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MONTAIGNE E O ENSAIO Com carater de conversa despretensiosa, de pensamento dos assuntos passeio ais RObTaS S Tepisados aos mais banais Sextravaganies, aqui importam menos as respostas e mais as interrogagoes Tespostas ene EDSON QUERUBINI s termos ensaio - que, no plural, da ti- O tulo ao livro de Montaigne, Ensaios ~ bem como ensaiar, jf se notou, passam por uma “evolucdo”, ou, digamos, conquistam seu sentido defintivo, “técnico” e propriamente ‘montaigniano, no tempo, 20 longo da trama do livro, que fo se tecendo durante os vinte tiltimos anos de vida do autor, desde uma data préxima a0 seu afastamento do Parlamento de Bordeaux, em 1570, até sua morte, em 1592. Os significados correntes & época - “tentativa”, “por & prova”, “exercicio que demonstra aptido ou habilidade”, “trabalho de aprendiz”, para lembrar os mais comuns -, embora nao dando conta do sentido {integral que o termo assume como género lite- ario ¢ filos6ficg, que Montaigne pratica e dis- Cate teoricamente com propriedade e modéstia, sugerem muito do que o autor realiza, quando ‘de posse do sentido mais maduro de seu pro- jeto de pensamento e escrita. Fazemos a experiencia desse sentido mais maduro pela leitura dos capitulos do terceirolivro dos Ensaios. No entanto, aquelessignifcados primitivos permanecem de interesse para uma aproximacio do sentido que o termo ensaio possui em Montaigne. Isso porque jé nos remetem a0 trago mais emblematico desse livro que, esposando o ceticismo antigo e sua critica, constitui-se como uma busca em que nenhum saber orientagao pratica estao seguramente dados de antemao, mas, antes, tudo parece estar e permanecer sempre por conquistar. Logo, 0 que encontramos nesse livro “inico em seu género” é o empenho nesst busca, uma “tentativa”, um por A prova e exercitar, sempre de novo, as faculdades do sujeito, mero “aprendiz”, diante de cada ocasiio. Nao obstante isso, visto de outro Angulo, é patente a quem percortt as paginas dos Ensaios que “ha imensa cultura acumulada” nelas, com? ja afirmou Hugo Friedrich em estudo classico. Montaigne é um hum: nistae, como tal, herdeiro do saber antigo resgatado na Renascen¢2. "il Posigdo, a primeira vista, parece a de quem endossa um conjunto de saberes tradicionais, de ligbes legadas pelos antigos, e devota respel® io pequeno por sua autoridade. E, segundo a visio que os renascenis’> mesmo forjaram, esses saberes, ligdes, autoridades sio marcados pe? signo de uma “verdade” conquistada li atris, quase esquecida pot h98 tempo, agora recuperada ou em vias de recuperagao pelo enorme’ fon? dehomens que, de Petrarca em diante, se langaram a pesqust¢™=7 Tago das letras antigas, Rois ¢ essa visio de um ensinamento pronto, por matico, uma yerdade conguistada, itida por li wwe nio diet ede aul io dee ue Montaigne insiste em nig nos oferecer, porque seu livros cs Como um exercicio de discernimento critica, Esse ¢ um ¢° fundamentais. E nisso 0 genero ensaio tem grande particp se dos seo se minha alma pudesse tomar pé, eu nao me ensaiaria, resol a , 00 diz ele no curso de uma reflexio sobre 0 sentido de 548 alot ensaio “Do arrependimento”, Sua relagio com 0s sberes °° dat ul marcada pela recusa em aceitar pacifica e passivamenté lastreada em nomes como Cicero, Aristoteles 0 0U! as paginas que dedicou 4 educacao nao deixam oa f 10 gua de® ' Salvador Dal, Forge da imagines. (Essa.eas duas proximas lustragoes fazem parte da edigdo norte-americana de 1987 dos Ensaios de Montaigne, ilustrads pelo pintor surreaista) 8 ee aes tudo deve passa por crivo, Antes de qualquer game Send impossivel decide escoler, de suspen Ceticenor gr etsnamento deve sr submetido a prove «ome pratense Ho S6 Hé algo da dialética nea postural Seb uma des eggs cance Astees ns Tpieas. Como ante, pic cae e gm Se Participants no posse, ‘ist simplesmente ea le, mas argumentam a partir de pre- wi0,Sio Verossimeis a = 0U seja, que gozam de alguma apro- = nw ts sobre qual eum, aquele que responde, tenta TR alec em emu o outro, aguele que Niopa = Por fin, para esl ro efutando assim a tese sustentada, (Pinas Fs a aie tem-se sobre matéria examinada e We esse oe "Mio deina de hak a Ensaios, do género ensaio em 88 Contato ao ler ee tradicional. A vida de reflexéo Submeter agg on tBm ¢ préxima da disposicao S10 Assim naa ne Hal aceitar sem passa pelo i porque metitio dizer que Montaigne é Tans Obras articulam o “saber do ; los. i ei Mencnar ‘outro éixo fun- ‘vemente, algumas de suas ca- AVIDA DE REFLEXAO COM (QUE TEMOS CONTATO AO LER MONTAIGNE E PROXIMA DA DISPOSICAO SOCRATICA DE TUDO SUBMETER A EXAME, DE NADA ACEITAR SEM PASSAR PELO CRIVO DO JULGAMENTO | af A referéncia a0 didlogo é essencial para ex- plicar aT apeas gue fe Sea ols gut Teens Erase crc de conversa des. pretensiosa, passeio de pensamento e exercicio dojul aa ‘que vai dos assuntos mais no- brese repisados aos mals banais e extravagan res € repis "0s mais banais ¢ extravagan- tes. Ora, primeira vista, Montaigne parece querer falar s6;eleesté em seu castelo, no retiro solitério a que se entregou, velho ecansado do ‘mundo, tendo deixado a vida ativa, acarreira dde magistrado, para repousar no “seio das dou- tas Musas”. Portanto, os Ensaios seriam um ‘monélogo, arrolando as “fantasias” suscitadas pelas leituras e pelo estudo, os pensamentos, 10s juizos desse fidalgo ocioso e um pouco me- Iancélico, néo por temperamento, mas pelas circunstancias em que se recolhe & sua biblio- teca. Mas essa imagem alimentada por nosso aprego por uma nogio bastante forte de auto- rnomia, que se casa bem com a ideia, cara an6s, de uma ruptura radical com a tradigao - € aparente, De fato, 0 que se instaura ~ ¢iss0 permanece de grande interesse~ éuma manei- ra de se relacionar criticamente com a heranga cultural, de que ele € depositario certo. Uma forma de dialogar com o passado, reconhecen- cdo num mesmo gesto seu imenso valor ¢ seu, por assim dizer, cardter problemtico. Nesse jogo, que Montaigne nomeia conference (‘con- versagio"), a despeito da intengao de falar sé, o ensaista essencialmente dialoga. ~Para tanto, bast yr asta uma arma: 0 que ele cha- fah we ‘9 ma de suficiéncia’, é=pécie de “talento”, bem Sa istruldo e affado, sobretudo pela leitura =p O EXERCICIO DO ENSAIO E UM EXERCICIO DE DISCERNIMENTO NO SEIO DA CULTURA E DA e-assimilagio dos ensinamentos dos antigos, TuRAre que estabelece um equilibrio, dificilimo, entre TRADICAO. E RESTA DIZER dependéncia e independéncia em relagio ao QUE MONTAIGNE NAO passado e & autoridade. Essa suficiéncia, espé- RECUSA TUDO. HA LICOES DO cie de autarquia intelectual e moral, nio se : ; constr6i pela mera afirmagio do “proprio” e PASSADO, SOBRETUDO LICOES recusa do “alheio”. O “priprio” é em grande MORAIS, VALORES E VIRTUDES medida alimentado pelo contato, pela retoma- QUEELE, CETICO, NAO HESITA da, pela assimilagao e digestio ativa das licbes alheias, a que a propria experiéncia presente EM ACATAR ‘vem se somar. Disso, mais uma vez, nos ins- truem suficientemente, nao s6 as considera- des de Montaigne sobre a educagio, mas também as observagdes sobre seus habitos de leitura e de empréstimo. Longe de recorrer 3 O cardter de conversa do ensaio nao tem implicagdes somente na uma simples costura de discursos alheios, co- _relagio, inventiva, com 0 pensamento anterior e alheio, mas rebate ainda mo fazem os pedantes que nfo raro acusg. a “composiga0” do seu discurso e em seu estilo’. Montaigne dira“dis- Montaigne diz trazer o discurso alhei osigao” € “elocugac”, pois conhece a retorica, embora fale muito mal apoio do que por sipensaya. Ecelebra.afelici- dela, Estruturalmente, o géneto ensaio é reconhecido yr sua disposicao dade de ver seu pensamento “natural”, que ele lébil, sinuosa, gress Por falar virtualmente de tudo, de mt a insiste em reconhecer como mais fraco, espo- _fragmentada, Tuminando parcialmente os temas, sem i sar aqui ¢ ali, como que espontaneamente, 0 gerne Tudo por complete, E por fro eam de grandes autores do passado. Assim, as ma- _gemi“cortada” que dispenisa “amarras”: termos de ligacao, de transica0, ximas, 0s dtos, os apotegmas, que encontra- de exp ratagio tee Taos fagao dos vinculos Tégicos entre os entunciados. Aproximanso- mos muito amide nos Ensaios, viriam coroar -3e. uma conver espniine ¢ atu, assem, cone ‘um pensamento que teria sido forjado por ele trabalho que restituimos a unidade dos textos, em meio a sua en0T™me proprio, Dificil aceitar inteiramente a sinceri- ago, gi ocia oh pensamenio, variagao, que, allds, 0 ensaista associa as flutuagoes do seu FI dade dessas alegagdes, eo trabalho de erudi- _vaidoso, como se o discurso acompanhasse a marcha “vagabunds!¢ fo tem mostrado a dependéncia profunda de impremeditada de seu espirito. Montaigne, pode-se dizer, deseja ques Montaigne em rlacdo as fontes. Mas elas mar- _escrios sejam assim e labora para isso, de modo que parece hve cam uma orientagao importante: a relacio primeira leitura, um desarranjo, mas certamente intencional. Algo s= com o discurso de autoridade nio ¢ de mera ositalianos vinham chamando de sprezzatura, e que €caraleS=" acetacdo. Diss fez parte sun estes stil dpisman comp danas aes neo pore Tomo de denegrir a propria memoria, em proveito dileto de Montaigne), e que se prende & deta de uma “neglizéns® de entendimento e julgamento. O exercicio do gente aproximando escrito do discuso fala «mprovss2- pus ensaio é um exercicio de discernimento no Mas basta exigir um pouco mais do texto, ser leitor ea seio da cultura eda tradigdo.Eresta dizer que comegar a perceber o fio que amarra, com propriedad® 88 Fe Montaigne nio recusa tudo. Ha ligbes do pas-discurso, a progressio do pensamento. Em outras palavr#4 age sado, sobretudo ligbes morais, valores e virtu- des, que ele, cético, nao hesita em acatar. Para al yue Mot dem’, por oposigo & anarquia do discurso daqueles 4°" ficar apenas no plano das virtudes intelectuais, Prova-o a prépria insisténcia em sua sinceri- -feita’s dade nos Ensaios, inscrita ja na nota “Ao lei- acusa de tolos. A “ordem” propria de uma “cabega bem 7 mente a do homem suffisant, dotado da “suficieni toss acima, Contudo, a liberdade, ou “licenga", que 08% yas dando-lhes um aspecto, por vezes, “monstruose » entteg rt name len tor’: Montaigne constréi uma imagem yeraz prodigiosa, arrisca a unidade dos textos. Montigne de si, mas seu apego Averacidade e consequen: _consciente disso e desafia quem 0 lé ano perder st soy dis” ‘Eaversio a mentia siotépicas herdadas de por assim dizer, seu leitor competent Cessin SS Plutarco, seu autor preferido e amplamente. “descosido”, em que o sentido das matgriasses07" rai compulsado e pilhado, a vinculOS, que explicitamente vuem seus vincul0s

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