You are on page 1of 4

DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 305 DO CÓDIGO DE

TRÂNSITO BRASILEIRO

Quando acontece um acidente de trânsito e o condutor de veículo


automotor se afasta do local, pode ocorrer suspeita da prática do crime do art.
305 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB, Lei nº 9.503/1997).
O art. 305 do CTB prevê o seguinte: “Afastar-se o condutor do veículo
do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa
ser atribuída: Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa”.
Ocorre que a Constituição da República assegura o nemo tenetur se
detegere ("nada a temer, por se deter"/direito a não autoincriminação).
O privilégio contra a não autoincriminação traduz direito público
subjetivo, com base constitucional. Esse direito é assegurado a qualquer
pessoa, pela Constituição brasileira, conforme se extrai do seu art. 5º, inc. LXIII
(direito ao silêncio) e seus parágrafos 2º e 3º (tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos), c/c o art. 8°, 2, alínea “g” (direito a não
autoincriminação), do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção
Americana de Direitos Humanos – Decreto n° 678, de 1992).
A respeito da garantia de não autoincriminação, Antônio Magalhães
Gomes Filho ensina:

Embora aludido ao preso, a interpretação da regra


constitucional deve ser no sentido de que a garantia abrange
toda e qualquer pessoa, pois diante da presunção da
inocência, que também constitui garantia fundamental do
cidadão (art. 5º, inc. LVII, da CF e, ainda, Convenção
Americana de Direitos Humanos, art. 8º, §2º), a prova da
culpabilidade incumbe exclusivamente à acusação. EM
DECORRÊNCIA DISSO, SÃO INCOMPATÍVEIS COM OS
REFERIDOS TEXTOS QUAISQUER DISPOSIÇÕES LEGAIS
QUE POSSAM, DIRETA OU INDIRETAMENTE, FORÇAR O
SUSPEITO, INDICIADO, ACUSADO, OU MESMO QUALQUER
PESSOA (INCLUSIVE A TESTEMUNHA) A UMA AUTO-
INCRIMINAÇÃO. ... . O DIREITO À NÃO AUTO-
INCRIMINAÇÃO CONSTITUI UMA BARREIRA
INTRANSPONÍVEL AO DIREITO À PROVA DE ACUSAÇÃO;
SUA DENEGAÇÃO, SOB QUALQUER DISFARCE,
REPRESENTARÁ UM INDESEJÁVEL RETORNO ÀS
FORMAS MAIS ABOMINÁVEIS DA REPRESSÃO,
COMPROMETENDO O CARÁTER ÉTICO-POLÍTICO DO
PROCESSO E A PRÓPRIA CORREÇÃO NO EXERCÍCIO DA
FUNÇÃO JURISDICIONAL (GOMES FILHO, 1997, p. 113/114,
ênfase acrescida).

No mesmo sentido, Aury Lopes Júnior afirma que a recusa é um


direito, que não pode gerar prejuízos ao suspeito:

ATRAVÉS DO PRINCÍPIO DO NEMO TENETUR SE


DETEGERE, O SUJEITO PASSIVO NÃO PODE SER
COMPELIDO A DECLARAR OU PARTICIPAR DE QUALQUER
ATIVIDADE QUE POSSA INCRIMINÁ-LO OU PREJUDICAR
SUA DEFESA (...). Por elementar, sendo a recusa um direito,
obviamente não pode causar prejuízos ao imputado e muito
menos ser considerado delito de desobediência. (LOPES JR,
2005, p. 233, ênfase acrescida).

Então, o art. 305 do CTB ofende o nemo tenetur se detegere (direito


de não produzir provas que possam afetar a própria pessoa) e, por isso, é
inconstitucional. Não é possível punir criminalmente a conduta descrita no art.
305 do CTB.
Nesse sentido, a Corte Superior do Tribunal de Justiça do Estado de
Minas Gerais declarou a inconstitucionalidade do art. 305 do CTB, conforme
ementa abaixo transcrita:

INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE –
RESERVA DE PLENÁRIO – ART. 305, DO CÓDIGO DE
TRÂNSITO BRASILEIRO – INCOMPATIBILIDADE COM
O DIREITO FUNDAMENTAL AO SILÊNCIO –
INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA (TJMG –
Corte Superior – Incidente de Inconstitucionalidade nº
1.0000.07.456021-0/000 - Relator Desembargador Sérgio
Resende - Publicado em 12/09/2008, ênfase acrescida).

No mesmo sentido:

O DELITO PREVISTO NO ART. 305 DA LEI 9.503/97 É


INCONSTITUCIONAL, POSTO QUE OFENDE O PRINCÍPIO
DE QUE NINGUÉM É OBRIGADO A PRODUZIR PROVA
CONTRA SI MESMO, IMPONDO-SE, POR ISSO, A
ABSOLVIÇÃO DO RÉU, NOS TERMOS DO ART. 386, III , DO
CPP. (...). (TJMG - 2ª Câmara Criminal – Apelação nº
1.0145.07.381756-4/001 - Relator Desembargador Vieira de
Brito - Publicado em 27/07/2009, ênfase acrescida).

Ademais, entendimento diverso ofende os seguintes dispositivos


constitucionais:

art. 5°, inc. LXIII (direito ao silêncio) e art. 5º, parágrafos 2° e 3°


(tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos),
da Constituição da República c/c o art. 8°, 2, alínea “g” (direito
a não auto-incriminação), do Pacto de São José da Costa Rica
(Convenção Americana de Direitos Humanos – Decreto n° 678
de 1992).

Importante esclarecer que, em acidente de trânsito com vítima (resultado


morte ou lesão corporal), a conduta da pessoa que deixar de prestar socorro
não irá configurar o art. 305 do CTB (inconstitucional), mas poderá configurar
os seguintes delitos:

- Art. 135 do Código Penal (omissão de socorro): para o


pedestre ou condutor não envolvido no acidente, que não
prestar assistência à vítima ou deixar de pedir o socorro da
autoridade pública;
- Art. 304 do CTB: para o condutor – envolvido no acidente,
mas que não teve culpa – que não prestar imediato socorro à
vítima ou que não solicitou auxílio da autoridade pública).
- Art. 302, parágrafo único, inc. III, do CTB: para o condutor,
que teve culpa em acidente, com resultado morte, que não
prestou socorro à vítima do acidente.
- Art. 303, parágrafo único, c/c o art. 302, parágrafo único,
inc. III, ambos do CTB: para o condutor, que teve culpa em
acidente, com resultado lesão corporal, que não prestou
socorro à vítima do acidente.

Também é relevante dizer que o parágrafo único do art. 304 do CTB,


ao prever que o condutor também será responsabilizado pela omissão de
socorro, ainda que se trate de vítima com morte instantânea, prevê verdadeiro
absurdo.
Ora, não há que se falar em omissão de socorro para vítima com morte
instantânea. Não há crime sem bem jurídico a ser tutelado. Todo socorro
pressupõe uma integridade física a ser reparada ou uma vida a ser protegida.
Punir alguém por deixar de prestar socorro à pessoa já falecida
constitui verdadeira aberração jurídica, que ofende o princípio da lesividade
(ofensividade), pois não há afetação concreta de um bem jurídico. Ademais,
não há que se falar em fato típico por absoluta impropriedade do objeto (crime
impossível, art. 17 do Código Penal).
Diante o exposto, conclui-se pela inaplicabilidade do art. 305 do CTB,
sob pena de ofensa à Constituição da República de 1988.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Código de Trânsito Brasileiro. Códigos 3 em 1 Saraiva: Penal,


Processo Penal e Constituição Federal. Obra coletiva de autoria de Editora
Saraiva com colaboração de Luiz Roberto Cúria, Lívia Céspedes, Juliana
Nicoletti . 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São


Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

LOPES, JR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. 2 ed. Rio de


Janeiro: Lumen Juris, 2005.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Corte Superior. Incidente de


Inconstitucionalidade 1.0000.07.456021-0/000. Relator: Desembargador Sérgio
Resende, Diário de Justiça, Belo Horizonte, 12 de setembro de 2008.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. 2ª Câmara Criminal. Apelação Criminal


1.0145.07.381756-4/001. Relator: Desembargador Vieira de Brito, Diário de
Justiça, Belo Horizonte, 27 de julho de 2009.

You might also like