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„É preciso uma nova perspectiva de emancipação social“

deutsche Version
Conversa com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle (grupo Krisis) sobre a crítica de valor, a crise
fundamental do capitalismo e o crescente irracionalismo social
(entrevista de Marcos Barreira e Javier Blank, Rio de Janeiro)[1]
Gostaríamos de começar falando um pouco do início do projeto teórico da revista Krisis, que já
conta mais de 30 anos, e do contexto da esquerda alemã dos anos 1980. Como se deu a criação da
revista e quais eram os seus objetivos iniciais?
Ernst Lohoff: A onda neo-marxista que tinha se alastrado por todos os países ocidentais na
sequência do movimento de 68, estava em declínio a inícios da década de 1980, inclusive na
República Federal da Alemanha. A esquerda acadêmica em especial era cada vez mais atraída pelas
abordagens pós-modernas. Também o panorama dos protestos havia se transformado radicalmente
em relação à primeira metade da década de 1970. Grupos com qualquer demanda geral
anticapitalista desintegravam-se ou eram marginalizados. Em lugar disso, movimentos focalizados –
na RFA sobretudo os movimentos ecológicos e pacifistas – dominavam a cena.
Os iniciadores do projeto Krisis viam nesses desenvolvimentos os sintomas de uma crise
fundamental da crítica radical do capitalismo, da qual a Nova Esquerda tinha uma boa parte de
cumplicidade. Uma ausência decisiva nos impulsionou: a Nova Esquerda tinha redescoberto a
crítica do capitalismo, mas sem fornecer um novo fundamento teórico, adequado ao estágio de
desenvolvimento que entrementes este havia atingido. Foram recuperadas abordagens anacrônicas
tomadas da fase de ascensão da sociedade da mercadoria, como a do marxismo do movimento
operário, ou fazia-se uma filosofia da própria ausência de um quadro adequado de referência teórica
e entregavam-se a um espontaneísmo de pouco fôlego. No entanto, para uma reformulação bem-
sucedida da oposição ao sistema, é indispensável uma teoria social crítica à altura do seu tempo – já
naquele momento tínhamos essa firme convicção.
O posterior grupo Krisis, cujos participantes provinham de diferentes segmentos da Nova Esquerda,
formou-se com a intenção de contribuir com a negligenciada reformulação da crítica radical do
capitalismo e de fornecer com a revista um foro para o necessário processo de elaboração teórica. O
foco na fundamentação teórica da crítica radical do capitalismo já tornava o nosso projeto um
empreendimento anti-cíclico, o que era reforçado pela ênfase no conteúdo de nosso processo de
auto-compreensão. Quando nosso pequeno grupo de autores começou a interpretar criticamente as
categorias básicas da teoria marxiana, como o valor, para torná-las fecundas para a análise do
capitalismo contemporâneo, isso ia praticamente no sentido contrário do que era então anunciado
na esquerda teoricamente mais reflexiva. Em vista da nova dinâmica de acumulação liberada pelo
desencadeamento dos mercados financeiros, o prognóstico de crise baseado na crítica do valor,
segundo o qual o modo de produção capitalista destruiria seus próprios fundamentos, foi
considerado como um absurdo evidente. Nos seus primeiros anos, portanto, a ressonância das
abordagens da jovem crítica do valor foi lastimável. Naquele momento chamávamos ironicamente a
revista como nossa “mensagem na garrafa”. Com a queda do socialismo real e do muro de Berlim,
abriu-se uma brecha também no muro de silêncio e no desinteresse em relação à crítica do valor. O
livro O colapso da modernização. Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia
mundial, de Robert Kurz, foi a primeira publicação da crítica do valor que encontrou um público
mais amplo. Isso não foi por acaso: o que restava da esquerda estava totalmente desconcertada com
a auto-dissolução do bloco oriental e não tinha como se contrapor ao grito triunfal liberal da suposta
vitória final da democracia e da economia de mercado. Mas a abordagem da crítica do valor foi
capaz de fazê-lo.
No editorial da Krisis 8/9, que apareceu pouco depois da queda do muro, podemos ler: “não foi
nenhuma novidade para nós o fato de a estrutura do socialismo real estar mais do que podre. A
crítica radical da forma de reprodução do socialismo real foi, desde o início, um elemento central
de nossa ‘crítica do valor’”[2]. Qual era, em linhas gerais, a visão do grupo sobre o modelo de
socialismo de Estado?
Norbert Trenkle: Já na década de 1980, ou seja antes do seu colapso, nós tínhamos criticado
radicalmente o chamado socialismo real. Não porque pensássemos que representava um suposto
desvio de uma ideia correta em si mesma, como argumentam até hoje os trotskistas, por exemplo,
mas por algo mais fundamental: víamos ali um sistema de modernização capitalista recuperadora,
portanto, uma variante específica de capitalismo, a ser abolida junto com ele. Falar de uma variante
significa que ele tinha diferenças em relação ao capitalismo no “bloco ocidental”. Isso diz respeito
principalmente ao papel central do Estado, que se explica essencialmente pela sua função como
agente da modernização. Na Rússia periférica, o Estado criou os fundamentos e pré-requisitos para
uma sociedade capitalista. Que esse „modelo“ de controle estatal da economia e da sociedade tenha
sido posteriormente estendido a Estados muito mais desenvolvidos capitalistamente, se deveu
principalmente ao desenlace da Segunda Guerra Mundial que, como se sabe, culminou na formação
de dois blocos de poder global. No entanto, tratou-se em princípio de uma forma de manifestação
do capitalismo recuperador no século XX. Desenvolvimentos semelhantes existiram em quase todas
as partes da periferia capitalista. Também no Brasil o Estado desempenhou um papel importante na
modernização econômica em meados desse século. Mas no socialismo real a estatização foi muito
mais pronunciada e sobretudo ideologicamente carregada. O fato de o Estado buscar planejar e
controlar completamente todos os processos econômicos e sociais foi percebido tanto pelos seus
partidários quanto pelos seus oponentes como uma alternativa sistêmica ao capitalismo.[3]
Contudo, lá existiam todas as categorias sociais e instituições que são essenciais para uma
sociedade capitalista. Havia uma divisão da sociedade em sujeitos de interesse particulares, havia
mercadoria, dinheiro e trabalho assalariado e inclusive um mercado, só que extremamente regulado
e com os preços fixados pelo Estado. Não devemos esquecer, todavia, que no nível fundamental o
próprio Estado moderno – com isso nos referimos a uma instituição que se opõe à sociedade como
um aparato de domínio externalizado e centralizado, que tem ou pelo menos reivindica o monopólio
da força – pertence ao núcleo fundamental da sociedade produtora de mercadorias.
Essa externalização é expressão de uma estrutura básica contraditória da sociedade capitalista. Ela é
dividida em produtores privados isolados e indivíduos privados, que estabelecem seu vínculo social
ao perseguir, uns contra os outros, seus interesses particulares. Isso, no entanto, já contém a
coisificação das relações sociais e sua autonomização em relação às pessoas. Enquanto sujeitos de
interesse particulares, elas estabelecem relações entre si através das mercadorias. Como se sabe,
Marx falou nesse contexto do caráter fetichista das mercadorias, pois as relações sociais das pessoas
tornam-se relações entre coisas, enquanto estas têm vida própria em relação aos seus produtores. A
posição central do trabalho no capitalismo está indissociavelmente ligado a isso. Como a essência
da mercadoria não é outra que ser um produto do trabalho particular isolado, o trabalho ganha a
função de instância de mediação social, significando que a maioria das pessoas deve, de algum
modo, vender sua força de trabalho. Essa é também a razão de o trabalho gozar de um status moral
tão elevado na sociedade capitalista e de ter sido adorado de forma religiosa no chamado socialismo
real.
Normalmente, a mediação pelo trabalho é regulada essencialmente pelo mercado, que sempre foi e
continua a ser regulado estatalmente. No “socialismo real”, no entanto, o Estado buscou comandar o
processo de mediação e a acumulação de capital por meio do planejamento de metas e fixação de
preços, como era requerido pela modernização recuperadora. Isso pôde funcionar razoavelmente
enquanto ainda era preciso construir as indústrias de base mais importantes e uma infraestrutura
geral. Aliás, isso veio acompanhado do violento enquadramento massivo das pessoas no processo
de produção capitalista, que o stalinismo, como se sabe, desempenhou de maneira particularmente
brutal. À medida em que a produção se tornava mais complexa e o nível de produtividade mais alto,
os métodos do planejamento estatal centralizado e de coação direta tornavam-se cada vez menos
funcionais. Isso foi evidente a mais tardar na década de 1970, quando também no Ocidente o regime
de acumulação fordista entrou em crise e teve inicio a Terceira Revolução Industrial. O “socialismo
real”, que já não podia acompanhar esse salto da força produtiva, ficou por isso cada vez mais para
trás na concorrência no mercado mundial e, finalmente, esbarrou nas suas próprias fragilidades
econômicas.
Foi nessa mesma época que ocorreu a mudança do nome da revista e do projeto teórico, que
parece diretamente motivada pela ruptura de época de 1989. O nome “Krisis” sugere não só a
descrição de uma situação objetiva, mas também uma atitude, um “momento de decisão”. Quais
eram então as expectativas a respeito do colapso do “socialismo real”?
Norbert Trenkle: a mudança do nome da revista [de Crítica Marxista para Krisis – Contribuições
para a crítica da sociedade da mercadoria] não ocorreu por causa do colapso da socialismo real;
este apenas deu o último empurrão. De fato, há algum tempo nos perguntávamos se a nossa posição
podia mesmo ser caracterizada como “marxista”. Pois um elemento essencial da nossa elaboração
teórica naquela fase inicial era justamente a crítica ao “marxismo tradicional”, que para nós incluía
praticamente todas as correntes marxistas existentes naquele momento. À diferença dessas
correntes, retomamos o fio da teoria de Marx, que tinha sido ignorado ou distorcido completamente.
Nossa abordagem foi a de desenvolver a crítica do capitalismo como uma sociedade fetichistamente
constituída, isto é, uma sociedade mediada pela produção de mercadorias e pelo trabalho, na qual as
relações sociais defrontam os seres humanos como coações objetivas, como aparentes leis naturais.
O marxismo tradicional nunca entendeu, e ainda não entende, esse aspecto crucial. Para ele, o eixo
da crítica sempre foi e continua sendo a dominação de classe e a luta de classes, que vai junto com
uma referência positiva ao trabalho. Até mesmo quando se discute o caráter fetichista da mercadoria
geralmente só se vê nele o encobrimento das relações de classe.
Tínhamos atacado fortemente essa compreensão central do marxismo tradicional já nas primeiras
edições de nossa revista, ainda na Crítica Marxista (MK). Em seu ensaio Trabalho abstrato e
socialismo (MK 4), por exemplo, Robert Kurz criticou a referência positiva ao trabalho abstrato, e
no MK 7, que apareceu em julho de 1989, Ernst Lohoff e Robert Kurz, no texto O fetiche da luta de
classes, atacaram frontalmente o paradigma da luta de classes.[4] Ao mesmo tempo, em uma série
de artigos em três partes, Peter Klein questionou o conceito afirmativo de democracia do marxismo
tradicional e apontou que a democracia e o capitalismo não estão de forma alguma em oposição,
mas se pertencem logicamente.[5] Em confronto com as concepções de democracia de Lenin,
mostrou que a Revolução de Outubro foi desde o começo nada mais que uma revolução burguesa na
periferia capitalista.[6]
Finalmente, também nossa teoria da crise questionava fundamentalmente a autocompreensão do
marxismo tradicional. De acordo com nossa análise, o capitalismo entrou em um processo de crise
fundamental e insolúvel desde a década de 1970. Isso porque, com a transição para a Terceira
Revolução Industrial, a aplicação do conhecimento à produção tornara-se a principal força
produtiva, tendo o trabalho uma importância secundária. Do ponto de vista econômico, isso
significava um deslocamento massivo da força de trabalho dos setores centrais da produção de valor
e, assim, um derretimento da massa de valor.[7] Mas, ao mesmo tempo, a classe operária perdia seu
lugar central para a acumulação de capital. Mas precisamente isso é incompatível com os
fundamentos ideológicos do marxismo tradicional, que sempre se colocou desde o ponto de vista do
trabalho. Quando chegava a admitir a ideia de uma crise fundamental, esta sempre era vinculada ao
fortalecimento da classe operária, que o marxismo imaginava como o sujeito da revolução ou da
transformação social. Era impensável que no curso da crise pudesse ocorrer exatamente o contrário.
[8] Apenas por essa razão – mas não só por isso – o marxismo tradicional sempre rejeitou nossa
teoria da crise, denunciando-a como „catastrófica“.
Todavia, a nossa teoria da crise permite de fato uma análise bastante precisa dos processos
económicos, políticos e sociais desde as décadas de 1970 e 1980. Como já foi mencionado, uma das
principais razões para o colapso do „socialismo real“ foi o fracasso final da tentativa de controle
estatal de um sistema de produção geral de mercadorias, no contexto da Terceira Revolução
Industrial. A transição para os métodos de produção em que o conhecimento é a principal força
produtiva não pôde ser levada adiante com os meios de planejamento centralizado dos fluxos de
valor. Baseados em nossa teoria da crise, tínhamos previsto isso já em meados da década de 1980;
no entanto, ficamos um tanto surpresos quando o socialismo real desmoronou tão repentina e
violentamente como um castelo de cartas. Contudo, uma análise no nível categorial fundamental
não é necessariamente capaz de prever as datas exatas e percursos de tais processos; ela busca a
explicação da conexão interna. Esse fato manifestou-se também – no sentido oposto – em relação às
nossas previsões de crise para o sistema capitalista mundial. No início dos anos 1990 calculávamos
que o processo de crise que diagnosticáramos progrediria muito mais rápida e violentamente do que
realmente aconteceu. Em retrospecto, e com nossos atuais instrumentos da teoria da crise, a longa
duração do processo de crise e seu percurso podem ser explicados teoricamente de forma
conclusiva; mas, na visão daquele momento, o colapso do socialismo real pareceu-nos o prelúdio
imediato de um desmoronamento do sistema capitalista mundial que viria muito rapidamente.
Vimos no colapso do „socialismo real“ um ponto de virada também em outro aspecto. Pensamos
que ele significaria o fim do marxismo tradicional e que o campo estaria preparado para uma
renovação da crítica fundamental do capitalismo e para uma transformação social radical.
Infelizmente, estávamos errados também a esse respeito. As críticas ao capitalismo foram
totalmente desacreditadas no público em geral e na discussão teórica durante uma boa década; mas,
à medida que a crise foi se tornando cada vez mais perceptível e o capitalismo neoliberal, antes
celebrado como vitorioso, caiu em desgraça, infelizmente o marxismo tradicional recuperou sua
força. E o pior é que hoje ele é cada vez mais popular em uma versão restrita e regressiva, enquanto
nacionalismo autoritário e populismo de esquerda, que muitas vezes mal se distingue do populismo
de direita.
Ao longo da década de 1990, a posição teórica da Krisis se concentrou na crítica das formas
básicas da sociedade moderna, o que se deu a partir de uma “dialética de ruptura e continuidade”
com a crítica de Marx. Quais os principais elementos dessa crítica e o que há de “ruptura” em
relação à antiga perspectiva marxista?
Norbert Trenkle: A crítica das formas básicas da sociedade capitalista esteve no centro de nosso
trabalho teórico desde o início. Mas é verdade que nos anos 1990 ela foi aprofundada e
desenvolvida consistentemente. Por exemplo, depois da crítica ao paradigma da luta de classes e à
ontologização do trabalho abstrato, desenvolvemos a crítica ao trabalho enquanto tal, considerado
por nós como a forma central básica, historicamente específica, da sociedade capitalista.[9] Além
disso, percebemos que as visões invertidas e limitadas do marxismo tradicional não remontavam
simplesmente a uma interpretação errônea da obra de Marx, mas estavam, pelo menos parcialmente,
contidas e preparadas nela. Grosso modo, em Marx podem ser identificadas duas tendências que se
contradizem fundamentalmente – pelo menos isso pode ser afirmado numa retrospectiva histórica.
Designamos a primeira tendência como teoria da modernização, porque basicamente refere-se
afirmativamente às categorias da sociedade capitalista, considerando-as como um estágio de
transição histórica necessária para uma sociedade comunista. Reconhecemos aqui uma perspectiva
da filosofia da história baseada no pensamento iluminista, que difere de Hegel e companhia apenas
pelo seu chamado materialismo, na medida em que coloca o desenvolvimento das forças
produtivas, do trabalho e da luta de classes como agente da história. No chamado materialismo
histórico, essa figura de pensamento foi posteriormente caricaturada.[10] Isso sempre vai
acompanhado da referência positiva ao trabalho, que aparece como uma categoria supra-histórica e
dominada apenas externamente pelo capital. O trabalho pode, dessa maneira, ser afirmado como o
ponto de vista da emancipação, e isso permite justificar o lugar da classe operária como o sujeito
histórico predestinado a realizar o comunismo.
A outra tendência na obra de Marx é a crítica radical das formas básicas da sociedade capitalista.
Como se sabe, a principal obra de Marx começa com uma investigação sobre a essência da
mercadoria, caracterizada como a „forma elementar“ da sociedade burguesa. Marx desenvolve
sistematicamente a partir dai todas as outras formas básicas como valor, dinheiro e capital,
designando este último como „sujeito automático“ da sociedade capitalista. Ao mesmo tempo, ele
traça uma sequência ascendente de formas fetichistas cada vez mais desenvolvidas, começando com
o fetiche da mercadoria, passando pelo fetiche do dinheiro e terminando no fetiche do capital. Sua
teoria da crise está inseparavelmente ligada a essa „ascensão do abstrato ao concreto“, como Marx
caracteriza seu método nos Grundrisse. Basicamente, a propensão à crise da sociedade capitalista já
está contida na contradição entre o valor de uso e o valor de troca, porque nela é produzida a
autonomização da riqueza abstrata, na forma do valor, em relação ao conteúdo material da
produção.[11] É claro que, com isso, apenas é afirmada a possibilidade abstrata da crise, mas esse é
o ponto de partida lógico necessário para traçar a insustentabilidade final do modo de produção
capitalista.
Não é nenhum segredo que nos vinculamos precisamente a esse Marx da crítica formal, que Ernst
Lohoff em seu ensaio O Fim do Proletariado como o Começo da Revolução (Krisis 10, 1991),
seguindo Roman Rosdolsky, chamou de „Marx esotérico“, pois ele tinha decifrado a estranha
estrutura real-metafísica do capitalismo, portanto, seu caráter fetichista. Por outro lado, rejeitamos
como historicamente obsoleto o „Marx exotérico“, o Marx teórico da modernização. Na sequência,
Robert Kurz, formulou para esta questão a ideia do „duplo Marx“.[12] Pode-se falar, nesse sentido,
em continuidade e ruptura em relação à teoria de Marx.
Essa crítica das formas básicas da sociedade burguesa conduziu à crítica do sujeito moderno. No
início dos anos 1990, Roswitha Scholz sintetizou na afirmação “o valor é o homem“[13] a tese de
que o sujeito moderno é estruturalmente constituído como “masculino” e que essa constituição
está baseada na socialização pela mercadoria e pelo valor. Esse também foi o título de um artigo
no qual ela apresentou o teorema do valor-cisão. O que vocês pensam desse teorema e da crítica
desenvolvida a partir dele das relações de gênero no capitalismo?
Norbert Trenkle: O teorema do valor-cisão representa um passo importante no desenvolvimento
teórico da crítica de valor porque relaciona sistematicamente a estrutura patriarcal da sociedade
capitalista com a forma historicamente específica de socialização pela mercadoria, o valor e o
trabalho. Isso o diferença de maneira fundamental das abordagens críticas do capitalismo comuns
no feminismo, que normalmente procedem em termos meramente aditivos e entendem o patriarcado
como uma forma adicional de dominação, ao lado da dominação de classe e da dominação racial, a
chamada tripla opressão. Diferente dessa relação externa entre diferentes formas de dominação, o
teorema do valor-cisão insiste na conexão constitutiva interna entre dominação masculina e
sociedade capitalista. De acordo com isso, a socialização pelo valor depende necessariamente da
produção constante de um „outro“ cindido, inscrito como feminino, no qual são externalizados
todos aqueles elementos que não encontram lugar na racionalidade mercantil objetivada.
Embora essa cisão esteja sujeita a mudanças históricas em sua configuração concreta, ela representa
um princípio básico da sociedade da mercadoria, que se efetiva nos diferentes níveis do vínculo
social. Isso é talvez mais evidente na esfera do trabalho, constitutivamente baseada na exclusão e
definição como não-trabalho de toda uma gama de atividades que são indispensáveis para a
manutenção da sociedade e predominantemente atribuídas às mulheres. No marxismo tradicional,
isso equivale aproximadamente à divisão entre as esferas do trabalho e da reprodução. Mas a cisão
não se limita de modo algum a uma relação funcional, no sentido das mulheres contribuírem para a
reprodução da força de trabalho por meio de atividades domésticas e de cuidado não remuneradas.
Pelo contrário, ela já é efetiva no nível fundamental da constituição do sujeito e molda no
capitalismo o ordenamento hierárquico binário de gênero que, a despeito de seu abrandamento nas
últimas décadas, ainda prevalece. O sujeito moderno constitui-se fazendo de si mesmo e dos outros
um objeto. Isso está fundado na essência de uma relação social na qual as pessoas se confrontam
como indivíduos isolados e se relacionam através da produção de mercadorias e do trabalho; mas,
ao mesmo tempo, é uma característica essencial do que é considerado „masculino“ na modernidade
capitalista.
Nesse sentido, a frase „o valor é o homem“ acerta o alvo. O sujeito moderno é essencialmente
„masculino“ no sentido de uma constituição historicamente específica, enquanto „o feminino“ é
definido na demarcação em relação a ela. Isso também está estabelecido na forma da relação social.
O sujeito “masculino” só pode produzir e manter essa relação objetivadora com o mundo
circundante criando uma contra-imagem que é, por assim dizer, o „recipiente“ para os desejos,
sentimentos e necessidade cindidos, que ele não pode se permitir enquanto sujeito. Embora essa
imagem da „feminilidade“ tenha mudado significativamente nos últimos tempos, a estrutura da
cisão não foi abolida, mas apenas deslocada.
Portanto, concordamos em princípio com o teorema da cisão desenvolvido inicialmente por
Roswitha Scholz. No entanto, encontramos uma insuficiência no fato de o valor ser pensado ali
apenas como um princípio estrutural abstrato em um meta-nível e, desta maneira, a forma-sujeito
aparecer como uma espécie de apêndice do valor, determinado por ele. Isso restringe inclusive a
crítica do valor-cisão a um meta-nível muito abstrato, que deve então ser complementado por
acréscimos sócio-psicológicos e de crítica da ideologia. Assim, após a ruptura com Robert Kurz e
Roswitha Scholz, tentamos desenvolver o teorema da cisão a partir da perspectiva de uma crítica
fundamental do sujeito. Há alguns textos, especialmente de Ernst Lohoff e Karl-Heinz Lewed.[14]
No entanto, temos que admitir que a nossa crítica do sujeito e, com ela, a questão da cisão de
género, ainda precisa ser desenvolvida.
Na conjuntura de “alta da economia mundial” dos anos 1980 e 1990, o prognóstico de uma crise
fundamental teve que desenvolver algum tipo de explicação sobre o processo de adiamento do
colapso. Isso foi pensado inicialmente a partir da ideia do inchaço da “superestrutura financeira”.
Podem falar um pouco mais a respeito dessa situação e das reações ideológicas provocadas pelo
“adiamento da crise”?
Ernst Lohoff: Na década de 1970, o boom fordista do pós-guerra, que ainda se baseava no consumo
massivo de trabalho vivo na produção industrial, estava esgotado. Assim, as duas variantes da
sociedade da mercadoria, a estatista oriental e a da economia de mercado ocidental, entraram em
uma fase de estagnação e crise. Nos Estados capitalistas centrais, manifestava-se o fenômeno da
„estagflação“, a coexistência de queda do crescimento e aumento das taxas de inflação, enquanto a
força de trabalho era demitida em massa. Os Estados do socialismo real, por sua vez, ficavam cada
vez mais para trás na corrida da produtividade e não podiam mais competir na concorrência global.
Mas, na década de 1980, as duas partes do sistema mundial de produção de mercadorias fizeram
desenvolvimentos opostos. Enquanto a crise se aprofundava no „bloco oriental“, as economias de
mercado ocidentais passaram por uma metamorfose que deu à acumulação de capital uma nova base
– embora muito precária no longo prazo. A revolução neoliberal desencadeou os mercados
financeiros e fez com que eles substituíssem o capital industrial como principal portador da
acumulação global de capital. Surgiu um novo tipo de capitalismo, no qual a acumulação de „capital
fictício“ (Marx), isto é, a propagação explosiva de créditos e títulos financeiros de todos os tipos,
tornou-se o verdadeiro motor da economia.
Essa metamorfose da acumulação de capital não podia, evidentemente, ser realizada no contexto do
ordenamento estatista do socialismo real e, portanto, seu colapso era inevitável. Contudo, na
perspectiva ideológica do liberalismo esse colapso apresentou-se como se, na luta competitiva entre
dois sistemas completamente diferentes, tivesse prevalecido a organização social superior. O
liberalismo – assim como o pensamento dominante em geral – não pode imaginar uma sociedade
desenvolvida sem que ela esteja dissolvida em produtores privados separados e sem que a riqueza
seja produzida na forma de mercadorias; por isso ele é basicamente cego para o fato de o socialismo
real e o capitalismo ocidental representarem apenas duas variantes de uma forma de socialização
historicamente específica. Ao invés de perceber que o desastre nos países do Leste profetizava a
insustentabilidade final da forma de socialização baseada na mercadoria, no dinheiro e no trabalho
abstrato, viu-o antes como a prova da grandeza e da racionalidade da sua própria variante do
capitalismo.
A ascensão econômica que acompanhou a transição para um capitalismo alimentado pela
acumulação da indústria financeira sustentou esse erro de cálculo. Especialmente na década de
1990, quando o boom da „Nova Economia“ levou as cotações das ações a patamares sensacionais,
pondo em marcha a economia global, o otimismo no futuro renasceu. Naquele tempo de apogeu do
neoliberalismo, reinava um clima de eufórico alvorecer em relação aos mercados que hoje é difícil
imaginar. Antes da virada do milênio havia um relativo consenso em que a mudança para a
„sociedade do conhecimento“ traria ao capitalismo uma nova idade de ouro que desencadearia a
„criação de valor“.[15]
No „Fragmento das máquinas“, Marx tinha previsto, cerca de 130 anos antes, a perspectiva
contrária a essa expectativa que dominava o clima social no final do século XX. A ascensão da
ciência a principal força produtiva, de acordo com a afirmação central de Marx nas passagens dos
Grundrisse, destrói a base do modo de produção baseado no valor e leva inevitavelmente ao seu
colapso. Já na primeira edição de nossa revista, desenvolvemos essa ideia no sentido de que, com a
Terceira Revolução Industrial, a visão de Marx estava se tornando realidade. A microeletrônica,
como produto da ciência, é uma tecnologia universalmente aplicável que permite a automação
abrangente de processos em todas as áreas de produção, distribuição e administração, e tem
conseqüências muito diferentes das grandes revoluções tecnológicas do passado para o sistema de
produção de riqueza capitalista. Se inovações como a máquina a vapor, o tear mecânico e o motor
de combustão interna implicaram sobretudo em novos campos para a produção capitalista de
mercadorias e, assim, possibilitaram um consumo adicional de trabalho produtivo, a microeletrônica
é, por excelência, uma tecnologia de racionalização. O trabalho necessário para a produção de
novos produtos digitais, como computadores, telefones celulares, etc., é desproporcional em relação
à massa de força de trabalho liberada como resultado da digitalização em todos os setores de
produção existentes.
Nosso trabalho na teoria da crise focou-se durante muitos anos em fundamentar e concretizar a tese
da crise fundamental da produção de valor. Mas também o fenômeno do „capital fictício“
desempenhou sempre um papel importante em nosso argumento. Pois somente o inchaço dos
mercados financeiros fornecia a explicação do porque a acumulação global de capital ainda não
tinha sucumbido, mesmo que a base de valorização tivesse encolhido estruturalmente há muito
tempo pelo deslocamento do trabalho vivo. Todavia, não apenas nos opusemos dessa maneira ao
mainstream neoliberal, mas também à grande maioria da esquerda. Enquanto os ideólogos
neoliberais, eufóricos, viam suas expectativas no futuro serem confirmadas pelo boom do mercado
de ações, a maioria da esquerda resignava-se com o fato de que o capitalismo tinha finalmente
triunfado. Nós insistíamos, pelo contrário, que a crise fundamental tinha sido apenas adiada, porque
uma acumulação baseada na antecipação constante de produção futura de valor é insustentável no
longo prazo. Por causa desse diagnóstico fomos rejeitados por ambos os lados como „catastrofistas“
e „apocalípticos“.[16]
Em seu “Manifesto contra o Trabalho”[17] de 1999, também publicado no Brasil, vocês
formularam de maneira muito contundente a crítica ao trabalho. Como foi a recepção do
Manifesto e que significado teve para a divulgação da crítica do valor?
Norbert Trenkle: O Manifesto contra o Trabalho é, sem dúvida, a publicação do grupo Krisis que
ganhou mais popularidade. Foi traduzido em pelo menos nove idiomas e é um dos textos mais
frequentemente vistos em nosso site. Também circula em muitas páginas na Internet. A razão para
esse forte interesse é, com certeza, o fato de a crítica contundente do trabalho abordar o sofrimento
generalizado pela compulsão capitalista ao trabalho e pela crescente precariedade das condições de
trabalho. Evidentemente, houve também fortes críticas, especialmente por parte da esquerda
tradicional, para quem um manifesto contra o trabalho é mais ou menos tão absurdo quanto um
manifesto contra a gravidade. Para eles, o trabalho é um princípio supra-histórico de socialização
que não pode ser abolido. Mesmo em uma sociedade livre, portanto, as pessoas se socializariam
através do trabalho e estabeleceriam por meio dele sua relação com a sociedade. A diferença em
relação à sociedade capitalista seria apenas, então, que a mediação pelo trabalho seria
„conscientemente“ organizada. Mas isso é uma contradição em si, porque a mediação pelo trabalho
é essencialmente – como Moishe Postone explicou detalhadamente – uma forma coisificada de
mediação.[18] Ela é expressão de uma dominação das coisas mortas – os produtos do trabalho –
sobre as pessoas e, como tal, subjaz ao fetichismo do mundo da mercadoria.
Mas tenho a impressão de que a fixação no trabalho como um princípio positivo já não é tão forte,
especialmente na geração mais jovem. Recentemente notamos, por exemplo, um interesse crescente
no Manifesto a partir do movimento do „decrescimento“. Outros problemas surgem nessa recepção,
contudo, devido ao campo teórico de referência. A crítica do trabalho é frequentemente entendida
ali como se se pudesse sair individualmente das coações predominantes, por exemplo reduzindo o
consumo ou recolhendo-se em pequenos projetos locais. Não entendemos dessa maneira nossa
crítica ao trabalho – e acho que deixamos isso claro no Manifesto. Em vez disso, colocamos o
trabalho no centro da crítica, porque ele representa o princípio central da mediação social no
capitalismo e, portanto, é a partir daí que a crítica fundamental dessa sociedade pode ser
desenvolvida. A abolição do trabalho não pode, portanto, ser um ato individual ou local, isolado,
mas só é possível no contexto de um amplo movimento de emancipação, que vise uma
transformação social abrangente.
Outro problema com a atual recepção do Manifesto é que ele tem quase 20 anos e, portanto,
naturalmente não reflete o estado atual de nossa teoria e análise da crise. Para sua quarta edição em
alemão, que será lançada no final de 2018, preparamos um minucioso epílogo atualizado que dá
uma visão geral das inovações teóricas – nem um pouco irrelevantes – dos últimos 15 a 20 anos e
ao mesmo tempo trata do aprofundamento do processo de crise que ocorreu desde então.
Essas inovações teóricas começam a ganhar corpo no livro “A grande desvalorização”, publicado
em 2012, onde vocês empreendem a tentativa de explicar as causas da crise financeira de 2008 e
ao mesmo tempo continuar desenvolvendo o conceito de capital fictício. Quais são as ideias gerais
do livro?
Ernst Lohoff: o ponto de partida do livro A grande desvalorização[19] é também, naturalmente, a
idéia central da teoria da crise da crítica do valor, isto é, a crise fundamental da produção de valor.
Na primeira parte do livro ela é mais uma vez desenvolvida, com alguns esclarecimentos e
acréscimos. As inovações teóricas se encontram, sem dúvida, na segunda e terceira partes e dizem
respeito ao capital fictício, isto é, à acumulação de capital na indústria financeira e suas leis de
movimento específicas.
Há um bom motivo para isso: antes do livro A grande desvalorização, as explicações sobre a
categoria de „capital fictício“ eram deficitárias em relação à clareza categorial com que a crise da
valorização do valor tinha sido analisada pela crítica do valor nas décadas de 1980 e 1990. Se
tínhamos adotado esse termo, até então extremamente negligenciado na discussão marxista, o
fizemos em uma interpretação ambivalente em relação à essência da teoria da acumulação na
tradição marxista. O marxismo obsoleto conhece, basicamente, apenas a acumulação de capital
baseada na acumulação de mais-valia e considera os eventos no mercado financeiro, em última
instância, como um jogo de soma zero que culmina em uma mera redistribuição da riqueza
capitalista existente. Ao insistir em que o capital fictício tinha substituído há anos a valorização de
valor como força motriz da acumulação de capital, a crítica do valor concedia aos eventos do
mercado financeiro um significado intrínseco no processo de acumulação, algo incompatível com a
compreensão do marxismo tradicional. No entanto, a diferença fundamental entre a formação de
capital fictício e a acumulação de capital baseada na criação de valor foi estabelecida de forma tal
que ficou no meio do caminho. Para elucidar o caráter precário da criação de capital fictício,
utilizavam-se expressões tais como „acumulação aparente“ que, em vez de explicar qualquer coisa,
apelavam a um preconceito de „autenticidade metafísica“ resultando em que só contava de verdade
a „economia real“, enquanto a esfera financeira apenas obscurecia as relações econômicas reais.[20]
Nosso último livro da passos decisivos e completa a lacuna na elaboração teórica da crítica do valor.
Seguindo as considerações fragmentárias de Marx no livro III d’O Capital sobre o capital portador
de juros, desenvolve uma crítica da economia política da formação de capital fictício. O ponto de
partida é o seguinte: como afirmado por Marx, a concessão de um empréstimo ou a emissão de
ações permite ao capital monetário cedido ter, temporariamente, uma dupla existência. Ao lado da
soma original de dinheiro disponível para o devedor ou para a empresa emissora de ações, e pelo
prazo do empréstimo ou da ação, entra a reivindicação monetária do credor. Se essa reivindicação
monetária se tornar por sua vez uma mercadoria negociável, então a duplicação torna-se relevante
em termos da teoria da acumulação. Neste caso, a imagem espelhada do capital inicial representa
uma parte da riqueza capitalista total tanto quanto o próprio capital original. Esse estranho
mecanismo constitui a base da acumulação global de capital no capitalismo atual. Na medida em
que a massa de títulos financeiros, isto é, as reivindicações monetárias negociáveis enquanto
mercadorias, aumenta mais e mais rápido, também o sistema de riqueza abstrata no seu conjunto
pode manter o curso de expansão.
Ao contrário do que se afirma nos livros de economia e nas idéias do marxismo tradicional, nos
mercados financeiros reside uma potência própria de formação de capital e, com a enorme expansão
desse setor, tornou-se o verdadeiro motor do funcionamento capitalista como um todo. É claro que o
predomínio da acumulação da indústria financeira não significa um desacoplamento completo do
processo de acumulação da economia real. Não pode haver dúvida sobre isso, pois a própria
formação de capital na indústria financeira sempre precisa de pontos de referência na economia
real. Embora não precise mais de valorização já ocorrida, isto é, produção de mais-valia, ela
capitaliza expectativas de ganhos futuros ou, em outras palavras, ela representa a acumulação de
valor futuro a ser produzido. Mas, como tal, depende de expectativas e esperanças de futuros
aumentos de lucro nos mercados de bens ou, pelo menos, em determinados mercados de bens.
Nenhum boom imobiliário acontece sem a perspectiva do aumento dos preços dos imóveis,
nenhuma alta na bolsa sem a esperança de lucros empresariais futuros.
Essa dependência em relação aos portadores de esperança na economia real explica a gestação de
crises da época do capital fictício. Sempre que tais expectativas se mostram como puras ilusões e
que as bolhas especulativas estouram, não só bloqueia-se a necessária formação de novo capital
fictício, mas também o capital fictício já empilhado perde retroativamente sua validade social.
Ameaça então, como mostrou recentemente a crise global de 2008, uma espiral económica
descendente na qual se manifesta o processo basal de crise encoberto pelo inchaço da superestrutura
financeira. Isso só pode ser evitado de uma forma: criando novas quantias ainda maiores de capital
fictício em algum outro lugar, em caso de necessidade com a ajuda efetiva dos Bancos Centrais. No
entanto, até mesmo essa „solução“ é apenas temporária. Na medida em que os potenciais portadores
de esperança da „economia real“ se dissipam, e as montanhas a serem descartadas de futuro
capitalista queimado se tornam cada vez mais altas, também o capitalismo carregado pela
acumulação na indústria financeira atinge seu limite interno.
Isso ajuda a explicar porque em publicações mais recentes do grupo Krisis fala-se, por exemplo,
em um “novo tipo de capitalismo”, um “capitalismo inverso” e uma “era do capital fictício”. O
que esse tipo de formulação traz de realmente novo em relação à abordagem teórica anterior?
Ernst Lohoff: O termo inversão enfatiza antes de tudo que, na criação do capital fictício, o
ordenamento temporal entre a formação de valor e a de capital é fundamentalmente invertido em
relação ao movimento do capital funcionante. No ciclo do capital funcionante, a criação de capital
novo é sempre o resultado do processo de valorização. Primeiro vem a valorização, depois a
formação de capital. Ao contrário, a formação de capital fictício por meio do mecanismo de
duplicação do capital original precede sempre sua possível valorização. O valor ainda não criado é
transformado antecipadamente em capital social adicional. Como já foi dito, o sistema capitalista
mundial num todo baseia-se desde a década de 1980 nessa forma de geração de capital por meio da
antecipação de valor. Mas isso – e a isso refere-se sobretudo o termo „capitalismo inverso“ – virou
de cabeça para baixo a relação entre a esfera financeira e o capital funcionante. Considerados a
partir da lógica geral da sociedade capitalista, os mercados monetários e de capitais são uma esfera
derivada. O fato de o capital monetário se tornar uma mercadoria e de surgirem mercados para
negociar essa mercadoria específica já pressupõe que a produção de bens tenha assumido a forma
de produção de mercadorias e esteja sujeita à finalidade da valorização de capital. Nesse sentido,
pode-se falar de uma superestrutura financeira que recobre o mundo do capital funcionante. No
capitalismo atual, entretanto, essa „superestrutura financeira“ tornou-se o principal suporte da
acumulação de capital e, portanto, paradoxalmente, a indústria básica de todo o sistema. A produção
de rendimentos na esfera financeira não é mais o apêndice da extração de mais-valia, como no
capitalismo clássico; antes, a acumulação de capital funcionante tornou-se uma variável dependente
da formação do capital fictício. Para expressar essa inversão, substituímos o termo corrente
„capitalismo dominado pelo mercado financeiro“, que não diz nada em termos de teoria da
acumulação, pelo conceito de „capitalismo inverso“.
O termo „época do capital fictício“ tem um pano de fundo semelhante e representa uma espécie de
contraposição em relação às designações habituais do último estágio de desenvolvimento do capital,
tais como „a era da globalização“ ou „a era do neoliberalismo“. O primeiro termo é vago e
puramente fenomenológico; o último, coloca no centro a questão da ideologia dominante. O termo
„época do capital fictício“ indica o que, de acordo com nossa análise, é a principal característica
estrutural do capitalismo atual.
A teoria do „capitalismo inverso“ está de fato associada a algumas inovações em relação ao estado
anterior de elaboração teórica da crítica do valor. Já a questão a partir da qual é considerado o
problema da criação de capital fictício mudou significativamente. Nos anos 1980 e 1990, queríamos
apenas provar que a acumulação de capital fictício era uma forma muito precária de formação de
capital. A questão norteadora em nosso livro A grande desvalorização é outra: como funciona essa
forma tão precária quanto miraculosa de formação de capital? Nos textos mais antigos, o tópico era
apenas o (rápido) fim da dinâmica da criação de capital fictício. A lógica interna da época foi
pensada, assim, a partir de seu fim antecipado e, portanto, a análise permaneceu opaca. Nossa nova
abordagem é projetada para analisar a história interna da época do capital fictício. Mas isso requer
um instrumental categorial apropriado, com o qual a multiplicação do capital fictício possa ser
entendida como uma forma de acumulação de capital própria. No livro A grande desvalorização
desenvolvemos esse instrumental e em textos posteriores aprofundamos e precisamos essa análise.
[21]
Mudar o centro de gravidade do conhecimento é também, evidentemente, uma resposta para a
transformação da situação histórica. Formulamos pela primeira vez nossa teoria da crise
precisamente quando começavam os anos dourados do capitalismo inverso. Assim, essa teoria só
podia estar orientada para o prognóstico. No mais tardar com o crash de 2008, tornou-se evidente a
crise do capitalismo baseado na dinâmica da criação de capital fictício. Só por esse motivo, a
abordagem da crítica do valor precisava mudar para o diagnóstico de crise. Sua tarefa é explicar o
processo de crise de forma mais coerente do que outras teorias. Mas isso requer uma teoria
sofisticada da criação de capital fictício.
Mas há outro aspecto importante: diante das ideologias atuais de processamento das crises, é
urgentemente necessário argumentar de maneira diferente do que fazíamos trinta anos atrás.
Naquela época ninguém queria ver como problemática a decolagem dos mercados financeiros. Nas
ideologias atuais de processamento das crises, ao contrário, a supostamente boa e saudável
„economia real“ está sendo constantemente contraposta à „mórbida e inchada“ esfera financeira. A
acumulação progressiva de capital fictício, precária solução para a crise, é dessa maneira
mistificada como causa da crise e, ao mesmo tempo, o capitalismo baseado no trabalho em massa é
nostalgicamente transfigurado.[22]
Nestas condições, se a crítica do valor ficasse denunciando a acumulação da indústria financeira
como „aparente“, no estilo antigo, cairia ela mesma nas águas da ideologia dominante. À luz da
teoria do „capitalismo inverso“, ao contrário, a idéia do retorno a um capitalismo saudável baseado
no trabalho honesto é um mito. Essa teoria inclui uma crítica fundamental ao atual e predominante
processamento ideológico das crises.
Como descreveriam as formas ideológicas atuais de processamento da crise?
Norbert Trenkle: Um elemento central do processamento ideológico da crise desde a década de
2000, reforçado a partir do crash de 2008 é, como já mencionado, a referência nostálgica ao
capitalismo supostamente bom da época fordista, baseado no trabalho industrial em massa. Ele é
confrontado com o capital financeiro que aparece como a causa da crise e de todo mal. E é
acompanhado por uma adoração do Estado forte e da Nação, que se colocariam contra a
globalização. Esta é a base sobre a qual o nacionalismo e o neo-autoritarismo prosperam e estão em
ascensão em quase todos os lugares do mundo. É claro que esses regimes autoritários não podem
resolver a crise fundamental, porque o desenvolvimento capitalista não pode ser revertido para os
tempos do fordismo e para uma política econômica voltada para o mercado interno. Mas isso não
nos deve tranquilizar. Pois essa incapacidade estrutural é, por assim dizer, „compensada“ por uma
exclusão social e racista mais aguda e pela intensificação da repressão contra oponentes e críticos,
como acontece atualmente na Hungria e na Polônia, ou mesmo na Turquia.
Se esses regimes e movimentos encontram tanto apoio entre grandes setores da população, isso tem
a ver essencialmente com o fato de que eles servem a uma determinada necessidade identitária, que
se encontra na estrutura fundamental da subjetividade moderna. Com isso nos referimos à
necessidade de identificação com um poderoso grande sujeito ou sujeito coletivo, como a Nação.
Essa identificação possibilita compensar o onipresente sentimento de impotência que resulta, em
última instância, do confronto das pessoas com suas próprias relações sociais no capitalismo, como
um poder aparentemente estranho que as subjuga. Esse sentimento de impotência representa,
portanto, uma constante básica da subjetividade capitalista, pois está ancorado na estrutura da
sociedade da mercadoria; mas ele foi consideravelmente agravado pela extrema volatilidade,
imprevisibilidade e propensão para a crise do capitalismo inverso. É por isso que mais e mais
pessoas buscam hoje um amparo identitário em grandes sujeitos imaginários e desejam um „homem
forte“ – que em tempos de emancipação pode ser também uma „mulher forte“, como Marine Le
Pen.
Todavia, a identificação com um grande sujeito coletivo exige sempre uma demarcação agressiva
em relação a um „outro“ construído que é definido como estranho e hostil. Todo nacionalismo
delimita-se em relação a outras nações. E porque supostamente a „essência própria“ exprime-se
sempre em um „caráter nacional“ determinado e em uma cultura particular, outras pessoas são ao
mesmo tempo definidas como „culturalmente estrangeiras“ e „não-pertencentes“, por causa de sua
cor de pele ou de sua origem.[23] Nesse sentido, o racismo está sempre inscrito no nacionalismo. É
uma imagem espelhada do antissemitismo. Os „judeus“ são imaginados como „sem raízes“ e,
portanto, considerados inimigos de todas as nações por excelência. De um ponto de vista
antissemita, os judeus não estão supostamente por trás apenas da globalização e financeirização da
economia, mas também dos processos de decomposição social e estatal em todo o mundo. Aliás,
esta é uma figura ideológica que não é encontrada apenas na direita, mas também ronda a cabeça de
muitos à esquerda. E o antissemitismo combina com inúmeras ideologias da conspiração que estão
ganhando cada vez mais influência no processo de crise. Como as pessoas não compreendem a
dinâmica capitalista, iludem-se no sentido de que os processos tenebrosos e objetivos aos quais
estão expostos são orquestrados e controlados por determinados grupos poderosos.[24]
A crítica da subjetividade moderna apareceu inicialmente como um empreendimento quase
“esotérico”, sem relação aparente com o capitalismo de crise global. Em 11 de setembro, no
entanto, “o irracionalismo do sistema golpeou a si mesmo”. O que mudou com essa nova
conjuntura e como ela afetou o desenvolvimento da teoria?
Norbert Trenkle: Os ataques de 11 de setembro de 2001 representam certamente uma ruptura
histórica, quase tão significativa como o colapso do socialismo real, pois ela não só mudou as
coordenadas da política mundial, mas também deslocou o discurso ideológico sobre a crise. Isso
não poderia ficar sem consequências para a nossa elaboração teórica. No chamado Ocidente, o
islamismo é quase universalmente apreendido como uma espécie de rebelião arcaica contra a
modernidade, como um „retorno da Idade Média“. Em contraste, são convocados os „valores
ocidentais“ e as realizações do Iluminismo, que devem ser defendidos, se necessário, com
bombardeiros de combate. Mas isso encobre deliberadamente que, em primeiro lugar, os „valores
ocidentais“ representam essencialmente a racionalidade e os imperativos da formação social
capitalista e, portanto, de maneira alguma são tão brilhantes.[25] Em segundo lugar, se esconde que
esse irracionalismo violento e autoritário é precisamente o avesso obscuro dessa racionalidade, que
em tempos de crise e insegurança geral por todos lados, sai para a superfície e se torna cada vez
mais forte.[26]
Esse irracionalismo apresenta-se muitas vezes em vestimentas pseudo-arcaicas, embora ele seja
essencialmente parte integral e indivisível da modernidade capitalista e tenha sido produzido por
ela. Isto aplica-se, por exemplo, ao fascismo em geral e ao nazismo em particular, os quais foram
caracterizados por narrativas históricas que tinham tanta veracidade quanto o conto de fadas do
Chapeuzinho Vermelho. Essas narrativas podem se tornar a força motriz da mobilização histérica de
massas porque elas fornecem o material para certas identidades coletivas que exercem uma
tremenda atração em indivíduos modernos subjetivamente formatados. A arcaização não é um
acaso, mas um princípio de construção básico. É justamente por ela que uma identidade coletiva
como „a comunidade nacional alemã“ promete às mônadas capitalistas uma sensação enganosa de
segurança, pois aparece como uma constante supra-histórica. No oceano turbulento da vida
cotidiana capitalista, com suas constantes mudanças e suas exigências permanentes de flexibilidade
individual e auto-afirmação, ela põe-se como uma essência aparentemente original e imutável, e
promete enquanto tal uma elevação transcendental, que só as religiões conseguiam mediar
anteriormente. O nacionalismo, o fascismo, mas também o socialismo tradicional foram, portanto,
com toda razão chamados de religiões seculares.
Mas também o islamismo é um movimento identitário extremamente moderno, no mesmo sentido
que o fascismo ou o nacionalismo. A indicação mais clara disso é aquilo que aparece como
paradoxal à primeira vista: a particular veemência com a qual ele proclama o retorno radical ao
„verdadeiro Islã“ e a seus alegados fundamentos. Aqui encontramos os padrões de construção das
modernas identidades coletivas já mencionados, o apelo a tradições aparentemente antigas e normas
consagradas e inquestionáveis. Mas o islamismo não tem nada a ver com a religião tradicional do
Islã, como se mostra também no fato de que grupos como o Talibã ou o Estado Islâmico combatem
precisamente manifestações tradicionais como o Sufismo, de maneiras particularmente brutais, e até
explodem antigos santuários islâmicos. Também aponta para seu caráter moderno a veemente
afirmação de verdade que cada um dos fragmentados movimentos e agrupamentos islamistas
reclama para si e militantemente defende contra todos os outros. Pois as identidades são
essencialmente exclusivas. Elas são caracterizadas por fronteiras nítidas entre um interior e um
exterior, o que é realizado pela construção de „outros“ essencialmente estranhos e
fundamentalmente hostis. No nacionalismo, é claro, esses são os „outros povos“ que ameaçam o
„próprio povo“ e disputam seu espaço vital. No islamismo, são precisamente os „cruzados“ e os
„infiéis“. Essa determinação do inimigo tem muito mais a ver com Carl Schmitt do que com o
Alcorão.
O islamismo – em todo o caso, o islamismo em suas manifestações violentas e terroristas – é em
essência um movimento de modernização enlouquecido. Na fase de ascensão do capitalismo, a
formação de identidades nacionais era ainda, em toda a sua violência, um momento no processo de
estabelecimento das relações de produção e de vida da sociedade da mercadoria. No islamismo
militante, a política identitária torna-se um momento de destruição acelerada daquelas mesmas
relações, especialmente onde elas já se tornaram precárias. O islamismo é particularmente bem-
sucedido ali onde as identidades estatais e nacionais já estão fracas ou se encontram em processo de
decomposição, como no mundo árabe ou no Oriente Médio. Também é muito atraente para os
imigrantes, ou seus filhos e netos, nos países ocidentais, onde eles são excluídos das narrativas
nacionais dominantes e definidos como não-pertencentes. O islamismo oferece a eles precisamente
o apoio coletivo identitário que uma parte de seus pares não-migrantes encontra em identidades
nacionalistas ou grupos de direita.[27]
É claro que isso praticamente não é discutido no discurso ocidental sobre o islamismo; pois uma tal
discussão implicaria assumir o núcleo de violência da forma de sujeito burguesa e seu avesso
irracional – o que deve ser evitado com todas as forças. Em vez disso, o islamismo serve como uma
tela de projeção para tudo que o Ocidente não quer ver em si mesmo. Dessa forma, os conflitos
imanentes da sociedade global da mercadoria, agravados no curso do processo de crise, podem ser
etnicizados. É como se o „modelo de vida ocidental“ fosse ameaçado por um inimigo externo. Pode
ser maravilhosamente recalcado, assim, o fato de que o modo capitalista de produção e de vida, que
há muito tempo domina o mundo em toda parte, decompõe-se catastroficamente em suas próprias
contradições internas.[28]
Nesse sentido, como pensam que o processo de crise se desenvolverá? Que papel terão essas
formas de processamento ideológicas e subjetivas?
Ernst Lohoff: A questão do curso posterior da crise não pode ser respondida sem antes falar um
pouco sobre o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo inverso. A grande queda de 2008
não foi o primeiro grande revés sofrido pelo sistema de antecipação global de valor, mas foi de
longe o mais crucial. Dois aspectos fornecem uma nova qualidade. Primeiro, diferentemente da
crise do Leste Asiático de 1997/98, o crash de 2008 não afetou apenas uma região específica do
mundo, mas todos os Estados capitalistas centrais. Em segundo lugar, ao contrário do crash das
pontocom de 2000, não quebrou apenas um setor que servia como portador de esperança para a
geração de capital fictício; em 2008 foi afetado o coração da superestrutura financeira: o sistema
bancário. Portanto, pairou a ameaça do colapso total do sistema de antecipação de valor e, portanto,
da economia mundial. Em face deste perigo, os governos e Bancos Centrais do mundo
proclamaram, em uma ação concertada, o estado de emergência da política financeira e monetária –
e o fizeram com absoluto sucesso.
Através da estatização emergencial do capital fictício tóxico, da compra de títulos estatais pelos
próprios Bancos Centrais e de uma política de taxas de juros negativas, eles não só evitaram o
colapso da economia de bolha, mas criaram um clima de efeito estufa em que a geração de capital
fictício privado experimentou novamente um enorme impulso. Foi assim que a dinâmica
econômica global começou a andar novamente. A despeito dos bancos centrais terem legitimado sua
política monetária „não convencional“ como uma medida emergencial de curto prazo, eles ainda
temem, com razão, o fim da política de dinheiro ultra-barato. Mesmo que as bolsas de valores nos
EUA, Europa e Ásia registrem regularmente novos recordes históricos, a dinâmica de geração de
capital fictício do setor privado interno é até hoje muito instável para continuar sem o apoio
contínuo por parte dos Bancos Centrais.
Com a crise de 2008, surgiu então um sistema de parceria público-privada, no qual toda a política
monetária se volta para a manutenção da criação de novo capital fictício privado. De certa forma, o
„capitalismo inverso“ alcança assim o estágio de desenvolvimento que tinha atingido na década de
1970 o capitalismo clássico, quando o fraco crescimento foi compensado pelo desesperado deficit
spending keynesiano. Ao mesmo tempo, no entanto, isso é uma indicação de que essa forma de
adiamento da crise está cada vez mais próximo dos seus limites. É totalmente claro que também as
bolhas atuais, criadas sobretudo através do apoio ativo da política monetária, mais cedo ou mais
tarde irão estourar. Ainda que não se possa prever com precisão quando isso irá acontecer, há muito
tempo se aguarda um crash especialmente no setor imobiliário chinês.
Além disso, agora não são apenas as contradições econômicas internas que tendem a explodir, mas
o perigo ameaça também desde a política. Por trinta anos, os governos dos Estados capitalistas
centrais criaram, através de suas políticas econômicas, condições gerais propícias para a
acumulação transnacional de capital carregada pela dinâmica do capital fictício. Surgiu uma nova
divisão internacional do trabalho que mantém a economia mundial até hoje. Ela consiste em que
países como os EUA e a Grã-Bretanha jogam permanentemente capital fictício no mercado mundial
e acumulam cada vez mais dívidas, permitindo que outros países, especialmente a China e a
Alemanha, tenham sucesso nos mercados de bens e consigam excedentes de exportação. Mas,
enquanto isso, em alguns Estados capitalistas centrais, as forças políticas estão questionando esse
singular ordenamento e querem desmontar o quadro geral da acumulação global. Pois as reações
político-identitárias ao processo de crise e a insegurança social gerada por ele refletem-se também,
cada vez mais, na formação de governos. A eleição de Donald Trump foi, nesse sentido, o tiro de
largada. E o fato de no Brasil ser eleito um extremista de direita, enquanto realizamos essa
entrevista, não é menos que uma catástrofe.
Em todos os lugares movimentos e partidos nacionalistas, de direita ou de esquerda, estão em
ascensão. Todos eles procuram um desacoplamento nacional pelo menos parcial em relação ao
mercado mundial, aos mercados financeiros internacionais e às organizações supranacionais como a
UE, prometendo recuperar para os „seus“ países um maior espaço político de manobra. Claro que
isso é pura ilusão. O que deveria dar vantagens à „própria nação“ em detrimento de outras acaba
exacerbando a crise interna e externa. Isso já é previsível no fato de que a saída do Reino Unido da
UE, que ameaça separar o centro financeiro de Londres da Europa continental, terá um efeito
devastador na situação econômica desse coração do neoliberalismo. O efeito retroativo na UE, por
outro lado, deve permanecer limitado. A situação é diferente com as conseqüências da política
norte-americana. Se a administração Trump levar a sério as restrições às importações que ela vem
anunciando, quebrará com isso o volante da economia mundial. Há algo de suicida nos EUA
declarando guerra econômica a um país, a China, que detém um terço dos seus títulos estatais. Tal
procedimento castigaria inevitavelmente os mercados financeiros e, portanto, também a „economia
real“, e levaria os EUA à falência.
Na crise de 2008, a intervenção conjunta, pragmática e maciça de governos e Bancos Centrais
evitou o enorme surto de desvalorização. Na próxima rodada da crise, a política deve aprofundar a
crise ainda mais. Se os governos dos Estados capitalistas centrais buscam atender as necessidades
identitárias de seu eleitorado, seguindo assim um cálculo extremamente particular, isso ameaça
colocar em movimento uma dinâmica que trará como resultado o colapso catastrófico da economia
mundial.[29]
Norbert Trenkle: Estamos experimentando a esse respeito mais um salto qualitativo no processo de
crise. A política já não está apenas em crise, como diagnosticamos há tempos, mas tem-se tornado
ela mesma um momento integral e dinâmico de crise. Isto aplica-se não só ao processo de crise
econômica em sentido estrito, mas também à própria esfera da política. A nova política de
identidade marca a transição para uma violenta e provavelmente definitiva liquidação dos elementos
liberal-democratas no Estado. Mas isso não dá lugar a ditaduras clássicas à la Pinochet ou a
sistemas fascistas à la Mussolini, e sim a regimes autoritários brutais que se misturam com gangues
mafiosas e com forças fundamentalistas regressivas e impulsionam a desintegração violenta da
sociedade. Nos dirigimos, então, a tempos sombrios. As forças de esquerda encontram-se em boa
medida impotentes diante desse desenvolvimento, pois orientam-se basicamente por conceitos do
passado, e não questionam fundamentalmente nem a produção de mercadorias, nem o Estado. Para
sair da defensiva é preciso uma nova perspectiva de emancipação social.[30] Nós pensamos que a
crítica do valor deve desempenhar um papel importante nesse sentido.
[1] As notas de rodapé contêm referências a textos sobre as perguntas da entrevista em alemão,
português, espanhol ou inglês.
[2] Editorial Krisis 8/9, Erlangen 1990
[3] Johanna W. Stahlmann: Die Quadratur des Kreises, in Krisis 8/9, Erlangen 1990
Robert Kurz: O colapso da modernização, Sao Paulo 1992
[4] Robert Kurz: Abstrakte Arbeit Sozialismus, in Marxistische Kritik 4, Erlangen 1987
Robert Kurz / Ernst Lohoff: Der Klassenkampffetisch, in: Marxistische Kritik 7, Erlangen 1989
Spätere Texte zur Kritik an der Klassenkampfideologie:
Norbert Trenkle:Die metaphysischen Mucken des Klassenkampfs, in: Krisis 29, Münster 2005
Norbert Trenkle: As sutilezas metafísicas da luta de classes
Norbert Trenkle:Kampf ohne Klassen, in: Krisis 30, Münster 2006
Norbert Trenkle: Luta sem classes
Version revisada en español: Lucha sin clases (2016)
[5] Peter Klein: Demokratie und Sozialismus, in: Krisis 7, Erlangen 1989
[6] Peter Klein: Moderne Demokratie und Arbeiterbewegung Teil I, Teil 2, Teil 3.1 und Teil 3.2. in:
Marxistische Kritik 3, 4, 5 und 5, Erlangen 1987 – 1989
[7] Robert Kurz: Die Krise des Tauschwerts, Marxistische Kritik 1, Erlangen 1986
Robert Kurz: The Crisis of Exchange Value,
Ernst Lohoff: Die Inflationierung der Krise, in: Krisis 8/9, Erlangen 1990
[8] Ernst Lohoff: Das Ende des Proletariats als Anfang der Revolution, in: Krisis 10, Erlangen 1991
Ernst Lohoff: La fine del proletariato come inizio della rivoluzione
[9] Robert Kurz: Die verlorene Ehre der Arbeit, in: Krisis 10, Erlangen 1991
Robert Kurz: A honra perdida do trabalho
Ernst Lohoff: Arbeitsterror und Arbeitskritik, krisis.org 2000
Ernst Lohoff: Terreur du travail et critique du travail
[10] Christian Höner: Zur Kritik von Dialektik, Geschichtsteleologie und Fortschrittsglaube, in:
Krisis 28, Münster 2004
[11] Norbert Trenkle: Was ist der Wert? Was soll die Krise?, in: Streifzüge 3/ 1998, Wien
Norbert Trenkle: O que é o valor ? A que se deve la crise?
Karl-Heinz Lewed, Rekonstruktion oder Dekonstruktion? Über die Versuche von Backhaus und der
Monetären Werttheorie, den Wertbegriff zu rekonstruieren (Krisis 3/2016)
Norbert Trenkle: ¿Qué es el valor? ¿Qué significa la crisis?
[12] Ernst Lohoff: Das Ende des Proletariats als Anfang der Revolution, in: Krisis 10, Erlangen
1991
Ernst Lohoff: La fine del proletariato come inizio della rivoluzione
Robert Kurz: Postmarxismus und Arbeitsfetisch. In: Krisis 15, Bad Honnef 1995
O Pós-Marxismo e o fetiche do trabalho
[13] Roswitha Scholz: Der Wert ist der Mann, in: Krisis 12, Bad Honnef 1992
O valor é o homem
[14] Karl-Heinz Lewed: Schopenhauer on the rocks, in: Krisis 29, Münster 2005
Ernst Lohoff: Die Verzauberung der Welt, in: Krisis 29, Münster 2005
Karl-Heinz Lewed: Erweckungserlebnis als letzter Schrei, in: Krisis 33, Münster 2010
Norbert Trenkle: Aufstieg und Fall des Arbeitsmanns, in Exner, Andreas et.al. (Hg.):
Grundeinkommen, Wien 2007
Norbert Trenkle: Ascensão e queda do homem trabalhador
[15] Zur Kritik dieser Vorstellung: Ernst Lohoff: Der Wert des Wissens, in: Krisis 31, Münster 2007
[16] Ernst Lohoff: Große Fluchten, Wien 2000
Ernst Lohof: Fugas para frente
Norbert Trenkle: Weltmarktbeben, 2008
Norbert Trenkle: Terremoto en el mercado mundial
Ernst Lohoff: Auf Selbstzerstörung programmiert, Krisis 2/ 2013
[17] Gruppe Krisis: Manifest gegen die Arbeit, Nürnberg 1999
Grupo Krisis: Manifesto contra o trabalho
[18] Moishe Postone: Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrschaft, Freiburg 2003, S. 224 ff.
Moishe Postone: Tempo, trabalho e dominação social
[19] Ernst Lohoff/ Norbert Trenkle: Die große Entwertung, Münster 2012
Ernst Lohoff/ Norbert Trenkle: La grande dévalorisation
Ernst Lohoff/ Norbert Trenkle: Interview zu „Die große Entwertung“, Teil 1, Teil 2, Teil 3
Entrevista sobre o livro: Crise mundial e limites do capital, Sinal de Menos 9, Sao Paulo
[20] Ernst Lohoff, Zwei Bücher – zwei Standpunkte, krisis.org 2017
Ernst Lohoff, Dois livros – dois pontos de vista, krisis.org 2017
[21] Ernst Lohoff: Kapitalakkumulation ohne Wertakkumulation, Krisis 1/ 2014
Ernst Lohoff: Acumulaçao de Capital sem acumulaçao de valor
[22] Norbert Trenkle: Vorwärts in die Regression, in: Merlin Wolf (Hg): Irrwege der
Kapitalismuskritik, Aschaffenburg 2017
[23] Ernst Lohoff: Der Tod des sterblichen Gottes, in: Krisis 19, Bad Honnef 1997
[24] Moishe Postone: Nationalsozialismus und Antisemitismus, in Dan Diner (Hg.):
Zivilisationsbruch, Frankfurt/ M. 1988
Moishe Postone: Anti-semitismo e nacional-socialismo
Ernst Lohoff: Geldkritik und Antisemitismus, in: Streifzüge 1/ 1998
[25] Karl-Heinz Lewed: Von Menschen und Schafen, in: Ernst Lohoff u.a. (Hg.): Dead Men
Working, Münster 2004
Norbert Trenkle: Kulturkampf der Aufklärung, Krisis 32, Münster 2008
[26] Ernst Lohoff: Gewaltordnung und Vernichtungslogik, in: Krisis 27, Bad Honnef 2003
Ernst Lohoff: Violence as the Order of Things and the Logic of Annihilation
Ernst Lohoff: Ohne festen Punkt, in: Krisis 30, Münster 2006
Um texto mais antiguo sobre a crítica do sujeto: Ernst Lohoff: Zur Kernphysik des bürgerlichen
Individuums, Krisis 13, Bad Honnef, 1993
[27] Karl-Heinz Lewed: Finale des Universalismus, in: Krisis 32, Münster 2008
Karl-Heinz Lewed: O grandioso final do universalismo, Sinal de Menos 12, Sao Paulo
Ernst Lohoff: Die Exhumierung Gottes, in: Krisis 32, Münster 2008
Ernst Lohoff: Gott kriegt die Krise, in: Jungle World vom 27.9.2006
Ernst Lohoff: Deus acolhe a crise, Sinal de Menos 12, Sao Paulo
[28] Norbert Trenkle: Gottverdammt modern, krisis.org 2015
Norbert Trenkle: Desgraçadamente moderno, Sinal de Menos 12, Sao Paulo
[29] Ernst Lohoff: Die letzten Tage des Weltkapitals, Krisis 5/2016
[30] Norbert Trenkle: Gesellschaftliche Emanzipation in Zeiten der Krise, in: Widerspruch.
Münchner Zeitschrift für Philosophie, Nr 61/ 2015
Ernst Lohoff: Out of Order – Out of Control, in: Streifzüge 31/2004 und 32/2004
Ernst Lohoff: Out of Area – Out of Control (Versão portuguêsa)
Norbert Trenkle: Antipolitik in Zeiten kapitalistischen Amoklaufs, in: Ernst Lohoff u.a. (Hg.): Dead
Men Working, Münster 2004
Norbert Trenkle, Anti-política em tempos de fúria homicida capitalista

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