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RESENHA - MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES

RESENHA - MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES: CRÍTICA AO PLANEJAMENTO


URBANO MODERNISTA E ALGO MAIS.

por Fernando R.

"Existem hoje muitas pessoas que desejam o bem de seus países e acreditam que a coisa mais
útil que elas e seus vizinhos poderiam fazer para consertar a situação seria poupar mais do que
costumam... Em determinadas circunstâncias, isso estaria perfeitamente certo, mas nas
circunstâncias que vivemos é um erro. Suponham que todos nós deixássemos de gastar nossas
rendas e decidíssemos poupá-las por inteiro.

O resultado é que todo mundo perderia o emprego. E não demoraria para que não restasse renda a gastar...
Agora é hora de os governos locais se ocuparem de toda espécie de melhora sensata... Li alguns dias atrás
sobre uma proposta para construir uma nova via, um bulevar largo, paralelo ao Strand, do lado sul do rio
Tâmisa, unindo Westminster à City... Mas eu gostaria de fazer algo ainda maior. Por exemplo, por que não
derrubar todo o sul de Londres, de Westminster a Greenwich, e caprichar no trabalho? Ao mesmo tempo,
forneceríamos centenas de hectares de praças e avenidas, parques e espaços públicos... Seria melhor ver as
pessoas ociosas e miseráveis, vivendo de salário-desemprego?"

A primeira vista pode-se perguntar o que uma epígrafe de John Maynard Keynes estaria fazendo na
introdução de uma resenha sobre o livro de Jane Jacobs "Morte e vida de grandes cidade". A resposta a esta
questão é simples: o planejamento urbano que matava as cidades americanas, na visão de Jacobs é o
mesmo proposto por Keynes.

Acredito que o livro de Jane Jacobs não teria para mim o mesmo sentido se eu não tivesse o
conhecimento que tenho sobre economia, que apesar de pequeno, é mais ou menos abrangente sobre a
história da disciplina. Tampouco teria o mesmo aproveitamento caso não fosse estudante do tema
desenvolvimento urbano e regional, e se não tivesse uma forte aversão ao planejamento municipal nos
moldes que se tem desenvolvido.

Meu grande sonho profissional é poder, um dia, sintetizar na forma de um livro uma correlação
entre o liberalismo e o planejamento urbano, de forma a casar um com o outro. O que me falta, e tenho
procurado contruir é uma teoria urbana capaz de dar conta desta relação. Jane Jacobs não fornece esta
teoria de modo completo, mas dá aulas e mais aulas sobre o que é a base fundamental de uma vida urbana
saudável: a diversidade. Esta, de certa forma, é a mesma receita de uma economia saudável, e de uma
alimentação saudável, etc. Mas é na diversidade que encontraremos a resposta para muitos dos problemas
criados pela mentalidade (para usarmos um chavão e ao mesmo tempo um conceito) fordista que se
implantou em nosso meio.
Esta resenha sobre o livro será comprida, porque o livro é ele próprio muito comprido. E há vários
temas que cabe explorar separadamente, e várias percepções sobre a realidade que ocultam diversas
premissas. Como já comentei com amigos, a esquerda universitária, tanto americana como brasileira, tem
feito uma leitura muito porca da obra de Jane Jacobs. E os preceitos desenvolvidos no urbanismo, dentro da
escola conhecido por New Urbanism, acabam descambando para uma ideologia de controle social que
inviabiliza a própria aplicação do princípio da diversidade sobre o meio urbano.

Creio que a grande lição do livro é a de que o mundo precisa de políticas liberais, que as cidades
necessitam destas políticas e as pessoas também, apesar de não dizer isto diretamente no livro. Porque a
autora parte de um princípio fundamental que é idéia de que as pessoas são capazes de identificar os
próprios interesses e lutar por eles. De certa forma, isto é mais uma esperança e um axioma que uma
verdade ou um consenso. É a base da constituição americana, que diz que cada cidadão deve ser livre para
buscar a felicidade, isto é, para perseguir os próprios interesses. A idéia de que todos são iguais perante a
lei também norteia o princípio fundador da diversidade, porque igualdade significa, na maior parte das
vezes, convivência e proximidade, e este é o combustível do dinamismo econômico, social e cultural das
cidades.

Na página 302, quando Jacobs fala do problema dos cortiços, ela coloca o pressuposto que baseia
suas políticas, e que pode ser diretamente relacionado com a sugestão de Keynes que compõem esta
epígrafe:

"O planejamento urbano convencional trata os cortiços e seus habitantes de forma


inteiramente paternalista. O problema dos paternalistas é que eles querem
empreender mudanças muito profundas e optam por meios superficiais e ineficazes.
Para solucionar o problema dos cortiços, precisamos encarar seus habitantes como
pessoas capazes de compreender seus interesses pessoais e lidar com eles, o que
certamente são." (JACOBS, 2001, 302)

Jacobs adota o princípio de que a cidade é uma obra coletiva que pertence às pessoas, não ao poder
público, prefeitura ou, de modo mais genérico, ao Estado. Por isso, as cidades devem ser pensadas a partir
do ponto de vista das relações sociais nelas desenvolvidas, e esta premissa é especialmente verdadeira para
as grandes cidades. Jacobs critica o que chama de planejamento urbano ortodoxo no começo do livro, que
abrange, de certa forma, as utopias do final do século XIX sobre o que seriam sociedades perfeitas: a
ideologia das cidades jardins, cujo fundador é Ebnezer Howard, a ideologia da Ville Radiouse, de Le
Corbousier, a ideologia da beautiful city, dos arquitetos e urbanistas americanos, que culmina no modo de
fazer e compor cidades conhecido pela arquitetura modernista. São ideologias aparentemente distantes, mas
todas marcadas pela mesma premissa básica: mudar o homem, transformar a natureza humana por meio da
transformação do meio humano por excelência, o meio urbano. Como ela mesma afirma na p.322 que o
objetivo de Howard era:

"(...) cristalizar o poder, as pessoas, e os usos e os aumentos de recursos financeiros


segundo um modelo estático, facilmente controlável (...) sob as diretrizes rígidas de
um plano empresarial monopolista [de forma a reinstaurar] uma sociedade estática,
governada, em tudo que fosse importante, por uma nova aristocracia de
especialistas em planejamento urbano altruístas."
Jane Jacobs também se preocupa em apresentar as estratégias necessárias para poder financiar as
melhorias urbanas e superar os cortiços. As forças necessárias para a criação de ruas capazes de oferecer
segurança e diversidade para seus freqüentadores e moradores e as forças que impedem este mesmo
desenvolvimento. Dentre os objetivos do planejamento a ser atingidos pelos planos físicos, a meta deve ser,
na visão da autora:

1. Fomentar ruas vivas e atraentes;

2. Fazer com que o tecido destas ruas forme uma malha o mais contínua possível por todo um
distrito que possua o tamanho e poder necessário para constituir uma subcidade em
potencial;

3. Fazer com que parques, praças e edifícios públicos integrem esse tecido de ruas; utilizá-los
para intensificar e alinhavar a complexidade e a multiplicidade de usos desse tecido. Eles
não devem ser usados para isolar usos diferentes ou isolar sub-distritos;

4. Enfatizar a identidade funcional de áreas suficientemente extensas para funcionar como


distritos.

Estas metas do planejamento são obtidas através e diversas medidas discutidas ao longo do livro, mas
sempre tendo em mente a promoção da diversidade. Um fato interessante, é que as cidades que a autora
procura descrever são aquelas em que é possível o pedestrianismo. O maior obstáculo para os
deslocamentos a pé e a monotonia das ruas. A monotonia, ou Grande Praga da Monotonia como chama a
autora, é vista como a maior inimiga das ruas e das grandes cidades. Quando as ruas tornam-se monótonas,
elas afastam as pessoas. E ruas pouco movimentadas são, nas grandes cidades, um chamariz para a
criminalidade.

Esta observação decorre na idéia muito clara que Jane Jacobs tem do que é uma grande cidade:
grande cidade não é uma coleção de cidades pequenas, justapostas: uma grande cidade é um local onde a
grande maioria das pessoas com as quais nos relacionamos, fazemos trocas e compartilhamos os espaços
públicos nos são predominantemente desconhecidos. Esta dinâmica das grandes cidades faz com que o
controle social das ruas, que é exercido apenas parcialmente pela polícia, seja feito pelos olhos atentos de
todos estes desconhecidos, e pela capacidade deles de intervir em favor de outros desconhecidos em caso
de necessidade que só é possível através dos códigos implícitos de conduta.

Neste ponto do livro, creio que há uma compreensão profunda por parte de Jane Jacobs do que é
uma sociedade humana. Como bem ressalta o filósofo espanhol José Ortega-y-Gasset, a construção da
individualidade face aos outros é dada pelos usos e costumes. Não precisamos dizer bom dia para uma
pessoa que divide conosco o leito durante a noite, mas este uso é necessário para nos aproximarmos de um
indivíduo desconhecido. A maior parte dos usos surge da interação entre as solidões humanas, que na vida
urbana se dá permanentemente entre desconhecidos. Jacobs compreende esta necessidade da vida urbana, e
ressalta que o controle social que impede a violência nas ruas é construído pela interação social, pela
disseminação da "urbanidade" entre as pessoas recém chegadas às grandes cidades.

O livro Morte e Vida de Grandes Cidades, que em seu título original é mais específico, "The death
and life of great american cities", ou seja, a morte e a vida das grandes cidades americanas, trás lições
aplicáveis a todas as grandes cidades de diversas partes do mundo. Obviamente que as soluções apontadas
para o problema dos cortiços não podem ser simplesmente transpostas para a abordagem das favelas
enquanto problema urbano e social. Mas ainda assim, permite-nos compreender parte da vitalidade e da
morbidade de bairros brasileiros das nossas grandes cidades.

Por fim, creio que vale a pena comentar o uso que tem sido feito da obra de Jacobs por conta de
"urbanistas" brasileiros. A edição original do livro de Jacobs é de 1961. Esta obre foi traduzida para o
português apenas em 2001, e até então Jacobs aparecia como uma notória desconhecida. Portanto, sua
influência entre os idealizadores do Estatuto das Cidades é praticamente nula. O que não quer dizer que sua
crítica ao urbanismo modernista não tenha servido de base para as obras "pós-modernas", principalmente
para as críticas que foram feitas aos modernistas. Creio que o débito de Edward Soja e David Harvey para
com ela seja grande. Jacobs permite-se ser dura com os planejadores, porque, até onde sei não foi militante
de qualquer ideologia estatizante, que veja no planejamento e no estado a redenção para uma humanidade
degenerada, quer pelo capitalismo, quer pela urbanização ou ainda pela secularização.

Ao contrário de pessoas que criticam o planejamento urbano, mas propõem planos diretores para
todos os municípios, que criticam a especulação imobiliária mas criam leis de direito de edificação, Jacobs
propõem um planejamento não restritivo, que permita que a cidade seja feita e refeita pelos pequenos,
médios e grandes empreendedores, e não deixada a cargo de monopolistas ou oligopolistas, sejam do
estado ou de grandes corporações. Por isso os ideais de Jacobs, seu pensamento para as cidades são tão
diametralmente opostos as propostas de Keynes para Londres, ou de Niemayer para as cidades brasileiras.
Ela acredita e aposta na capacidade dos indivíduos em seguirem seus próprios interesses e em construir
suas cidades e bairros. Ela acredita que a classe média surge da melhoria das condições sociais das classes
baixas, e que a dinâmica das sociedades abertas é que permite a ascensão social, não a vontade altruísta de
algum planejador.

A obra de Jacobs não é contrária a iniciativa privada, a iniciativa individual, a pobreza ou a riqueza.
É uma obra contrária aos técnicos que se julgam esclarecidos e clamam do alto de suas cátedras por
déspotas que lhes dêem poder para implantar suas distopias. O desenvolvimento urbano norte-americano,
que na segunda metade do século XX se fez quase todo sob a égide da cidade jardim, levou a América a ser
um país dependente do automóvel, das grandes freeways, com subúrbios que se estendem por milhares de
quilômetros. Os subúrbios empurraram a agricultura para regiões áridas do meio oeste, e foram feitos na
base da associação dos setores bancários e suas hipotecas, em conluio com construtoras de rodovias ligadas
às construtoras de condomínios e shopping centers/malls.

O desenvolvimento urbano norte-americano foi especialmente afetado por ideologias do socialismo


fabiano de Keynes e todas as intervenções dele decorrentes. A mesma lógica de desenvolvimento
espraiado, suburbano, contamina as mentes dos planejadores brasileiros, e leva ao desperdício de espaço
com gramados improdutivos que sequer cumprem adequadamente alguma função ambiental. Para
compreender a obra de Jacobs e as demandas para a aplicação de seus princípios, é preciso se desvencilhar
de qualquer tipo de ideologia de engenharia social, de controle social, e partir para uma perspectiva que
vise descentralização do poder e intervenção controlada e pontual do Estado. Os esquerdistas, sejam
tucanos sejam petralhas, não podem compreender e aplicar as idéias de Jane Jacobs, porque elas não
servem para controle social. Ao devolver para as pessoas o controle, Jacobs apresenta uma visão
extremamente libertária de cidade, que procurarei desenvolver em outros textos.

Com a exceção do texto entre colchetes, os outros são citações diretas de Jane Jacobs. No entanto, as freses
foram trabalhadas para compor esta frase, em prejuízo do contexto original, apenas para permitir a
condensação do parágrafo numa citação curta.

Vale ressaltar que enquanto Harvey fazia um livro de aplicação dos programas de reurbanização e
planejamento regional que Jacobs abomina ela já havia publicado há quase 10 anos Morte e Vida de
Grandes Cidades. Portanto sua obra é muito mais atual que a de qualquer dos geógrafos da Califórnia.

Quando Jane Jacobs lançou o seu primeiro livro, em 1961, aos 45 anos de idade, talvez não tivesse idéia do
impacto que sua obra teria na consciência dos urbanistas e políticos e nos rumos do planejamento urbano.

Uma conferência em Harvard em 1956 e artigos na imprensa preparam o caminho para a grande
receptividade de seu Death and Life of Great American Cities (cujas traduções omitem do título - como a
edição brasileira - a especificidade norte-americana de suas análises), que se tornou uma referência crítica
seminal contra as doutrinas modernas do urbanismo de meados do século 20.

Jornalista autodidata, colaboradora e mais tarde editora associada da revista Architectural Forum, um
marido arquiteto - a quem credita sua cultura urbanística -, Jacobs mantinha um distanciamento crítico do
cotidiano dos urbanistas que lhe permitiu escrever um dos mais belos libelos contra as palavras-de-ordem
do urbanismo moderno. Ou mais precisamente, das práticas urbanísticas em voga nos Estados Unidos,
cujas origens Jacobs identificava nas propostas de Ebenezer Howard e suas cidades-jardins (1898), nas
idéias contidas na Ville Radieuse (1935) de Le Corbusier e, em menor grau, o movimento City Beautiful
(1893) ideado por Daniel Burnham.

O contexto dos ataques de Jacobs ao urbanismo moderno ortodoxo era o programa norte-americano de
renovação urbana das áreas centrais das cidades, do fazer tábula rasa de setores urbanos consolidados,
substituídos por megaprojetos de reurbanização nos quais uma arquitetura burocrática ou monumental,
viadutos, elevados, vias expressas e florestas de concreto configuravam a nova paisagem das grandes
cidades. Fenômeno que extrapolou as fronteiras norte-americanas, banalizando-se enquanto intervenções
urbanas tardias em cidades como Caracas ou São Paulo nos anos 1970.
Contra o bucolismo das cidades-jardins, Jacobs defendia a densidade das metrópoles. Todavia, não a
ordenada metrópole ideada por Le Corbusier - cujo exemplo mais vigoroso seria Brasília -, mas a cidade
tradicional.

Que cidade tradicional, porém?

O sabor dos relatos de Jacobs reside em sua fluente escrita de observadora não-contaminada pelo jargão
dos urbanistas e sua vivência como moradora do Greenwich Village em Nova York. Numa etnografia
jornalística, a autora procurou identificar no cotidiano de grandes cidades norte-americanas as razões da
violência, da sujeira e do abandono, ou o contrário, a boa manutenção, a segurança e a qualidade de vida de
lugares que constituíam a cena real das metrópoles, em simetria ao esquematismo dos modos de vida que
os planejadores previam em seus modelos urbanos ideais.

Ao contrário das fisicamente imaculadas e espiritualmente vazias proposições modernistas, o caos urbano e
o microcosmo dos bairros constituíam uma vida rica e densa de significados. Do registro empírico das
maneiras de se apropriar dos lugares (os subtítulos dos textos são diretos: "Os usos das calçadas: segurança,
contato, integrando as cri-anças..." etc), Jacobs formulou a crítica aos axiomas do planejamento (separação
das funções/zoneamento, a lógica da circulação pelo exaltação do sistema viário, etc) e seu reverso, a
prescrição de soluções.

A principal e duradoura lição pregada por Jacobs é a necessidade da diversidade urbana: funções que
gerem presença de pessoas em horários diferentes ("a necessidade de usos principais combinados" é um
capítulo) e em alta concentração, valorização de esquinas e percursos ( "a necessidade de quadras curtas",
outro capítulo), edifícios variados e de diferentes idades ("a necessidade de prédios antigos"), e ressaltando
outras medidas profiláticas para uma melhor qualificação urbana: "a subvenção de moradias", "erosão das
cidades ou redução dos automóveis", "ordem visual: limitações e potencialidades", "projetos de
revitalização", etc.

A clareza da escrita e as posições antimodernistas de Morte e Vida de Grandes Cidades trouxeram grande
prestígio à autora, tornando-a uma leitura obrigatória nos cursos de arquitetura e urbanismo, geografia e
ciências sociais. Parte de suas idéias lograram grande audiência nos debates urbanísticos dos anos 1970/80,
sobretudo com o advento da discussão pós-moderna e sua apologia da diversidade, ao ponto de alimentar
tendências díspares do urbanismo como as muitas formas de ativismo comunitário como no discurso de
frentes como a Nova Direita norte-americana.

Jacobs é considerada a "mãe" do neoconservador New Urbanism, para desespero de seus defensores, que
creditam à vulgarização das idéias da jornalista pelas bobagens a ela atribuídas. David Harvey, anotando
sobre o emergir de códigos simbólicos de distinção social na arquitetura e no urbanismo pelo enaltecimento
da ornamentação, do embelezamento, pela decoração, comentava:

"Não tenho nenhuma certeza de que tenha sido isso que Jane Jacobs tinha em mente quando criticou o
planejamento urbano modernista."

Jane Jacobs mudou-se com a família para Toronto em 1968 (temendo o envolvimento dos filhos na guerra
do Vietnã) e tornou-se cidadã canadense em 1974. Aos 84 anos de idade, lançou em março passado seu
sexto livro, The Nature of Economies. Mas o prestígio internacional, que a tornou uma guru do
planejamento urbano, veio de Morte e Vida de Grandes Cidades, um relato fascinante de uma inquieta ex-
moradora da rua Hudson em Nova York. Um livro que, decorridos quase 40 anos de seu lançamento,
trouxe retratos e episódios de recantos de cidades norte-americanas que poderiam ser depoimentos de uma
época como as de Charles Dickens sobre a Londres da segunda metade do século 19 - e provavelmente de
uma São Francisco, Nova York ou Boston que não existem mais.

[texto originalmente publicado no Jornal da Tarde com o título "Uma crítica ao modernismo urbanístico",
Caderno de Sábado, Sábado, 26 de agosto de 2000. Reprodução proibida sem autorização do autor]
Livro resenhado:
Morte e vida de grandes cidades. Jane Jacobs, Martins Fontes, 2000 [foto Nelson Kon] Pensando a urbanidade *

Com imenso atraso mas num momento crucial, quarenta anos depois de seu lançamento nos Estados Unidos o livro de Jane
Jacobs Morte e Vida de Grandes Cidades ("Life and Death of Great American Cities") chega ao Brasil mas num momento crucial.
Tanto pelas teses que apresenta quanto por nos induzir a um cotejamento entre os problemas urbanos americanos no início dos
anos 60 e a atual situação das exauridas cidades brasileiras, o livro possui ainda uma grande força. Já na primeira linha a autora
adverte que estaremos diante de um ataque aos fundamentos do planejamento urbano e da reurbanização vigentes nos Estados
Unidos a partir da década de 30. Sua investida, que na primeira parte do texto possui a contundência de um manifesto e na
segunda a força de um verdadeiro estudo, centra-se em questões que denominamos genericamente deurbanidade. É com esse
conceito, difícil mas essencial para a abordagem do mundo urbano contemporâneo, que Jane Jacobs trabalha. Sem lançar mão de
uma definição linear deurbanidade, ela percorre os atributos considerados indispensáveis a sua plena manifestação e existência.

A sua tese central é bastante clara: o grau deurbanidade de uma cidade, de uma metrópole ou de um bairro depende
intrinsecamente do grau de vitalidade urbana ali presente. Vitalidade e decadência não estão no texto de Jacobs em oposição
simples, menos ainda em sucessão temporal. Para ela, manejar a complexidade urbana através de planos e projetos é uma tarefa
séria e necessária. Suas análises, histórias, exemplos e citações têm como eixo o reconhecimento das ações e situações urbanas
capazes de gerar ou de destruir essa vitalidade primordial. Relacionando as atividades e os seus espaços, Jacobs procura mostrar
com muitos argumentos que as atividades regem a vida urbana e que os espaços que as acolhem devem estabelecer com elas
relações de compromisso e aliança.

Ora situada na posição de dona-de-casa que observa com argúcia o universo cotidiano que a cerca, ora utilizando uma evidente
cultura urbanística, Jacobs trabalha num duplo registro: o vigor e a coerência da "cidade real", produto das práticas diárias de
seus cidadãos, e a debilidade e irracionalidade das cidades que resultam de uma visão teórica da vida urbana. O tema de Jacobs é
o resultado desvitalizante e desurbanizador promovido pelos projetos que desconhecem o real funcionamento das cidades. O
convívio entre as distintas funções urbanas — morar, trabalhar, passear, comprar, conviver, circular — e tantos outros que
comparecem em profusão nos seus exemplos é a base da vitalidade urbana, matéria-prima daurbanidade. A sua eliminação através de
maus projetos, e ela mostra com grande clareza como as formas conflituosas de convívio podem ser mais vitais do que a
supressão das distinções através de projetos "sedativos", compromete a própria permanência da vida urbana e da cidade. Além
da monofuncionalidade, isto é, a ausência da diversidade funcional, ruas mal iluminadas, calçadas desprovidas de qualidades
mínimas, parques urbanos segregados, quarteirões muito longos, falta de definição precisa entre espaços públicos e privados,
excesso de espaços imprecisos ou residuais, mau equacionamento do convívio automóvel- pedestre, são alguns dos elementos
físicos e espaciais que corroem aurbanidade.

Na ausência de uma definição explicita deurbanidade no texto de Jacobs, proponho entendê-la como a relação dinâmica que se
estabelece entre as "atividades urbanas" cotidianas, que são algo maior que as "funções urbanas", sempre renováveis e
ampliáveis, e o espaço público adequado à sua realização. Pelo seu forte comprometimento com o "modo de vida urbano",
Jacobs não se limita a exaltar a cidade e a metrópole moderna nem em demonstrar a riqueza da experiência de vida urbana em
contraponto com outras formas de organização espacial da sociedade. Estamos aqui distantes de um relato nostálgico. Seu
objetivo é identificar, através de exemplos cotidianos, as forças desagregadoras do espaço de vida urbana, aquelas que tornam
impossível a realização de uma genuína urbanidade e aquelas que, corretamente acionadas, podem restaurar a vitalidade essencial.
O próprio título do livro revela com precisão sua opção teórica. A precedência da palavra morte frente a vida indica com clareza
que não se trata de um ciclo vital, quando se caminha de forma inexorável para a degradação e extinção. Jacobs está bem
consciente de que os processos sociais, dos quais a cidade é uma das mais eloqüentes expressões, não cabem nessa simplificação
e comparação com o modelo biológico. Jacobs procura apontar o caminho inverso, seus argumentos vão no sentido do
enfrentamento e da reversão dos processos desvitalizadores introduzidos por projetos equivocados.

A ofensiva organizada por Jacobs alveja as propostas mais influentes da primeira metade do século XX. Mostra que já era
possível identificar, pelo menos do ponto de vista da experiência norte-americana, os desastrosos resultados das ações contidas
nos textos e experiências fundadores do urbanismo moderno e modernista. Cunhando a expressão "cidade-jardim-bela-radiante",
ela atravessa, com a lâmina de uma só espada, três vertentes do planejamento urbano e do urbanismo. Esta expressão reúne o
inglês Ebenezer Howard (1850/1928), fundador do conceito que orientou os projetos das cidades jardim; o americano Daniel
Burham (1846/1912), que projetou os espaços destinados a abrigar a Columbian Exposition de Chicago a partir de elementos
arquitetônicos clássicos, buscando reintroduzir no urbanismo uma estética classicizante que resultou no chamado Movimento
City Beautiful, e, por fim, o seu alvo principal: Le Corbusier (1887/1965) e todo ideário modernista contido no paradigmático
projeto da "Cidade Radiante".

Como o seu objetivo é extremamente concreto, isto é, apontar a responsabilidade do urbanismo e do planejamento na destruição
das cidades americanas, Jacobs lança os três urbanistas num único patamar, rotulando-os indiscriminadamente de "planejadores
ortodoxos". Esse gesto radical justifica-se, pois ela não está comprometida com as teorias, mas com a utilização que os
profissionais americanos vinham fazendo dos princípios por eles defendidos. Assim, as idealizadas relações entre o campo e a
cidade, de Howard, o esteticismo monumentalista do Movimento City Beautiful e a dogmática separação funcional do
Movimento Moderno, marcos muito distintos do pensamento urbano e urbanístico, ganham na sua análise uma incômoda
equivalência.

Uma avaliação consistente da atualidade ou obsolescência das teses defendidas com contundência por Jacobs implica o
reconhecimento da intensificação dos problemas por ela abordados no início dos anos 60. A questão do convívio urbano e do
lugar onde se realiza — o espaço público — alcançou nova escala e com isso novos atributos. Voltado para uma das mais
emblemáticas cidades americanas, Los Angeles, Mike Davis aprofunda alguns temas de Jacobs em A Cidade de Quartzo (1990),
atestando a dimensão alcançada pela violência urbana e seu funesto contraponto: a agonia da vida urbana em Los Angeles.
Confirmando as teses de Jacobs, Mike Davis, quatro décadas depois, descreve de forma assustadora o "desastre urbano" no qual
está mergulhada a cidade que adotou de forma radical o caminho inverso da urbanização regeneradora, única capaz de gerar ou
restituir urbanidade.

Cumprindo o percurso inevitável, isto é, a comparação entre as questões urbanas americanas e o panorama urbano brasileiro
atual, fica claro para o leitor — cidadão urbano — que o "inferno urbano" expresso numa impossível urbanidade é conseqüência de
pelo menos dois processos distintos. O primeiro se impõe através de planos e projetos equivocados e desastrosos, extirpadores de
urbanidade, como é o caso das grandes cidades americanas. O segundo resulta da mais absoluta ausência de planos ou da
consciência de sua necessidade, como é o caso das grandes cidades brasileiras. Aqui, a erosão permanente da urbanidade
instalou-se não apenas pela ausência de planos, mas, acima de tudo, pela incapacidade do poder público de entender o papel
contemporâneo das cidades. Umas poucas cidades no Brasil estão efetivamente empenhadas na recuperação das condições de
vida urbana. Curitiba, por exemplo, desde os anos 70 instalou um processo de planejamento consistente, buscando os elementos
essenciais para a reconquista de uma desejável urbanidade. De forma incipiente, outras cidades brasileiras mostram-se hoje
sensíveis à necessidade de combater a ausência de qualidade urbana.

As grandes obras viárias realizadas nas metrópoles brasileiras nos últimos 20 anos, pressionadas pelo extraordinário aumento do
número de veículos, produziram em cada uma delas resultados muito semelhantes. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte,
Salvador, Recife, Porto Alegre, Fortaleza, Goiânia e Florianópolis são cidades onde a presença de vias expressas cortando os
bairros centrais e periféricos já plenamente consolidados provocou uma profunda desorganização urbana. O sistema viário
adaptado às novas dimensões criou rupturas urbanas muito intensas, segregou trechos de bairros, afastou setores urbanos onde a
vida cotidiana era, até bem pouco tempo atrás, equilibrada e integrada. As grandes rodovias e as avenidas centrais passaram nas
últimas décadas a confundir-se no interior de um único sistema cujo objetivo primordial é fazer fluir o tráfego.

Em São Paulo, a Avenida Tiradentes, a principal entrada da metrópole, é um claro exemplo desse processo de ruptura.

Projetada para tornar-se a peça fundamental do denominado Sistema Y criado por Prestes Maia em 1930, foi na sua origem uma
ampla e arborizada avenida moderna. A implantação do monumento a Ramos de Azevedo, em 1934, atestava o seu prestígio.
Entretanto, a partir dos anos 70, suas invejáveis características de avenida moderna vão sendo gradualmente destruídas. Principal
eixo rodoviário dos acessos norte/sul da metrópole, a Tiradentes sofreu constantes alargamentos de suas pistas. Sua imensa ilha
central arborizada é pouco a pouco eliminada em nome da crescente necessidade de ampliar o número de pistas de tráfego. Mais
tarde, o próprio monumento a Ramos de Azevedo cede espaço e é removido para a Cidade Universitária. Nos anos 90, fechando
um ciclo de perdas, a incorporação de um guard-rail rodoviário separando as pistas nos dois sentidos selou seu destino — a
avenida cedeu lugar à rodovia. A sua travessia tornou-se problemática e o convívio das atividades localizadas nos setores leste e
oeste da avenida passaram a depender de uma única passarela de pedestres.

As próprias estações do Metrô são bons exemplos de intervenção em processos urbanos. Enquanto a recuperação do Largo São
Bento, tendo como principal alvo a criação da Estação São Bento, recuperou a qualidade urbana do largo, a instalação da estação
Sé do Metrô promoveu um movimento inverso. A ampliação da Praça da Sé, com a incorporação da Praça Clóvis Beviláqua
através da demolição do quarteirão que as separava, eliminando as ruas Felipe de Oliveira e Santa Teresa, visando a melhorar a
vida dos milhares de pedestres que se serviriam da principal estação do Metrô, resultou num espaço excessivamente amplo e
amorfo. O ponto de equilíbrio entre espaço público e as funções urbanas que lhe conferem sentido parece não ter sido alcançado.
As entradas do Metrô acabam flutuando dentro de um espaço desurbanizado, isto é, desvitalizado pela ausência do comércio e
demais atividades que lhe davam sustentação em termos espaciais e de atividades. Os meninos da rua são provavelmente os
únicos cidadãos dessa metrópole que deram à nova praça um sentido, triste, é verdade, mas de qualquer forma um sentido de
apropriação, lhes servindo de abrigo.

Fugindo em 1996 da Febem para a Sé, eles lhe conferiram um uso mais amplo que o de simples corredor dos usuários do Metrô.
Outro bom exemplo em São Paulo é o bairro do Brás, que, secionado pela linha norte/sul do Metrô, nunca se refez. Estão ali
ainda, desde 1976, terrenos inaproveitados, verdadeiras "sobras urbanas", aguardando ainda hoje a sua reintegração.

Assim, o controle do tráfego, a reordenação do trânsito, a reconquista das áreas centrais, reconstituição do espaço público, têm
sido os elementos essenciais do novo discurso sobre a cidade. Há uma vaga utopia no ar: as cidades podem ser recuperadas. Seu
potencial deurbanidade pode ser reconquistado pela ampliação do convívio dos usos, pela integração das funções urbanas e pela
indispensável revisão das relações da cidade com o automóvel. Para quem estava sobrevivendo sem utopias, é uma luz no fim do
túnel. É nesse novo cenário que o texto de Jane Jacobs continua uma referência indispensável

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