escritório de Caxias.

Foi uma decisão radical mandar meus filhos para os EUA, mas foi a melhor
opção. Um está começando a faculdade de engenharia, na Carolina do Norte,
e o outro está terminando o segundo grau. É difícil para mim falar disso [fica
em silêncio, suspira]. Tenho saudade, mas vejo que eles estão evoluindo lá. O
mais velho conseguiu uma bolsa de estudos. Então foi doloroso sim, mas
valeu a pena.

Como meus pais já faleceram e meus filhos estão fora, a minha referência
aqui são os meus tios. Foi com um deles que fui conversar depois do que
aconteceu no fórum. Porque as pessoas mais velhas, mesmo sem estudo, são
muito sábias. Ele me disse: “Você é igual à sua mãe, não leva desaforo para
casa”. E me deu o melhor conselho: “Não abaixa a cabeça, segue em frente”.

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