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“Vou lançar as redes”: a retomada da capilaridade bíblica como caminho para


redespertar da participação ético política dos cristãos leigos e leigas.

Denilson Mariano da Silva / Mestre em Teologia (Doutorando) / FAJE BH – Faculdade


Jesuíta de Filosofia e Teologia / – E-mail: marianosdn@yahoo.com.br – Bolsista CAPES.

FT 9 - Religião e política: articulações, fricções e outras intenções e interações

Resumo:

A leitura popular da Bíblia, através de Círculos Bíblicos e Grupos de Reflexão,


propicia uma capilaridade da Palavra de Deus que torna mais viva a comunidade de fé.
Favorece a ligação entre fé e vida, o despertar da consciência crítica e, consequentemente, um
maior engajamento dos leigos e leigas nas pastorais sociais e na ação sócio transformadora,
através dos movimentos sociais e político partidários, concretizando, na base da Igreja, a
opção preferencial pelos pobres. O objetivo aqui é buscar pistas teórico-práticas para a
necessária recuperação a mística da Palavra de Deus no meio das comunidades; para o
fortalecimento dos círculos bíblicos e grupos de reflexão, como caminho para Animação
Bíblica de toda a pastoral, conforme incentivo manifesto nos documentos Magistério.

Palavras-chave: Grupos de Reflexão, Círculos Bíblicos, Fé e Política, leigos.

1. A Bíblia no cotidiano da vida


O movimento bíblico1, ainda anterior ao Concílio Vaticano II, criou as condições
para o surgimento dos Grupos de Reflexão e Círculos Bíblicos 2. A bíblia, retornando às mãos

1
O retorno às fontes bíblicas e patrísticas foi decisivo para as conquistas e avanços do Vaticano II. De modo
especial, o movimento bíblico foi fator preponderante antes, durante e após o Concílio. Um retorno à leitura
popular da bíblia é caminho para a animação bíblica de toda a pastoral e para o fortalecimento das CEBs e da
ação social da Igreja.
2

do povo, encontrou um solo fecundo e estes pequenos grupos tornaram-se os primeiros


núcleos a partir dos quais nasceram as CEBs. Entre os vários elementos que compõem o
surgimento das CEBs, os GR e CB, com sua leitura popular da bíblia, ocupam um lugar
central. Através deles, a partir de baixo, a partir dos pobres, nasceu uma “nova teologia
bíblica”, fruto de uma mudança do lugar social visibilizado no “Pacto das Catacumbas”.3 Foi
uma iniciativa surgida no final do Concílio Vaticano II através da qual um grupo de bispos fez
a opção evangélica de aproximar-se realmente da vida e da condição dos pobres, tendo sido
seguidos por muitos padres, religiosos e religiosas. Essa inserção na vida do povo, na vida dos
pobres é marca característica dos GR e CB: “A originalidade dos círculos bíblicos populares –
articulados nas CEBS – está no fato da inserção da mensagem da Bíblia no cotidiano da vida.
Há um interesse de ler o Evangelho na vida.” (TEIXEIRA, 1988, p. 210). A Igreja só pode
promover o empoderamento dos pobres se ela é, verdadeiramente, presente em suas vidas.
Assim, por outro lado, os GR e CB tornam-se caminho para que os pobres se tornem
verdadeiramente Igreja e não apenas acessem o serviços e ministérios oferecidos por ela.
Como enfatiza o Papa Francisco: “Unicamente a partir desta proximidade real e cordial é que
podemos acompanhá-los adequadamente no seu caminho de libertação” (EG, nº 199).
Mais que interpretar as passagens da Bíblia, importa interpretar a vida à luz da
Palavra de Deus. Os GR e CB constituem um espaço de fé, num dado contexto social,
marcado por experiências pessoais, familiares e de trabalho, no qual não apenas se lê a Bíblia,
antes, faz-se uma leitura da vida a partir da Bíblia, por isso nasce também um compromisso
com as lutas concretas a favor da vida (cf. MESTERS, 1982, p. 306). Neste sentido, pode-se
dizer que as CEBs nascem, se alimentam e se desenvolvem através dos GR e CB. Estes,
mesmo que não tenham tanta visibilidade ou tanto destaque como outros grupos e pastorais da
Igreja, estão sempre presentes e representam a força e a vitalidade das CEBs.4 No dizer de
Paulo VI, fazem aflorar aquela “energia escondida da Boa Nova”, suscetível de impressionar
a consciência e de transformar verdadeiramente as pessoas (cf. EN, nº 4).

2
Neste texto optamos por manter as duas nomenclaturas: Círculos Bíblicos e Grupos de Reflexão por entender
que há uma grande proximidade entre elas, mas características distintas, sobretudo nos Grupos de Reflexão da
diocese de Caratinga-MG ou que usam os roteiros desta diocese. Esta distinção merece um estudo posterior para
explicitar o específico da dinâmica de cada um e favorecer um possível enriquecimento entre ambos. A
nomenclatura destes grupos também variam muito de acordo com cada região também chamados de: grupos de
família, equipe de reflexão, grupos de rua etc. Para facilitar vamos usar as siglas: GR = Grupo de Reflexão e CB
= Círculos Bíblicos
3
Cf. BEOZZO, José Oscar. Pacto das Catacumbas: por uma Igreja servidora e pobre. São Paulo: Paulinas, 2015.
4
Na América Latina, a leitura popular da bíblia tem seu maior destaque com o trabalho de Frei Carlos Mesters,
OC, que posteriormente deu origem ao CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), divulgador dos círculos bíblicos e
também pelo trabalho do SAB – Serviço de Animação Bíblica. Concomitantemente, na Diocese de Caratinga,
MG, surge o Movimento da Boa Nova com o trabalho dos grupos de reflexão e plenários que se espalharam para
algumas outras dioceses sobretudo de Minas, Espírito Santo e Mato Grosso. Estas práticas de leitura popular da
Bíblia permanecem até hoje, embora sem a abrangência e o brilho dos tempos áureos, nos anos 70 à década de
90.
3

Os GR e CB permitem a capilaridade da Palavra de Deus no meio do povo


despertando as pessoas para a participação na vida de comunidade, fortalecendo as CEBs;
colaborando para uma prática litúrgica que aproxima fé e vida, oração e ação; reforçam o
engajamento nas lutas comunitárias; desenvolvem uma catequese mais voltada para a vivência
em comunidade e não apenas centrada na recepção dos sacramentos; favorecem e despertam
para a participação nas pastorais e organizações sociais e engajamento político partidário
como meio para a defesa da vida, da ética e da justiça. Este engajamento, nascido do encontro
da Palavra de Deus frente à realidade sofrida da vida em um ambiente de fé, torna-se um
verdadeiro desdobramento social da fé. Por isso, os leigos e leigas enraizados nos GR e CB,
que avançam para engajamento sociopolítico, permanecem mais fiéis aos princípios cristãos e
mais resistente aos desvios e práticas de corrupção frequentes nestes meios. Neste sentido, os
GR e CB alimentam toda a vida da Igreja. São como veias finas, veias capilares, que irrigam
com a Palavra de Deus toda a vida das comunidades. E por onde corre a Palavra de Deus, há
sempre mais vida, mais esperança e maior resistência diante das dificuldades. 5 Trata-se de um
verdadeiro caminho de animação bíblica de toda a pastoral6 cuja importância da Palavra na
vida das comunidades é bem sintetizada Faustino Teixeira.

Ao se refletir sobre a caminhada das CEBs no contexto brasileiro, um


elemento que desponta com grande transparência é a presença da Palavra de
Deus como parte integrante da vida das comunidades. É em torno da Palavra
que as comunidades se revelam como tal. É a Palavra que confere o sentido,
a luz e a força das comunidades. É ali que os pobres vão beber a água da
resistência e da esperança, que fertiliza os caminhos do futuro. (TEIXEIRA,
1987, p. 135)

2. Caminho de animação bíblica da pastoral


Os GR e CB são verdadeiro caminho para a animação bíblica de toda a pastoral, que
vem sendo colocada pela CNBB como o eixo das cinco urgências da Igreja do Brasil.7 Eles

5
Não nos ocuparemos aqui da questão do método desta leitura popular da bíblia comparada com os métodos
histórico críticos; métodos linguístico estruturais; leitura materialista da bíblia. Há vários estudos nesta linha.
Um artigo sintético, claro e com boas referências é da colombiana Neftallí VELEZ, 1988. A autora trabalha a
diferença da leitura bíblica popular em relação à leitura materialista e sua semelhança com a leitura bíblica
espiritual dos Santos Padres.
6
As Diretrizes Gerais de Ação Evangelizadora da Igreja do Brasil, apontadas pela CNBB colocam como
urgência fazer da Igreja um “lugar da animação bíblica da vida e da pastoral”. Isto foi apontado para o
quadriênio de 2011 a 2015 e retomado no de 2016 a 2019 (Cf. Doc. CNBB nº 94 e 102). Também a Exortação
Apostólica Verbum Domini trata da “animação bíblica da pastoral inteira” como caminho para evitar o “vazio
pastoral” (VD, nº 73).
7
Desde 2011 a “Animação Bíblica da vida e da pastoral” figura como uma das cinco urgências da Igreja do
Brasil. Embora haja o apelo para que essas urgências sejam assumidas em seu conjunto, os resultados pastorais
advindos da aplicação das diretrizes e outros documentos da CNBB são ainda tênues, dá-se pouca ênfase prática
aos documentos do magistério, daí sua parca ressonância na prática pastoral. O mesmo acontece com o
Documento 97 da CNBB Discípulos e Servidores da Palavra de Deus na Missão da Igreja.
4

constituem um espaço que favorece o crescimento da dimensão missionária da Igreja: eles


reforçam a igreja doméstica, pois os encontros se realizam nas casas; permitem ir ao encontro
dos doentes e afastados; aproximam as famílias, os vizinhos; ajudam a vencer o isolamento e
a solidão, que é o drama de muitas pessoas que habitam nas áreas urbanas; incentivam a
participação ativa no grupo e na comunidade; colaboram com o surgimento do “sujeito
eclesial”, pois favorecem à “formação de uma fé pessoal, adulta, interiormente formada,
operante e continuamente confrontada com os desafios” (MEDELLÍN, 7,13). A exemplo de
um rio que gera vida dentro e fora dele, os GR e CB geram maior engajamento dentro da
comunidade com a melhoria na participação do culto, missas catequese, pastorais, e ainda
favorecem o engajamento nas ferramentas sociais como associações, sindicatos, partidos
comprometidos com as causas populares. Por isso verificam-se como eixo da “animação
bíblica da vida e da pastoral” (DGAE, 2011, nº 53). Os GR e CB colocam-se em plena
sintonia com os apelos da Exortação Apostólica: Verbum Domini, de Bento XVI, sobre o
incentivo aos fiéis para a leitura bíblica8, bem como com a proposta para o “discipulado
missionário” da Conferência de Aparecida (DAp, 156; 172; 204) e com a proposta de uma
Igreja em “saída missionária” da Evangelii Gaudium, do Papa Francisco (EG, 17-24).
E ainda, os GR e CB constituem um verdadeiro caminho de Iniciação à Vida Cristã.
Eles favorecem aos fiéis estar sempre em sintonia com a Palavra de Deus e com a caminhada
da Igreja. A reflexão continuada da Palavra vai comunicando o Espírito de Deus, esquenta o
coração e abre os olhos (cf. Lc 24,13-35). Cada reunião não é apenas um encontro de irmãos,
mas um encontro com Deus que nos fala ao coração. Este encontro continuado com a Palavra
vai, aos poucos gestando uma nova identidade. O Evangelho vai configurando em cada um,
uma nova forma de viver, vai transformando as pessoas, fazendo-as continuadoras da missão
de Jesus na Igreja e no mundo.

A leitura comunitária da Bíblia revela aos pobres sua dignidade de pobres,


restituindo-lhes a sua identidade, como a consciência de sua missão na
história. No espelho da Bíblia podem descobrir o valor que tem o pobre para
Deus, o que dá ainda mais força e vigor ao compromisso de libertação.
(TEIXEIRA, 1987, p. 158)

Não há espaço aqui para desenvolver cada uma destas potencialidades que estão
presentes na dinâmica dos GR e CB. No entanto, outros estudos demonstram que, por meio
destes grupos, o encontro com a Palavra de Deus ilumina a vida e o contato com a vida

8
“Todos os fiéis debrucem-se gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da sagrada liturgia, rica de
palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando tão louvavelmente por
toda a parte, com a aprovação e o estimulo dos pastores da Igreja.” (VD, 86 e DV, 25)
5

ilumina o entendimento da Palavra, tornando mais forte a ação do Espírito Santo tanto na vida
das pessoas, quanto no seio das comunidades:

É uma interpretação bíblica no Espírito Santo; pois a consciência crítica está


precisamente ligada à visão teológica de um Espírito que mexe com a
história, que se faz presente na vida dos integrantes das Comunidades de
Base e, de maneira especial, nas suas lutas, que procuram a libertação
integral. (VELEZ, 1988, p. 42)

Apesar de toda essa riqueza e densidade de sentido, um “inverno eclesial” fez com
ocorresse um enfraquecimento na caminhada da leitura popular da bíblia, o consequente
enfraquecimento das comunidades e do nível de engajamento nas pastorais sociais e nas
organizações e movimentos de lutas a favor dos direitos e das garantias de vida dos mais
pobres e sofredores.
Se tivermos presentes os últimos documentos do Papa Francisco como Evangelii
Gaudium, Laudato Sí´; Amoris Laetitia; Gaudete et Exsultate e os dois últimos de maior peso
da CNBB como 105 Cristãos leigos e leigas, sal da terra e luz do mundo (Mt 5,14) e 107
sobre a Iniciação à Vida Cristã, temos diante de nós uma riqueza imensa de conteúdo. Essa
riqueza tem multiplicado os artigos em diversas revistas e periódicos; tem iluminado muitas
aulas, tem inspirado novos livros, iluminado programas televisivos, etc. Mas, a chegada deste
conteúdo até às bases de nosso povo é um processo ainda longo, demorado. E se torna mais
difícil quando a capilaridade que flui, sobretudo através dos GR e CB, anda enfraquecida.
Temos bons documentos, mas sua incidência prática sobre a vida eclesial de nossas
comunidades é tênue e em alguns setores, inexistente. A retomada da capilaridade através dos
GR e CB cria ambiente para que os documentos também sejam conhecidos, assimilados e
colocados em prática, a partir de baixo.9

3. Causas de enfraquecimento da leitura popular da Bíblia


No entanto, fatores diversos têm levado ao enfraquecimento desta capilaridade da
Palavra de Deus: o espírito individualista da atualidade, que isola a pessoa na falsa imagem de
que liberdade é independência em relação aos outros e em relação à comunidade. Até a fé vai
sendo privatizada e assume formas e contornos contrários à própria Revelação cristã com seu
caráter essencialmente comunitário de um Deus único que se revela na Trina comunhão do

9
A Diocese de Caratinga-MG tem feito uma boa caminhada nesta direção. Os roteiros de reflexão da Diocese
articulam o estudo bíblico com o estudo dos documentos do Magistério, isto favorece para que o conteúdo destes
documentos chegue às comunidades e comece a fecundar mais a catequese, a liturgia, as pastorais e o
engajamento nas lutas a favor da vida. Uma amostra deste roteiro pode ser encontrada em http://
www.youblisher.com/p/606315-Roteiro-Para-os-Grupos-de-Reflexao-edicao-376-Julho-de-2013/ [Acesso em
07/08/2018].
6

Pai, Filho e Espírito Santo. Outro fator é apontado pelo Papa Francisco: a autoreferencialidade
da Igreja (cf. EG nº 94 e 95), acompanhada de uma nova mudança de lugar social,
distanciando-se dos mais pobres em direção a setores da classe média, que faz a Igreja voltar-
se para si mesma, embaçando a sua missão de estar a serviço do povo e a serviço da vida (cf.
Jo 10,10), apegando-se a estruturas que a distanciam da necessária resposta que deve dar aos
anseios dos fiéis que têm fome da Palavra e sede de um culto que lhes encha a vida de
esperança e que os motive em sua busca constante de pão, justiça e solidariedade.
Ao lado a autoreferencialidade, o atual fortalecimento do clericalismo (cf. EG nº
102) que centra as ações e decisões na figura do ministro ordenado, que fecha os canais de
participação ativa na comunidade e reduz os leigos a “coroinhas” e “pessoas da sacristia”, na
contramão dos documentos que defendem o seu protagonismo e sua ação como verdadeiro
sujeito na Igreja e na sociedade (Cf. CNBB, Doc. 105).
No mesmo viés o fortalecimento de práticas devocionais, alimentadas pelas grandes
e também novas mídias, embaça a centralidade da Palavra de Deus e reduz o fiel a uma
espécie de consumidor no mercado religioso, direcionando a resposta a seus anseios para uma
espiritualidade muitas vezes desencarnada da sua realidade, desenvolvendo uma série de
práticas religiosas que não o levam a uma decisão ética e responsável baseada na fidelidade a
Jesus Cristo e a seu Evangelho. Permanecendo num nível ainda muito superficial da fé, o que
poderia ser evitado através de um encontro constante com a Palavra de Deus através dos
Grupos de Reflexão e Círculos Bíblicos.
Por outro lado, fatores internos à dinâmica e indispensáveis ao funcionamento dos
grupos têm contribuído para seu enfraquecimento e para a falsa ideia de que estes “já estão
ultrapassados” ou que “não funcionam na cidade”10. Elenco alguns elementos que resultam
nas causas de seu real enfraquecimento:
1. Falta de uma linguagem acessível e simbólica11. A linguagem não é uma questão
menor no tocante à proposta de elaboração de material para a reflexão da Palavra em grupos.
O uso de uma linguagem distante do universo do povo, com academicismos e falta de
sensibilidade ao simbólico, tornam os textos áridos e incompreensíveis e distantes da vida real

10
Argumento frequentemente utilizado por quem se mostra contrário à caminhada dos grupos de reflexão na
Diocese de Caratinga-MG.
11
Veja a importância desta questão da linguagem nas palavras de Paulo VI: “A evangelização perderia algo da
sua força e da sua eficácia se ela porventura não tomasse em consideração o povo concreto a que ela se dirige,
não utilizasse a sua língua, os seus sinais e símbolos; depois, não responderia também aos problemas que esse
povo apresenta, nem atingiria a sua vida real.” (EN nº 63).
7

do povo. O cultivo de uma linguagem simples, sem no entanto perder a profundidade é


essencial para a produção dos roteiros de reflexão.12
2. Falta de real centralidade da Palavra de Deus. Contrariando a lógica comum, aqui
a “ordem dos fatores” altera o produto. A Palavra de Deus deve ocupar a centralidade da
proposta de reflexão. Alguns materiais distanciam-se da Palavra, fazem um arrazoado com
grande potencial sócio-transformador, mas a Palavra figura como um apêndice, apenas para
confirmar uma ideia trabalhada. É da Palavra e por meio dela que se deve chegar a buscar
novos horizontes. Sem uma centralidade da Palavra, em toda a proposta do material de
reflexão, os grupos correm o risco de desviar-se de seu propósito de iluminar a vida com a
Palavra e de iluminar a Palavra com a vida.13
3. A não perenidade dos roteiros para os grupos. Este é outro desafio que contribui
para o enfraquecimento e a dispersão dos grupos. Em alguns lugares os roteiros são sazonais:
para o período da Campanha da Fraternidade, para o Mês da Bíblia, ou para um ou outro mês
temático. Sem um material perene, contínuo, os grupos se dispersam e fazem perdem o elã do
encontro semanal com a Palavra de Deus. Nas paróquias e dioceses nas quais há uma
perenidade do material de reflexão, que chega sempre a tempo nas mãos dos participantes, os
grupos se mostram mais vivos e atuantes.
4. Falta de incentivo da parte dos padres da paróquia e dos coordenadores torna-se
outro fator de enfraquecimento. Isto ocorre por desconhecer a importância dos grupos, ou por
apostar em outras propostas eclesiais não centradas na força da Palavra. Cabe apontar que um
grupo de oração no estilo carismático não chega a fazer uma leitura bíblica com a densidade
eclesial de um círculo bíblico ou grupo de reflexão. Há uma aproximação à Palavra, mas seu
sentido, na maioria das vezes, é reduzido à esfera puramente espiritual e por demais marcada
por uma atitude subjetivista. Ocorre pregação, mas não reflexão. Faz-se uma leitura
reducionista da Palavra, num clima eufórico e sentimental, mas incapaz de gerar uma visão
crítica da realidade, ao invés de tornar-se uma motivação para transformar os problemas
enfrentados, transfere-se a solução para Deus e tende a uma atitude mais passiva, (quando
não, alienante). O incentivo e valorização dos grupos equivalem ao regar frequentemente uma
planta para que mantenha sua vivacidade.

12
Neste sentido, o CEBI, que sempre foi o modelo de uma linguagem popular, acessível e de conteúdo, a olhar
pelos subsídios produzidos parece ter se afastado um pouco do viés propriamente popular, talvez por muitos de
seus colaboradores estarem muito enraizados no mundo acadêmico, distanciando-se do linguajar mais
efetivamente popular.
13
“A Bíblia é como um espelho que capta a luz do sol e a joga nos cantos mais escuros da casa da gente. Ela
recebe a luz da vida do povo e joga-a de volta, clareando, por sua vez, a vida deste mesmo povo. Há uma
influência mútua da vida sobre a Bíblia e da Bíblia sobre a vida. Uma sem a outra, só se entende pela metade.”
(MESTERS, Flor sem defesa, p.109.)
8

5. Necessária busca de unidade eclesial. O material de reflexão deve sempre apontar


para a prática de comunhão eclesial, a participação na vida de comunidade, o assumir as
prioridades da Igreja local em sintonia com a caminhada de toda a Igreja. “Pensar global e
agir local”. Neste sentido, um roteiro de reflexão bem elaborado pode converter-se em um
grande eixo de eclesialidade em uma Igreja local, ele pode favorecer para que toda uma Igreja
Local caminhe em sintonia refletindo, semanalmente, o mesmo conteúdo, atingindo todas as
comunidade e paróquias da Diocese. O que se revela uma enorme força de evangelização.
6. O não favorecimento da participação ativa de todos: adultos, jovens, crianças. Sem
uma real distribuição das tarefas, de tal forma com que todos se sintam acolhidos e
valorizados, o grupo não favorece o despertar do protagonismo leigo para que se desperte o
“sujeito” da ação eclesial e social. Os GR e CB, no exercício da leitura popular da bíblia,
quando favorecem a efetiva participação de todos, revelam-se como um importante caminho
para uma efetiva renovação dos quadros de lideranças, ampliam a dimensão missionária da
Igreja e favorecem o consequente engajamento eclesial e social dos leigos e leigas.
7. Pouco uso das novas mídias e redes sociais. É necessário aproveitar-se destes
novos meios para o fortalecimento da reflexão da Palavra nos grupos. Um aplicativo com o
conteúdo dos roteiros, adaptados a uma configuração atraente, poderia facilitar o
desenvolvimento e o fortalecimento da leitura popular da bíblia em pequenos grupos e
reforçar linhas de engajamento com a comunidade de fé sintonizando os usuários com a
programação e atividades de sua Igreja e comunidades locais. Seria também uma forma a
mais de procurar o envolvimento das juventudes na reflexão da Palavra de Deus. É preciso
acreditar, lançar as redes, mesmo quando vários motivos parecem indicar o contrário.

4. Lançar as redes em atenção à Palavra do Senhor


Ainda que correndo risco de resvalar para uma postura catequética, somos propensos
a retomar uma inspiração bíblica no tocante aos grupos de reflexão e círculos bíblicos.
Inspirado-nos na atitude de Pedro: “Em atenção à Tua Palavra vou lançar as redes!” (Lc
5,5b) Procuramos situar a leitura popular da bíblia hoje: o caminho feito e as dificuldades
enfrentadas; alguns recuos e as consequências destes para a presença da Igreja na sociedade.
Uma vez que a curvatura do engajamento consciente e responsável dos leigos na Igreja e na
sociedade parece seguir a curvatura da caminhada dos GR e CB, somos chamados a insistir
em sua proposta, a lançar as redes em atenção à Palavra do Senhor.
No contexto daquela pesca, todos os elementos apontavam para um resultado
negativo: eles haviam passado toda a noite, horário melhor para pesca, trabalhando sem
sucesso; a multidão que se agregara ali, com todo o barulho e movimentação, contribuía para
9

afugentar os peixes; Jesus era carpinteiro, com certeza entendia menos que Pedro da arte de
pescar. No entanto, Pedro avança confiando mais na força da Palavra de Jesus que em suas
certezas pessoais, e o resultado foi garantido. Isto nos leva a apostar na força da Palavra e, em
atenção a Ela, insistir na aposta da leitura popular da bíblia em pequenos grupos como
caminho de fortalecimento das Comunidades Eclesiais de Base, verdadeiro caminho de
iniciação à vida cristã; como forma de despertar e formar novas lideranças; como caminho de
fortalecimento das pastorais sociais; como meio de reagir ao “inverno eclesial” numa proposta
de Igreja verdadeiramente discípula missionária; uma Igreja comunidade de comunidades
com leigos e leigas verdadeiros sujeitos na Igreja e na sociedade.

Os pobres em comunidade percebem através da Boa Nova do Evangelho que


em tal sociedade, marcada por divisões e desigualdades, Deus não se faz
presente, porque sua vontade de vida, amor e justiça é rechaçada pelos
poderosos. Conscientizam-se de que ‘a atual sociedade é contrária ao Plano
de Deus, é antievangélica e anti-humana. Ela nega a Deus como Pai, Vida e
Libertação. É ateia do Deus bíblico (o único real) e adoradora de ídolos: o
lucro, a morte, a dominação’. Em comunidade, os pobres – enquanto
discípulos e seguidores de Cristo – procuram encarnar a tarefa de fazer
presente a vontade de Deus, e nesta luta sentem-se apoiados pela mensagem
bíblica. (TEIXEIRA, 1987, p. 163)

Este caminho favorecerá o crescimento das CEBs e o redespertar da participação


ético política dos cristãos leigos e leigas na sociedade. Sugerimos algumas dicas para
elaboração dos roteiros que podem se converter num eixo de eclesialidade que permitirá
maior unidade pastoral na paróquia e na diocese, criando condições favoráveis para a ação do
Espírito no meio do povo, pela força da Palavra. Sem uma capilaridade da Palavra de Deus
em termos de uma leitura popular e engajada da Bíblia, dificilmente os apelos da Igreja para o
protagonismo do leigos e leigas (CNBB, 2011, Doc. 105) e para a efetiva Iniciação à Vida
Cristã (CNBB, 2017, Doc. 107) conseguirão gerar os frutos esperados. O que se espera dos
bispos, padres, e agentes de pastoral, cada qual no exercício que lhe cabe, é o devido empenho
para a animação bíblica de toda a pastoral, a partir, sobretudo do incentivo à leitura popular da
Bíblia e da busca de aproximação dos pobres, força viva da Igreja. Em outras palavras,
espera-se uma atitude, também de fé, semelhante à de Pedro: “Senhor, em atenção à tua
Palavra, vou lançar as redes...” A retomada da capilaridade bíblica através dos GR e CB é
caminho para um maior despertar da participação dos cristãos leigos e leigas na Igreja e na
sociedade.
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Bibliografia

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