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HISTÓRIA

E ANTROPOLOGIA
DA NUTRIÇÃO

autora
CAROLINA COELHO

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2015
Conselho editorial  sergio augusto cabral; roberto paes; gladis linhares.

Autora do original  carolina coelho

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  gladis linhares

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  bfs media

Revisão de conteúdo  laura eugenia pérez freitas

Imagem de capa  marian vejcik | dreamstime.com

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

C672h Coelho, Carolina.


História e antropologia da nutrição / Carolina Coelho
Rio de Janeiro: SESES, 2015.
184 p. : il.

isbn: 978-85-5548-157-4

1. Comportamento alimentar. 2. História e cultura. 3. Gastronomia.


I. SESES. II. Estácio.
cdd 612.3

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 7

1. Imaginário Simbólico e Alimentação 11


1.1  Aspectos Simbólicos da Alimentação 13
1.2  Tabus e Crenças 22
1.3  Os Significados dos Alimentos nas Práticas de Alimentação 31

2. Concepções de Cultura Alimentar 45

2.1  Introdução aos Aspectos Culturais da Alimentação 47


2.2  Relação entre Alimentação e Cultura nas Diferentes Sociedades 48
2.2.1  Sociedade Tribal 48
2.2.2  Sociedade Camponesa 49
2.2.3  Sociedade Capitalista 49
2.3  Alimentação como Marcador de Identidades e
o Conceito de Cultura 52
2.4  Papel da Cultura na Alimentação Humana 55
2.5  Diferentes Abordagens dos
Sistemas Alimentares X Diálogo entre Eles 57
2.6  Cultura Alimentar e Segurança Alimentar e Nutricional 59
2.7  Perspectivismo e Etnocentrismo 64
2.8  Cultura Alimentar e o Cotidiano dos Indivíduos 67
2.9  Transformações Sofridas pela Cultura Alimentar 69
3. Aspectos Socioeconômico-Culturais
da Alimentação 77

3.1  Influência da Cultura, Tecnologia, Renda e


Escolaridade nas Escolhas Alimentares 79
3.2  Aspectos Socioeconômico-Culturais a
Serem Considerados na Conduta do Profissional de Saúde 81
3.2.1  Arroz com Feijão 85
3.3  Influência de Algumas Filosofias e
Religiões nas Escolhas Alimentares 87
3.3.1  Igreja Católica Apostólica Romana 88
3.3.2 Vegetarianismo 88
3.3.3 Judaísmo 88
3.3.4 Islamismo 90
3.4  Determinantes Sociais nas Escolhas Alimentares 92

4. Análise Interpretativa e Aspectos Históricos 109

4.1  Etnografia: Experiências no Campo da


Alimentação e Nutrição 111
4.2  Breve Histórico sobre os Estudos
Antropológicos da Alimentação 115
4.3  Influências Históricas na
Construção dos Significados 117
4.3.1 Pré-História 118
4.3.2  Antiguidade e Idade Média 123
4.3.3  Idade Moderna 125
4.3.4  Idade Contemporânea 127
4.4  História e Comensalidade Humana 130
4.5  Antropologia da Alimentação 134
5. Globalização 145

5.1  Globalização e Alimentação 148


5.2  Dimensões Individuais e Coletivas 153
5.3  Regionalismo e Globalização 159
5.4  Fast Food 164
5.5  Influência da Globalização na Cultura, Auto-Imagem
Corporal e Escolhas Alimentares 171
5.6  Desafios para o Futuro 173
Prefácio
Prezados(as) alunos(as)

A palavra “antropologia” deriva do grego, anthropos (homem/pessoa) e


logos (razão/pensamento). Dessa maneira, a antropologia analisa as caracte-
rísticas biológicas, culturais e sociais dos seres humanos (Rezende, 2009). A
Antropologia é a ciência da humanidade e da cultura, tendo um campo de in-
vestigação bastante vasto: no espaço esta ciência abrange toda a terra habitada;
e no tempo, pelo menos dois milhões de anos e todas as populações socialmen-
te organizadas! (Marconi e Presotto, 2009). De acordo com Marconi e Presotto
(2009), esta ciência pode ser dividida em dois grandes campos de estudo: a An-
tropologia Física ou Biológica e a Antropologia Cultural, que é a que interessa
aqui.
A antropologia cultural é o estudo do comportamento do ser humano, das
crenças religiosas e dos sistemas simbólicos (Rezende, 2009). De acordo com
Rezende (2009), a antropologia cultural pode ser definida como “uma possibi-
lidade de compreendermos quem somos por intermédio da observação aten-
ta do comportamento do outro”, sendo que a antropologia cultural analisa a
essência humana e o que determinados grupos sociais criam historicamente,
posto que o homem é um ser social, ou seja, ele aprende sempre com os outros
indivíduos. Esta autora coloca ainda que, dessa maneira, “o ser humano ao ten-
tar utilizar suas inúmeras habilidades e competências, perscruta a sua realida-
de e tenta explicar a mesma” (Rezende, 2009).
A antropologia cultural constitui-se no maior campo da ciência antropoló-
gica. Ela inclui o estudo do homem como ser cultural, isto é, aquele que faz
cultura, além de investigar as culturas humanas no tempo e no espaço, suas
origens, desenvolvimento, semelhanças, diferenças, enfim, busca conhecer o
comportamento cultural humano (adquirido por aprendizado), e analisá-lo em
todas as suas facetas. Por ser uma ciência social, preocupa-se em entender a
relação entre o modo de comportamento instintivo (hereditário) e o adquirido
(por aprendizagem), bem como as bases biológicas que estruturam as capaci-
dades culturais do homem (Heberer et al, 1967).
Segundo Claude Fischler (1990), pelo fato do ser humano ser onívoro (isto
é, por comer “de tudo”, tanto alimentos de origem animal como alimentos de

7
origem vegetal), a incorporação da comida é sempre um ato com significados,
fundamental ao senso de identidade.
Identidade cultural, segundo Maciel (2005), se constitui num espaço que
mostra os processos através dos quais os grupos sociais marcam sua distinção,
se reconhecem e se veem reconhecidos. No processo de construção, afirmação
e reconstrução da identidade cultural, determinados elementos culturais como
a comida podem se transformar em marcadores ou símbolos de sua identida-
de. São assim criadas “cozinhas” diferenciadas, maneiras culturalmente esta-
belecidas, codificadas e reconhecidas de se alimentar, das quais os pratos são
elementos constitutivos. Pode-se assim falar em “pratos emblemáticos”, por
exemplo, que representariam um grupo, fazendo parte de um discurso que ex-
pressa um pertencimento e, assim, uma identidade.
Se por um lado as técnicas, as disponibilidades de recursos do meio, a orga-
nização da produção e a distribuição de alimentos na sociedade moderna im-
primem as possibilidades de produção e consumo de alimentos, as quais estão
cada vez mais ampliadas, por outro lado, cabe à cultura definir o que é e o que
não é comida, prescrever as permissões e proibições alimentares, dizer o que é
adequado ou não, moldar o gosto, os modos de consumir e a própria comensa-
lidade .
Comensalidade: A palavra “comensalidade” deriva do latim “mensa” que
significa “conviver à mesa”, o que envolve o padrão alimentar, ou seja, “o que”
se come e, principalmente, “como” se come. Dessa maneira, a comensalida-
de não é considerada apenas uma consequência de fenômenos biológicos ou
ecológicos, e se torna um dos fatores estruturantes de uma organização social
(Moreira, 2010).
Neste capítulo serão abordados os aspectos simbólicos que envolvem a ali-
mentação, serão apresentadas diferentes concepções sobre o que é considera-
do comida para diferentes populações, e será introduzida a influência da cul-
tura nas escolhas alimentares humanas. O tema “cultura” será abordado em
maior profundidade no próximo capítulo, entretanto, já se pode adiantar aqui
ao que ele se refere.
De acordo com os autores Marconi e Pressoto (1989), o conceito de “cultu-
ra” pode ser analisado ao mesmo tempo sob vários enfoques: das ideias (conhe-
cimento e filosofia), das crenças (religião e superstição), dos valores (ideologia
e moral), das normas (costumes e leis), das atitudes (preconceito e respeito ao
próximo), dos padrões de conduta (monogamia, tabus), das abstrações do com-

8
portamento (símbolos e compromissos), das instituições (família e sistemas
econômicos), das técnicas (artes e habilidades), e dos artefatos (machado de
pedra e telefone) (Marconi e Pressoto, 1989).
De uma maneira geral, os antropólogos consideram que o termo “cultura”
se refere a ideias (concepções mentais de coisas abstratas ou concretas, como
crenças religiosas, míticas e científicas), a abstrações (ao que se encontra no
campo das ideias, da mente – ou seja, os acontecimentos não observáveis, não
concretos) e ao comportamento (ao modo de viver comum de um determinado
grupo humano) (Rezende, 2009).

Bons estudos!

9
1
Imaginário
Simbólico e
Alimentação
Neste capítulo serão abordados os aspectos simbólicos que envolvem a ali-
mentação, serão apresentadas diferentes concepções sobre o que é conside-
rado comida para diferentes populações, e será introduzida a influência da
cultura nas escolhas alimentares humanas. O tema “cultura” será abordado
em maior profundidade no próximo capítulo, entretanto, já se pode adiantar
aqui ao que ele se refere.

OBJETIVOS
Que o aluno desenvolva a capacidade de:

•  Perceber o sistema simbólico que envolve o universo da alimentação;


•  Entender diferentes concepções sobre o ato de alimentar-se;
•  Compreender que as escolhas alimentares são determinadas por outros aspectos, os quais
vão além das necessidades biológicas.

12 • capítulo 1
1.1  Aspectos Simbólicos da Alimentação
O tema da alimentação é capaz de gerar perguntas que levam a refletir sobre
questões fundamentais da antropologia, tais como a relação da cultura com o
simbólico e com o biológico. O alimentar-se é um ato vital, sem o qual não há
vida possível, mas, ao se alimentar, o homem cria práticas e atribui significa-
dos àquilo que está incorporando a si mesmo, que vão além da utilização dos
alimentos pelo organismo. É assim que a procura pelo sentido desse “comer”
tem atraído antropólogos, cientistas sociais e pesquisadores da área da saúde
de uma maneira muito particular.
Como a alimentação é imprescindível para a vida e para a sobrevivência hu-
mana, como necessidade básica e vital, ela é necessariamente modelada pela
cultura e sofre os efeitos da organização da sociedade, não comportando à sua
abordagem olhares unilaterais. Prova disso é que não é apenas com os alimen-
tos mais “nutritivos” ou apenas com os alimentos mais acessíveis e intensiva-
mente ofertados pela produção massificada, que são feitas as escolhas alimen-
tares dos homens. Apesar das pressões forjadas pelo setor produtivo, como um
dos mecanismos que interferem nas decisões dos consumidores, a cultura, em
um sentido mais amplo, molda a seleção alimentar, impondo as normas que
prescrevem, proíbem ou permitem o que comer (Canesqui e Garcia, 2005).
Desde as sociedades tradicionais já se percebia isso e se notava que eram os
diferentes grupos humanos que escolhiam o que faria parte da categoria “co-
mida” dentro daquilo que o ambiente lhes oferecia. Por exemplo: na sociedade
tribal, o ser humano se posicionou como um caçador; na sociedade campone-
sa, como um agricultor; e na sociedade capitalista, como um proletário (Daniel
e Cravo, 2005). Pode ser citado também o exemplo da “entomofagia” (hábito de
consumir insetos), o qual ainda é praticado em algumas sociedades. Essa diver-
sidade de escolhas alimentares das sociedades humanas obedece a regras es-
pecíficas quanto à produção e à distribuição dos alimentos, as quais são impor-
tantes para que se compreenda o papel da cultura como sistema simbólico no
que diz respeito ao que é considerado alimento. Com isso, percebe-se também
que as lógicas das culturas não são racionais ou determinadas pelo ambiente,
mesmo se ele é a matriz através da qual as escolhas são feitas em um contexto
tradicional.
Há muito tempo os antropólogos afirmam que o comer envolve seleção, es-
colhas, ocasiões e rituais, que se relaciona com a sociabilidade, com ideias e

capítulo 1 • 13
significados, com as interpretações de experiências e situações. Ou seja: não se
come apenas com o objetivo de se obter quantidades de nutrientes e de energia
para manter o funcionamento corporal em nível adequado. Para serem comi-
dos, ou comestíveis, os alimentos precisam ser elegíveis, preferidos, seleciona-
dos e preparados ou processados pela culinária, e tudo isso é matéria cultural.
Canesqui e Garcia (2005) relatam em seu trabalho que as escolhas alimen-
tares são impressas no homem desde muito cedo, ainda na infância1, pelas
sensações táteis, gustativas e olfativas sobre o que se come, tornando-se pouco
permeáveis à completa homogeneização imposta pela produção e pela distri-
buição massificadas.
Claude Fischler é um famoso antropólogo cujo principal foco de estudo é a
alimentação. Para ele, o homem nutre-se também de imaginário e de significa-
dos, partilhando representações coletivas. Ele afirma que, se é possível avaliar o
valor nutritivo de um alimento como combustível que libera energia e sustenta
o corpo, então o ato alimentar também implica em um valor simbólico, o que
deixa a questão mais complexa, pois requer um outro tipo de abordagem (Fis-
chler, 2001), além da abordagem biológica.
De acordo com Maciel (2001), o gosto, como uma percepção, relaciona-se a
uma base biológica (conjunto olfativo-gustativo), mas também se relaciona a
uma cultura. Todas as pessoas já nascem em uma dada cultura que já estabele-
ceu uma hierarquia alimentar, com critérios e parâmetros alimentares confor-
me, entre outros fatores, o que é chamado “gosto”, onde a sensação gustativa
traz uma “dupla conotação – informação e emoção – inscrita num dado contex-
to sócio cultural”.
Ou seja, a alimentação envolve emoção, trabalha com a memória e com sen-
timentos. As expressões “comida da mãe” ou “comida caseira” exemplificam
bem esta ideia, pois remetem à infância, aconchego, segurança, ausência de
sofisticação ou de exotismo, lembram algo que é familiar, próximo. A expressão
“toque da mãe” é outro bom exemplo, se referindo tanto ao que é feito em si,
1  Processo de Socialização: O ser humano não se torna espontaneamente um ser social com competências sociais
efetivas. Mesmo que ele disponha do “equipamento” cognitivo necessário para que se torne um ser social, é preciso
que estas capacidades sejam ativadas, desenvolvidas e estruturadas para que se transformem em competências
sociais efetivas. Há a necessidade das novas gerações interiorizarem as disposições que as humanizam, tornando as
pessoas indivíduos sociais, capazes de fazer parte integrante de grupos sociais. A socialização trata-se justamente
deste processo, o qual se desenrola durante a infância e adolescência por meio das práticas e das experiências
vividas. Tal processo integra a influência de todos os elementos presentes no meio e exige a participação ativa da
criança (Belloni, 2007). Há referências de que os hábitos alimentares tenham sua constituição e formação pela
via do processo de socialização nos grupos primários, principalmente na família, complementada pelos grupos
secundários, como a escola (Canesqui e Garcia, 2005).

14 • capítulo 1
como à forma pela qual é feito, o que marca a comida com lembranças pessoais
(Maciel, 2001).
Fischler (1990) aborda também um outro olhar sobre os aspectos simbóli-
cos da alimentação, ele fala sobre o paradoxo em que vive o onívoro, que resulta
na sua ansiedade permanente: a necessidade da diversidade alimentar (neces-
sidade de variedade, inovação, exploração e mudança nos hábitos alimentares
para sobreviver), que convive com a necessidade de conservação destes mes-
mos hábitos alimentares (sendo cada alimento desconhecido visto como po-
tencialmente perigoso). Neste sentido, Paul Rozin (1976) vê o próprio sistema
culinário como um produto cultural resultante deste paradoxo do onívoro, que,
ao trazer um conjunto de sabores peculiares à cozinha de uma dada região, pro-
picia ao mesmo tempo familiaridade e diversidade de alimentos.
À procura do significado da alimentação na história do homem, a autora
Catherine Perlés (1979) propõe uma distinção entre o ato alimentar e o ato culi-
nário. Segundo ela, no ato alimentar, o homem não se distingue das outras es-
pécies animais em relação à nutrição, pois se alimenta para sanar sua fome;
enquanto o ato culinário é próprio à espécie humana, pois o homem é o único
a saber cozinhar e a combinar ingredientes.
Catherine Perlés (1979) deixa clara essa ideia em suas palavras quando
afirma que uma salada de dente-de-leão, por exemplo, colhida, limpa, lavada,
temperada, está muito mais próxima do conceito de “refeição” do que as fo-
lhas de dente-de-leão consumidas pelos herbívoros. Para ela, o encadeamen-
to dos atos alimentares de aquisição, transformação e consumo do alimento
é um processo ao mesmo tempo partilhado com todos os animais e também
especificamente humano. Esse encadeamento de atos tem interessado tanto
os pesquisadores em Antropologia e quanto os estudiosos em Alimentação há
muito tempo, um bom exemplo de objeto de estudo nesse sentido é o caso dos
macacos da ilha japonesa de Koshima.

Caso dos macacos da ilha japonesa de Koshima: um grupo de macacos desta ilha
vivenciou um processo relacionado a seu comportamento alimentar, que teve início
quando uma macaca chamada Imo passou a lavar a batata-doce antes de comê-la,
tirando-lhe a lama. Aos poucos, outras fêmeas componentes do grupo a imitaram e o
comportamento generalizou-se.

capítulo 1 • 15
Alguns anos depois, observou-se que as fêmeas passaram, através do exemplo, a
transmitir este comportamento a seus filhotes. Ainda mais, algumas passaram a la-
vá-las com água salgada, o que fez com que o grupo abandonasse a região em que
viviam mudando-se para a beira do mar. Assim, com o tempo, estas mudanças teriam
ocasionado que o grupo apresentasse modificações não apenas no seu consumo de
alimentos mas sua organização social (Fischler, 1979).

Os pesquisadores Farb e Armelagos (1985) lembram que “os seres humanos


são capazes de comer mais ou menos tudo o que não os consegue comer antes”.
Ou seja, sendo onívoro, o homem come de tudo: de formigas a baleias, de ali-
mentos vivos a apodrecidos. Isso mesmo: o homem ingere alimentos vivos e ali-
mentos apodrecidos! Pode-se pensar que comer algo “vivo ou podre” seja algo
inadmissível, existente apenas em lugares distantes, “exóticos” e/ou em socie-
dades ditas “primitivas ”2. Porém, é bom lembrar que as ostras são comidas
vivas (com limão, para o ácido dissolvê-las) assim como alguns queijos muito
apreciados, como o gorgonzola e o roquefort, são consumidos já embolorados.
Entretanto, apesar do homem “comer de tudo”, ele não “come tudo”. Há
uma escolha, uma seleção do que é considerado “comida” e, dentro desta gran-
de classificação, são delimitadas as comidas permitidas e as proibidas e tam-
bém em quais situações as “regras” se aplicam.
Para Fischler (2001), a variedade de escolhas alimentares humanas é prove-
niente, em grande parte, da variedade de sistemas culturais. Segundo ele, isto sig-
nifica que se o homem não consome tudo o que é biologicamente ingerível, é por
que nem tudo o que é biologicamente ingerível é culturalmente comestível. Assim,
o que é “comida” em uma cultura, pode não o ser em outra. Alguns exemplos são
muito conhecidos: o cachorro não é comida para populações como a do Brasil,
ou seja, não é considerado “comestível”. Porém, entre alguns grupos orientais, é
considerado uma iguaria fina. Da mesma forma, os caracóis são consumidos sem
problemas na França e as formigas, em certas tribos amazônicas. E, se o haggis
escocês3 pode ser repugnante para alguns, pode-se lembrar a “buchada de bode”,
o “rabo de jacaré” e os “ovos de touro”, consumidos no interior de diversas regiões
do Brasil.
O corpo humano é muito sábio. Muitas vezes o alimento “exótico” e “estra-
nho” é também o possivelmente (ou potencialmente) perigoso. Atração, perigo,
2  O termo “sociedades primitivas”, aqui, refere-se aos primeiros grupos sociais humanos.
3  Haggis escocês trata-se de um prato onde são cozidos, dentro de um estômago de carneiro, pulmões de vaca,
seus intestinos, pâncreas, fígado e coração, com cebolas, gordura, rim de boi e aveia cozida (Farb e Armelagos, 1985).

16 • capítulo 1
curiosidade, apelo à novidade, repugnância, aversão, medo: uma série de fato-
res estão presentes também no imaginário relacionado ao ato alimentar. Na
lista de pratos considerados “estranhos” pela sociedade está o fugu, um peixe
extremamente venenoso, cuja toxicidade é fatal. No entanto, no Japão, é uma
iguaria das mais raras e valorizadas, cuja preparação compreende uma técnica
toda especial para a retirada deste veneno. Quem o ingere está sob uma ameaça
mortal, à própria sobrevivência (Maciel, 2001).
O exemplo do peixe fugu, citado no parágrafo anterior, é um exemplo ex-
tremo de situação de perigo relacionado à alimentação, sendo relativamente
distante da realidade dos povos que vivem fora do Japão. Porém, existem outras
situações que exigem cuidados, como a colheita de cogumelos nos bosques eu-
ropeus (o que exige conhecimento das espécies corretas) ou a mandioca brava
consumida no Brasil (que exige uma técnica para extrair o veneno). Estes são
exemplos mais próximos de periculosidade.
Abaixo pode-se observar uma tabela, elaborada com base no estudo de
Fischler (2001), que contém exemplos de animais considerados comestíveis ou
não comestíveis, de acordo com o grupo populacional de referência.

COMESTÍVEL NÃO COMESTÍVEL

Europa do Oeste, América do


Insetos América Latina, Ásia, África
Norte

Cachorro Coréia, China, Oceania Europa, América do Norte

Cavalo França, Bélgica, Japão Grã-Bretanha, América do Norte

Coelho França, Itália Grã-Bretanha, América do Norte

Rãs França, Ásia Europa, América do Norte

Tabela 1.1 – Classificação de certas espécies animais em comestíveis ou não comestíveis


segundo os grupos populacionais de referência. Adaptado de Fischler (2001).

capítulo 1 • 17
Segundo Maciel (2001), a escolha do que é considerado “alimento” e a es-
colha de como, quando e por que comer tal produto é relacionada com uma
classificação estabelecida culturalmente. A cultura indica o que é e o que não
é comida, estabelecendo prescrições (o que deve ser ingerido e quando deve
ser ingerido), proibições (como os tabus - a serem abordados na sessão seguin-
te deste capítulo) e estabelece distinções entre o que é considerado “bom” e
“ruim”, “forte” e “fraco”, etc., conforme classificações e hierarquias cultural-
mente definidas. Em seu estudo sobre cultura e alimentação, esse autor aponta
ainda que não se escolhe apenas o que se come, mas também:

•  Como se come (vivo, cru, assado, cozido, apodrecido, etc.);


•  Qual a técnica utilizada (cozido, assado, etc.);
•  Quais as técnicas de preservação do alimento (defumado, salgado,
congelado);
•  Quando se come.

E, de acordo com esse autor, isso se aplica tanto na alimentação do cotidia-


no como na alimentação que marca momentos especiais. Ou seja, cada cultura
define o que é considerado adequado para cada uma das refeições, assim como
quantas e quais são estas refeições e como se distribuem ao longo do dia, pres-
crevendo o que, em determinada situação, pode ou não ser consumido. Outro
aspecto de fundamental importância apontado por esse pesquisador relacio-
na-se a com quem se come, implicando em divisões por sexo, família, idade,
status, etc. Segundo ele, o com quem envolve partilha e comensalidade, o que
transforma o ato alimentar em um acontecimento social. No capítulo 3 deste
livro haverá uma sessão específica sobre este aspecto, mostrando o papel dos
determinantes sociais nas escolhas alimentares.
A comida pode também marcar um território, um lugar, servindo como
marcador de identidade ligado à uma rede de significados. Isso porque cada
região possui hábitos alimentares próprios e também pratos emblemáticos
(Maciel e Menasche, 2003).
Os pesquisadores Maciel e Menasche (2003) afirmam que alguns pratos
regionais são famosos em todo o Brasil, por exemplo, porém, outros são qua-
se desconhecidos pelas demais regiões, muitas vezes pelo simples fato de os
ingredientes necessários serem exclusivos do lugar de origem e ainda por ra-
zões de ordem cultural, que determinam certos hábitos alimentares. Pode-se,

18 • capítulo 1
assim, falar em “cozinhas” de um ponto de vista “territorial”, associadas a uma
nação, território ou região, tal como a “cozinha chinesa”, a “cozinha baiana” ou
a “cozinha mediterrânea”, indicando locais de ocorrência de sistemas alimen-
tares delimitados.
Conforme Maciel (2001), a cozinha permite que cada país, região ou grupo
assinale sua distinção através do que come. O prazer da comida, as inovações,
transformações, experimentos, que cercam a elaboração do alimento e a trans-
formam numa “arte” podem ser percebidos nos mais diversos povos. Mas, se
todas as culturas atribuem significados ao comer, nem todas dão à culinária,
a mesma importância. A chamada “arte culinária”, elevando a culinária a um
nível superior é, por si só, um emblema de certas cozinhas. De fato, algumas
dessas, tais como a francesa, a italiana, a chinesa e a japonesa são classificadas
como as mais afamadas e conhecidas, em oposição a outras tais como a ingle-
sa, a alemã e a escandinava, desprestigiadas e mesmo alvo de anedotas.
De acordo com dados apresentados pela Embaixada do Japão no Brasil
(2012), percebe-se que as cozinhas orientais trazem um grau de ritualização4
muito grande. A cerimônia do chá, o chanoyu – envolve vestes, louças, utensí-
lios e procedimentos especiais, particularmente lentos, criando um ritual que
leva à calma e à paz.

O termo chanoyu refere-se à cerimônia do chá japonesa, que se caracteriza por servir
e beber o "matcha", um chá verde pulverizado. Seu ritual consiste em: uma primeira
sessão, na qual uma refeição rápida é servida; uma breve pausa; a parte principal - onde
é servido o chá de textura espessa; e a ingestão do chá de textura fina. Há muitas ma-
neiras de se realizar esta cerimônia, todavia suas semelhanças básicas são:

•  Sukiya (casa de chá): É uma pequena casa, especialmente construída para o cha-
noyu; consiste de uma sala de chá, uma sala de preparo, uma sala de espera e um
caminho ajardinado que leva à sua entrada.

4  O termo “ritual” trata-se de um conjunto de práticas consagradas por tradições, costumes ou normas, que devem
ser observadas de forma invariável em determinadas cerimônias; pode dizer respeito também à uma cerimônia
através da qual se atribuem virtudes ou poderes inerentes à maneira de agir, aos gestos, às fórmulas e aos símbolos
usados, os quais são suscetíveis de produzirem determinados efeitos ou resultados; pode significar ainda um
processo continuado de atividades organizadas, cuja prática está relacionada a ritos, que envolvem cultos, doutrinas
e seitas, encontrados não só na vida religiosa, mas em todas as esferas culturais. Já no sentido figurado, o termo
“ritual” refere-se à uma rotina, aquilo que habitualmente se pratica (Guimarrães e Cabral, 2015).

capítulo 1 • 19
•  Utensílios: Cha-wan (tigela de chá), cha-ire (recipiente do chá), cha-sen (vassouri-
nha de chá feito de bambu) e o cha-shaku (concha de chá feita de bambu).
•  Trajes e acessórios: Roupas de cores discretas são preferidas. Em ocasiões estri-
tamente formais, os homens vestem quimono de seda, de cor firme, com três ou cinco
brasões de família nele estampados e tabi (espécie de sapatilha japonesa) ou meias
tradicionais japonesas. As mulheres trajam conservador quimono e também tabi. Os
convidados devem trazer um pequeno leque dobrável e uma almofada (Embaixada do
Japão no Brasil, 2012).

O fazer do sushi é outro exemplo de prato que envolve um misto de técnica/


ritual: há regras que indicam com que mão pegar o arroz para modelar, quan-
to à rapidez do corte e também para outros gestos que fazem da produção do
prato algo especial. Apesar disso, dentre todas, a francesa é considerada a me-
lhor cozinha. A França é o ponto de referência em culinária, terra de famosos
cozinheiros (os chefs) e de novas modas alimentares. Trata-se de uma identi-
dade construída numa determinada primazia, reconhecida dentro e fora de
suas fronteiras. Este processo de criar uma “arte” transforma o ato alimentar
em profundidade, distanciando-o cada vez mais da simples manutenção do
organismo. Mas a questão de delimitar espacialmente uma cozinha não é tão
simples como pode parecer a uma primeira vista (Maciel, 2001).
No caso do Brasil, de acordo com Recine e Radaelli (2001), a cozinha tem por
base a cozinha portuguesa, com outras duas grandes influências: a indígena e a
africana, sendo que houve inúmeras variações, desde os ingredientes a nomes
e combinações. Aqui, a alimentação sempre esteve bastante relacionada à his-
tória dos diferentes povos. Desse modo, para se caracterizar e compreender as
origens dos hábitos alimentares brasileiros, é preciso recordar o passado, os
costumes indígenas, a colonização, os efeitos da escravidão e a evolução da so-
ciedade como um todo até se chegar ao período atual (Recine e Radaelli, 2001).
No processo de delimitar espacialmente uma cozinha, não importam ape-
nas as fronteiras geográficas (ou seja, os “suportes físicos”), são importantes
também os significados que são dados a certos pratos que vão caracterizar de-
terminada região/povo. A constituição de uma cozinha típica vai, dessa forma,
além de uma lista de pratos e implica também no sentido que estas práticas
terão com relação ao seu pertencimento à essa determinada região/povo. Nem
sempre o prato considerado “típico”, aquele que é selecionado e escolhido para

20 • capítulo 1
ser o emblema alimentar da região é aquele de uso mais cotidiano. Ele pode,
sim, representar o modo pelo qual as pessoas querem ser vistas e reconhecidas.
Por exemplo, no Brasil, é o conjunto feijão-com-arroz que representa a alimen-
tação cotidiana, em todo o território nacional. No entanto, o “prato típico na-
cional”, aquele que é servido aos estrangeiros, apresentado como um símbolo
da cozinha nacional, acima dos pratos típicos regionais, o considerado “unifi-
cador”, é a feijoada (Maciel, 2001).
Em 1999, a pesquisadora Maciel apontou que o forte valor simbólico de
certos pratos típicos regionais relacionam-se a identidades regionais, como o
churrasco gaúcho, cercado do ritual da comensalidade. Esta autora detalhou as
maneiras de como ele é preparado, servido e compartilhado socialmente, pela
mobilização de rede de relações sociais de troca, partilha, união e de estabele-
cimento de laços e relações sociais.
Outras identidades se expressam em vários pratos típicos, como a comida
mineira, com o tutu de feijão, a leitoa pururuca, o torresmo, entre outros; o pato
ao tucupi, dos paraenses; ou ainda o arroz com pequi dos goianos, diversifican-
do-se os regionalismos alimentares no Brasil, sem que esses pratos, tão bem
definidos geograficamente, façam parte da realidade cotidiana de seus habi-
tantes, sendo alguns deles famosos em todo o país, como lembrou aquela au-
tora (Maciel, 1999).
Roberto DaMatta (2003), referindo-se recentemente às unanimidades na-
cionais, lembrou-se também da farinha, pedida quando se está diante de algu-
ma “comida molhada”, que para muitos comedores deve ficar “dura”, promo-
vendo a mistura dos sabores, por todos apreciada. Ele acrescenta o cafezinho,
como exemplar do gesto de dádiva de abertura e de hospitalidade de rico e de
pobre, marcando a passagem da rua para a casa. Mas, para o autor, o “arroz com
feijão” é um prato-síntese do estilo brasileiro de comer, expressando a culiná-
ria relacional, capaz de misturar e combinar o negro com o branco (DaMatta,
1987). No capítulo 3 deste livro, haverá uma sessão específica sobre esta combi-
nação de alimentos tipicamente brasileira, o famoso “arroz com feijão”, enfati-
zando seus aspectos nutricionais e socioeconômico-culturais.
Há que se considerar também os aspectos simbólicos da alimentação re-
lacionados às diferenças alimentares existentes dentro de uma sociedade, no
que diz respeito à estrutura social, onde o consumo de determinados alimen-
tos está relacionado à renda da população. No Brasil, caviar não é, nem para
as elites econômicas, um prato cotidiano, mas por ser um prato raro e caro, é

capítulo 1 • 21
associado à sofisticação e ao luxo e assim a dupla caviar- champanhe torna-se
uma marca de status pelo valor simbólico atribuído a ela. Indo além, pode-se
dizer que a própria pobreza ou miséria também está marcada, tanto pelo não-
comer (pela falta de comida) como por aquilo que se come. Nas grandes secas
do nordeste brasileiro, por exemplo, a situação de extrema miséria é marcada
pelo consumo de um cacto e de um pequeno lagarto, o calango. O calango não é
algo interditado pela cultura brasileira como alimento, mas é algo classificado
como “quase repugnante”, causando aversão. Seu consumo simboliza estar na
penúria extrema, sem alternativas (Maciel, 2001).
Enfim, a partir do exposto até aqui percebe-se que as questões relaciona-
das direta ou indiretamente à alimentação humana são tributárias da cultura,
trazem indagações instigantes, fazendo com que este seja um campo de inves-
tigação antropológica e nutricional amplo e frutífero. Nas próximas sessões
pretende-se responder a algumas dessas questões, bem como levantar outras
para reflexão dos leitores.

1.2  Tabus e Crenças


Segundo os autores Colding e Folke (1997), “tabus” representam regras sociais
não escritas que regulam o comportamento humano, podendo ainda serem
consideradas instituições locais que limitam e definem o uso de recursos em
ecossistemas por comunidades humanas (Colding e Folke, 1997). Com relação
à alimentação, as aversões (restrições) alimentares são geralmente de origem
social ou cultural, e quando tais restrições são compartilhadas entre os mem-
bros de um grupo, elas podem se constituir em tabus ditos “alimentares”, os
quais atuam como marcadores sociais que mostram diferenças entre indiví-
duos e grupos, influenciam comportamentos e facilitam o funcionamento dos
sistemas sociais (MacBeth e Lawry, 1997; Garine, 1995).
Com relação à influência cultural na formação dos tabus alimentares, con-
siderando o exposto na sessão anterior, certos tipos de alimentos serão sempre
considerados tabus simplesmente por estarem fora do que é aceito como gêne-
ro alimentício, não sendo necessariamente repulsivos, no que diz respeito ao
sabor, ao aroma, à textura ou à aparência. Aquilo que os indivíduos acreditam
ser bom para a saúde também contribui para os tabus: por exemplo, há quem
evite consumir manga com leite por acreditar que esta mistura faz mal à saúde.

22 • capítulo 1
E algumas religiões apresentam determinadas imposições/recomendações
que interferem no hábito alimentar de seus seguidores, o que será abordado
mais detalhadamente no capítulo 3. O judaísmo, por exemplo, prescreve um
conjunto estrito de normas, chamadas cashrut, declarando o que pode e não
pode ser ingerido; na prática islâmica, as leis do halal ditam os tipos de alimen-
tos que não podem ser comidos; e hindus e budistas frequentemente seguem
as recomendações quanto à prática do vegetarianismo e evitam comer carne.
Nesta sessão será aprofundado um pouco mais o conhecimento acerca da
influência de tabus e crenças no hábito alimentar humano. Antes de iniciar
esse assunto, entretanto, é importante frisar que os padrões e hábitos alimen-
tares de uma população refletem a adaptação dos indivíduos às realidades so-
cioeconômicas, geográficas e culturais dos diferentes agrupamentos humanos
(Del Ciampo et al, 2008). Além disso, é de crucial relevância que o profissional
de saúde saiba que as restrições ou tabus alimentares, os quais são geralmente
provenientes de superstições tornadas proibições impostas pelos costumes so-
ciais ou medidas protetoras, podem representar um importante fator influen-
te no estado nutricional e de saúde dos indivíduos, principalmente daqueles
de baixo poder aquisitivo, pertencentes aos grupos mais vulneráveis - como
as crianças, as gestantes, as nutrizes, os idosos e aqueles com acesso limita-
do à educação formal (Ribeiro e Morais, 1998; Câmara, 2004). Portanto, este
tema pode vir a ser objeto de atenção do profissional de saúde em sua atuação
prática.
Conforme já apontado neste livro, a escolha do que é considerado “alimen-
to” e a escolha de como, quando e por que este deve ser consumido são rela-
cionadas a uma classificação que é estabelecida pela cultura. A cultura indica
o que é e o que não é comida, quais são as prescrições (isto é, o que deve ser
ingerido e quando deve ser ingerido), estabelece distinções entre o que é consi-
derado “bom” e “ruim”, “forte” e “fraco”, etc., e também estipula as “proibições
alimentares” (ou seja, os “tabus”), de acordo com classificações e hierarquias
culturalmente definidas (Maciel, 2001). Vários autores, como MacBeth e Lawry
(1997), afirmam que as aversões (restrições) e as preferências alimentares são
geralmente de origem social ou cultural.
De acordo com Garine (1995), quando as restrições são partilhadas en-
tre os membros de um grupo, elas podem constituir tabus alimentares, e es-
tes atuarem como marcadores sociais para mostrar diferenças entre indiví-
duos e grupos, para influenciar atitudes e comportamentos e para facilitar o

capítulo 1 • 23
funcionamento dos sistemas sociais. Já no que diz respeito ao tempo que os ta-
bus alimentares ficam ativos na vida das pessoas, Colding e Folke (2000) apon-
tam que os mesmos podem ser permanentes, estendendo-se por toda vida, ou
temporários (segmentares), sendo restritos a certos períodos de vida. Segundo
Bynum (1997), os tabus temporários acompanham períodos importantes dos
ciclos de vida como gravidez, menstruação, puerpério e puberdade, bem como
podem ser permanentes e associados a aspectos sociais e religiosos.
O pesquisador Igor de Garine lembrando Margareth Mead, coloca também
que a seleção ou a escolha das possibilidades alimentares feita pelos homens
está ligada ao meio e aos recursos técnicos que possui, mas que estas potencia-
lidades alimentares são deixadas de lado ou são utilizadas em virtude de outras
dimensões da vida social, como no caso do tabu à ingestão de carne de vaca na
Índia (relacionado à religião) ou no de populações de pastores que costumam
ingerir leite e carne frugalmente, mesmo que os tenham em abundância, pois o
rebanho destina-se, sobretudo, ao acesso ao casamento (De Garine, 1990).
É importante destacar entretanto que mais que alimentar-se conforme o
meio a que pertence, o homem se alimenta de acordo com a sociedade a que
pertence e, ainda mais precisamente, ao grupo a que pertence, estabelecendo
distinções e marcando fronteiras precisas. Em outro trabalho, o autor Igor de
Garine expõe o caso de dois grupos de bosquímanos que vivem no Deserto do
Kalahari, os Kung e os Gwi 5. Estes dispõem de cultura e recursos similares, po-
rém, não efetuam escolhas de alimentos semelhantes, e mantém, cada um, ca-
racterísticas próprias neste setor (De Garine, 1990).
Tradicionalmente a ciência da antropologia se interessa pelas crenças6 e pe-
los costumes alimentares dos povos tradicionais, pelos aspectos religiosos em
torno dos tabus, pelo totemismo - relação dos homens com as espécies vegetais
e animais (Silva, 1999), pelas preferências e repulsas alimentares, pelos rituais
sagrados ou profanos que acompanham a comensalidade, pelo simbolismo
da comida, pelas classificações alimentares, entre outros. E recentemente a
5  Bosquímanos são grupos humanos que sobrevivem basicamente da caça e da pesca, por isso podem ser
chamados de “caçadores-coletores”. Os Kung e os Gwi são bosquímanos que vivem próximos à fronteira de
Botsuwana e Namíbia, ao norte do deserto do Kalahari (África do Sul). Os Kung e os Gwi são povos semelhantes,
mas que apresentam pequenas variações no seu modo de vida, por exemplo: durante a estação úmida, os Kung
vivem em acampamentos temporários e mudam para novos abrigos em poucas semanas, esta mobilidade ocorre
numa tentativa de diminuir o percurso diário para conseguir alimentos (pois quanto mais tempo o grupo permanecer
estável, maiores serão as distâncias a serem percorridas). Já os Gwi vivem em local mais árido que os Kung e
costumam viver em pequenos grupos durante cerca de 10 meses ao ano, quando consomem apenas suco de melão
e tubérculos (Gosso, 2004).
6  “Crença” pode ser definida como sendo a ação de crer na verdade ou na possibilidade de uma coisa; uma
convicção íntima; uma opinião que se adota com fé e convicção; ou, ainda, uma fé religiosa (Dicionário Online de
Português, 2015).

24 • capítulo 1
antropologia vem se interessando também pelas cozinhas e pela culinária, as
quais trazem a marca da cultura, afinal, histórias, tradições, tecnologias, proce-
dimentos e ingredientes submersos em sistemas socioeconômicos, ecológicos
e culturais complexos são guardados por cozinhas e pelas artes culinárias. Suas
marcas territoriais, regionais ou de classe lhes conferem especificidade, além
de alimentarem identidades sociais ou nacionais (Canesqui e Garcia, 2005).

O termo “sagrado” é atribuído à experiência ou a algo que traz em si uma força ou


significado que foge ao mundo da razão; ser “sagrado”, geralmente, evoca a um “deus”.
Na história bíblica da salvação nota-se o grande número de sinais/símbolos sagrados
que o povo foi adquirindo, como os sacrifícios prestados a Deus no Templo e, no Novo
Testamento, a própria cruz de Cristo. “Sagrado” trata-se daquilo que se reveste de po-
tência, força e poder e quebra a normalidade da vida, rompe os esquemas habituais, por
isso o sagrado quer dizer separado e algo que não pode ser apreendido ou aprisionado.
O termo “profano”, por sua vez, se relaciona aquilo que está fora do sagrado, fora do
templo, do espaço sacro ou diante dele, constituindo-se no que é normal, no que não
causa medo, no que pode ser explicado. No âmbito religioso, o sagrado e o profano
geralmente aparecem como duas realidades separadas, entretanto, na prática, as reli-
giões sempre buscaram conduzir o profano ao sagrado e “levar o sagrado ao nível mais
baixo, ou seja, ao profano, criando uma homologia entre os dois planos”. Já sob a ótica
da sociologia da religião, o sagrado é um organizador do caos, da totalidade do mundo;
é o que dá sentido ao cosmo e legitima situações. Neste sentido, o sagrado não é o que
se opõe ao profano, mas ao caos (Silva, 2013; Terrin, 2004; Filoramo e Prandi, 2003).

Um dos mais antigos debates da antropologia ecológica7 da literatura norte


-americana diz respeito à interpretação das preferências e restrições alimenta-
res. Este tema foi dividido em duas grandes abordagens, consideradas integra-
tivas e complementares (Begossi, 1997):

•  Por um lado, a abordagem ecológico-funcionalista (materialista) baseia-


se em princípios biológicos, ecológicos e econômicos, buscando compreender
o valor adaptativo e funcional das escolhas alimentares ao ambiente físico e

7  Antropologia ecológica trata-se do ramo da antropologia que procura conhecer a diversidade e as similaridades
das experiências humanas em relação a seus ambientes. Os estudos antropológicos nesta área partem da descrição
das relações materiais das sociedades em seus ambientes, sem negligenciar o papel que têm as práticas simbólicas
(Foladori e Taks, 2004).

capítulo 1 • 25
social das populações humanas (Gross, 1975; Harris 1974, 1977, 1985; Harris e
Ross, 1987).
•  Por outro lado, a abordagem idealista (simbólica) considera que as restri-
ções alimentares são ligadas a aspectos da estrutura cognitiva e social, orien-
tadas segundo critérios simbólicos e ideológicos (Douglas, 1966; Lévi-Strauss,
1969, 1989; Soler, 1996).

A autora Andréa Leme da Silva desenvolveu, em 2007, um estudo acerca dos


tabus alimentares na região amazônica brasileira, onde mostra que os tabus
alimentares tendem a se associar a comunidades humanas com elevada dis-
ponibilidade de recursos proteicos (Silva, 2007). De acordo com Ross (1978),
os tabus representam um luxo na medida em que ocorrem entre populações
humanas com elevada disponibilidade de recursos. Sob outro ponto de vista,
estudiosos como MacBeth e Lawry (1997) e Mead, (1997) afirmam que as esco-
lhas alimentares podem sofrer mudanças conforme a necessidade, derivadas
de fatores como condições ecológicas, desigualdades socioeconômicas, varia-
ções sazonais ou migrações.
Ou seja, as escolhas e aversões alimentares são resultado da interação entre
diversos fatores, cujas motivações podem ser influenciadas por preferências in-
dividuais, condições socioeconômicas, sazonalidade dos ciclos ecológicos dos
recursos naturais e dinâmicas político-econômicas dos mercados locais e re-
gionais (por exemplo, urbanização, acesso aos mercados consumidores, entre
outros) (Murrieta, 2001). Segundo Silva (2007), o próprio conceito de preferên-
cia alimentar pode mudar em diferentes sociedades. Um exemplo disso é que
a familiaridade e a saciedade são aspectos valorizados em sociedades tradicio-
nais, enquanto a ideia de monotonia conduz à rejeição nas sociedades mais
prósperas e industrializadas, onde os indivíduos requerem status e novidade
(McBeth e Lawry, 1997).
No trabalho que realizou sobre a população amazônica do Brasil, Silva
(2007) constatou que os tabus alimentares proíbem a ingestão de mamíferos
terrestres de médio e grande porte (por exemplo, macaco, anta, paca, veado) e
geralmente permitem os animais de pequeno porte (como aves e cotia). E tem
sido observado que vários tabus alimentares são associados à proteção de es-
pécies endêmicas (espécies típicas de uma determinada região, que não são

26 • capítulo 1
encontradas em outros ambientes), predadores de topo8 e espécies-chave, o
que se relaciona ao manejo e à conservação da biodiversidade das florestas tro-
picais (Colding e Folke 2000; Gadgil et al, 1998).
Essa associação tem sido estudada há muito tempo. Em 1975 o pesquisa-
dor Gross já sugeria que diversos tabus alimentares consistiam num padrão
adaptativo das populações nativas ao controle da caça, sobretudo de animais
de grande porte (Gross, 1975). Dessa maneira, a proteção de espécies terrestres
de grande porte pode se relacionar com as teorias de controle econômico e eco-
lógico dos recursos naturais, sobretudo considerando a baixa densidade desses
animais em algumas regiões (Ross, 1978). Ao mesmo tempo, tem sido demons-
trado também que justamente as espécies de grande porte são as mais caçadas
por diversos grupos humanos (Robinson e Bennet, 2000). Diante disso, Alvard
(1998) propõe que a baixa densidade populacional humana pode ser um fator a
operar como um mecanismo responsável pela manutenção dos estoques natu-
rais de presas nas sociedades de caçadores-coletores9.
As crenças dos indivíduos têm sido apontadas também como um fator no
combate à exploração excessiva de recursos naturais, como caça, pesca ou cole-
ta de produtos florestais, e consequentemente apresentam relação com o con-
sumo alimentar das pessoas. As narrativas míticas sobre as entidades sobrena-
turais protetoras dos animais (“mães de peixe” e “cobra-grande”, por exemplo),
relatadas por populações ribeirinhas, sugerem que essas entidades represen-
tam agentes punitivos que controlam o uso dos recursos naturais por meio de
feitiçaria ou da ingestão de carne contaminada - tabus alimentares. Com rela-
ção à carne contaminada, as propriedades nocivas dos alimentos podem ser
consubstanciadas no corpo humano: as manchas corporais de determinados
peixes e animais de caça, transmitidas por meio do aleitamento materno, ex-
põem os recém-nascidos aos riscos da “reima” ou, na mitologia indígena, ao
ataque de seres sobrenaturais (Silva, 2007).
O termo reima (do grego rheum = fluido viscoso) é utilizado para classificar o
grau de segurança dos animais selvagens e domésticos para o consumo (Moran,
1974; Smith, 1979). A reima é caracterizada por um sistema classificatório de

8  “Predadores de topo” são os animais que compõem o topo da cadeia alimentar, como felinos, lobos, baleias,
tubarões e animais grandes. Estudos mostram que esses animais são essenciais para o equilíbrio dos ecossistemas
(Massada, 2011).
9  O termo “caçadores-coletores” refere-se a grupos humanos que sobrevivem basicamente da caça e da pesca.
Acredita-se que em função das pressões ambientais associadas a este modo de vida, foram adquiridas muitas
das características humanas e que os padrões humanos de afeto, reação ao estresse, agressão, vida em grupo e
estrutura familiar tenham evoluído num contexto de caça e coleta (Gosso, 2004).

capítulo 1 • 27
alimentos perigosos (reimosos) e não perigosos (não reimosos), sendo aplicado
às pessoas em estados físicos e sociais de liminaridade ou estados de repre-
sentação ritual e simbólica de transição ou passagem10, como enfermidades,
menstruação e pós-parto (Murrieta, 1998). Nas regiões Nordeste, Sudeste e
Sul do Brasil, a expressão reimoso costuma ser substituída por carregado, que
pressupõe uma série de supostos atributos como carne forte, gordurosa, capaz
de causar inflamações em pessoas com doenças e ferimentos (Begossi, 1992;
Rodrigues, 2001).
Pelo trabalho de Silva em 2007, nota-se que aspectos como dieta, compor-
tamento e aparência física são fatores importantes para categorizar um animal
como reimoso ou não. Os animais com caracteres híbridos, difíceis de serem
categorizados, como os peixes lisos (sem escamas) e os animais de dieta ge-
neralista (como as piranhas e o porquinho) foram considerados impuros e,
portanto, proibidos. Conforme enfatizado por Douglas (1966), a lógica de clas-
sificação da mente humana tende a categorizar os animais transacionais (híbri-
dos) como potencialmente perigosos.
Ademais, pelos estudos que a literatura traz neste sentido, percebe-se que
muitos tabus alimentares podem estar relacionados a animais de importância
mitológica e simbólica, revelando relações entre o mundo humano e animal.
Segundo a pesquisa de Silva (2007), a transmutação de animais é associada aos
mitos de criação indígenas, o que ficou evidenciado em certos relatos obser-
vados em seu estudo, como a transformação da paca em surucucu, do pajé em
onça, do boto em gente ou da cobra-grande em mulher. A cobra apareceu em
diversos momentos, transformando-se em outros animais (como a paca), sen-
do um agente protetor (protegendo a desova dos peixes) e, ao mesmo tempo,
sendo punitiva àqueles que se comportavam em desacordo com os princípios
ético-morais da natureza (Silva, 2007).
Outro estudo também aborda as classificações alimentares, as proibições e
os tabus associados ao sistema de crenças: a pesquisa de Peirano (1975) entre
pescadores de Icaraí, no Ceará (Brasil), que foi exemplar sobre a influência das
proibições alimentares associadas à categoria reimoso, aplicada a certos peixes
e que compõem as crenças de algumas populações e o próprio sistema classi-
ficatório dos alimentos. Para esta autora, a classificação de peixes reimosos foi
entendida como uma manifestação na qual a série cultural (os seres humanos)
10  O termo “estados de passagem”, aqui, refere-se a períodos de passagem do ciclo
de vida, ou seja, fases ou estágios temporários – como o nascimento, o puerpério, os ritos de iniciação e cerimoniais,
conforme abordado no artigo de Silva (2007).

28 • capítulo 1
relacionava-se com a série natural (seres marinhos) por meio de proibições do
consumo de certos peixes por certas categorias de pessoas.
A forma de análise descrita no parágrafo acima não foi compartilhada por
Maués e Maués (1978, 1980), quando estudaram as representações sobre os ali-
mentos, as proibições alimentares e a classificação dos alimentos entre pes-
cadores. Estes autores admitiram a existência de tabus alimentares ligados ao
comportamento ritual, mas não ao sistema totêmico (relação dos homens com
as espécies vegetais e animais), como quis Peirano.
Para Maués e Maués (1978, 1980), os tabus alimentares aplicavam-se a al-
guns alimentos classificados como “fortes”, “frios”, “quentes” e “reimosos” as-
sociados especificamente a determinadas pessoas impedidas de consumi-los,
entre elas as mulheres menstruadas. Eles sugeriram que os tabus alimentares
não comportavam regras fixas e inflexíveis, ou seja, podiam funcionar como
mecanismos de defesa contra a fome, nos momentos de escassez alimentar,
submetendo-se a manipulações situacionais e às transgressões.
Um outro fator relacionado à formação dos tabus alimentares é a relação entre
a alimentação e a saúde e a doença, conforme abordado por Rodrigues (1978). Este
autor se reportou ao sistema classificatório dos alimentos, que provê as relações de
certas categorias de alimentos com o organismo, tanto por seus efeitos na produ-
ção e no agravo de doenças, quanto na garantia e na manutenção da saúde.
Com base no aprendizado trazido por estudos como os citados acima, a aná-
lise da categoria “comida”, propriamente dita, ganhou relevância, bem como
sua classificação em forte/fraca, leve/forte, pesada/leve, gostosa/sem gosto, de
rico/de pobre, boa/má para a saúde, como componentes da ideologia alimen-
tar, não apenas para elucidar o sistema de pensamento mais amplo, mas tam-
bém como referência aos usos ou à apropriação dos alimentos nas práticas de
consumo (Canesqui e Garcia, 2005). Certos alimentos, como a carne, por exem-
plo, serviam simbolicamente para distinguir a “comida de pobre” da “comida
de rico” e como parâmetro para equacionar pessoas e as respectivas diferenças
de riqueza, poder e prosperidade na sociedade (Canesqui, 1976). As conclusões
das diferentes pesquisas mostraram a importância da comida como veículo
para pensar a identidade do pobre e a própria privação, medindo-a por meio
das defasagens percebidas entre os tipos de alimentos apropriados ou dese-
jados e o montante dos salários recebidos (Canesqui, 1976; Guimarães et al.,
1979).

capítulo 1 • 29
Uma semelhança encontrada entre os segmentos populares estudados pelos
diferentes pesquisadores foi a importância do princípio de “sustância”, associado
aos alimentos considerados “fortes”, “com vitamina” e “ferro”, o que marca as pre-
ferências alimentares pela “comida forte” e pelos medicamentos tônicos, o que,
nas representações, incidem sobre o sangue, garantindo a sua qualidade e a ma-
nutenção de seu estoque. Por outro lado, os alimentos eram considerados “fracos”
quando eram destituídos de sustância, de “vitamina”, o que qualifica uma dieta
empobrecida, que marca a identidade do ser pobre (Canesqui e Garcia, 2005).
Enfim, as crenças relacionadas às adequações do uso dos alimentos aos es-
tados corporais ou às ocasiões e horários de consumo constitui-se numa ques-
tão que deve ser entendida, respeitada e bem orientada pelos profissionais de
saúde. O fato de certos alimentos considerados “pesados” terem seu consu-
mo noturno interditado por interferirem na digestão ou no sono, ou mesmo
as crenças sobre as adequações de certas comidas aos tipos de consumidores,
segundo o gênero e a idade, prescrevendo-se ou não certos alimentos aos tipos
de pessoa e à sua etapa de vida são exemplos de situações com as quais o profis-
sional de saúde pode se deparar em sua atuação diária.
Diante disso, apesar da necessidade de o profissional de saúde saber identi-
ficar procedimentos e hábitos que interferem negativamente na saúde de seus
pacientes, é preciso que este profissional tenha em mente que as crenças dos
indivíduos são sempre válidas e fundamentadas para aqueles que nelas acredi-
tam. Mesmo nos casos em que forem identificadas práticas que prejudicam a
saúde, é importante que o profissional procure não impor sua visão científica
ao paciente descredenciando suas crenças: esta atitude pode ser ineficiente e
não provocar o efeito esperado de promoção /recuperação da saúde, tanto em
relação ao indivíduo no contexto de um consultório, como de forma coletiva,
em relação à um grupo ou uma instituição, por exemplo. O que é realmente
fundamental é que o profissional procure adaptar suas orientações e práticas
às crenças e valores dos indivíduos tanto no âmbito individual como coletivo.

CONEXÃO
Para conhecer um pouco mais sobre o atual hábito alimentar do brasileiro, bem como se
informar sobre as novas regras para uma alimentação saudável, assista à animação disponi-
bilizada no site: http://bit.ly/1y0ruJX. Neste vídeo, o conteúdo publicado no Guia Alimentar
para a População Brasileira é passado de maneira objetiva e direta, e são dados subsídios

30 • capítulo 1
para futuros profissionais de saúde orientarem de maneira correta pessoas com crenças e
tabus alimentares inadequados. Entre no site e confira!

1.3  Os Significados dos Alimentos nas


Práticas de Alimentação

Come-se por necessidade vital e conforme o meio e a sociedade em que se vive,


conforme esta sociedade se organiza e se estrutura, produz e distribui os ali-
mentos. Come-se também conforme a distribuição da riqueza na sociedade, os
grupos e classes a que se pertence, os quais são marcados por diferenças, hie-
rarquias, estilos e modos de comer, atravessados por representações coletivas,
imaginários e crenças (Canesqui e Garcia, 2005). Apesar disso, o profissional
de saúde não pode se esquecer que a comida e o ato de comer são cheios de
significados. Essa afirmação poderá ser constatada por meio da leitura deste
livro, o qual apresenta diversos trabalhos científicos na área de antropologia
e alimentação, e também argumentos importantes de estudiosos no assunto.
A alimentação não pode se reduzir ao nível biológico e unicamente à con-
cepção nutricional biomédica. O alimento possui papel polivalente na vida co-
tidiana das pessoas, das famílias e da sociedade. Além de significar nutriente,
o alimento significa também prazer sensorial, ritual, linguagem simbólico-re-
ligiosa, e veicula significados (Pacheco, 2008). Ou seja, as práticas de alimenta-
ção são ações individuais, construídas e reproduzidas socialmente, portanto,
historicamente produzidas, ecologicamente possíveis, socialmente desejadas
e aprovadas e biologicamente necessárias (Murrieta, 2001).
Sob a perspectiva do autor Luce Giard: “o alimento escolhido, permitido e
preferido é o lugar do empilhamento silencioso de toda uma estratificação de
ordens e contra-ordens que dependem de uma etno-história11, de uma biolo-

11  Inicialmente o termo "etno-história” foi utilizado em 1909, por Wissler, que o empregou para se referir à
utilização de documentos escritos e dados arqueológicos para a reconstrução da história de culturas indígenas,
dessa forma, nas observações de Wissler, o significado do termo “etno-histórico” seria a combinação de dados
etnográficos e dados coletados nas escavações arqueológicas. Posteriormente, a definição desse termo foi ampliada
chegando-se próximo de um consenso em torno da ideia de que a etno-história é um método interdisciplinar de
pesquisa. Pode-se considerar então a etno-história como sendo uma metodologia que se utiliza principalmente de
evidências documentais e tradições orais para estudar as transformações nas culturas das sociedades sem escrita
da América (Cavalcante, 2011; Mota, 2014).

capítulo 1 • 31
gia, de uma climatologia e de uma economia regional, de uma invenção cultu-
ral e de uma experiência pessoal” (Giard, 2005). Dessa maneira, percebe-se que
as práticas de alimentação são ao mesmo tempo um comportamento biológi-
co-nutricional, já que o ser humano necessita de uma alimentação que conte-
nha os nutrientes necessários à manutenção dos seus processos vitais, e, são,
também, um processo adaptativo, empregado pelos seres humanos em função
de suas condições particulares de existência, que variam no tempo e no espa-
ço. Diferente de outras necessidades fisiológicas, como a necessidade de ina-
lar oxigênio ou manter a acidez sanguínea, a necessidade de se alimentar exige
que o homem saia para o mundo e localize o alimento, ou seja, esta última ne-
cessidade exige do ser humano comportamento/atitudes (Rozin, 1998).
E é interessante refletir sobre como mudam os significados dos alimentos
nas práticas de alimentação experimentadas pelo homem ao longo de sua vida:
a trajetória alimentar começa com um alimento, o leite, e se expande para um
número muito grande de preparações, atitudes e rituais relacionados à ali-
mentação, sendo que, os requerimentos nutricionais acabam tornando-se pe-
quenos em relação à variedade de alimentos que podem satisfazê-lo (Pacheco,
2008).
Há vários estudos que mostram que os hábitos alimentares são adquiridos
na infância (Boehmer, 1994; Boog, 1985). A criança, desde o seu nascimento,
recebe os alimentos considerados adequados à sua idade, mesmo que estes ali-
mentos variem de acordo com as diferentes culturas e classes sociais, e cresce
em um ambiente familiar com um comportamento alimentar definido, o qual
se repete dia a dia e ao qual ela se adapta. E, neste processo, o papel que os
outros membros da família exercem, ao elogiarem ou censurarem alguns ali-
mentos e preparações, contribui para a aquisição das práticas alimentares do
indivíduo (Boehmer, 1994).
De acordo com Pacheco (2008), quando a pessoa penetra no contexto esco-
lar, ela sai do convívio basicamente familiar e experimenta outros alimentos
e preparações, tendo oportunidades para alterar seus hábitos alimentares por
meio das influências que recebe do grupo social e dos estímulos presentes no
sistema educacional. Neste momento, a família e a escola ainda são prepon-
derantes na formação do padrão alimentar do sujeito. Já a adolescência é um
período caracterizado por rebeldia e tentativa de ser independente, com isso,
geralmente ocorre modificação das práticas de alimentação mediante experi-
ências vivenciadas fora do âmbito familiar e escolar. Assim, o alimento adquire

32 • capítulo 1
novos significados. No decorrer dos próximos anos de sua vida, o indivíduo terá
novas oportunidades para alterar seus hábitos com relação à comida (mudança
de emprego, situação financeira, situações familiares específicas, disponibili-
dade de tempo para o preparo e ingestão dos alimentos, e também as doenças
que aparecem na velhice) (Boehmer, 1994).
A partir do exposto sobre a influência da idade nos significados que os ali-
mentos adquirem ao longo da vida, vê-se também que alimentar-se nunca se
constituirá apenas em uma atividade puramente biológica, uma vez que ela
tem relação com o passado, com as diferentes técnicas usadas para encontrar,
processar, preparar, servir e consumir os gêneros alimentícios, e esses proces-
sos variam e são condicionados pelos significados que a coletividade lhes atri-
bui (Mintz, 1996).
Quando se olha para os significados que os alimentos têm para o indivíduo
somente considerando os aspectos nutricionais-sanitários dos alimentos e os
processos metabólicos corporais nos níveis fisiológico e patológico, a com-
preensão sobre o papel que a alimentação exerce na satisfação de determina-
das necessidades da sociedade é reduzida (Pacheco, 2008).
Segundo o olhar do autor Valente (1986), a disponibilidade de certos produ-
tos alimentares em condições específicas de clima, solo, chuva; as influências
culturais da colonização; a classe social; e a contínua produção de novos hábi-
tos e práticas pela introdução de alimentos industrializados ou de alimentos
não tradicionalmente usados para o consumo humano são fatores essenciais
na determinação dos hábitos alimentares. Por consequência, pode-se entender
que tais fatores também influenciam os significados que os alimentos adqui-
rem para as pessoas nessas diferentes situações.
Em seu trabalho, Paul Rozin (1998) relata os significados sociais diversos
dados aos alimentos em três diferentes sociedades: a sociedade norte-ameri-
cana, a sociedade hindu e os Hua de Papua Nova Guiné. Ele descreve o papel
que o alimento nessas três sociedades, as quais são bastante diferentes entre si
justamente para demonstrar a grande variabilidade que existe na função social
da comida. De acordo com o que constatou Paul Rozin (1998):

•  Para os americanos, o alimento tem a função de nutrir o indivíduo e


de servir como fonte de prazer. Embora ele seja a base de interações diárias
e reuniões festivas, o alimento é considerado basicamente aquilo que está no
prato. Os alimentos são comprados em embalagens plásticas, preparados por

capítulo 1 • 33
pessoas anônimas e cultivados em fazendas automatizadas: para a sociedade
americana não importa a história particular do alimento, de onde vem, quem o
preparou e, consequentemente, seu significado simbólico.
•  Para a Índia hindu, o alimento é um dos principais veículos de manuten-
ção das distinções sociais. A qualidade do alimento servido e as condições em
que é servido significam muito para a sociedade hindu, serve para definir o sta-
tus dos participantes da refeição. Há inclusive uma regra que pede para que não
se aceite comida preparada por membros de uma casta inferior (apesar disso,
membros de classes mais altas podem dar alimentos para membros de castas
mais baixas). Além disso, há também o costume de se servir os melhores ali-
mentos primeiro aos homens e aos mais velhos.
•  Para os Hua de Papua Nova Guiné, as trocas de alimentos são ligadas à
solidariedade. Essa sociedade acredita num conceito denominado “nu”. Este
conceito trata-se de uma essência vital, veiculada principalmente pelo alimen-
to e, segundo a crença, responsável pelo crescimento e saúde. Essa essência
está contida no corpo do indivíduo e em todas as coisas contatadas por ele,
assim, qualquer alimento caçado, colhido, ou cozido por uma pessoa, contém
seu “nu” ou sua essência vital. Isso apresenta sérias consequências, porque
eles acreditam que um indivíduo pode adquirir as características particulares
de uma pessoa pela ingestão de alimentos colhidos ou preparados por ela. Se
a intenção da pessoa é hostil, causará mal, enquanto que um “nu” amigável
beneficiará a saúde e o bem-estar do indivíduo que consumir o alimento. Uma
informação interessante é que esses indivíduos praticam canibalismo, conso-
mem seus parentes após sua morte natural, para incorporar suas virtudes espe-
cíficas e boas intenções.

As diferentes práticas de alimentação aqui trazidas por meio do exemplo


dessas três sociedades evidenciam os diferentes significados que o alimento
pode adquirir em diferentes culturas. Segundo Pacheco (2008), quando se ob-
serva a eleição de alimentos comestíveis e não comestíveis dentro de uma so-
ciedade, também se identificam os mecanismos culturais subjacentes a essa
escolha. O autor Contreras (1993) coloca ainda que a maior importância que
se tem na escolha dos alimentos parece ser a função que os mesmos desem-
penham na identidade individual e grupal, em detrimento até mesmo de seu
valor nutricional, mesmo que em alguns grupos sociais a seleção dos alimentos
ocorra por razões técnicas e econômicas ou pelo gosto ou sabor.

34 • capítulo 1
Entrando mais a fundo nos significados que os alimentos têm nas práticas
alimentares da sociedade americana, Marshall Sahlins (1979) aponta a comes-
tibilidade e a não comestibilidade dos alimentos nesta sociedade não são jus-
tificáveis por razões biológicas, ecológicas ou econômicas. Segundo este autor,
nos Estados Unidos ocorre a centralidade da carne em detrimento dos carboi-
dratos e dos vegetais (estes aparecem apenas como coadjuvantes). Mas, por quê
isso ocorre?
Ao analisar essa prática de alimentação, Sahlins (1979) observa que a carne
é considerada um alimento “forte” e evoca o pólo masculino de um código se-
xual da comida, o que pode ter origem na identificação indo-européia do boi
com riqueza e virilidade. Este pesquisador avaliou também o motivo de se con-
sumir carne de boi e de porco, e não se ingerir carne de cavalo e de cachorro na
sociedade americana. Para ele os cachorros e os cavalos não são comestíveis
porque participam daquela sociedade na condição de sujeitos (têm até nomes
próprios): é como se os cachorros fossem aparentados do homem, dessa ma-
neira, sua ingestão é inconcebível; e os cavalos são como se fossem emprega-
dos, sendo sua ingestão não generalizada, porém concebível. Porcos e bois são
comestíveis, pois são considerados objetos para os homens, levam suas vidas
à parte e não são instrumentos de trabalho das atividades humanas. Sahlins
mostra dessa forma seu ponto de vista: o de que a comestibilidade é inversa-
mente relacionada com a humanidade (Sahlins, 1979).
Um outro fator relevante de atribuição de significados aos alimentos são
as crenças religiosas. As análises sobre culinária religiosa, também conhecida
como “comida de santo”, apresentam bastante associação entre comida e sim-
bolismo, não sendo novo o interesse de antropólogos e sociólogos por este as-
sunto. O que será exposto agora é apenas um exemplo de crença que influencia
os significados dos alimentos e as práticas alimentares no Brasil: o candomblé
baiano, que é um exemplo de origem religiosa da alimentação, que espalhou
suas influências na comida regional profana, onde o preparo, a oferenda dos
alimentos e as refeições cercam-se de cerimoniais (Canesqui e Garcia, 2005).
Bastide (1960) e outros autores interessados pela cozinha afro-brasileira da
Bahia, vinculada ao candomblé abordaram este asse tema em suas pesquisas.
Bastide (1960) dizia que “os deuses são grandes glutões” e que os mitos que re-
latam as suas vidas são cheios de refeições abundantes. Relata ainda que não há
nada de espantoso, quando se entra num “peji” (altar) dos “orixás” (divindades
que representam as forças do universo; santos), e se observa a abundância de

capítulo 1 • 35
pratos, de cores ou de formas diversas e contendo comidas saborosas. Tratam-
se de oferendas das “filhas de santo12”, realizadas no dia da semana dedicado
ao seu “anjo da guarda” e que ficam no interior do “peji” a semana inteira até
que chegue o dia consagrado, quando poderão renová-las. Além disso, segundo
o autor, cada “orixá” tem os seus pratos preferidos, revelando assim que os deu-
ses não são apenas glutões, mas também finos gourmets, que sabem apreciar o
que é bom e que como os “mortais”, não comem tudo (Bastide, 1960).
O tema “culinária religiosa” foi estudado em distintas religiões brasileiras
(como candomblé, umbanda e batuque), por diversos autores. O conhecimento
assim gerado revela que a culinária ritual reveste-se da simbologia das influ-
ências regionais, que se imbricam com as identidades religiosas e culturais, e
demonstra que o alimento pode adquirir significados diversos daqueles que o
colocam exclusivamente como fonte de energia e nutrientes. A culinária reli-
giosa alimenta os elos entre os deuses e os homens e as próprias crenças de
seus fiéis (Correa, 1996; Lodi, 1977, 1988, 1995).
O autor Lodi, citado no parágrafo anterior, tem numerosas publicações so-
bre as “comidas de santo” e a cozinha brasileira em geral, e estudou as comi-
das do candomblé da Bahia, da Mina do Maranhão, do Xangô de Pernambuco,
Alagoas e Sergipe, destacando os alimentos utilizados nas ocasiões rituais, da
mesma forma que reviu e reuniu os textos de Manuel Querino, estudioso da
culinária afro-baiana. Ele tem contribuído, com esses estudos, para o desenvol-
vimento da antropologia da alimentação.
As considerações aqui apresentadas reforçam a existência da atribuição de
significados aos alimentos dentro das práticas de alimentação dos indivíduos.
É importante que em meio a tantas informações, o profissional de saúde perce-
ba que o homem é capaz de construir, a partir do seu meio social, um compor-
tamento que é coletivamente aceito, entendido e que ao mesmo tempo reflete
o grupo social do qual ele faz parte. Essa percepção irá ajudar o profissional
de saúde a embasar e formular suas estratégias de promoção/recuperação da
saúde.
12  Os rituais dessas religiões são complexos e cheios de simbolismos, mas o que se sabe é que os diversos orixás,
santos ou entidades compõem uma série de divindades subordinadas a um criador, cujo nome varia de acordo com
a tradição. É associado um local, uma cor, um dia da semana e determinados tipos de comida a cada um desses
orixás. Aos sacerdotes dessas religiões (os quais são responsáveis pela manutenção física e ritual do templo, pelo
atendimento à clientela e pela iniciação dos fiéis) dá-se, genericamente, o nome de “pai de santo” (quando estes
forem homens) e “mãe de santo” (quando estes forem mulheres); e a seus seguidores, nomeia-se “filhos” ou “filhas
de santo” (Hubert, 2011).

36 • capítulo 1
CONEXÃO
Para aprender um pouco mais sobre os temas abordados neste capítulo, leia o artigo dispo-
nibilizado no site:
http://www.revistas.usp.br/rmrp/article/viewFile/388/389. Este trabalho, intitulado “O sig-
nificado da alimentação na família: uma visão antropológica”, mostra que em torno da co-
mensalidade, cada sociedade elabora regras dietéticas fundadas no senso comum, em pre-
ceitos religiosos e no conhecimento médico, que criam interdições para excluir do cardápio
alimentos simbolicamente classificados como nocivos e perigosos para a saúde, entre outras
informações bastante interessantes. Entre no site e confira!

Conclusões:

Há vários animais onívoros que, apesar de comerem “de tudo”, não atribuem
significados aos alimentos. Entretanto, como foi abordado neste capítulo, no
caso do ser humano é diferente, e sua especificidade se dá justamente no senti-
do de que ele atribui múltiplos significados a esta necessidade fisiológica, que
é a alimentação. Tal necessidade é, para o homem, um ato com significados e
é fundamental à sua identidade. Cabe à sua cultura definir o que é comida, as
permissões e proibições alimentares, o que é adequado ou não e os modos de
consumo, sendo, portanto, as escolhas alimentares determinadas por outros
aspectos, além das necessidades biológicas.
Não se come apenas com o objetivo de se obter quantidades de nutrientes
e de energia para manter o funcionamento corporal em nível adequado. Para
serem comidos, ou comestíveis, os alimentos precisam ser elegíveis, preferi-
dos, selecionados e preparados ou processados pela culinária. E cada cultura
define o que é considerado adequado para cada uma das refeições, assim como
quantas e quais são estas refeições e como se distribuem ao longo do dia, pres-
crevendo o que, em determinada situação, pode ou não ser consumido.
Fica evidente, portanto, o valor simbólico que tem a alimentação e os dife-
rentes significados que pode ter o alimento para o indivíduo.

capítulo 1 • 37
REFLEXÃO
A palavra companheiro (no francês compagnon e no inglês companion) provém de cum
panem, “os que compartilham o pão”. Assim, a comensalidade, o “comer juntos”, é o momento
de reforçar a coesão do grupo pois ao partilhar a comida partilham sensações, tornando-se
uma experiência sensorial compartilhada.
Os aspectos descritos no parágrafo anterior estão relacionados, constituindo determinados
sistemas alimentares conhecidos como cozinhas. Esse termo refere-se às práticas alimen-
tares diversificadas que compreendem não apenas certos itens alimentares consumidos
mais frequentemente, mas sim um conjunto de alimentos que relacionam-se às represen-
tações coletivas, ao imaginário social, às crenças do grupo, enfim, às suas práticas culturais.
Deste processo que emerge um sistema alimentar que dá sentido aquilo que o grupo ingere.
As cozinhas representam o ato alimentar: a preparação, a combinação de elementos, a com-
posição de um prato, ou seja, a transformação do alimento em comida (Maciel, 2001).

LEITURA
Artigo “Representações sociais da alimentação e saúde e suas repercussões no
comportamento alimentar”, autora Rosa Wanda Diez Garcia, 1997.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v7n2/04.pdf.
Este estudo tem o objetivo de conhecer o impacto que a preocupação com a saúde tem no
comportamento alimentar das pessoas. Ele mostra significados que os alimentos têm nas
práticas de alimentação atuais, e que a ideia de que o que é gostoso de se comer pode ser
perigoso para a saúde vem acompanhada da valorização de um estilo de vida saudável, do
corpo atlético, que impõe um novo gênero de vida regrada. O cumprimento de uma nova
pauta de cuidados que envolvem principalmente a alimentação e a atividade física, determi-
nará os riscos de vida a que estamos sujeitos, provocando mudanças significativas na nossa
relação com a comida. A partir desse trabalho é possível perceber que se do ponto de vista
biológico os indivíduos têm certas necessidades nutricionais, do ponto de vista sociocultural
também apresentam necessidades a serem preservadas através da alimentação.

38 • capítulo 1
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VALENTE, F. Fome e desnutrição: determinantes sociais. São Paulo: Cortez, 1986.

capítulo 1 • 43
44 • capítulo 1
2
Concepções de
Cultura Alimentar
Se o ato de comer é uma necessidade vital, o quê, quando e com quem co-
mer são aspectos que fazem parte de um sistema que implica atribuição de
significados ao ato alimentar. Diante disso, é inevitável que, na alimentação
humana, natureza e cultura se encontrem (Maciel, 2005).
Neste capítulo serão abordadas algumas questões referentes à cultura ali-
mentar e à influência da cultura na alimentação, considerando que estas ques-
tões se constituem em espaços privilegiados para apreender determinados
processos, através dos quais os grupos sociais marcam sua distinção, se reco-
nhecem e se veem reconhecidos, e maneiras pelas quais os indivíduos constro-
em suas identidades sociais.

OBJETIVOS
Que o aluno se torne capaz de:

•  Entender que a cultura alimentar das populações vem sofrendo transformações ao longo
da História;
•  Notar que a alimentação marca identidades;
•  Compreender a relação entre cultura e alimentação, de modo a promover práticas profis-
sionais mais próximas aos problemas e às diferentes realidades das populações;
•  Entender que a educação nutricional e a segurança alimentar devem considerar a cultura
alimentar da população em que são empregadas;
•  Compreender os conceitos de perspectivismo e etnocentrismo.

46 • capítulo 2
2.1  Introdução aos Aspectos Culturais da
Alimentação

Nesta sessão do livro serão destacados os aspectos culturais da alimentação,


apesar disso, é importante lembrar que nesse campo há também outros fatores
envolvidos (como os de ordem histórica, social e econômica, por exemplo) que
implicam representações e imaginários sociais envolvendo escolhas e classifi-
cações. Tais fatores serão abordados em outros capítulos deste livro.
Como o leitor já deve ter percebido, neste livro não se pretende analisar o
valor nutritivo e/ou o teor proteico dos alimentos, mas sim, os aspectos sim-
bólicos que revestem a comida, bem como o modo de preparar e comer os ali-
mentos nas sociedades humanas. Nisto, a cultura e a antropologia têm atuação
fundamental. A busca, a seleção, o consumo e a proibição de certos alimentos
existem em todos os grupos sociais e são norteados por regras sociais diversas,
carregadas de significações, cabendo, portanto, ao profissional que lida com
alimentação humana, apreender a especificidade cultural dessas questões, as
quais precisam ser explicadas em cada contexto particular, pois o alimento,
além de seu caráter utilitário, também se constitui em uma linguagem (Daniel
e Cravo, 2005), a qual é relacionada ao contexto em que se encontra.
Por exemplo, como já exposto, a feijoada é um prato típico do Brasil que
fora do país é um símbolo de sua identidade nacional (FRY, 1977). Da mesma
forma, dentro de um país temos regiões que são identificadas por uma culiná-
ria específica. Ainda no exemplo do Brasil, quando se fala em gaúcho, logo se
pensa em churrasco; se o prato é o tutu, associa-se aos mineiros; o barreado é
lembrado como comida típica do litoral paranaense e o camarão no jerimum
com molho de pitanga é relacionado ao Nordeste. Por esses exemplos pode-
se notar que o modo de preparar e de servir os alimentos exprime identidades
culturais, confirmando assim o caráter simbólico da comida. Vamos agora ana-
lisar um pouco os aspectos antropológicos e históricos que envolvem a cultura
alimentar.

capítulo 2 • 47
2.2  Relação entre Alimentação e Cultura nas
Diferentes Sociedades

Daniel e Cravo (2005) no livro intitulado “Antropologia e Nutrição: um diálogo


possível” fazem uma análise bastante interessante dos aspectos antropológi-
cos e históricos que revestem a cultura alimentar, demonstrando as diversas
maneiras pelas quais o homem produz condições para sua existência material.
Nos próximos parágrafos, são trazidas as principais constatações feitas na aná-
lise destes autores, o que dará ao leitor a oportunidade de passar a avaliar os
fatos alimentares (antigos e atuais) sob um outro ponto de vista, sob uma pers-
pectiva antropológico-cultural.
O ser humano se posicionou como um caçador na sociedade tribal, um
agricultor na sociedade camponesa e um proletário na sociedade capitalista.
Ao se produzir como tal, ele se torna um produto de cada um desses modos de
produção1 e, simultaneamente, um transformador em potencial. Além disso,
essa grande diversidade das sociedades humanas obedece a regras específicas
quanto à produção e à distribuição dos alimentos, as quais são importantes
para que se compreenda o papel da cultura como sistema simbólico no que diz
respeito à alimentação/nutrição.

2.2.1  Sociedade Tribal

O alimento é um dos aspectos principais da produção na sociedade tribal, sen-


do obtido por meio de regras que enfatizam o trabalho cooperativo, enquanto
na distribuição do produto o que predomina são as regras de reciprocidade.
Um caso que exemplifica esta questão é o dos índios guaiaquis relatado por
Clastres (1978), os quais vivem em florestas na América do Sul. Estes índios não
consomem o produto de sua caça sob pena de se tornarem azarados na caça (o
que é denominado por eles como panema), dessa maneira, cada membro desta
sociedade depende da carne obtida por outro caçador. Esse tabu alimentar é ri-
gidamente obedecido, e com isso, se garante a reciprocidade entre as unidades
1  Pode-se entender o termo “modos de produção” como a combinação das forças de produção e das relações
de produção correspondentes a certo período ou à certa sociedade historicamente localizada (Barros, 2010), ou
seja, trata-se da forma de organização socioeconômica de uma determinada etapa de desenvolvimento das forças
produtivas e das relações de produção de uma dada sociedade. Na Ideologia Alemã (1846), Marx e Engels falam
dos “modos de produção” como sendo a maneira mediante a qual os homens, organizados em sociedade, produzem
a sua subsistência (Marx e Engels, 1846).

48 • capítulo 2
familiares desta sociedade, a solidariedade do grupo, bem como alimentação
para todos os seus membros.

2.2.2  Sociedade Camponesa

No caso das sociedades camponesas, as relações de trabalho são familiares2, o


que faz com que os produtores e consumidores sejam os mesmos. Assim, a die-
ta alimentar é limitada às potencialidades da força de trabalho, àquilo que ela
produziu de alimentos. Nestas sociedades ocorre a preocupação de se guardar
sempre um “fundo de manutenção”, ou seja, sementes para a próxima safra,
alimento para os animais, instrumentos de trabalho, etc., e também um “fundo
cerimonial”, isto é, as necessidades culturais, como festas de padroeiro, quer-
messes, dízimo, cerimônias familiares de casamento, batizado, etc., sendo que
tais cerimônias / rituais variam em função da tradição cultural de cada grupo
(Daniel e Cravo, 2005).

2.2.3  Sociedade Capitalista

No modo de produção capitalista, o homem está separado dos meios de produ-


ção e a realidade é diferente: o homem não tem terra, nem enxada, nem arado
ou floresta, nem arco e flecha. Ele tem a sua força de trabalho que poderá ofe-
recer por meio de troca, obtendo a reprodução dessa mesma força de trabalho.
Isso se dá pois nesse contexto o alimento é considerado mercadoria, e, sendo
assim, só pode ser obtido por outra mercadoria: o dinheiro. Dessa forma, na
sociedade capitalista encontra-se uma grande heterogeneidade sociocultural
que permeia os hábitos alimentares, tanto no aspecto da produção, quanto no
da preparação e do consumo.
Vemos assim, que os hábitos alimentares não atendem apenas às necessi-
dades fisiológicas do homem, mas têm um caráter simbólico, cujo significado
se dá na trama das relações sociais.

2  As relações de reciprocidade nas sociedades tribais e nas sociedades camponesas se dão entre “unidades
familiares”, porém, nas sociedades tribais, o termo “unidades familiares” se refere à uma “família estendida”, já que as
tribos são complexos de famílias alargadas que se mantêm juntas por interesses comuns (Gomes, 2008), enquanto
que nas sociedades camponesas as “unidades familiares” são compostas por famílias nucleares.

capítulo 2 • 49
De acordo com Sandroni (1999), os “meios de produção” são formados pelos “meios
de trabalho” e pelo “objeto de trabalho”, sendo que “meios de trabalho” incluem os ins-
trumentos de produção (como as ferramentas e as máquinas), as instalações (como os
edifícios e os armazéns), as formas de energia, de combustível e os meios de transporte.
Já o “objeto de trabalho” é o elemento sobre o qual ocorre o trabalho humano, como terra,
matérias-primas e outros recursos naturais. O termo foi elaborado por Karl Marx (Sandro-
ni, 1999). Conforme coloca Pena (2015), os meios de produção são artigos necessários
para a industrialização e fabricação de mercadorias, mas os mesmos não fazem parte dos
produtos fabricados. Segundo este autor, um exemplo de meio de produção são as má-
quinas de costuras utilizadas em confecções de roupas, as quais transformam os tecidos
em mercadorias, mas não são incorporadas ao que foi fabricado.

Diante dessa análise de Daniel e Cravo (2005), é possível perceber que as


questões relativas à alimentação permeiam todas as relações sociais nas socie-
dades humanas, bem como nas diferentes classes sociais de uma mesma socie-
dade, apresentando sempre uma dimensão cultural.
Segundo Maciel (2002), a alimentação não se restringe a ser uma respos-
ta ao imperativo de sobrevivência, ao “comer para viver”. Já que os indivíduos
necessitam sobreviver, e para isso precisam se alimentar, eles sobrevivem de
maneira particular, culturalmente forjada e culturalmente marcada (Maciel,
2002). Isto significa que os homens criam modos de viver diferentes, o que re-
sulta em uma grande diversidade cultural. A alimentação humana vai além da
dimensão biológica, trata-se de um ato cultural, o que faz com que sejam pro-
duzidos diversos sistemas alimentares (Maciel, 2005), de acordo com as cren-
ças e valores do local onde residem.

O termo “diversidade cultural” refere-se aos aspectos que representam especificamen-


te diferentes culturas, como por exemplo a alimentação e a culinária, entre outras ca-
racterísticas próprias de um grupo de seres humanos que habitam um determinado ter-
ritório. Por meio deste conceito é possível compreender os processos de diferenciação
entre as várias culturas que existem ao redor do mundo. As múltiplas culturas formam
a chamada identidade cultural dos indivíduos ou de uma sociedade, isto é, uma "marca"
que personaliza e diferencia os membros de um dado local do restante da população
do mundo (Guimarrães e Cabral, 2015).

50 • capítulo 2
Recine e Radaelli (2001) citam em seu trabalho alguns exemplos de como
a alimentação das populações está atrelada à localidade em que se encontram
no Brasil:

•  Os sertanejos do Nordeste comem preás e camaleões, os quais são consi-


derados insuportáveis para qualquer homem das cidades litorâneas;
•  Os macacos da Amazônia assados são como manjares para a população
nativa, porém não são aceitos pelos brasileiros em geral;
•  O sertanejo que se alimenta de peixe de água doce não admite crustáceos
e verduras.

Há ainda exemplos de fora do Brasil (Recine e Radaelli, 2001):

•  Budistas não matam o peixe pescado, eles o deixam morrer na praia para
ser comido posteriormente;
•  Hindus não comem carne bovina por acreditarem que a vaca seja sagrada,
esses animais pastam e dormem no meio das ruas. Muitos indivíduos acabam
morrendo de fome, porém não desrespeitam essa crença.
•  Na Ásia e Oceania também raramente consome-se carne bovina, já para o
europeu e seus descendentes na América, ela é indispensável à mesa.
•  Para muitos africanos, galinha e galo não são animais para alimentação
regular, e sim, oferendas aos deuses.

Diante do exposto, levando em consideração que a alimentação humana é


impregnada pela cultura, é possível pensar os sistemas alimentares como siste-
mas simbólicos em que códigos sociais estão presentes atuando no estabeleci-
mento de relações dos homens entre si e com a natureza (Maciel, 2005).

CONEXÃO
Para conhecer um pouco mais sobre a relação entre cultura e alimentação na realidade brasi-
leira, assista à reportagem especial disponibilizada no site: https://youtu.be/gwQEp1oOjXw.
Neste vídeo, este tema é abordado de forma muito atrativa e objetiva. Entre no site e confira!

capítulo 2 • 51
2.3  Alimentação como Marcador de
Identidades e o Conceito de Cultura

O autor Roberto Da Matta (1986) estabeleceu em seu trabalho uma distinção


entre comida e alimento. Segundo ele: “comida não é apenas uma substância
alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o
jeito de comer define não só aquilo que é ingerido, como também aquele que o
ingere” (Da Matta, 1986:56). Sendo assim, pode-se inferir que a comida ou a ali-
mentação, sendo um elemento cultural, pode se constituir em algo que marca
a identidade de um povo.
Como consequência da alimentação constituir-se em uma marca da iden-
tidade de um povo, os hábitos alimentares que este povo adquire muitas vezes
se constituem num impedimento à adoção de comportamentos mais racionais
frente à alimentação. Por isso, o trabalho na área de Educação Alimentar - cujo
objetivo é geralmente a modificação e/ou a introdução de novos hábitos - é con-
siderado por profissionais da área de nutrição como o maior desafio da prática
cotidiana (Pacheco, 2008).
De acordo com o trabalho de Pacheco (2008), os hábitos que já estão arraiga-
dos nas pessoas, geralmente são carregados de significados psicológicos e so-
ciais, e, dessa forma, são difíceis de serem mudados. O paladar é um elemento
importante na escolha dos alimentos e preparações e, de modo geral, conven-
cer um indivíduo a consumir ou a deixar de ingerir determinados alimentos é
uma tarefa árdua e que nem sempre produz os resultados esperados.
Neste processo, saber reconhecer o quanto os hábitos alimentares estão
enraizados em um determinado contexto cultural em geral não é um proble-
ma para os profissionais de saúde, entretanto, saber incorporar a atuação da
cultura na terapêutica (assim como os fatores genéticos, econômicos, ambien-
tais, etc.) mostra-se como um fator que complica a elaboração de estratégias
de ação e orientações em saúde. Esta consideração, na grande parte das vezes,
inclui também a enumeração de tabus alimentares presentes na sociedade e os
hábitos alimentares adotados pela sociedade em questão, que podem não ser
usuais nas demais sociedades.
Além disso, Pacheco (2008) aponta que a falta de clareza na definição do que
vem a ser “cultura” parece estar no cerne das dificuldades sentidas ao se tentar
dimensionar o seu papel nos processos de saúde/doença/terapêutica. Tentan-

52 • capítulo 2
do encontrar uma definição para este termo, esse autor coloca que “cultura” se-
ria o próprio campo onde os comportamentos/hábitos são gerados. Enquanto
que para Geertz (1989), a “cultura” pode ser entendida como um sistema sim-
bólico, ou seja, seria “um conjunto de mecanismos de controle – planos, re-
ceitas, regras, instruções – para governar o comportamento” (Geertz, 1989:56).
Esses símbolos e significados seriam partilhados entre os membros do sistema
cultural, assumindo um caráter público e, portanto, não individual ou privado.
De acordo com o ponto de vista de Geertz (1989), o homem seria o animal
mais dependente destes mecanismos de controle para ordenar seu próprio
comportamento. Segundo este autor: “o que lhe é dado de forma inata são ca-
pacidades de resposta extremamente gerais, as quais, embora torne possível
uma maior plasticidade, complexidade e, nas poucas ocasiões em que tudo tra-
balha como deve, uma efetividade de comportamento, deixam-no muito me-
nos regulado com precisão” (Geertz, 1989:58). Em seu trabalho, Geertz (1989)
afirma ainda que: “a cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é ape-
nas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para
ela – a principal base da sua especificidade”.
Edward Tylor (1832-1917), conseguiu sintetizar, no vocábulo inglês culture,
tanto os aspectos espirituais de uma comunidade, quanto as realizações mate-
riais de um povo (Laraia, 2001). Segundo a definição de “cultura” proposta por
Tylor, tomada em seu amplo sentido etnográfico, este termo englobaria todo
complexo que incluísse conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou
qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro
de uma sociedade (Laraia, 2001). De acordo com análise feita por Laraia (2001),
com esta definição, Tylor marca o caráter de aprendizado da cultura em oposi-
ção à ideia de aquisição inata.
Já sob a ótica do antropólogo Marshal Sahlins, a cultura definiria a vida não
por meio das pressões materiais impostas pelo cotidiano, mas de um sistema
simbólico (Sahlins, 1979). Nesse sentido, a pesquisadora Mary Douglas aponta
que as regras que constituem os sistemas simbólicos são, em sua formulação,
arbitrárias e têm a intenção de disciplinar o comportamento humano (Dou-
glas, 1976). Considerando essas afirmações, pode-se constatar que os hábitos
alimentares fazem parte de um sistema cultural repleto de símbolos, significa-
dos e classificações, de modo que nenhum alimento está livre das associações
culturais que a sociedade lhes atribui (Braga, 2004).

capítulo 2 • 53
Vale colocar que essas associações determinam aquilo que as pessoas co-
mem e bebem, o que é comestível e o que não o é. Símbolos, significados, si-
tuações, comportamentos e imagens que envolvem a alimentação podem ser
avaliados como um sistema de comunicação, sob o sentido de que comunicam
sobre a sociedade que se pretende analisar (Douglas, 1976). Nesse sentido,
Mintz (2001) argumenta ainda que a cultura alimentar é constituída pelos há-
bitos alimentares em um domínio em que a tradição e a inovação têm a mesma
importância. Com isso percebe-se que cultura alimentar não se refere apenas
àquilo que tem raízes históricas, mas também aos hábitos cotidianos, compos-
tos pelo que é tradicional e por novos hábitos.
Torna-se importante ressaltar aqui que cada cultura tem sua própria lógica,
que é cultural e não racional, e tal fato apresenta importância no contexto da
prática do profissional de saúde. É claro que este profissional precisa identifi-
car hábitos que interferem negativamente na saúde de seus pacientes, entre-
tanto, é preciso que tenha em mente que as culturas dos indivíduos são sem-
pre válidas e fundamentadas para aqueles que nelas acreditam. Quando forem
identificadas práticas que prejudicam a saúde de seus pacientes, o profissional
não deve impor sua visão científica descredenciando o indivíduo de suas cren-
ças, no lugar disso, é necessário, que o profissional procure adaptar suas orien-
tações e práticas às crenças e valores dos indivíduos tanto no âmbito individual
como coletivo.

Diante das ideias expostas nesta sessão, faz-se interessante complementarmos esta
linha de pensamento refletindo sobre o conceito de “determinismo biológico”, o qual se
refere à atribuição de capacidades inatas específicas a determinadas raças ou a outros
grupos humanos. Há quem ainda acredite, por exemplo, que os nórdicos sejam mais
inteligentes que os negros ou que os judeus sejam naturalmente avarentos e nego-
ciantes. Os antropólogos já estão totalmente convencidos de que isso não é verdade,
pois as diferenças genéticas não são determinantes das diferenças culturais (Laraia,
2001). Segundo Keesing (1961), não há correlação entre a distribuição de caracteres
genéticos e a distribuição dos comportamentos culturais, sendo que qualquer criança
humana normal pode ser educada em qualquer cultura. Este conhecimento é impor-
tante para que o profissional de saúde desconstrua o conceito de raça e entenda suas
possibilidades de atuação nos hábitos alimentares dos indivíduos.

54 • capítulo 2
Outro aspecto da cultura alimentar apontado por Braga (2004) em seu tra-
balho, são as identidades sociais, que dão sentido às escolhas e aos hábitos ali-
mentares. Independente das escolhas alimentares serem modernas ou tradi-
cionais, o comportamento relativo à comida se liga diretamente ao sentido que
as pessoas conferem a si mesmas e também às suas identidades. Desse modo,
as práticas alimentares acabam revelando a cultura em que cada um está in-
serido, posto que comidas são associadas a povos em particular (Mintz, 2001).
No Brasil, por exemplo, apesar da grande diversidade alimentar existente entre
suas regiões, o arroz e o feijão são traços de sua identidade nacional, pois são
consumidos diariamente, de norte a sul do país, por milhões de brasileiros, o
que não exclui as identidades existentes no plano regional, onde há também
alimentos que funcionam como demarcadores identitários, isto é, pratos que
estão associados à sua região de origem (Menasche e Maciel, 2003).

2.4  Papel da Cultura na Alimentação


Humana

Mas, afinal, qual papel a cultura exerce na alimentação humana? Nesta sessão
tem-se o objetivo de clarear essa temática.
O estudo da Antropologia atrelado à Nutrição já ocorre há muito tempo e
constatações feitas por antropólogos há anos atrás são válidas até os dias atu-
ais. Em 1986 Da Matta já afirmava que “toda substância nutritiva é alimento,
mas nem todo alimento é comida.” Esta afirmação remete ao aspecto cultural
da alimentação e, por conseguinte, àquilo que a transforma em comida. Dessa
maneira, este autor estabelece uma diferenciação entre alimento e comida, e
afirma o papel da cultura na alimentação.
Pelo trabalho publicado por Da Matta (1986) constata-se que alimento é
algo universal e geral, dizendo respeito a todos os seres humanos (amigos/ini-
migos, gente de perto/de longe, da rua/de casa, do céu/ da terra). Enquanto isso,
a comida é algo que define um domínio e, segundo as palavras do autor, “põe
as coisas em foco”, correspondente ao famoso e antigo “de-comer”, expressão
equivalente à refeição. A comida se refere a algo costumeiro e sadio, ajuda a
estabelecer uma identidade e a definir um grupo, uma classe social ou uma pes-
soa. (Da Matta, 1986)

capítulo 2 • 55
Diante disso, constata-se que aquilo que se come, quando, com quem, por
que e por quem é determinado culturalmente e é capaz de transformar alimen-
to (substância nutritiva) em comida.
Conforme já colocado, segundo Daniel e Cravo (2005), as questões relativas
à alimentação estão presentes em todas as relações sociais nas sociedades hu-
manas e nas diferentes classes sociais de uma mesma sociedade, apresentando
sempre uma dimensão cultural. “Comida de criança”, “comida de domingo” e
“comida de festa” são exemplos de classificações dadas aos alimentos (Braga,
2004).
Segundo Braga (2004), a formação do gosto é outro aspecto do papel da cul-
tura na alimentação. É interessante observar como as experiências das culturas
em particular influenciam o modo como os indivíduos concebem e classificam
as qualidades do gosto e como se formam as preferências pelos sabores (doce/
amargo/salgado/picante) das populações e também individualmente. Ademais,
o gosto e o olfato são capazes de identificar e hierarquizar as classes de alimen-
tos naquilo que é comestível em oposição ao que não é, em diversos sistemas
culturais; e as propriedades visuais e de textura também se constituem como
características sensoriais que determinam se os alimentos são apropriados ou
não dentro uma sociedade - dessa maneira, textura e sabor mostram o que é
familiar nos alimentos e influenciam a aceitação de novos alimentos (Messer,
1995). E características visuais como cor, forma e aparência afetam também a
aceitabilidade e as preferências pelos alimentos, relacionando-se ao simbolis-
mo alimentar.
Nessa temática, os indivíduos e os estratos sociais3 se diferenciam pelo
modo como usam os bens materiais e simbólicos de uma sociedade conforme
o acesso que têm a esses bens, dando sentido ao mundo social. Em relação às
propriedades de textura, por exemplo, Barthes (1975) chama atenção para o im-
portante papel que esta ocupa na seleção dos alimentos. Na cultura ocidental,
ocorre uma oposição simbólica determinante na escolha por parte de classes
sociais e de indivíduos dentro das classes (essa oposição se dá entre os alimen-
tos duros, crus e ásperos, de um lado, e os alimentos suaves, brandos e doces,
do outro). Na sociedade brasileira, prefere-se o que é cozido ao que é cru. O co-
zido se apresenta em oposição ao cru, assim como o alimento está para comida.

3  O conceito de “estrato social” representa a classificação das pessoas em grupos, de acordo com suas condições
socioeconômicas comuns (Wikipédia, 2015).

56 • capítulo 2
Braga (2004) aponta que no Brasil cabe ressaltar a importância social que
tem o “cozido” enquanto um prato no cardápio, bem como sua simbologia de
congregação (expressa na mistura de vários itens alimentares, num mesmo
prato, servidos em ocasiões que envolvem comensalidade). Com isso, a história
do gosto acaba por ligar-se à história do cotidiano em suas sutilezas, estruturas
sociais e culturais, sendo que o significado simbólico e a significação nutricio-
nal dessas dimensões variam segundo o contexto cultural, assim como a incli-
nação que cada indivíduo tem em obedecer as regras impostas pela cultura.

2.5  Diferentes Abordagens dos Sistemas


Alimentares X Diálogo entre Eles

A alimentação humana tem sido analisada sob diversas abordagens. Dentre


elas, Braga (2004) cita em seu trabalho as seguintes:

•  Abordagem econômica: Nesta abordagem, a relação entre oferta e de-


manda, abastecimento, preço dos produtos alimentícios, renda e acesso à co-
mida são os principais componentes.
•  Abordagem nutricional: Neste enfoque há a ênfase na composição dos
alimentos. Preocupa-se com a saúde e com o bem-estar de grupos e indivíduos.
•  Abordagem social: Esta perspectiva é voltada para as associações entre
alimentação e organização social do trabalho, diferenciação social do consu-
mo, ritmos e estilos de vida.
•  Abordagem cultural: Este olhar preocupa-se com as tradições culiná-
rias, os gostos, as representações, os hábitos, as identidades práticas, as repul-
sões, os ritos, as preferências e os tabus, isto é, com os aspectos simbólicos da
nutrição.

De acordo com essas abordagens apresentadas por Braga (2004), percebe-se


que a existência de tantas formas de se olhar e pensar o alimento e o ato de ali-
mentar-se reforça o argumento mais importante trazido neste livro: comer não
é apenas uma mera atividade biológica! Da mesma forma, suas razões não são
estritamente econômicas, sendo que a comida e o comer são, acima de tudo,
fenômenos sociais e culturais, enquanto a nutrição, um assunto fisiológico e de

capítulo 2 • 57
saúde. Apesar disso, os “aspectos simbólicos da alimentação” foram por muito
tempo menos interessantes para a antropologia do que suas implicações so-
ciais: dos anos 30 aos 60, este tema aparece em monografias sempre atrelado
aos capítulos sobre sobrevivência e economia doméstica.
Apenas em 1966, nos textos de Raymond & Rosemery Firth, é que a “comi-
da” assume o papel central. Talvez porque a comida e sua preparação fossem
vistas como trabalho de mulher e a maioria dos antropólogos fossem homens,
ou porque o estudo da comida fosse considerado pouco importante, compara-
do a outros (Mintz, 2001).
Segundo Braga (2004), a partir de 1966 as análises antropológicas em geral
se propõem a estudar hábitos alimentares. Daí surgem as especificidades atri-
buídas a cada estudo sobre cultura/culturas alimentar (es), mostrando compor-
tamentos diversos centrados na comida. Mesmo assim, até os anos 80, o tema
“comida” não era importante para a antropologia. A partir da década de 90, mu-
danças ocorrem nesses estudos, principalmente devidas ao forte crescimento
do mercado mundial de alimentos.
Começam então a surgir estudos com temas como os que se seguem:

•  Investigação da alimentação de populações humanas e grupos sociais e


sua relação com o meio ambiente;
•  Construção simbólica das culturas;
•  Relações e estruturas sociais das sociedades;
•  Determinantes socioculturais do consumo de alimentos;
•  Relações históricas e evolutivas entre dieta e consumo no mundo e em
culturas específicas;
•  Diferenças entre o bem-estar nutricional de diferentes povos e dentro de
uma mesma sociedade.

Observa-se que a abrangência desses temas é notável, mas as possibilida-


des de estudos ainda não foram suficientemente exploradas. E, apesar de haver
diferentes abordagens para este tema, há a necessidade de um maior diálogo
entre antropologia, sociologia, nutrição, gastronomia e outras disciplinas que
se dedicam à alimentação humana, sendo que as consequências dessa compar-
timentação disciplinar refletem-se nas lacunas constatadas não só pelas pes-
quisas como nas aplicações práticas (Maciel, 2012).

58 • capítulo 2
CONEXÃO
Embora a antropologia da alimentação seja um campo que vem se consolidando desde a
década de 1960, algumas das obras mais referenciadas ainda não têm tradução para o
português. Esse era o caso do livro Alimentação, sociedade e cultura, de Jesús Contreras
Hernández e Mabel Gracia Arnáiz, até o ano de 2011. Lançado na Espanha em 2005 com
o título Alimentación y cultura: perspectivas antropológicas, este livro pretende esmiuçar as
possibilidades e as necessidades de diálogo entre antropologia, sociologia, nutrição, gastro-
nomia, e outras disciplinas, que se dedicam à alimentação humana. O link https://youtu.be/
G4Wl3sFPPL8 traz uma entrevista disponibilizada pelo Canal Saúde, sobre este livro, com
Mabel Gracia, uma das autoras do livro e professora de Antropologia Social da Universidade
Rovira i Virgili (Espanha), e Denise Oliveira e Silva, também autora do livro, nutricionista e
pesquisadora da Fiocruz. Vale a pena conferir!

2.6  Cultura Alimentar e Segurança Alimentar


e Nutricional

A preocupação com o respeito e a preservação da cultura alimentar de cada


povo está entre os aspectos que compõem o conceito de segurança alimentar e
nutricional. Cada país precisa ter condições de assegurar sua alimentação, sem
que lhe seja imposto um padrão alimentar diferente das suas características e
tradições. Tal conceito nasce como uma reivindicação feita por grupos que per-
cebem que suas práticas alimentares estão ameaçadas pelos efeitos da globali-
zação. E, entre os efeitos nocivos, estão: a perda da soberania desses países em
decidir o que produzir e comer, bem como a tendência global à massificação do
gosto alimentar, notada por meio da preferência dos consumidores por produ-
tos industrializados no lugar dos produtos in natura (Braga, 2004).
No Brasil, a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2008-2009),
realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011), cons-
tatou que alimentos básicos e tradicionais na dieta do brasileiro, como arroz,
feijão e farinha de mandioca, têm perdido importância nos últimos anos, en-
quanto tem crescido a participação relativa de alimentos processados pron-
tos para consumo, como pães, embutidos, biscoitos, refrigerantes e refeições

capítulo 2 • 59
prontas (IBGE, 2011). Em um outro estudo, realizado pelo pesquisador Dome-
ne no ano de 2006, efetuou-se uma análise das tendências de consumo de ali-
mentos industrializados pela população brasileira e também se observou uma
diminuição do consumo de arroz e feijão, assim como um aumento na ingestão
de alimentos de preparo rápido e de baixo valor nutricional (Domene, 2006).
Entretanto, apesar do crescimento da alimentação industrializada, a pes-
quisa realizada por Barbosa (2007) mostra que ainda existe um panorama ali-
mentar tradicional em nosso país. Este trabalho foi realizado em 10 cidades
brasileiras que tinham mais de 1 milhão de habitantes em cada, sendo que par-
ticiparam ao todo desta pesquisa 400 indivíduos. Neste estudo, mais de 90%
dos indivíduos pesquisados compram a matéria-prima de suas refeições para
confeccioná-las em casa (carne in natura, arroz e feijão em grãos, legumes e
verduras frescos); a alimentação industrializada (pizzas, produtos congelados,
molhos e temperos prontos) apresenta ainda uma ingestão muito baixa, cen-
trada principalmente nos grupos populacionais de maior renda; e os restau-
rantes a quilo e as lanchonetes apresentam-se como as opções que as pessoas
mais frequentam quando comem fora de casa (sendo que estes restaurantes
reproduzem a lógica do sistema alimentar brasileiro de forma rápida e eficien-
te, porém sobre uma base de alimentos tradicionais). Nesta pesquisa, a opção
por alimentar-se em restaurantes do tipo fast food aparece com apenas 8% das
preferências dos indivíduos analisados. De acordo com esta autora, a indústria
alimentar nunca conseguiu deslocar e/ou neutralizar as refeições aqui no Brasil
(Barbosa, 2007).
Já no contexto da alimentação mundial, segundo Braga (2004), atualmen-
te se assiste a uma separação crescente de produtores e consumidores, a uma
tendência cada vez maior de se consumir produtos industrializados – tendên-
cia esta que afeta o cotidiano e as práticas alimentares de toda a humanidade.
Sabe-se que as mudanças alimentares citadas são consequência dos muitos
processos de transformação relativos à produção e ao consumo de alimentos
que a sociedade tem sofrido. Essa mesma autora aponta que a crescente padro-
nização e homogeneização da alimentação por meio da produção industrial em
massa e também o aumento de monoculturas (como a soja, no Brasil) desen-
cadearam o desmantelamento dos sistemas locais de produção, com impacto

60 • capítulo 2
direto na distribuição e no consumo de alimentos. Ademais, esses processos
acabam por afetar a diversidade alimentar e, por consequência, o direito de
cada indivíduo escolher livremente o que consumir. Em meio a isso, ocorrem
também transformações devidas ao processo de urbanização e ao ritmo de vida
das cidades, regiões metropolitanas e periferias metropolitanas, locais em que
o consumo alimentar fora do domicílio é mais frequente do que a alimentação
realizada no lar.
Neste contexto, os estudos ligados à antropologia da alimentação são muito
importantes, pois possibilitam compreender os padrões alimentares de cada
população, suas origens, composição, seus valores simbólicos e aspectos que
auxiliam no entendimento do que as pessoas “são” por meio do que comem.
A análise da cultura alimentar permite assim a reflexão sobre a especificidade
dos diferentes campos que interagem quando práticas alimentares estão em
foco. Por exemplo: a identidade étnica sempre está estreitamente relacionada a
uma tradição culinária particular (Douglas, 1976).
Para complementar o tema aqui discutido, no que tange a relação entre cul-
tura alimentar e segurança alimentar e nutricional, na Tabela2.1 são apresen-
tados alguns outros aspectos que mostram a contribuição das pesquisas sobre
alimentação dentro desta temática, e, na Tabela 2.2, são mostradas algumas
outras possibilidades de estudos acerca dessa temática e algumas reflexões so-
bre o impacto dos mesmos na área de segurança alimentar e nutricional.

“Segurança Alimentar e Nutricional” refere-se à realização do direito de todas as pes-


soas ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade su-
ficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como
base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural
e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (Art. 3º da Lei
Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, LOSAN, Lei nº 11.346, de 15 de se-
tembro de 2006). Você pode acessar esta Lei, bem como mais informações sobre
segurança alimentar e nutricional por meio do link: <http://pjf.mg.gov.br/conselhos/
seguranca_alimentar/documentos/conceitosbasicos%20SAN.pdf>.

capítulo 2 • 61
CONTRIBUIÇÃO DAS PESQUISAS SOBRE ALIMENTAÇÃO E CULTURA
ALIMENTAR.

Possibilidade de resgate de alimentos atualmente relegados a um segundo plano, mas


que faziam parte do cardápio dos antepassados;

Recuperação de modos de preparo, ingredientes, condimentos e elementos típicos da


culinária de determinados grupos;

Contribuição para a valorização da diversidade alimentar, reforçando pontos relativos à


saúde e à nutrição;

Utilização dos estudos dos sistemas alimentares na compreensão dos riscos ligados à
adoção de práticas alimentares novas e distintas das tradicionais, no âmbito da segu-
rança alimentar e nutricional.

Tabela 2.1 – Contribuição das pesquisas sobre alimentação e cultura alimentar. Fonte: Braga
(2004).

TEMA REFLEXÃO

Há situações em que a fome é sentida e associada aos mitos


ou ritos de uma sociedade, deslocando a compreensão da
fome como um problema de caráter social para um problema
espiritual ou religioso. Entretanto, em cenários como o do
Brasil, a fome é um resultado fisiológico de um processo his-
Cultura da fome
tórico, político, econômico e cultural. Portanto, é fundamental
o melhor entendimento sobre os significados atribuídos à
fome por aqueles que a sentem, bem como a elaboração de
estratégias coletivas e individuais por parte dos profissionais
de saúde que lidam com essa realidade, a fim de superá-la.

62 • capítulo 2
TEMA REFLEXÃO

Uma característica dos sistemas culturais que pouco mudou


durante toda a história humana é o papel que a mulher desem-
penha na alimentação. Ocorreram mudanças ligadas ao ritmo
de vida moderno, as quais sem dúvida impactaram o ambiente
doméstico/familiar, e a conquista de espaços antes não ocu-
pados pela mulher. Entretanto, eles não foram suficientes para
romper a relação estabelecida entre as mulheres e a alimenta-
ção. A mulher tem uma relação estreita com a alimentação, no
aspecto cultural. Dentre as possibilidades de estudo sobre esse
tema, podem ser citados: a relação entre comida e imagem cor-
poral; a relação entre domesticidade e liberação das mulheres;
as ligações entre comida e auto identificação com gênero.
Nesses estudos, destacam-se algumas questões: a mulher vis-
ta como provedora dos alimentos para a família e também como
aquela que determina os alimentos que entram na casa para o
consumo posterior; a mulher é compreendida a partir da noção
Gênero
de feminização da pobreza, que evidencia que a fome, assim
como outros problemas sociais, atinge mais mulheres do que
homens; a mulher ocupa lugar ambíguo na questão da segu-
rança alimentar e nutricional, pois continua como responsável
pelo ambiente doméstico e pela alimentação, mas, no campo
político, não ocupa lugares importantes de decisão como sujeito
de políticas que afetam seu cotidiano (usualmente, tais políticas
ignoram as experiências construídas pelas mulheres).
A partir desse quadro, faz-se necessário repensar o papel
da mulher e o lugar que ela ocupa nas decisões políticas
sobre segurança alimentar e nutricional. O profissional de
saúde deve considerar e valorizar as experiências e o co-
nhecimento que ela traz, justamente porque geralmente é
a mulher a pessoa que mais entende da alimentação da
família e quem tem maior capacidade de alterá-la, se for
diagnosticado que isso é necessário.

capítulo 2 • 63
A elaboração de políticas públicas em saúde deve considerar as características cultu-
rais da alimentação dos grupos beneficiados. O fracasso de algumas dessas políticas
pode estar associado à ignorância de informações por parte de seus executores. Ao
desconhecer a realidade cultural de uma determinada população, eles criam políticas
que não atendem adequadamente às necessidades desses grupos. Um exemplo é o
que aconteceu com o “Programa do Leite e Óleo”, ligado à Secretaria de Saúde do
Estado do Rio de Janeiro, que visa atender famílias em situação de fome e desnutrição.
Nesse programa, são distribuídos leite em pó e óleo de soja para que sejam misturados,
já que essa mistura proporciona um aumento calórico. É explicado às pessoas aten-
didas pelo programa que o óleo facilita a absorção dos nutrientes do leite. Entretanto,
grande parte das mães não prepara essa mistura! Por quê? Simplesmente porque nes-
ta população não se tem o hábito de beber leite com óleo, mas, sim, beber o leite e usar
o óleo para fritar, cozinhar, etc. Esse é um caso de ineficiência de uma política pública
que não considera as práticas alimentares nativas.

2.7  Perspectivismo e Etnocentrismo


Em muitos textos sobre antropologia e nutrição faz-se referência aos termos
“perspectivismo” e “etnocentrismo”, por isso, é importante que o leitor saiba
do que se tratam.
O perspectivismo defende que indivíduos diferentes percebem a realidade
diferentemente, ou seja, cada indivíduo tem sua perspectiva frente a realidade. O
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro é bastante citado nesta temática, tendo
desenvolvido trabalho sobre o “perspectivismo ameríndio” (Castro, 1996). Castro
(1996) justifica que o estímulo para se estudar este tema são as numerosas refe-
rências, na etnografia amazônica, a uma teoria indígena segundo a qual o modo
como os humanos veem os animais e outras subjetividades que povoam o uni-
verso (no caso, deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos,
fenômenos meteorológicos, vegetais e até mesmo objetos e artefatos) é profun-
damente diferente da maneira como esses seres os veem e se veem.
Conforme colocado no trabalho desse autor, quando se diz que esses seres
“se veem” ou “veem os outros”, se refere às suas percepções, e não realmente a
conceitos, ainda que, em alguns casos, a ênfase seja mais no aspecto categorial

64 • capítulo 2
que sensorial do fenômeno. Em resumo: os animais “são gente”, ou seja, se
veem como pessoas. Esta concepção está frequentemente associada à ideia de
que a forma manifesta de cada espécie é um mero envelope (isto é, uma “rou-
pa”) que esconde uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos
olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como o xamã.

Xamã é um sacerdote tradicional do xamanismo (crença que engloba práticas de magia


e evocações com o objetivo de estabelecer contato com o mundo “espiritual”). Acredi-
ta-se que o xamã possua contato com o mundo dos espíritos, e que tenha capacidade
de profecia ou cura. Também pode ser chamado de mago, feiticeiro, curandeiro, bruxo,
pajé ou médico. Segundo a crença, o xamã é o líder inspirado pelos espíritos para
conduzir as cerimônias do xamanismo, e durante esses rituais, entra em estado de
transe, penetra em reinos sobrenaturais e encontra soluções para os problemas de
uma pessoa ou de um grupo. Cada cultura tem uma forma diferente de reconhecer um
xamã, podendo tanto ser alguém do sexo masculino quanto ou feminino (Guimarrães e
Cabral, 2015a, 2015b).

E, de acordo com Castro (1996), essa “forma interna”, relatada acima, é o


“espírito do animal”, ou seja, uma intencionalidade idêntica à consciência
humana, uma espécie de esquema corporal humano oculto sob uma máscara
animal. É importante, entretanto, observar que o perspectivismo não engloba
todos os animais, a ênfase parece estar naquelas espécies que desempenham
um papel simbólico e prático de destaque, como os grandes predadores, rivais
dos humanos, e as presas principais dos humanos.

De acordo com o “perspectivismo”, o mundo é povoado de muitas espécies de seres


(inclusive seres não-humanos) dotados de consciência e de cultura, e cada uma delas
vê a si mesma e também vê as outras espécies de maneira especial: cada uma se vê
como humana, vendo todas as demais como não-humanas, isto é, como espécies de
animais ou de espíritos (Castro, 1996). Uma explicação que resume bem o sentido de
“perspectivismo” é a colocada pelo autor Århem (1993): “trata-se da concepção, co-
mum a muitos povos do continente, segundo a qual o mundo é habitado por diferentes
espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não humanas, que o apreendem segundo
pontos de vista distintos”.

capítulo 2 • 65
CONEXÃO
Com relação ao conceito de “etnocentrismo”, faz-se bastante pertinente a leitura do livro
intitulado: “O que é Etnocentrismo” (Rocha, Everardo. O que é Etnocentrismo. São Paulo:
Brasiliense, 2004). Por meio deste livro você poderá aprofundar seus conhecimentos sobre
este assunto! Vale a pena conferir!

Segundo Ribeiro (2015), limitar-se à cultura em que se está inserido, desco-


nhecendo ou depreciando as demais culturas de povos dos quais não se faz parte,
pode levar o indivíduo a uma visão estreita das dimensões da vida humana. O
etnocentrismo trata-se, portanto, de uma visão que toma a cultura do outro como
algo menor, sem valor, errado, primitivo. A visão etnocêntrica desconsidera a ló-
gica de funcionamento de outra cultura, limita-se à visão que possui como refe-
rência cultural (considerada absoluta). E nesse sentido, a herança cultural que
o sujeito recebe de seus pais e antepassados contribui muito para isso, pois, ao
mesmo tempo em que educa o indivíduo, também o condiciona (Ribeiro, 2015).
Aproximando o conceito de etnocentrismo de situações reais do cotidiano
têm-se como exemplo o caso da pouca vestimenta dos índios que causam estra-
nheza, tomando como base o costume do homem urbano de um grande centro
brasileiro, certamente; ou o caso de um estrangeiro que chega ao Brasil, vindo
de um país com mais formalidade e impessoalidade no trato, este pode estra-
nhar a cordialidade e a simpatia com que possivelmente será recebido, mesmo
sem ser conhecido. Estes exemplos ilustram as diferenças culturais e no mo-
mento em que se entra em contato com uma cultura muito diferente da cultura
própria, pode-se dizer que cada indivíduo considera a sua cultura como mais
sofisticada do que as culturas dos demais (Ribeiro, 2015).

De forma geral, “etnocentrismo” trata-se de uma avaliação pautada em juízos de valor


daquilo que é considerado diferente. Um exemplo dentro do contexto da Alimentação
Humana é que enquanto alguns animais como escorpiões e cães não fazem parte da
cultura alimentar do brasileiro, em alguns países asiáticos estes animais são prepara-
dos como alimentos, sendo vendidos na rua comumente, da mesma forma como aqui
se está habituado a comer pastel ou pipoca. Assim, o que aqui é exótico, lá não neces-
sariamente o é (Ribeiro, 2015). A importância desse conhecimento para o profissional
de saúde é que ele precisa saber reconhecer e respeitar esses acontecimentos.

66 • capítulo 2
2.8  Cultura Alimentar e o Cotidiano dos
Indivíduos

De acordo com Mintz (2001), pode-se dizer que as situações em relação à comi-
da são aprendidas bem cedo e que o que se aprende está inserido em um corpo
substantivo de materiais culturais historicamente derivados. Visto por esse ân-
gulo, a comida e o ato de comer assumem uma posição central no aprendizado
social por sua natureza vital, essencial e cotidiana. Este aprendizado, por sua
vez, está inserido em diferentes contextos culturais, o que determina distintas
categorizações dos alimentos, conforme os princípios de exclusão e associação
entre alimentos, as prescrições e as proibições tradicionais e religiosas, os ritos
da mesa e da cozinha, e toda a estrutura da alimentação cotidiana do local em
que o indivíduo está inserido.
Segundo Braga (2004), os diferentes usos de cada alimento, bem como a
ordem, a composição, as combinações, a hora e o número das refeições rea-
lizadas por dia estão codificados de um modo preciso. Tais características de-
terminam a eleição, o preparo e o consumo dos alimentos, e são resultado de
um processo social e cultural que apresenta significado e razão na história de
cada sociedade ou cultura. Além disso, quando se fala em alimentação, é preci-
so abordar também os contextos marcados pela sua ausência. Ou seja, deve-se
pensar também sobre a fome e seus significados, bem como nas estratégias de
sobrevivência criadas pelos grupos vulneráveis para suprir a fome, o que pode
contribuir muito para compreender suas causas e, posteriormente, sua erra-
dicação. Entretanto, o conhecimento sobre estes aspectos ainda é incipiente.
Ainda existem poucos trabalhos científicos que levam em consideração os
aspectos simbólicos dos alimentos, e, sobretudo, a alimentação e seus signi-
ficados do ponto de vista dos comedores. Conforme colocado no trabalho de
Lívia Barbosa (2007), apesar de muito se escrever sobre alimentação, há poucos
estudos que falem sobre “comida” (ou seja, sobre o quê, como, quando, com
quem, em que local e de que forma os alimentos selecionados pelos indivíduos
são ingeridos) e também poucos trabalhos que abordem os “hábitos alimen-
tares” em si (isto é, que englobem o conhecimento sobre a “comida” e sobre
as atitudes das pessoas em relação a ela), sob a perspectiva das próprias po-
pulações que têm esses hábitos, pois geralmente a abordagem empregada nos
estudos é nutricional ou econômica (Barbosa, 2007).

capítulo 2 • 67
Os debates promovidos pela sociedade no Brasil e o fato de este país ocupar
papel protagonista como provedor de alimentos mostram que há alternativas
para se debater e se produzir conhecimento sobre o tema. De certa forma, a an-
tropologia da alimentação se propõe a realizar esses estudos, mas, apesar das
possibilidades que são apresentadas nos estudos, os antropólogos têm ainda
pouco impacto sobre as políticas alimentares e nutricionais (talvez por estarem
distantes de questões que, de fato, envolvem diretamente as estratégias do se-
tor público neste sentido, e que poderiam proporcionar um melhor desenho
de políticas de intervenção e de verificação do estado nutricional, por meio da
compreensão sobre os sistemas alimentares).
Segue abaixo uma tabela que reúne alguns temas de estudo relacionados
a cultura alimentar que poderiam ajudar na resolução dos problemas alimen-
tares vivenciados no cotidiano das populações (Tabela 2.3). As possibilidades
de pesquisa nesta área não se esgotam com as opções aqui propostas, tendo
em vista o caráter dinâmico da cultura e as mudanças culturais que esse dina-
mismo proporciona. Porém, o que é aqui apresentado, serve de ponto de par-
tida para o leitor: é importante que o futuro profissional de saúde tenha essas
questões em mente, para que quando já estiver atuando, procure levantar essas
informações dentro da realidade da população que atende e usá-las a favor des-
sas pessoas.

Estudos mostrando como as famílias, grupos e indivíduos organizam seus recursos


alimentares potenciais;

Pesquisas que apontem os efeitos dos diferentes tipos de políticas alimentares e eco-
nômicas sobre a escolha dos alimentos, os tipos de alimentos consumidos, e o signifi-
cado desses alimentos e desse consumo;

Estudos que apresentem uma compreensão sobre os problemas de saúde da popula-


ção relacionados com a dieta (exemplos: obesidade, hipertensão e diabetes), os quais
podem estar relacionados aos gostos alimentares daquela comunidade.

Tabela 2.3 – Temas de pesquisas que poderiam ajudar na reflexão sobre os problemas ali-
mentares cotidianos e na sua resolução. Fonte: Braga (2004).

68 • capítulo 2
2.9  Transformações Sofridas pela Cultura
Alimentar

Sabe-se que apesar de toda a influência que a tradição cultural exerce no hábito
alimentar dos indivíduos, conforme vem sendo colocado neste livro, ao longo
do tempo esses hábitos também vão sofrendo outros tipos de influência e vão
se modificando. Como é importante que o profissional de saúde saiba disso
e considere essas alterações, esta sessão do capítulo tem o objetivo de trazer
algumas informações relevantes sobre as transformações que a cultura alimen-
tar vem sofrendo nos dias de hoje, de modo que o futuro profissional de saúde
tenha subsídios para suas ações.
Nas sociedades contemporâneas dentre as mudanças nos padrões de ali-
mentação, podem ser observadas a redução dos carboidratos complexos e das
fibras, e o aumento da gordura saturada, açúcar e alimentos refinados (Popkin,
1994). Juntamente com essas mudanças, notam-se algumas alterações orgâni-
cas como: a redução dos índices de baixo peso e o aumento dos casos de so-
brepeso (Monteiro, Mondini e Costa, 2000). Essas condições se relacionam
também a contextos socioeconômicos e culturais que, resumidamente, envol-
vem crescimento e concentração de renda em meio à acelerada urbanização
(Drewnowski e Popkin, 1997). Tais dados são interessantes para despertar o
futuro profissional de saúde para a importância de se conhecer o perfil “orgâni-
co” da população que assiste.
Segundo Veloso e Freitas (2008), atualmente, observa-se uma transição ali-
mentar e nutricional, uma condição que vêm ocorrendo lentamente nas socie-
dades como consequência da transição demográfica (alterações nas taxas de
fertilidade e mortalidade) e da transição epidemiológica (mudanças no padrão
de saúde/doença, com redução das doenças infecciosas associadas à desnutri-
ção e ao aumento das doenças crônico-degenerativas relacionadas a um estilo
de vida urbano-industrial). Dessa maneira, nota-se uma inter-relação desses fe-
nômenos sociais e biológicos que move a vida das populações (Popkin, 1994).
O autor Barry Popkin (1994) desenvolveu um modelo de cinco padrões
para ilustrar as mudanças alimentares ao longo dos séculos, e os cha-
mou de “Collection of food, Famine, Receding famine, Degenerative dise-
ase e Behavioral change”4 . Esse autor mostra que há muito tempo surgem
4  O termo poderia ser traduzido como “coleção de alimento, fome, recessão da fome, doença degenerativa e
mudança de comportamento”.

capítulo 2 • 69
enfermidades associadas a essas mudanças e, para ele, a qualidade dos alimen-
tos está marcada pela lentidão dos processos históricos das populações até o
século XIX, tendo o século XX registrado a aceleração em direção às mudanças
alimentares. Estas alterações vêm ocorrendo em todas as partes do mundo,
relacionadas, como já citado, ao aumento da ingestão de gorduras e açúcares,
alimentos de origem animal e os processados, conforme aponta este mesmo
autor em um trabalho mais recente (Popkin, 2001).
De acordo com o pesquisador Carneiro (2003), no entanto, o açúcar refina-
do talvez tenha sido o mais importante fenômeno alimentar da história moder-
na, considerando sua importância econômica e suas consequências sociais e
culturais. O açúcar se tornou o principal produto de importação pela Inglaterra
na segunda metade do século XVII e representou uma conexão entre as trans-
formações na alimentação e a economia capitalista contemporânea. A escravi-
zação de milhares de africanos para trabalhar nos canaviais e nos engenhos de
açúcar do Novo Mundo foi uma das principais consequências sociais do comér-
cio açucareiro aliadas à forte influência gastronômica do açúcar que passou a
ser uma necessidade básica de quase toda a população mundial. Conforme
aponta o trabalho de Drewnowski e Popkin (1997), a incorporação desses novos
alimentos representou alterações dietéticas no preparo e sabor, e resultou em
novas preparações que proporcionaram uma maior diversidade no cotidiano
alimentar dos indivíduos, diferentemente daquelas dietas ricas em carboidra-
tos complexos que, embora saudáveis, proporcionam uma variedade limitada
de opções; tornando a alimentação monótona (Drewnowski e Popkin, 1997).
Segundo Veloso e Freitas (2008), uma maior diversidade na alimentação se
tornou possível no século XX, tanto para os ricos quanto para os pobres, assim
que houve a possibilidade de os ricos incorporarem carnes, leite, ovos e queijos
ao seu consumo diário, e quando os pobres tiveram a disponibilidade de gordu-
ras vegetais mais baratas, a partir da segunda metade do século XX, incorporan-
do ao seu cardápio diário, novos alimentos com preços mais acessíveis, à base
de gorduras vegetais e açúcares simples (por exemplo: produtos de pastelaria
e refrigerantes). O incremento na produção de gorduras vegetais, que se deu
nesse momento da História, foi responsável em grande parte pelas mudanças
alimentares nos países em desenvolvimento, proporcionando adição de uma
maior proporção de gordura às dietas (Drewnowski e Popkin, 1997). E, de ma-
neira geral, o aumento de novos produtos alimentares foi um fenômeno global
(Chopra, Galbraith e Darntonhill, 2002).

70 • capítulo 2
A Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO)
(Food and Agricultural Organization) é uma agência especializada das Nações
Unidas que lidera os esforços internacionais para derrotar a fome. Ele serve
tanto os países desenvolvidos quanto os em desenvolvimento e atua como um
fórum neutro, onde todas as nações se reúnem como iguais. A FAO é também
uma fonte de conhecimento e informação, e ajuda os países em desenvolvi-
mento e países em transição a modernizar e melhorar a agricultura, silvicultura
e pesca, garantindo uma boa nutrição e segurança alimentar para todos. Com
relação à disponibilidade de alimentos para consumo, dados da FAO para qua-
se todos os países do mundo, mostram que a disponibilidade calórica per capi-
ta mundial aumentou aproximadamente 450 Kcal per capita/dia entre os anos
de 1960 e 1990, alcançando um valor de 2803 Kcal (World Health Organization,
2003).
Ainda de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (World
Health Organization), publicados em 2003, simultaneamente a isso, acontece-
ram mudanças quantitativas e qualitativas na composição dos macronutrien-
tes, com tendência para o aumento na participação das proteínas na dieta,
porém com distribuição desigual entre os países. Observou-se aumento das
proteínas de origem vegetal nos países em desenvolvimento e um valor três
vezes maior de proteínas de origem animal nos países industrializados. Além
disso, notou-se também um aumento de 20g per capita/dia no consumo de
gorduras. Dessa forma, nesses países, cerca de 10% das calorias estão sendo
fornecidas por ácidos graxos saturados. A energia proveniente da ingestão de
cereais, se manteve estável na maioria dos países, mas, apesar disso, apresenta
redução nos países em desenvolvimento, onde as populações mais pobres têm
pouco acesso a alimentos como trigo e arroz. E quanto à disponibilidade de fru-
tas e vegetais para o consumo mundial, em 1998 apenas seis regiões do mundo
tinham suficiência para o valor recomendado de 400 g per capita/dia (World
Health Organization, 2003).
Na Europa e na América do Norte, mais da metade das calorias consumidas
pela população são provenientes de gorduras e açúcares, e a ingestão de grãos
integrais vem sendo substituída pela de grãos refinados. Nos Estados Unidos,
98% da farinha de trigo consumida é refinada (Chopra, Galbraith e Darnton-
Hill, 2002). Para estes autores, as dietas tradicionais estão sendo substituídas
por este novo padrão.
Quanto ao Brasil, as pesquisas mostram que este se encontra em um estágio
avançado da transição nutricional, com uma dieta que se aproxima do padrão

capítulo 2 • 71
“ocidental”, atingindo tanto homens quanto mulheres e crianças (Monteiro,
Mondini e Costa, 2000). Esta ocidentalização da dieta, a globalização dos hábi-
tos alimentares, a importação de fast foods, o marketing das grandes empresas
transnacionais e as transformações na produção/processamento dos alimen-
tos das últimas três décadas têm contribuído para transformações diversas na
estrutura da alimentação (Carneiro, 2003).
As modificações nos hábitos alimentares tornam-se mais preocupantes a
medida que ocorre uma crescente redução da atividade física praticada pelos
indivíduos, o que se constitui em fator de risco para doenças crônicas. O profis-
sional de saúde deve atentar-se sempre para o fato de que a contribuição de uma
dieta saudável para a saúde e para a qualidade de vida das pessoas já está esta-
belecida na literatura, sendo que a alimentação ocupa um lugar de destaque na
prevenção de doenças e manutenção da saúde, com evidências convincentes
para inúmeras enfermidades. Por isso, é importante que, mesmo em meio a
tantas transformações nos hábitos alimentares dos indivíduos, esses profis-
sionais incentivem o consumo dos alimentos que têm sido apontados como
protetores para doenças cardiovasculares, como: frutas, vegetais, peixe, cereais
integrais e castanhas (Ness e Powles, 1997; Truswell, 2002; Kris-Etherton et al.,
2001), bem como uma maior prática de atividades físicas.

REFLEXÃO
De acordo com Ribeiro (2015), o etnocentrismo está entre as principais causas da intolerân-
cia entre as pessoas.
É inevitável que existam choques culturais, pois as culturas naturalmente possuem bases
e estruturas diferentes, dando significação à vida de formas distintas. Porém, o ponto alto
da questão do etnocentrismo não está apenas em se constatar as diferenças, mas sim em
aprender a lidar com elas (Ribeiro, 2015).
Deixa-se aqui essas palavras como reflexão. Se o profissional de saúde toma conheci-
mento do outro sem aceitar sua lógica de pensamento e seus hábitos, pode-se gerar com
isso uma visão etnocêntrica e preconceituosa, o que pode até mesmo se desdobrar em
conflitos diretos. É preciso, portanto, que haja um limite bem estabelecido para a falta de
tolerância com aquilo que é diferente. E no caso específico daqueles que atuam na área da
saúde esta necessidade faz-se ainda maior, uma vez que o objetivo central é a promoção,
recuperação e/ou manutenção da vida.

72 • capítulo 2
LEITURA
Diante da temática trazida neste capítulo recomenda-se à título de leitura complementar a
leitura do documento intitulado “Alimentação e Cultura”, publicado em 2001 pelas autoras
Elisabetta Recine e Patrícia Radaelli, para melhor assimilação do conteúdo aqui abordado.
Entre os assuntos apresentados nesta obra, destacam-se: a influência que a história exerce
sobre a cultura alimentar e recebe dela; o efeito da cultura na nutrição humana; a alimenta-
ção consumida nas diferentes regiões do Brasil e os alimentos mais presentes na cultura do
brasileiro.
Recomenda-se também, como leitura complementar, o livro “Alimentação, Sociedade e
Cultura”, de Jesús Contreras Hernández e Mabel Gracia Arnáiz (Contreras e Gracia, 2011).
Este livro é esclarecedor acerca do estado da arte sobre a temática da alimentação/cultura/
antropologia.

Conclusões:

Existem aspectos simbólicos revestindo a comida, o modo de preparar e o


modo de comer os alimentos nas sociedades humanas. Nisto, a cultura e a an-
tropologia têm atuação fundamental. A busca, a seleção, o consumo e a proi-
bição de certos alimentos existem em todos os grupos sociais e são norteados
por regras sociais diversas, carregadas de significações, cabendo, portanto, ao
profissional que lida com alimentação humana, apreender a especificidade
cultural dessas questões, as quais precisam ser explicadas em cada contexto
particular, pois o alimento, além de seu caráter utilitário, também se constitui
em uma linguagem, a qual é relacionada ao contexto em que se encontra.
Diante do exposto neste capítulo, pensando na vasta diversidade cultural
que permeia a alimentação das populações, fica evidente que cabe ao profis-
sional de saúde evitar uma postura autoritária onde seu conhecimento, por ser
científico, é o verdadeiro, e aquele do seu paciente ou público alvo é visto como
fruto de ignorância e rebeldia. Recomenda-se que este profissional não leve o
seu conhecimento pronto ao grupo, mas que o construa a partir do saber do ou-
tro, transformando em ações práticas o conteúdo teórico aqui disponibilizado.

capítulo 2 • 73
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76 • capítulo 2
3
Aspectos
Socioeconômico-
Culturais da
Alimentação
Como os indivíduos selecionam os alimentos que vão ingerir? As escolhas ali-
mentares baseiam-se apenas nos tipos de alimentos? No teor de nutrientes em
cada um deles? Na quantidade necessária para sanar a fome?
A alimentação dos indivíduos, bem como os hábitos e costumes a ela rela-
cionados, são determinados pelas condições culturais, sociais, econômicas e
tecnológicas a que são submetidos os grupos humanos, e fazem parte da iden-
tidade da própria comunidade ou sociedade (Silveira e Taddei, 2009).
Há na literatura científica vários estudos que descrevem a mudança dos
hábitos alimentares ao longo dos tempos, um exemplo deles é o trabalho de
Flandrin e Montari (1998). Por meio de estudos como este, é possível constatar,
ao longo da história, mudanças radicais e progressivas no consumo de alimen-
tos, determinadas pelas alterações sociais e tecnológicas.
Neste capítulo, serão discutidos os hábitos alimentares, suas relações com
o processo saúde-doença na sociedade contemporânea e os aspectos socioeco-
nômico-culturais relevantes para a prática do profissional de saúde no aconse-
lhamento dos indivíduos.

Para o sociólogo alemão Ferdinand Tönnies (1947), o termo “comunidade” é produto do


desenvolvimento natural, das relações de parentesco, sendo definido pelo ato de viver junto,
de forma íntima, como ocorre, por exemplo, em uma família. Ou seja, na comunidade as
relações são marcadas pela proximidade e intensidade. Enquanto isso, o termo “sociedade”
já possui caráter “artificial”, devido à falta de fortes elos de ligação provenientes de ligações
estabelecidas naturalmente. A sociedade pode ser então definida como uma associação na
qual se ingressa consciente e deliberadamente, unida por um acordo racional de interes-
ses, designando, portanto, agrupamentos humanos que se caracterizam pelo predomínio de
contatos sociais secundários e impessoais (Arenari, 2003; Tönnies, 1947).

OBJETIVOS
Que o aluno, futuro profissional de saúde, desenvolva a capacidade de:

•  Refletir de maneira abrangente sobre as condições socioeconômico-culturais que afetam


os indivíduos;
•  Compreender a relação existente entre a alimentação e os aspectos sociais, econômicos
e culturais, de modo a promover práticas profissionais mais próximas aos problemas obser-
vados na vida cotidiana.

78 • capítulo 3
3.1  Influência da Cultura, Tecnologia, Renda
e Escolaridade nas Escolhas Alimentares

Como já abordado nos capítulos anteriores, não é apenas ao fator biológico que
a alimentação humana está ligada. Há vários fatores que a influenciam, e nisso
os aspectos socioeconômico-culturais têm especial participação.
Hábito alimentar não é apenas o que se come, mas também onde, como,
com que frequência e o que se pretende simbolizar ou representar com o ali-
mento (Mintz, 2001). O hábito alimentar constitui-se como um fenômeno de
grande complexidade que envolve componentes psicológicos, fisiológicos e so-
cioculturais (Proença e Poulain, 2006), os quais são importantes e devem ser
considerados. Ao se analisar programas institucionais para gerar mudança nos
hábitos de consumo alimentar dos indivíduos, percebe-se que muitos projetos
que têm como objetivo modificar o padrão alimentar de populações do terceiro
mundo fracassam por não considerar o peso e o valor da cultura sobre a alimen-
tação e por supervalorizar o tecnicismo, dando relevância apenas para aspectos
bioquímicos e nutricionais (Bleil, 1998).
Por isso, antes de aprofundar o conhecimento sobre os aspectos socioeco-
nômicos e culturais que modulam o hábito alimentar, e, levando em conside-
ração tudo o que já foi abordado no presente livro, é importante ressaltar al-
gumas funções sociais da alimentação, que podem ser expressas conforme as
premissas abaixo, de acordo com os autores Proença e Poulain (2006):

1. Quando se ingere um alimento, são ingeridos, além dos nutrientes, os


sinais e símbolos que ele representa, dessa maneira, a alimentação participa da
construção e da manutenção das identidades sociais.
2. A alimentação é uma maneira do indivíduo afirmar uma posição social,
visto que os grupos sociais se mantêm e se reconhecem por suas preferências
em relação ao consumo, preparo e formas de ingestão dos alimentos.
3. A alimentação tem a capacidade de manter ligações sociais, quando
são oferecidos alimentos e bebidas a visitas, por exemplo, ou de motivar grupos
de encontros cujo motivo gira em torno da comida (como quando crianças e
adolescentes se encontram com os amigos para comer pizza ou ir a um restau-
rante da moda).

capítulo 3 • 79
4. A alimentação é embutida de referências temporais, tanto no sentido
de recordar o passado (como em situações em que o alimento que faz lembrar
a infância), quanto no sentido de atualidade (ao se fazer uma dieta da moda,
por exemplo). Além disso, é importante salientar que os indivíduos se alimen-
tam sobretudo baseados nos seus valores e crenças em relação aos alimentos,
mesmo se têm boas informações sobre aspectos relativos à saúde e nutrição,
conforme ilustra De Cicco et al (2006) em pesquisa que mostrou que as crenças
estão associadas a tentativas de emagrecimento por parte de mulheres adoles-
centes e adultas – aquelas que se julgavam acima do peso tendiam a adotar com
maior frequência o jejum como forma de “desintoxicar” o organismo e se utili-
zavam mais de dietas (De Cicco et al, 2006).

O entendimento e a assimilação dessas premissas pelo profissional de saú-


de são importantes para que este tenha em mente os valores que a alimentação
pode representar para os grupos sociais, para que considere os aspectos que
podem interferir e modular os hábitos alimentares, e para que, desta forma, te-
nha melhores condições de elaborar e/ou direcionar de maneira mais eficiente
as orientações nutricionais e dietéticas para seu paciente.

A refeição, além de nutrir, possui também função social. Isso se observa desde de a pré
-história até os dias de hoje, em festas, banquetes, cerimônias, refeições de negócios,
refeições entre políticos, refeições em família, etc. Nossos ancestrais coletavam juntos
sementes, caças e peixes e não comiam esses produtos individualmente, eles os leva-
vam ao grupo e comiam-nos comunitariamente (Boff, 2009). Por meio das refeições
conjuntas observa-se que o ato de dividir a comida estabelece relações e também as
estreita (Rodrigues, 2012). Conforme aponta Joannés (1996): “todo acordo solene
que reúna indivíduos, e, sobretudo, grupos familiares concretiza-se pela realização de
uma refeição em comum. Ela simboliza o acordo, a partilha da bebida e da comida, que
constitui a contrapartida material da redação de um contrato. A refeição une os par-
ticipantes... Comemos pão, bebemos cerveja e nos untamos de óleo” (Joannés, 1996,
p.56). Observa-se que a partilha do alimento é o elemento principal (representando
fraternidade e estabelecendo laços de união), tendo ela maior importância que a com-
posição da refeição em si (Joannés, 1996; Rodrigues, 2012).

80 • capítulo 3
CONEXÃO
Para compreender melhor as mudanças nos hábitos alimentares que têm sido observadas
nas últimas décadas, bem como os aspectos econômicos, sociais, culturais e nutricionais a
elas relacionados, veja o link:
http://www.scielo.br/pdf/rsp/v31n2/2214.pdf. Ele mostra um estudo sobre o consumo
alimentar sob uma abordagem multidisciplinar, onde se consideram os diferentes agentes
sociais, suas lógicas, estratégias e as relações que se estabelecem entre eles, ao longo do
tempo, para entender como os comportamentos alimentares se constroem e se transformam.
Leia e confira!

A seguir, serão discutidos alguns dos aspectos socioeconômicos e culturais


mais relevantes a serem considerados pelo profissional de saúde na prática di-
ária.

3.2  Aspectos Socioeconômico-Culturais


a Serem Considerados na Conduta do
Profissional de Saúde
As condições demográficas e econômicas da região em que os indivíduos resi-
dem devem ser consideradas entre os aspectos socioeconômicos, pois influen-
ciam a disponibilidade e a diversidade de alimentos para a população local. Im-
portante lembrar também que o consumo dos alimentos em época de colheita
deve ser estimulado, pois estes são mais interessantes tanto do ponto de vista
nutricional, quanto gustativo e econômico (Silveira e Taddei, 2009).
Além disso, é preciso considerar as consequências da industrialização. Este
processo proporcionou a abundância dos alimentos industrializados e a redu-
ção de seus preços, o que modificou os hábitos alimentares em todo o mundo
(Silveira e Taddei, 2009).
As empresas de alimentos, devido a interesses econômicos e comerciais,
para se manterem competitivas no mercado passaram a produzir alimentos
muito apetitosos e de baixo preço, o que resultou em produtos de alta densi-
dade energética, ricos em gorduras, sal e açúcar e pobres em fibras, vitaminas

capítulo 3 • 81
e minerais. O grande consumo desses alimentos, somado ao aumento do se-
dentarismo que tem sido observado na faixa etária infanto-juvenil, resultou na
criação de um ambiente altamente obesogênico. Vários trabalhos na literatura
evidenciam essa situação, como o estudo desenvolvidos por Taddei e colabora-
dores, em 2002 e o trabalho de Drewnowski e Popkin, de 1997.
As consequências dessas transformações no ambiente alimentar já são sen-
tidas e evidenciadas no aumento das prevalências de obesidade em crianças,
adolescentes e adultos, bem como nas crescentes prevalências de doenças as-
sociadas à obesidade, como dislipidemia, hipertensão e diabetes (OMS, 1998).

A dislipidemia é um distúrbio que altera os níveis dos lipídeos (gorduras) no sangue.


Essas alterações podem incluir elevadas concentrações de colesterol total, de triglicé-
rides, de colesterol de lipoproteína de baixa densidade (LDL colesterol – o chamado
“colesterol ruim”) e/ou baixos níveis de colesterol de lipoproteína de alta densidade
(HDL colesterol – o chamado “colesterol bom”). A dislipidemia é considerada um dos
principais determinantes da ocorrência de doenças cardiovasculares e cerebrovascula-
res, dentre elas aterosclerose (espessamento e perda da elasticidade das paredes das
artérias), infarto agudo do miocárdio, doença isquêmica do coração (diminuição da irri-
gação sanguínea no coração) e acidente vascular cerebral (derrame) (ANVISA, 2011).

Outro importante delimitador das escolhas alimentares é a renda dos indi-


víduos. A relação entre estado socioeconômico baixo e saúde precária constitui
uma questão complicada, e é influenciada pelo gênero, idade, cultura, ambien-
te, rede social e comunitária, estilo de vida dos indivíduos e os comportamen-
tos em relação à saúde (Acheson, 1998).
Uma revisão sistemática dos estudos populacionais conduzidos entre os
anos de 1985 e 1999 em 15 países da Europa, com indivíduos adultos, mostra-
ram claras diferenças entre as classes sociais e o consumo relativo dos alimen-
tos e nutrientes. Os grupos de nível econômico baixo, especificamente, têm
uma maior tendência para realizar uma dieta desequilibrada e consumir uma
quantidade menor de frutas e verduras (De Irala-Estevez, 2000). Esta situação
pode conduzir, por um lado, à uma carência em micronutrientes e simultane-
amente a um excesso de consumo energético que resulta em excesso de peso
e obesidade, entre os membros de uma mesma comunidade, dependendo da
idade, sexo e nível de privação do grupo.

82 • capítulo 3
Além disso, quando se fala de grupos com rendimentos baixos, que apre-
sentam dificuldades em seguir uma dieta saudável e equilibrada, refere-se na
maioria das vezes à insegurança alimentar.

O termo insegurança alimentar refere-se à não realização do direito das pessoas ao


acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem
comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas
alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam
ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (conforme publicado no Art.
3º da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, LOSAN, Lei nº 11.346, de 15
de setembro de 2006, disponível em: <http://pjf.mg.gov. br/conselhos/seguranca_ali-
mentar/documentos/conceitosbasicos%20SAN.pdf>.

Uma pesquisa realizada no Reino Unido com 680 homens e mulheres de


baixa renda, mostrou que, nesta região, os três principais obstáculos à reali-
zação de uma dieta saudável e equilibrada são os custos, a acessibilidade e a
falta de conhecimento (Dibsdall, 2003). Estes fatores vão conduzindo ao desen-
volvimento de zonas conhecidas como “desertos alimentares”. Esse exemplo
demonstra que o hábito de consumir alimentos ricos em energia e pobres em
nutrientes pode ser consequência da falta de meios econômicos para comprar
alimentos mais saudáveis.
O nível de educação e econômico determina as escolhas e os comportamen-
tos alimentares que pode ultimar em doenças relacionadas com a dieta. A ori-
gem de muitos dos problemas que afetam os indivíduos com rendimentos bai-
xos resulta da necessidade de uma abordagem multidisciplinar, para encarar
as necessidades sociais e atenuar as desigualdades em matéria de saúde.
É importante entender aqui, que os fatores influenciadores das escolhas
alimentares não se baseiam unicamente nas preferências de cada indivíduo,
mas também são condicionados por circunstâncias sociais, culturais e eco-
nômicas. Os grupos com rendimentos baixos enfrentam desafios específicos
quando tentam alterar a sua dieta, assim é necessário encontrar soluções con-
cretas para estes grupos. A população em geral também enfrenta problemas na
hora de mudar a sua dieta, podendo utilizar ferramentas de ajuda, dadas pela
psicologia social.

capítulo 3 • 83
Em uma revisão focada na relação entre obesidade e qualidade da alimenta-
ção, densidade energética e custo, os estudiosos Drewnowski e Specter (2004)
observaram que alimentos com elevada densidade energética eram mais bara-
tos e possuíam sabor mais agradável. E outros autores (como Crespo et al, 1999;
Baghurst et al, 1990 e Jeffery e French, 1996) constataram que indivíduos de
classes sociais menos favorecidas, além de terem menor nível de atividade físi-
ca, consumiam menos alimentos com baixa caloria (verduras, legumes, frutas,
carnes magras) e baixo teor de gordura que indivíduos pertencentes às classes
sociais mais altas, o que é bastante preocupante.
Por esses motivos, devido ao grande impacto que a renda tem no hábito ali-
mentar do indivíduo e de sua família, o profissional de saúde deve estar atento à
situação econômica de seus pacientes e formular condutas passíveis de realiza-
ção e condizentes com a realidade dos sujeitos que atende, para que haja maior
probabilidade de as recomendações serem seguidas e surtirem efeito positivo.
A escolaridade é outro fator que interfere no hábito alimentar, indepen-
dentemente da renda. O nível educacional e o consumo de frutas e hortaliças
apresentam associação positiva em diversos estudos (como nos de Trudeau et
al, 1998 e no de Havas et al, 1998), ou seja, percebe-se que quanto maior o ní-
vel educacional das pessoas, maior é a chance delas ingerirem quantidade su-
ficiente ou satisfatória de frutas e hortaliças. Enquanto, por outro lado, a baixa
escolaridade se associa à alimentação pouco saudável, com maior consumo de
refrigerantes, doces, batatas fritas e massas (Jansen et al, 2006).
O profissional de saúde que conhece os conceitos e as atitudes sobre ali-
mentação do grupo que atende pode adequar a linguagem e o conteúdo de suas
orientações às características deste grupo, além de ter a possibilidade de escla-
recer possíveis erros de informação, mitos e crenças.
Respondendo às questões levantadas no início deste capítulo, a seleção do
que é considerado comestível, na maioria das vezes, não está fundamentada
apenas na fisiologia e na bioquímica ou nas propriedades nutricionais do ali-
mento. Mas sim em um sentimento de ordem que envolve as dimensões ética,
estética e dietética determinadas pela cultura (Dutra, 2005; Maciel, 2001).
Conforme abordado no capítulo I deste livro, o homem é onívoro, isto é,
come de tudo, porém, não come tudo. Esse trocadilho com os termos “come de
tudo” e “não come tudo” parece insignificante num primeiro olhar, porém, se
analisado em profundidade, percebe-se que diz muito acerca do hábito alimen-
tar humano e sintetiza muitas informações importantes, informações estas

84 • capítulo 3
inclusive descritas neste livro. Uma boa interpretação para esse trocadilho é
que a alimentação é, na verdade, considerada um pilar da identidade cultural,
sendo que o que é considerado comida em uma cultura, pode não o ser em ou-
tra (Garcia, 2003). Um exemplo disso é o cachorro, considerado iguaria fina por
alguns grupos orientais (Maciel, 2001), porém não considerado alimento no
Brasil.
Em suma, o hábito alimentar recebe grande influência da cultura. E a cultu-
ra não indica apenas o que é ou não comestível, mas estabelece prescrições que
determinam o que deve ser ingerido, quando, como e com que frequência, bem
como se relaciona com as proibições impostas por religiões, filosofias e tabus
(Maciel, 2001).
Por sua vez, as práticas alimentares revelam a cultura em que cada um está
inserido, visto que comidas são associadas a determinados povos (por exemplo,
o arroz associado à China, pizza à Itália, crepe à França, feijoada ao Brasil). Além
disso, conforme abordado no capítulo I, na sessão acerca dos aspectos simbó-
licos da alimentação, os alimentos funcionam como marcadores da identidade
regional, quando há pratos associados à sua região de origem (Mintz, 2001),
como pode ser evidenciado nos exemplos abaixo:

•  Acarajé e vatapá são associados à Bahia;


•  Broinha de fubá e polenta, à Santa Catarina;
•  Churrasco e chimarrão, ao Rio Grande do Sul;
•  Guariroba e pequi, a Goiás (Philippi, 2003).

Por fim, é essencial que o profissional de saúde compreenda os hábitos ali-


mentares e valores simbólicos que os alimentos têm para seu paciente, para po-
der respeitar e/ou adequar, se necessário, a conduta a ser proposta ao contexto
cultural desse indivíduo. E isso é possível somente se este profissional conhe-
cer as influências socioeconômico-culturais às quais o paciente e sua família
estão submetidos.

3.2.1  Arroz com Feijão

Diante do fato de os alimentos funcionarem como marcadores da identidade


regional, conforme exposto nos parágrafos anteriores, e diante do tema central
deste livro (a relação existente entre antropologia e nutrição), faz-se fundamen-

capítulo 3 • 85
tal aprofundar um pouco o conhecimento sobre o conteúdo nutricional e sobre
algumas características do consumo de um prato tradicional da cultura brasi-
leira: o “arroz com feijão”.
O arroz com feijão é a combinação de alimentos mais consumida por todas
as classes sociais no Brasil (Poulain e Proença, 2003). Esse prato foi consolida-
do após a Segunda Guerra Mundial devido à diminuição do consumo de fari-
nha (anteriormente, comia-se feijão com farinha) e ao aumento do consumo de
arroz (Philippi, 2003).
Esta combinação (do cereal arroz juntamente com a leguminosa feijão) é
nutricionalmente adequada. O arroz tem em seu aminograma1 deficiência dos
aminoácidos lisina, treonina e triptofano, que é compensada pela presença
desses mesmos aminoácidos no feijão. Por outro lado, o feijão é deficiente em
metionina, sendo complementado com os aminoácidos do arroz, resultando
em uma mistura de maior valor proteico. E é importante que se saiba que a pro-
porção adequada para esta interação é uma parte de feijão para três de arroz
(Philippi, 2003).
Apesar de tantas vantagens como ser uma mistura nutricionalmente ade-
quada e apresentar preço acessível, o consumo de arroz com feijão vem di-
minuindo ao longo dos anos. Comparando-se a Pesquisa de Orçamento
Familiar realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
em 2008-2009, sobre o comportamento e o consumo alimentar do brasileiro,
com o Estudo Nacional de Despesa Familiar de 1974/75 e com as Pesquisas de
Orçamento Familiar de 1987/1988, 1995/1996 e 2002/2003 comprova-se que
essa combinação de alimentos tem tido seu consumo diminuído nos últimos
40 anos.
Por meio da última Pesquisa de Orçamento Familiar realizada no Brasil ob-
servou-se também que, nas áreas rurais, o consumo de arroz e feijão é maior
que nas áreas urbanas - o arroz tem 19,3% de participação das calorias totais
consumidas no meio rural, contra 15,4% no meio urbano; e os feijões compõem
6,8% das calorias nas áreas rurais contra 5,1% nas urbanas (IBGE, 2011).
Na citada pesquisa notou-se, ainda, que alimentos básicos e tradicionais
na dieta do brasileiro, como arroz, feijão e farinha de mandioca, têm perdido
importância nos últimos anos enquanto tem crescido a participação relativa
de alimentos processados prontos para consumo, como pães, embutidos, bis-
coitos, refrigerantes e refeições prontas (IBGE, 2011). Outro estudo, realizado
1  O termo aminograma refere-se ao perfil de aminoácidos apresentado por um alimento.

86 • capítulo 3
no ano de 2006, efetuou uma análise das tendências de consumo de alimentos
industrializados pela população brasileira e também constatou diminuição do
consumo de arroz e feijão, bem como aumento na ingestão de alimentos de
preparo rápido e de baixo valor nutricional (Domene, 2006).
Ainda dentro do contexto socioeconômico e cultural da alimentação, vale
enfatizar uma informação já abordada: a de que o efeito do rendimento fami-
liar é substancial sobre os alimentos que as famílias consomem. Isso foi cons-
tatado em uma informação também coletada pelo IBGE, em 2011: no Brasil,
arroz e feijão são alimentos cuja participação tende a diminuir com o aumento
do nível dos rendimentos da família (IBGE, 2011).

3.3  Influência de Algumas Filosofias e


Religiões nas Escolhas Alimentares

É sabido que existem grupos de indivíduos que seguem filosofias de vida que
propõem o consumo de alimentações peculiares, como é o caso dos que se-
guem o vegetarianismo, ademais, há religiões que também recomendam al-
gumas práticas alimentares (tipos de comida e bebida, rituais para o modo de
preparo e até jejum) aos seus fiéis, como o Judaísmo, o Islamismo e a Igreja
Católica Apostólica Romana (sendo o jejum aqui entendido como a abstenção
parcial ou total de alimentos e/ou bebidas por um período determinado).
Nesta sessão, será mostrado o que é orientado por algumas filosofias ou re-
ligiões quanto à alimentação e serão discutidos os efeitos dessas imposições na
saúde. Antes disso, entretanto, é fundamental realçar duas informações: pri-
meiro, que a adoção de alimentação alternativa ou de dieta especial imposta
por religião deve ser sempre respeitada pelo profissional de saúde, e segundo,
que, apesar disso, é de responsabilidade desse profissional informar e discutir
com a família os benefícios, as limitações e os malefícios da prática alimen-
tar adotada. O profissional de saúde deve ter especial atenção aos grupos mais
vulneráveis, como por exemplo crianças e adolescentes, orientando práticas
alimentares que supram suas necessidades para lhes garantir crescimento e
desenvolvimento adequados e evitar deficiências nutricionais.

capítulo 3 • 87
3.3.1  Igreja Católica Apostólica Romana

A Igreja Católica Apostólica Romana não impõe práticas alimentares que


levem os fiéis a risco nutricional, apenas propõe aos seus seguidores a restrição
do consumo de carne bovina em algumas datas especiais (Waibel, 2007).

3.3.2  Vegetarianismo

Regime alimentar baseado fundamentalmente em alimentos de origem ve-


getal. Seus adeptos excluem carne e peixe de sua dieta, bem como alimentos
derivados (por exemplo, a gelatina, feita de colágeno de animais).
Há vários tipos de vegetarianos, sendo determinados pelos tipos de alimen-
tos que consomem: ovolactovegetarianos, além de vegetais, consomem ovos,
leite e laticínios. Lactovegetarianos consomem vegetais, leite e laticínios. E os
veganos excluem todos os produtos de origem animal, não só da sua dieta, mas
de tudo o que utilizam, incluindo cosméticos, vestuário, calçado, entre outros
(Rudys-Shapard, 2001).
Sabe-se que as famílias que seguem essa filosofia tendem a impor essa mes-
ma alimentação para seus filhos desde a tenra idade. É sabido também que
quanto maior é a restrição alimentar, maior é a possibilidade de deficiências
nutricionais. Além disso, nos períodos de gestação, lactação, infância e adoles-
cência a demanda do organismo por nutrientes é maior, tornando esses perío-
dos delicados e críticos para os que seguem uma alimentação restrita (Rudys-
Shapard, 2001; Mangels e Messina, 2001).
Contudo, a American Dietetic Association e a American Academy of Pediatrics
& Canadian Association afirmam que, se a alimentação for bem planejada, orien-
tada e acompanhada por especialistas, e se forem utilizados alimentos enrique-
cidos e suplementos nutricionais, mesmo nos casos de alimentação restritiva
podem ser garantidos crescimento e desenvolvimento adequados para crianças
e adolescentes, bem como proteção contra deficiências nutricionais.

3.3.3  Judaísmo

Seguem-se princípios do kashrut ou leis dietéticas judaicas, as quais têm im-


portância essencial para membros da ortodoxia judaica. Para os judeus, o

88 • capítulo 3
cumprimento dos preceitos estabelecidos por essas leis reconhece o indivíduo
como membro do grupo judeu (Silveira e Taddei, 2009).
Uma dieta kasher implica não somente a proibição de consumo de alguns
alimentos, como frutos do mar, carne suína, carne de coelho, quarto traseiro
de qualquer animal e ovos que contenham manchas de sangue, mas também
a regras relativas à forma como o alimento é processado. Não são permitidos a
mistura de laticínios com carnes ou o abatimento considerado impróprio do
animal consumido. Nas questões relativas ao tempo, a ingestão de alimentos
que foram preparados no sábado é proibida. Quanto ao uso de utensílios na
cozinha, quando estes são usados para laticínios, não podem ser utilizados
para carne. Além disso, ocorre o seguimento de rituais para salgadura da carne
e a imersão de vasilhas (Topel, 2003) e também outras práticas como a proibi-
ção do consumo de uva e de produtos feitos a partir dela, como o vinho (exceto
em ocasiões especiais), por esta ser considerada uma fruta idolatrada (Waibel,
2007).
Diante do exposto, percebe-se que manter uma dieta kasher implica colocar
em prática uma complexa lista de leis e costumes, a qual não será abordada to-
talmente neste capítulo, devido à extensão e à complexidade das leis dietéticas
judaicas (Topel, 2003).
Em razão de sua rigidez, o cumprimento da dieta kasher traz dificuldades
para seus seguidores no que diz respeito à convivência com outros segmentos
da sociedade mais ampla. Estes se veem confrontados com dilema de mani-
festarem abertamente sua identidade judaica (o que equivale a rejeitarem a
comida oferecida por seus pares não judeus e comer em ambientes que não
seguem preceitos kasher, como fazer uso de utensílios descartáveis, etc.) ou
transgredirem um princípio básico do judaísmo (Topel, 2003). Devido às difi-
culdades em seguir à risca todas as recomendações das leis dietéticas judaicas,
alguns judeus não-ortodoxos (caso da maioria dos indivíduos de religião judai-
ca no Brasil) costumam segui-las apenas parcialmente (Waibel, 2007; Northen
Ireland Inter-Faith Forum, 2005).
Do ponto de vista nutricional, a dieta kasher não apresenta riscos para de-
ficiências nutricionais. Assim, o profissional de saúde que atende pacientes
judeus, deve procurar conhecer um pouco mais dos costumes e rituais dessa
alimentação a fim de não orientar práticas alimentares conflitantes.

capítulo 3 • 89
3.3.4  Islamismo

Para aqueles que seguem a religião islâmica, alimentos como carne suína
e aves de caça são proibidos. O consumo de bebidas estimulantes, como chá,
café e álcool é desencorajado e alguns muçulmanos consideram as bebidas al-
coólicas proibidas. O jejum é praticado regularmente nas segundas e quintas-
feiras, 6 dias durante o Shawwal (10º mês do calendário islâmico) e por um mês
durante o Ramadan (9º mês do calendário islâmico). A prática do Ramadan
consiste em abster-se de alimento, bebida, fumo e sexo desde o nascer até o
pôr-do-sol. Para crianças, adolescentes, doentes, idosos, viajantes, grávidas e
nutrizes essa prática não é imposta, sendo estes sujeitos dispensadas da obri-
gatoriedade do jejum (Silveira e Taddei, 2009).
O profissional de saúde deve observar e avaliar os outros tipos de jejum (com
relação ao tipo da restrição alimentar e ao tempo), de modo que este possa reco-
mendar ou não a prática do ritual a pessoas de risco para deficiências nutricio-
nais (crianças, adolescentes, grávidas, nutrizes e desnutridos). De maneira ge-
ral, a alimentação proposta pelo islamismo não apresenta riscos para crianças
e adolescentes (Waibel, 2007; Northen Ireland Inter-Faith Forum, 2005).

Os muçulmanos possuem um calendário próprio, chamado de “calendário islâmico” ou


“calendário hegírico”. Trata-se de um calendário lunar composto por 12 meses de 29
ou 30 dias, com um total de cerca de 354 dias. Nele, a contagem do tempo começa
com a Hégira – fuga de Maomé de Meca para Medina, em 16 de julho de 622 e o
mês começa quando o crescente lunar aparece pela primeira vez após o pôr-do-sol. É
constituído por cerca de 11 dias a menos que o calendário solar e não corrige o fato
de o ano lunar não corresponder ao ano solar. Assim, os meses islâmicos retrocedem
a cada ano que passa.

A tabela a seguir traz um panorama geral das filosofias de vida / religiões


anteriormente mencionadas, enfocando as principais práticas e restrições ali-
mentares, seus riscos nutricionais e as respectivas abordagens a serem efetu-
adas pelo profissional de saúde ao atender pacientes com essas orientações
filosóficas/religiosas.

90 • capítulo 3
FILOSOFIA DE PRÁTICA OU RESTRIÇÃO RISCO NUTRI- ORIENTAÇÃO
BIBLIOGRAFIA
VIDA OU RELIGIÃO ALIMENTAR CIONAL NUTRICIONAL
Ovolactovegetarianos: Há risco nutri- Deve ser feito Rudys-Sha-
ingerem vegetais, ovos, cional quando bom planejamen- pard, 2001;
leite e laticínios. as orientações to, orientação e American
Lactovegetarianos: con- propostas para acompanhamento Dietetic
somem vegetais, leite e a adaptação da desta alimentação Association Et
Vegetarianismo laticínios. dieta vegeta- para evitar risco Dietitians of
Veganos: excluem todos riana não são nutricional, com Canada, 2003;
os produtos de origem seguidas. uso de alimentos Mangels e
animal. enriquecidos e Messina, 2001.
suplementos
nutricionais.
São proibidos: frutos do Não há risco As orientações Topel, 2003;
mar, carne suína, carne de nutricional. nutricionais devem Waibel, 2007;
coelho, quarto traseiro de ser compatíveis Northen Ireland
qualquer animal, ovos que com as práticas e Inter-Faith
contenham manchas de hábitos alimen- Forum, 2005.
sangue, uva e derivados tares, por isso,
(exceto em ocasiões es- o profissional
peciais); além da mistura de saúde deve
de laticínios com carnes conhecê-los.
ou o abatimento conside-
Judaísmo rado impróprio do animal
consumido, ingestão de
alimentos que foram pre-
parados no sábado.
Utensílios usados para
laticínios não podem ser
utilizados para carne.
Seguimento de rituais
para salgadura da carne,
de imersão de vasilhas e
outros.
São proibidos: carne suína Não há risco A orientação deve Waibel, 2007;
e aves de caça. nutricional. ser individualizada Northen Ireland
Álcool é considerado de acordo com os Inter-Faith
Islamismo
proibido por alguns. alimentos consu- Forum, 2005.
Chá, café e álcool devem midos.
ser evitados.
Proposição de restrição do Não há risco A orientação deve Waibel, 2007.
Igreja Católica consumo de carne bovina nutricional. ser individualizada
Apostólica em datas especiais. de acordo com os
Romana alimentos consu-
midos.

Tabela 3.1 – Práticas e/ou restrições alimentares propostas por diferentes filosofias de vida ou
religiões e seus respectivos riscos e condutas nutricionais. Adaptado de Silveira e Taddei, 2009.

capítulo 3 • 91
CONEXÃO
Para aprofundar o conhecimento na relação entre religião, transformações culturais e glo-
balização, veja o link: http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/uplo-
ads/2011/04/anaisdoIVcongresso.pdf. Ele contém os Anais do IV Congresso Internacional
em Ciências da Religião, promovido pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, em 2010,
e compila diversos estudos acerca dessa temática. Leia e confira!

3.4  Determinantes Sociais nas Escolhas


Alimentares

Sabe-se, conforme já colocado neste livro, que fatores socioeconômico-cultu-


rais influenciam as escolhas alimentares individuais. Entretanto, quando o as-
sunto se refere ao efeito das influências sociais na ingestão alimentar o foco da
atenção é outro: fala-se da influência que um ou mais indivíduos exercem sobre
o comportamento alimentar de outros, ou seja, se esta influência se manifesta
de forma direta ou indireta, consciente ou inconsciente.
A escolha alimentar é influenciada por fatores sociais, uma vez que os hábi-
tos e as atitudes se desenvolvem em interação com outros indivíduos (Feunekes
et al, 1998). Uma informação importante para o profissional de saúde é que a
literatura tem mostrado que as pessoas comem mais na presença de amigos ou
familiares do que quando estão sozinhas; outra informação relevante é que a
quantidade de alimentos aumenta proporcionalmente ao número de compa-
nheiros de refeição (De Castro, 1997). Ao longo dos próximos parágrafos discu-
tiremos esses dados.
O comportamento humano é profundamente afetado por influências so-
ciais. Desde o ano de 1980 o pesquisador Zajonc já afirmava que de todos os
estímulos aos quais um indivíduo está exposto em sua vida, o estímulo pro-
veniente de fontes sociais é o mais importante (Zajonc, 1980). Um indivíduo
pode apresentar comportamentos bastante diversos em diferentes contextos
sociais, sendo calmo e reflexivo quando sozinho, turbulento e rebelde quando
está com amigos, ou obediente na presença de figuras de autoridade, sendo
que a natureza dessas respostas pode variar em diferentes culturas. O contexto

92 • capítulo 3
social não influencia apenas os comportamentos, mas também a magnitude
dos mesmos. Em geral, a presença de outras pessoas tende a aumentar a ex-
pressão de comportamentos simples, ao mesmo tempo que tende a interferir
em comportamentos complexos (Zajonc, 1980). É esse efeito sobre a magnitu-
de do comportamento que é normalmente referido como “facilitação social”
ou “inibição”.
A facilitação social de comportamento tem sido definida há muito tempo
como sendo os incrementos na frequência ou na intensidade de respostas já
aprendidas pelo indivíduo, mostrados na presença de outras pessoas, que ge-
ralmente exercem o mesmo comportamento (Crawford, 1939).
Comportamentos simples tendem a ser aumentados em magnitude por in-
fluências sociais (De Castro, 1997). É conhecido o fato de que quando um ani-
mal se alimenta na presença de outros, ele aumenta seu consumo em relação a
quando come sozinhos. Este fenômeno já está bem estabelecido na literatura
científica, ele foi demonstrado inicialmente pelo pesquisador Bayer, no ano de
1929.

Experimento desenvolvido por Bayer (1929): Bayer permitiu que uma galinha se sa-
ciasse completamente, comendo tanto trigo quanto ela quisesse. Depois disso, ele in-
troduziu no mesmo ambiente em que essa ave estava uma outra galinha, a qual estava
faminta e começou a comer. A primeira galinha, apesar de já estar saciada, começou
a comer de novo imediatamente (Bayer, 1929). Este mesmo fenômeno da “facilitação
social da alimentação” foi replicado em suínos (Hsia & Wood-Gush, 1984), em uma
grande variedade de espécies de aves (Tolman, 1964; Tolman & Wilson, 1965; Rajecki
et al.1975), em peixes (Welty, 1934), em ratos (Harlow, 1932 ; Hoyenga & Aeschle-
man, 1969), filhotes de cachorro (James, 1960) e primatas (Harlow & Yudin, 1933).

Mesmo que a pesquisa com animais tenha demonstrado claramente que


a facilitação social é um fenômeno robusto, na época desses estudos ainda se
acreditava que, de alguma forma, com as pessoas funcionava diferente. Harlow
inclusive escreveu, em 1932, que para as pessoas, a alimentação era mais in-
fluenciada pela apreciação do que pela quantidade e que uma boa refeição ti-
nha um gosto melhor se consumida na companhia de amigos. Diante disso,
a ingestão de alimentos por seres humanos foi então encarada fundamental-
mente como diferente da dos animais naquela época. Como consequência

capítulo 3 • 93
disso, a pesquisa sobre facilitação social do consumo alimentar de animais não
foi acompanhada por uma pesquisa semelhante em seres humanos.
Apesar deste pensamento, descobertas emergiram de laboratórios sugerin-
do que a facilitação social também afetaria o comportamento alimentar de se-
res humanos. O pesquisador Frank (1944) demonstrou que os indivíduos sim-
plesmente comiam em resposta à uma instrução para comer, mesmo quando
eles eram informados de que eles estavam participando de um experimento
baseado em persuasão, e não importava se eles haviam comido ou não. Muito
semelhante às galinhas de Bayer (1929), as pessoas, quando pareadas a outros
indivíduos que comiam uma grande quantidade de alimentos, aumentavam
significativamente a sua ingestão.
Para exemplificar este fato, pode-se analisar o experimento humano de-
senvolvido por Nisbett & Storms (1972). Estes estudiosos convidaram pessoas
a comerem biscoitos em um teste de sabor. As pessoas experimentavam os bis-
coitos sozinhas e também na presença de outros indivíduos, os quais comiam
um ou vinte biscoitos. Resultado: indivíduos com peso normal comeram 29%
menos quando estavam na presença de um modelo de baixo consumo (ou seja,
na frente daqueles indivíduos que comeram apenas um biscoito) e os mesmos
indivíduos de peso normal consumiram 25% a mais diante do modelo de alta
ingestão (isto é, na presença dos sujeitos que consumiram 20 biscoitos), em
comparação ao momento em que estavam sozinhos.
Por meio de uma abordagem experimental muito semelhante, os pesqui-
sadores Conger e colaboradores (1980) encontraram um efeito ainda maior.
Indivíduos expostos a um modelo de alta ingestão comeram 86% mais biscoitos
do que com um modelo de baixa ingestão. Além disso, demonstraram também
um efeito inibidor comparável: pessoas pareadas a indivíduos que não come-
ram nenhum biscoito diminuíram seu consumo em 42%.
Polivy e seu grupo de pesquisa, em 1979, descreveram um modelo de efeito
parecido. Eles trabalharam com indivíduos que estavam em jejum há 5 horas.
Quando, durante um teste de sabor, esses indivíduos eram colocados junto a
uma pessoa que ingeria oito sanduíches eles comiam 57% a mais do que quan-
do seu acompanhante só comia dois sanduíches. E a influência desse modelo
persistiu ao longo do teste de sabor: os indivíduos expostos ao modelo de alta
ingestão comeram 31% de nozes a mais do que aqueles expostos a um modelo
de baixa ingestão.

94 • capítulo 3
Empregando uma técnica de modelagem similar, Goldman e colaboradores
(1991) demonstraram um consumo 50% maior mediante um modelo de alto
consumo do que com um modelo de baixa ingestão, em indivíduos que foram
privados de alimento por 24 horas. Esse tipo de informação obtida através de
estudos científicos deve ser incluida na reflexão do profissional de saúde e utili-
zada na sua prática clínica ao orientar pacientes e famílias que precisam perder
ou ganhar peso.
Outro dado bastante importante é o de que a ingestão de um sujeito tam-
bém parece ser afetada pela natureza do peso do acompanhante. Tal afirma-
ção ficou evidenciada no trabalho de De Luca & Spigelman (1979). No citado
estudo, indivíduos obesos tenderam a comer mais na presença de um modelo
obeso do que diante de um modelo não-obeso, enquanto sujeitos não obesos
não foram afetados por esse tipo de “modelo de peso”.
Uma outra pesquisa nesse sentido é a de Clendennen e colaboradores
(1994), que demonstra que quando os indivíduos comiam com os amigos, eles
consumiam mais do que quando isso era feito na companhia de estranhos ou
do que quando estavam sozinhos. Tal fato reafirma a explicação apontada aci-
ma, em box explicativo, acerca da função social da refeição.
O gênero (masculino / feminino) também parece influenciar a resposta
com relação à quantidade ingerida na presença de outra pessoa. Durante uma
sessão que objetivava que o indivíduo ficasse familiarizado no laboratório na
companhia de outras pessoas, os indivíduos do sexo feminino comeram 75%
menos quando acompanhadas por um sujeito do sexo masculino considerado
desejável, em comparação ao momento em que estavam acompanhadas por
um sujeito do sexo masculino considerado indesejável. Neste estudo, um efeito
comparável não ficou evidente para o sexo masculino (Mori et al, 1987). Já os
pesquisadores Pliner & Chaiken (1990) observaram em seu estudo que ambos
os estudantes universitários do sexo masculino e do sexo feminino comeram
menos na presença de um membro atraente do sexo oposto.
De Castro (1997), em uma revisão da literatura acerca desse tema, mostra
que tem sido observado em vários estudos que a quantidade que uma pessoa
come é afetada pela simples presença de outras pessoas comendo com ela.
No experimento de Berry et al (1985), em laboratório, os indivíduos, inde-
pendentemente do sexo, comeram 94% mais sorvete em grupos do que quando
ingeriam esse alimento sozinhos. Mesmo em ambientes mais naturais do que
um laboratório também foi visto que a ingestão dos sujeitos foi afetada pela

capítulo 3 • 95
presença de outras pessoas. Edelman e colaboradores (1986) observaram que
as pessoas, tanto as obesas quanto as não-obesas, comiam 48% mais quando
estavam acompanhadas no refeitório do que quando estavam sozinhas.
Krantz (1979) realizou uma observação naturalística em um restaurante
universitário a respeito do efeito que comer com os outros tem sobre o consu-
mo de sujeitos obesos e de sujeitos não-obesos. Indivíduos obesos compram
menos alimentos, quando acompanhados por outros em comparação a quan-
do estão sozinhos. Por outro lado, os sujeitos não-obesos fazem o oposto, eles
compram mais comida quando acompanhados por companheiros, do que
quando sozinhos.
As evidências laboratoriais fornecem um argumento convincente de que as
influências sociais podem realmente produzir aumentos ou diminuições nas
quantidades de alimentos ingeridas. No entanto, elas precisam ser analisadas
a partir de dados obtidos em situações as mais próximas possíveis da realidade,
para que sejam confiáveis e que seus resultados sejam aplicados no cotidiano
das pessoas.
Entretanto, a maioria dos estudos descritos nesta sessão não analisaram
várias refeições grandes ao longo do dia, e sim o consumo de lanches, ou, no
máximo, de uma única refeição (como o almoço). Tal situação trata-se de uma
limitação inerente à maioria dos estudos com seres humanos, afinal, não se
pode confinar homens em um ambiente controlado e submetê-los somente
às condições específicas que a pesquisa buscar desvendar. Diante disso, uma
das alternativas que a Ciência da Nutrição fornece é a possibilidade de se cole-
tar informações sobre o hábito alimentar dos indivíduos por meio de registros
alimentares escritos, os quais contêm as características da alimentação dos
indivíduos.
Para investigar se a facilitação social influencia o consumo das pessoas fora
do laboratório, De Castro (1997) reanalisou os dados registrados em diários ali-
mentares que foram coletados em estudos anteriores que contaram com sua
participação (De Castro et al, 1990; De Castro, 1987a, b, 1991a, b, c, 1993b, e,
1994a, b; de Castro & Castro, 1989; Castro & Brewer, 1992). Estes dados foram
coletados por meio de solicitação aos indivíduos que estes registrassem em
um diário tudo o que eles comiam ou bebiam, as quantidades, os métodos de
preparo, o tempo gasto para se alimentar, bem como o número e natureza das
outras pessoas presentes à refeição, por um período de sete dias consecutivos.
Ao todo, foram incluídas informações de mais de 700 norte-americanos, de

96 • capítulo 3
diversas regiões geográficas e na faixa etária de 18 a 70 anos. E as informações
utilizadas foram apenas relativas às quantidades ingeridas nas refeições consu-
midas pelos indivíduos sozinhos contra os dados provenientes de refeições em
que os indivíduos estavam acompanhados de outras pessoas.
Por meio desse estudo de reanálise de dados (De Castro, 1997), verificou-
se que as refeições feitas com outras pessoas presentes eram, em média, 44%
maiores do que as refeições feitas com os sujeitos sozinhos e incluíam maiores
quantidades de carboidratos, gordura, proteína e álcool. Além disso, demons-
trou-se que este era um fenômeno ordenado: o número de pessoas presentes
teve uma correlação positiva e significativa com a quantidade ingerida na refei-
ção (ou seja, quanto maior o número de acompanhantes, maior a quantidade
ingerida). Essa correlação é chamada de “correlação social” e indica que quan-
to mais pessoas estiverem presentes em uma refeição, maiores serão as quanti-
dades consumidas de alimentos e bebidas.
Finalmente, a facilitação social parece afetar o tamanho das refeições e não
a frequência de consumo, pois o número de pessoas que comem acompanha-
das não parece estar relacionado ao número de refeições ingeridas durante o
dia (De Castro, 1997). Ou seja, verificou-se que o tamanho da refeição é como
um “elástico”, podendo ser influenciada fatores psicológicos e ambientais, en-
quanto que a frequência das refeições parece ser relativamente pouco afetada
por fatores que influenciam o consumo global.
É possível ainda que esta relação entre a presença de outras pessoas e ta-
manho da refeição seja artificial. A correlação positiva encontrada poderia na
verdade ter resultado de uma covariação produzida por um terceiro elemento: a
hora do dia em que foram feitas as avaliações. O café da manhã é a menor refei-
ção do dia e pode ser consumido com menor número de outras pessoas presen-
tes, enquanto o jantar é uma refeição maior e pode ter mais pessoas presentes,
além de poder ocorrer juntamente com a ingestão de álcool, o que aumenta o
teor de energia de refeições feitas com outras pessoas.
Além disso, lanches são pequenos e as pessoas geralmente os consomem
desacompanhadas, enquanto que as refeições são, em geral, maiores e mais
suscetíveis de serem ingeridas na companhia dos outros. Outra explicação
possível é que as refeições consumidas em restaurantes podem ser maiores e
consumidas com mais outras pessoas do que as refeições feitas no próprio lar,
as quais, por sua vez, podem ser maiores e apresentarem um grau de sociabi-
lidade maior do que refeições feitas em outros lugares. E outra possibilidade

capítulo 3 • 97
ainda é que as refeições consumidas nos finais de semana podem ser maiores e
ingeridas com mais pessoas presentes do que as refeições consumidas durante
a semana.
Para investigar essas potenciais explicações para os fatos encontrados, fo-
ram identificadas, no estudo de De Castro (1997), as refeições que ocorreram
sob condições específicas. Correlações fortes, positivas e significativas entre o
tamanho da refeição e o número de outras pessoas presentes, ou seja “corre-
lações sociais”, foram encontrados separadamente para refeições consumidas
durante o café da manhã, o período de almoço, ou o período de jantar, as ingeri-
das em restaurantes, em casa, ou em outro lugar, as acompanhadas da ingestão
de álcool e as sem consumo de álcool, os lanches rápidos, as refeições maiores,
refeições consumidas durante a semana e as ingeridas nos fins de semana.
A fim de olhar de forma mais sistemática para estas relações, refeições con-
sumidas pelo indivíduo sozinho ou com um, dois, três, quatro, cinco, seis, e
sete ou mais pessoas foram separadas e a média dos tamanhos das refeições
foi calculada. Encontrou-se com isso uma relação proporcional entre o núme-
ro de pessoas presentes e o volume da refeição. Uma outra pessoa presente na
alimentação foi associada com um aumento de 33% no tamanho da refeição,
ao mesmo tempo, dois, três, quatro, cinco, seis e sete ou mais pessoas estavam
associadas com 47%, 58%, 69%, 70%, 72% e 96%, respectivamente (De Castro,
1997).
A intensidade do efeito da variável “social”, ou seja, do efeito de se ter mais
pessoas presentes à refeição é notável, sendo maior do que o efeito obtido em
pesquisas que utilizaram variável fisiológica, idade, período do dia, sazonal ou
psicológica (De Castro, 1987a, b; 1988; De Castro, 1993e; De Castro, 1991b; De
Castro & Elmore, 1988), sugerindo que o fator mais importante associado à in-
gestão de alimentos a curto prazo em seres humanos é efetivamente a facilita-
ção social.
De acordo com a pesquisa realizada por De Castro em 1994a, outro fator que
também influencia a quantidade ingerida na refeição é “com quem” o indivíduo
come. As mulheres comem significativamente mais (13% a mais) quando se ali-
mentam na presença de um homem do que ao comerem com outra mulher, en-
quanto os homens comem a mesma quantidade, independentemente do sexo
do seu companheiro. As refeições ingeridas com o cônjuge, um familiar ou um
amigo são significativamente maiores, 22%, 23%, e 14%, respectivamente, do

98 • capítulo 3
que as refeições ingeridas com outras pessoas; enquanto as refeições ingeridas
com colegas de trabalho foram significativamente menores (16%).
Mesmo com todas estas evidências, devido a essas pesquisas apresentarem
natureza observacional, ainda não era aceitável concluir definitivamente que
a presença de outras pessoas fosse a causa do aumento da ingestão. Por isso, a
fim de estabelecer o nexo confiável de causalidade, foi feito um experimento no
qual as pessoas ficavam três períodos de cinco dias alternando entre se alimen-
tarem apenas sozinhos, se alimentarem normalmente (conforme sua rotina
habitual) e se alimentarem somente na presença de outras pessoas, sendo que
a ordem desses três períodos foi aleatória (para que esta ordem não influen-
ciasse nos resultados).
O resultado significativo encontrado nessa pesquisa foi que, em compara-
ção com o período de alimentação normal, os participantes ingeriram em mé-
dia 11% de energia a menos por dia quando instruídos a comerem sozinhos
(Redd & De Castro, 1992). Isto mostrou que a presença de outras pessoas é, de
fato, a causa do aumento na ingestão durante as refeições. E estudos laborato-
riais posteriores também apoiam a ideia de uma conexão causal entre a presen-
ça de outras pessoas e aumento do tamanho refeição. Clendennen et al. (1994)
demonstraram que quando os indivíduos eram obrigados a comer uma refei-
ção teste com um ou três outros sujeitos, eles comiam significativamente mais
do que quando estavam sozinhos.
As informações apresentadas nesta sessão deixam claro que a facilitação so-
cial é uma influência bastante presente na ingestão de alimentos, a qual se ope-
ra nos ambientes do quotidiano das pessoas, causando aumento do consumo
de nutrientes. De todos os estímulos que afetam o consumo natural dos seres
humanos, a facilitação social parece ser uma das mais poderosas influências
(De Castro e de Castro, 1989). Há uma série de explicações teóricas para influ-
ência da presença de outras pessoas na alteração da quantidade consumida por
um indivíduo em uma refeição.
Uma possibilidade é que a causalidade seja no sentido inverso, ou seja, não
ser a presença de outras pessoas, em si, que produz um aumento na ingestão
de um sujeito, mas é possível que grandes refeições estejam programadas para
serem feitas com outras pessoas (enquanto que, por outro lado, pequenas re-
feições seriam programadas para o indivíduo realizar sozinho). Apesar dessa
possibilidade, há um impacto causal claro da presença de outras pessoas sobre
a quantidade ingerida.

capítulo 3 • 99
A facilitação social pode operar através da produção de desinibição: a pre-
sença de um acompanhante relaxa o sujeito que se alimenta, libertando deste
modo o comportamento individual de inibição (Rajecki et al. 1975). Observar
outra pessoa comer pode remover restrições em comer, que de outra forma li-
mitariam a quantidade ingerida.
Essa suposição é corroborada pelo estudo de De Castro (1994a) no qual
quando os indivíduos relataram maior ansiedade e menos calma, bem como
comer na presença de colegas de trabalho, por exemplo, a facilitação social teve
o menor impacto sobre o consumo. Assim, a hipótese de desinibição é uma ex-
plicação viável para a facilitação social de comer.
Alternativamente, a presença de outras pessoas pode simplesmente esten-
der a quantidade de tempo gasto em uma refeição e, assim, aumentar a quanti-
dade consumida (De Castro, 1990). As interações verbais que ocorrem durante
as refeições sociais podem simplesmente levar uma pessoa a perder tempo com
a refeição e, como resultado, comer mais. Esta noção prevê que a taxa de inges-
tão deveria ser a mesma, independentemente das condições sociais, mas a du-
ração da refeição seria estendida quando outras pessoas estivessem presentes.
É importante se ter em mente, entretanto, que embora estas influências so-
ciais, vistas de perto, pareçam constituir o único fator ambiental que influencia
a ingestão, existem outros, como a influência genética, por exemplo. Há evi-
dências de que a herança genética e, consequentemente, a fisiologia também
possam desempenhar um papel-chave na facilitação social. Há um crescente
número de evidências de que o tamanho corporal e a ingestão de alimentos e de
líquidos sejam fortemente influenciados pela hereditariedade.
Desde muitos anos atrás, estudos com irmãos gêmeos (Feinleib et al, 1977;
Bray, 1981; Wade et al, 1981; Stunkard et al, 1986a, 1990) e com crianças adota-
das (Stunkard et al 1986b; Price et al, 1987; Sorenson et al 1989) deixam eviden-
te que o tamanho do corpo, o peso e a altura, são determinadas principalmente
por herança. Além disso, não existe apenas uma forte influência genética no
tamanho do corpo, mas também na composição deste corpo (Brook et al, 1975;
Bouchard et al 1985, 1986) e até mesmo na resposta metabólica à alimenta-
ção (Poehlman et al, 1986a, b, c), incluindo a tendência para armazenar ener-
gia, bem como massa magra e gordura do organismo (Bouchard et al, 1990;
Bouchard, 1991).

100 • capítulo 3
Diante disso, o profissional de saúde não pode se restringir a analisar ape-
nas um aspecto isolado que influencie o comportamento alimentar. É preciso
ir além, e considerar todo o contexto de vida dos indivíduos que assiste.

Conclusões:

A alimentação dos indivíduos, bem como os hábitos e costumes a ela relaciona-


dos, são determinados pelas condições culturais, sociais, econômicas e tecno-
lógicas a que eles são submetidos.
Entre os aspectos socioeconômico-culturais mais relevantes a serem con-
siderados pelo profissional de saúde na prática diária, estão: as condições de-
mográficas e econômicas da região em que os indivíduos residem, os tipos de
alimentos disponíveis, o poder aquisitivo das pessoas, o nível de escolaridade,
as características culturais, a filosofia ou religião seguida e a influência social
da alimentação.
Portanto, a seleção do que é considerado comestível, na maioria das vezes,
não está fundamentada apenas na fisiologia e na bioquímica ou nas proprieda-
des nutricionais do alimento, mas sim no contexto das influências vividas pelo
indivíduo.

REFLEXÃO
O que seria mais adequado: o profissional de saúde ignorar o contexto socioeconômico e
cultural de seu paciente e orientá-lo somente conforme o que é mais indicado do ponto de
vista nutricional, ou fazer algumas concessões e/ou adaptações ao que seria recomendado
nutricionalmente, porém orientando ações ao alcance do paciente?
O profissional de saúde deve estar atento às situações vividas por seus pacientes e
formular condutas passíveis de realização e condizentes com a realidade dos sujeitos que
atende, para que haja maior probabilidade de as recomendações serem seguidas e surtirem
efeito positivo. Por isso, é importante que o profissional conheça os conceitos e as atitudes
sobre alimentação do grupo que atende, para poder adequar a linguagem e o conteúdo de
suas orientações às características deste grupo, além de ter a possibilidade de esclarecer
possíveis erros de informação, mitos e crenças.

capítulo 3 • 101
LEITURA
Pesquisa de orçamentos familiares 2008-2009: Análise do consumo alimentar pessoal no
Brasil”.
Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pof/2008_2009_
analise_consumo/pofanalise_2008_2009.pdf
O estudo “Análise do consumo alimentar pessoal no Brasil” é resultado de um amplo
trabalho que teve por objetivo inferir sobre o perfil de consumo da população brasileira com
10 anos ou mais de idade. Trata-se de um trabalho feito pelo Ministério do Planejamento, Or-
çamento e Gestão com o Ministério da Saúde que viabilizou o levantamento de um conjunto
de informações que permitem aprofundar análises sobre o estado nutricional da população
brasileira.
A Pesquisa de Orçamentos Familiares - POF visa principalmente mensurar as estruturas
de consumo, dos gastos, dos rendimentos e parte da variação patrimonial das famílias. Pos-
sibilita traçar, portanto, um perfil das condições de vida da população brasileira a partir da
análise de seus orçamentos domésticos. A partir dela, é possível estudar a composição dos
gastos das famílias segundo as classes de rendimentos, as disparidades regionais, as áreas
urbana e rural, a extensão do endividamento familiar, a difusão e o volume das transferências
entre as diferentes classes de renda e a dimensão do mercado consumidor para grupos
de produtos e serviços. Além disso, medidas antropométricas de todos os moradores dos
domicílios foram tomadas, e foram investigados aspectos relacionados à amamentação, à
alimentação escolar e ao consumo efetivo de alimentos.

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108 • capítulo 3
4
Análise
Interpretativa e
Aspectos Históricos
A alimentação é um fator primordial na rotina diária da humanidade desde
os primeiros relatos históricos, sendo necessidade básica/vital do homem.
Considerando a importância que a alimentação tem na História e também a
importância que a História tem para a alimentação, este capítulo vem fazer
uma retrospectiva sobre os aspectos históricos associados à alimentação, à
construção de seus significados, e também vem focalizar a análise na antro-
pologia da alimentação e na etnografia, de modo a oferecer ao leitor subsídios
para uma reflexão sobre o panorama da alimentação mundial.
Por meio da análise da evolução histórica da alimentação mundial, será
possível verificar que a gastronomia, os recursos, os hábitos e os padrões ali-
mentares são aspectos muito importantes a serem avaliados e que auxiliam o
profissional de saúde a entender a complexidade das relações alimentares en-
tre os diversos povos.

Gastronomia, segundo Farb & Armelagos (1985), trata-se de um termo que abrange
desde comportamentos diários até tradições específicas, e pode ser conceituada como
um conjunto de pratos com número limitado de alimentos, técnicas de preparo, princí-
pios básicos de temperos e regras que norteiam a produção e o consumo da comida
(número de refeições, companhia, seleção de alimentos, restrições, tabus).

OBJETIVOS
Que o aluno desenvolva a capacidade de:

•  Entender que a alimentação é fruto das influências dos aspectos históricos e antropológicos;
•  Atentar-se para as relações existentes entre História, Antropologia e Nutrição, dado que a
alimentação tem múltiplos aspectos e um caráter interdisciplinar;
•  Compreender as características da etnografia no campo da nutrição e utilizar as infor-
mações trazidas pelos estudos etnográficos em prol do aprimoramento de sua formação
profissional;
•  Considerar o efeito do contexto antropológico e histórico na formação dos significados
que a alimentação possui para a população que atender em sua futura prática profissional.

110 • capítulo 4
4.1  Etnografia: Experiências no Campo da
Alimentação e Nutrição

Conforme abordado no capítulo 1 deste livro, Antropologia é a ciência da hu-


manidade e da cultura. De acordo com Marconi e Presotto (2009), ela pode ser
dividida em dois campos de estudo: a Antropologia Física ou Biológica e a An-
tropologia Cultural. Esta, por sua vez, busca conhecer o comportamento cultu-
ral humano (adquirido por aprendizado) e analisá-lo em todos os seus aspec-
tos, preocupando-se em entender a relação entre o comportamento instintivo
(hereditário), o adquirido (por aprendizagem) e as bases biológicas que estrutu-
ram as capacidades culturais do homem (Heberer et al, 1967).
Antropologia Cultural trata-se da investigação do homem criando o seu
meio cultural e utilizando para isso formas diferenciadas de comportamen-
to, o que evidencia a dimensão biocultural do desenvolvimento humano. E a
“Etnografia” é o método que por excelência possibilita as análises da antropo-
logia cultural (Marconi e Presotto, 2009). A etnografia (do grego éthnos – povo,
nação; e graphein – escrever) se preocupa com a descrição das sociedades hu-
manas. Baseia-se no contato inter-subjetivo entre o antropólogo e o seu objeto,
seja ele uma tribo indígena ou qualquer outro grupo social sob o qual o recorte
analítico seja feito. Para Lévi-Strauss (1967), trata-se da “observação e análise
de grupos humanos considerados em sua particularidade, visando à reconsti-
tuição, tão fiel quanto possível, da vida de cada um deles”.
O método da etnografia permite ao antropólogo coletar os seus dados, usan-
do-se da observação, descrição, análise e reconstituição das culturas analisa-
das, adquirindo assim material referente a todos os aspectos culturais passíveis
de serem observados e descritos, o que lhe possibilita conhecer a cultura ma-
terial e imaterial dos grupos humanos. Percebe-se, com isso, que a etnografia
pode ser uma importante ferramenta na coleta de dados sobre Alimentação e
Nutrição, na medida que é capaz de oferecer informações importantes no en-
tendimento de como, quando, quanto, onde e por quê os indivíduos de grupos
humanos específicos se alimentam. E a literatura científica traz várias experi-
ências do emprego dessa ciência no campo da Alimentação e Nutrição.
Os “Estudos de Comunidade” são um bom exemplo de como a etnografia
começou a ser empregada, há anos atrás, entre as décadas de 40 e 60, no campo
da Alimentação e Nutrição. Tais estudos tiveram foco na dimensão cultural da

capítulo 4 • 111
alimentação, e estudaram as crenças e tabus (proibições) ligados à gestação,
parto e pós-parto. Além disso, esses trabalhos conseguiram mostrar também
como eram os mecanismos de produção e de abastecimento de alimentos das
economias de subsistência e extrativas, bem como as crenças que permeavam
a composição da dieta, o preparo dos alimentos, os hábitos alimentares e a
classificação dos alimentos - em “quentes” ou “frios”, “fortes” ou “fracos”, por
exemplo (Canesqui e Garcia, 2005).

A comunidade é um produto do desenvolvimento natural, das relações de parentesco,


do ato de viver junto, de forma íntima, como ocorre por exemplo em uma família, as
relações são marcadas pela proximidade e intensidade. Já a sociedade possui caráter
“artificial”, devido à falta de elos naturais de ligação, trata-se de uma associação na qual
se ingressa consciente, designando, portanto, agrupamentos humanos que se carac-
terizam pelo predomínio de contatos sociais secundários e impessoais (Arenari, 2003;
Tönnies, 1947).

Os Estudos de Comunidade constituem-se numa modalidade de pesquisa em que a


vida social de uma dada comunidade passa por investigação minuciosa e detalhada.
Consistem num método de observação, exploração, comparação e verificação. Tais es-
tudos usam a comunidade como um contexto para explorar, descobrir ou verificar in-
terconexões entre fatos e processos sociais/psicológicos. Os Estudos de Comunidade
são descritivos, abrangentes, e têm como princípio metodológico a coleta de diversos
dados para a compreensão da configuração da estrutura social da comunidade anali-
sada (Arensberg & Kimball, 1973; Oliveira e Maio, 2011).

Charles Wagley está entre os estudiosos de comunidade, sendo um dos pri-


meiros antropólogos norte-americanos que estiveram no Brasil e se dedicaram
à antropologia aplicada à saúde pública. Este autor realizou um estudo sobre
a comunidade amazonense, no qual analisou os regimes, receitas e despesas
alimentares, a disponibilidade de calorias, o estilo de vida e as crenças tradi-
cionais relacionadas à saúde, à doença e às suas causas e meios de tratamento
(Wagley, 1953).

112 • capítulo 4
Posteriormente, Cândido (1971) ampliou e renovou os estudos de comuni-
dade anteriores, identificando, em seu trabalho, os padrões de sociabilidade
e alguns aspectos das transformações culturais. Os sistemas alimentares esta-
vam expostos a transformações pelo desenvolvimento do capitalismo urbano
-industrial. As mudanças, que ocorriam mediante o emprego das tecnologias e
das formas de organização social, afetavam a produção e distribuição dos bens
alimentícios, o sistema de abastecimento e o consumo alimentar.
Cândido (1971) explorou ainda as várias formas de distribuição dos alimen-
tos, como as realizadas nas festas públicas e as realizadas entre vizinhos e pa-
rentes; e relacionou a comensalidade aos padrões de sociabilidade e às relações
de parentesco e vizinhança, onde o sistema de trocas de alimentos era assenta-
do na cooperação. Constatou também que, apesar das mudanças na organiza-
ção social, econômica e cultural e do acelerado processo de transição sofrido
pelos meios rural e urbano, muitas crenças alimentares que se relacionavam
ao sistema religioso e às suas prescrições e rituais persistiam (Cândido, 1971).
Na década de 80, os estudos etnográficos sobre alimentação foram escassos
e os de representações de saúde e doença das classes populares referiam-se,
invariavelmente, à importância das categorias “força/fraqueza”, utilizadas não
apenas para dimensionar a percepção de estados corporais, mas para articulá
-las em torno da alimentação (Costa, 1980; Loyola, 1984; Duarte, 1986; Queiroz
& Canesqui, 1989).
Duarte (1986) reviu os trabalhos sobre este assunto e observou que a comi-
da tinha como um de seus pontos centrais a avaliação da força que pode ser
transmitida ao organismo pela ingestão dos nutrientes, sendo essa ingestão
frequentemente chamada de “sustança” ou avaliada pela presença de elemen-
tos como vitaminas e ferro. Nos estudos, a oposição entre os alimentos consi-
derados “fortes” e “fracos” se relacionava com a denominação “quente”/”frio”
dos alimentos e com as qualidades diferenciais do homem/mulher, adulto/
velho/criança, estados regulares/estados especiais (como: gravidez, puerpério,
doenças, etc.).
Pelo discurso das classes populares nestes estudos, a doença era identifica-
da pelas sensações de “fraqueza” e “desânimo”, que afetavam o corpo e a men-
te. E entre as causas citadas estava a falta de alimentação, bem como causas
naturais, morais, comportamentais, sobrenaturais e/ou econômicas (Minayo,
1988; Queiroz & Canesqui, 1989). Canesqui (2005) aponta que nos estudos et-
nográficos desenvolvidos nessa época, a valorização da “boa alimentação” na

capítulo 4 • 113
garantia da saúde revelou, nos distintos grupos pesquisados, tanto a existên-
cia de conhecimentos e práticas tradicionais sobre a alimentação quanto a sua
mescla com o saber nutricional dos médicos e dos profissionais de saúde.
Posteriormente, foram desenvolvidos vários estudos com a utilização da
Etnografia no campo da Alimentação e Nutrição. Os parágrafos a seguir trazem
dois exemplos.
Em um estudo etnográfico desenvolvido em 2006, foi analisado o perfil ali-
mentar da comunidade quilombola de João Surá, no estado do Paraná, Brasil. A
partir deste levantamento, foi possível perceber o modo como este grupo vive e
pensa o mundo, sua íntima relação com a natureza, seu apego às tradições, seu
respeito às raízes e à sabedoria dos ancestrais (Cambuy, 2006).
Outro trabalho com abordagem etnográfica foi realizado no estado do Mato
Grosso, Brasil em 2012, envolvendo trabalho de campo na aldeia de São Pedro,
Terra Indígena Parabubure. A pesquisa se deu por meio da “observação partici-
pante” como técnica principal, enfocando questões envolvidas com a dinâmica
da alimentação na escola. Este estudo pôde demonstrar que o respeito às es-
pecificidades culturais na alimentação escolar envolve o reconhecimento das
maneiras de comer e interagir no espaço escolar, seja em contexto indígena,
seja nos demais contextos locais, transcendendo assim o foco restrito nos itens
alimentares. Por meio deste trabalho mostrou-se a importância de se reconhe-
cer as demandas e conhecimentos locais de um povo, enquanto processos legí-
timos, dinâmicos e específicos de um determinado contexto (Gonçalves, 2012).

“Observação participante” é uma técnica de coleta de dados muito utilizada, sendo fun-
damental na antropologia e na prática etnográfica. Esta técnica consiste na inserção do
pesquisador no interior do grupo observado, tornando-se, assim, parte dele, o que lhe
permite interagir por longos períodos com os sujeitos, buscando partilhar o seu cotidia-
no para que consiga sentir o que significa estar naquela situação. Um princípio impor-
tante da observação participante é que esta técnica é capaz de integrar o observador
à sua observação. Por meio dela, o pesquisador analisa a realidade social que o rodeia,
tentando captar os conflitos e as tensões ali existentes. A ciência da Antropologia uti-
liza a observação participante para desvendar redes complexas de relacionamentos do
ser humano, de forma descritiva (Queirós et al, 2007; Richardson, 1999).

114 • capítulo 4
De acordo com Canesqui (2005), se os profissionais da saúde querem com-
preender como os saberes, representações e discursos fazem sentido para a
ação, será sempre importante, por um lado, reportá-los às necessidades coti-
dianas das pessoas e, de outro, às características e aos valores do seu grupo so-
cial e às suas relações sociais.
Adam e Herzlich (2001, p.86) afirmam que:

[...] os elementos da estrutura social, bem como os sistemas de valores e as referências


culturais, também têm função. Cuidar da saúde e da alimentação, por exemplo, depen-
de em grande parte de vários tipos de recursos e limitações, relacionados ao trabalho,
à renda ou à vida familiar. Parar de beber ou fumar podem ser decisões individuais,
baseadas em algum tipo de informação ou norma, mas é preciso, para se aquilatar
a dificuldade envolvida, compreender suas implicações relacionais estabelecidas pela
cultura do grupo a que pertence o indivíduo.

É importante que o leitor, futuro profissional de saúde, reflita sobre essas pala-
vras, para que oriente ações condizentes com a realidade e o contexto dos indivíduos.

4.2  Breve Histórico sobre os Estudos


Antropológicos da Alimentação

É importante que o futuro profissional de saúde analise as informações forne-


cidas pelos estudos antropológicos da alimentação e perceba como estes traba-
lhos evoluíram ao longo do tempo.

PERÍODO ACONTECIMENTO

Alguns antropólogos pesquisaram a ali-


mentação, interessando-se pelo modo
Durante a década de 70
de vida das classes populares, incluindo
a cultura e a ideologia .

capítulo 4 • 115
PERÍODO ACONTECIMENTO

O interesse a respeito foi diminuído e o


assunto vinculou-se a estudos sobre re-
presentações do corpo, saúde e doença.
Esses estudos marcaram as pesquisas
“qualitativas” em saúde no Brasil, em
Nos anos 80 função do maior desenvolvimento das
ciências sociais em relação à saúde e
do crescente envolvimento dos antropó-
logos com as questões relacionadas à
saúde em geral, da qual a alimentação é
um dos componentes.

Temas como: regionalismos culinários;


comida e simbolismo; cozinhas e religião;
hábitos alimentares de grupos específi-
cos ou aqueles promovidos pelo marke-
ting; os fast-food e a reorganização da
A partir da segunda metade da década
comensalidade na sociedade urbano-in-
de 90
dustrial, entre outros, entraram em deba-
te nas discussões do “Grupo de Trabalho
sobre Comida e Simbolismo”, promovido
pela Associação Brasileira de Antropo-
logia

Tabela 4.1 – Características dos estudos antropológicos ao longo do tempo. Fonte: Canesqui
e Garcia, 2005.

Nota-se, entretanto, que apesar dos importantes avanços já obtidos com re-
lação à interlocução entre as ciências sociais e o campo da saúde, os estudos
antropológicos sobre alimentação ainda compõem uma bibliografia recente, e,
por isso, ainda não inteiramente publicada, o que dificulta a realização de um
balanço muito abrangente e detalhado dessa produção acadêmica. Por isso,

116 • capítulo 4
todas as informações trazidas neste capítulo, bem como neste livro, são fruto
de intensa pesquisa e mineração de dados entre os livros e artigos científicos
já publicados no campo da Antropologia/História da Alimentação e, mais que
isso, provenientes de análises que integram e correlacionam dados vindos de
estudos da área da saúde com dados vindos de estudos do campo das ciências
sociais.

4.3  Influências Históricas na Construção dos


Significados

As populações desenvolvem seu padrão alimentar em função da disponibilida-


de de alimentos acessíveis para a região em que se encontram, em cada época.
Os alimentos são então adaptados à culinária local/regional. Ao se pensar no
panorama atual, os padrões de consumo alimentar variam grandemente em
diferentes partes do mundo, dependendo do grau de desenvolvimento tecno-
lógico e das condições econômicas e políticas para a produção. Atualmente, a
oferta de alimentos é mais que suficiente para alimentar a população mundial,
entretanto, são necessárias medidas políticas para melhor distribuição de ren-
da e melhor acesso ao alimento (Abreu, 2001).
Estudar a alimentação ao longo da História é importante para entender as
especificidades de cada sociedade e como se deram as transformações em re-
lação à alimentação. Neste processo, deve-se considerar que o hábito alimen-
tar de uma cultura é constituído inicialmente pela disposição local/regional
de alimentos e, posteriormente, por meio de contatos entre diferentes povos,
o que amplia as possibilidades alimentares (Garcia, 1995). No capítulo 5 des-
te livro abordaremos a alimentação na contemporaneidade e no contexto da
globalização.
Os hábitos humanos em todas as partes do mundo são influenciados por
convicções, valores culturais, religião, clima, localização regional, agricultu-
ra, tecnologia, situação econômica, entre outros fatores. Como consequência,
os hábitos alimentares variam de região para região. O mesmo pode ser dito a
respeito dos significados atribuídos aos alimentos em cada grupo social. Uma
cultura pode ver o alimento como uma fonte de prazer e outra cultura pode en-
xergá-lo como uma oportunidade de socialização. Instituições como a família,

capítulo 4 • 117
a igreja e a escola passam as práticas culturais de uma geração para outra e as-
sim cada pessoa seleciona e consome alimentos baseada nesse guia cultural
(Medved, 1981).
Por meio do estudo da gastronomia mundial e dos fatos que ocorreram ao
longo da História é possível conhecer não apenas a arte de cozinhar e o prazer
de comer nos diferentes contextos, mas também os recursos alimentares dis-
poníveis em cada época, pois as condições naturais de vida são extremamente
variadas: existe a influência da latitude, da natureza dos solos, da proximidade
do mar, do clima, etc. Nos próximos parágrafos será exposta uma análise inter-
pretativa dos aspectos históricos e sua relação com a alimentação.

A alimentação é essencial para o homem desde o nascimento, é da alimentação que


ele retira os nutrientes necessários ao funcionamento do organismo, e também ne-
cessários à sua vida. Dessa forma, a história da alimentação existe desde que surgiu a
espécie humana. Um fato interessante sobre a história da alimentação é que o homem
aprendeu a assar e cozinhar observando coisas assadas depois de incêndios naturais.
Estudos apontam que os nossos ancestrais utilizam o fogo para cozinhar há aproxima-
damente dois milhões de anos (Wranghan, 2010). Desde então, o homem descobriu
cerâmica, terras e povos distintos e realizou variadas experiências com alimentação,
até chegar aos dias de hoje, onde conta com uma ciência especializada no assunto: a
Nutrição (Recine e Radaelli, 2001).

4.3.1  Pré-História

O período chamado de “Pré-História” compreende a fase anterior à invenção da


escrita, desde o início dos tempos históricos de que se tem registro, até cerca do
ano de 4.000 antes de Cristo (a. C.).
No livro “História da Alimentação” (1998) os autores Flandrin e Montanari
mostram que as frutas, as folhas e os grãos parecem ter fornecido ao homem da
Pré-História o essencial da energia de que este precisava, e estes autores suge-
rem a preponderância dos vegetais em sua alimentação, devido às dimensões
relativamente pequenas dos territórios explorados e também pelo desgaste ca-
racterístico encontrado nos dentes dos fósseis de humanoides dessa época.

118 • capítulo 4
É fato que os pesquisadores da Pré-História em geral escrevem mais sobre
os produtos vindos da caça e da pesca, em detrimento dos vegetais, mas é im-
portante situar o leitor de que isso se deve em parte ao fato de que os vegetais
deixaram menos vestígios no solo, e que além disso, ainda são recentes os mé-
todos de análise que conseguem medir as partes de vegetal e de carne na ali-
mentação e constatar os tipos específicos de vegetais que eram consumidos
(Flandrin, 1998).
A espécie humana, como a conhecemos, é resultado de uma longa evolu-
ção. E é importante também que o leitor entenda um pouco acerca dos seus as-
pectos evolutivos. Dessa forma, primeiramente falemos dos “Antropoides”. Os
Antropoides são os primatas, dos quais, da perspectiva evolutiva, nós fazemos
parte. Além de nós, os antropoides incluem também os chimpanzés, os gorilas
e os orangotangos, por exemplo (Durham, 2003).
Posteriormente, surgiram os hominídeos. Os “Australopithecus” são ho-
minídeos que viveram na África há cerca de 4 milhões de anos, caminhavam
eretos, mediam em torno de 1,40 metros de altura, provavelmente ainda eram
cobertos de pelos e viviam em grupos. O Homo habilis, que viveu há aproxima-
damente 2 milhões de anos, criou os primeiros utensílios de pedra, rudimen-
tares, habitava as savanas secasse conseguia obter alimentos frutíferos e caça
de pequenos animais (AMBAN, 2012). Já com o surgimento do Homo erectus,
que viveu há cerca de 1,5 milhão de anos, a caça se tornou uma maneira mais
relevante de subsistência, pois os cérebros destes indivíduos eram grandes e
assim exigiam um suprimento extra de energia. Tal necessidade os levou a con-
sumir carne, o que proporcionava uma alimentação mais energética, capaz de
manter o cérebro grande, que precisava de mais energia que o anterior (Lopes e
Vasconcellos, 2008; AMBAN, 2012). Conforme aponta Leakey (1994, p.13):

[...] O homo erectus foi a primeira espécie humana a utilizar o fogo; a primeira a incluir a
caça como uma parte significativa de sua subsistência; a primeira capaz de correr como
os humanos modernos o fazem; a primeira a fabricar instrumentos de pedra de acordo
com um padrão definido; a primeira a estender seus domínios além da África.

Posteriorimente, o Homo sapiens neanderthalensis, há cerca de 150 a


40 mil anos, viveu durante a era glacial, habitando diversas regiões (como
Europa e Oriente), tinha características similares a dos atuais humanos, criou

capítulo 4 • 119
instrumentos de pedra e acredita-se que já possuíam linguagem falada. Já o
Homo sapiens (há 40 mil anos) espécie da qual fazemos parte, foi capaz de aliar
trabalho e criatividade, construindo, dentre outros, vestes e habitação (AMBAN,
2012).
Muito se debate sobre saber se os primeiros hominídeos foram caçadores
ou ladrões de carcaças. Flandrin (1998) defende que desde a origem do gênero
humano o homem já praticava caça ativa, mesmo que eventualmente roubasse
presas de outros predadores. Muitas pesquisas arqueológicas corroboram esta
ideia, pois encontraram pedras dispostas de maneira a serem usadas para aba-
ter animais e não para derrubar frutos (Recine e Radaelli, 2001).
De qualquer forma, de acordo com o autor Giacometti (1989), desde o prin-
cípio, por milênios, vagaram os predecessores do homem, o próprio homem e
seus descendentes, investigando a face da terra, em busca de alimento. E deixa-
ram aos homens dos dias de hoje um legado filogenético1 de experiências, em
que se fundamentaram o cultivo de cereais e condimentos (Giacometti, 1989).
A Pré-História pode ser dividida em três fases: Paleolítico (de aproximada-
mente 2,5 milhões a. C. até cerca de 10.000 a. C.), Mesolítico (período interme-
diário) e Neolítico (de cerca de 10.000 a. C. a aproximadamente 4.000 a. C.), so-
bre as quais discorrerão os parágrafos seguintes.
Durante o período Paleolítico, a agricultura e a domesticação dos animais
não eram conhecidas pelo homem. Esta garantia a sua subsistência sendo “ca-
çador-coletor”, ou seja, por meio da coleta de frutos e raízes, da pesca e da caça
de animais - como renas, ursos, mamutes e rinocerontes (Recine e Radaelli,
2001).
A partir da era paleolítica inferior, a caça e a ingestão de carne aumenta-
ram significativamente. No período paleolítico médio (200.000 a 40.000 a. C.)
torna-se mais frequente a caça ocasional, que era diversificada porém sempre
baseada em animais de grande porte como ursos, rinocerontes e elefantes. Já
no período paleolítico superior (40.000 a 10.000 a. C.), generalizam-se grandes
caçadas coletivas, sistemas de subsistência baseados na exploração de animais
de uma única espécie, os quais eram caçados em massa em grandes “batidas”.
Neste período a caça era especializada em manadas de renas, cavalos, bisões,
auroques ou mamutes, o que dependia da região em que se encontravam e dos
recursos nela disponíveis (Perlés, 1998; Flandrin, 1998).
1  Filogenético: Relativo à filogenia ou à sucessão genética das espécies orgânicas (Dicionário Priberam da Língua
Portuguesa, 2015). Filogenia: Evolução das espécies que vão, ao longo do tempo, passando de simples e inferiores
a complexas e superiores (Dicionário Online de Português, 2015).

120 • capítulo 4
As grandes caçadas coletivas do Paleolítico Superior (40.000 a 10.000 a. C.)
exigiram uma organização socioeconômica e técnica bastante diferente da
necessária para a caça ocasional, pois exigiam, por exemplo, a colaboração de
muitos indivíduos. Elas foram bastante importantes para o desenvolvimento
humano do ponto de vista da linguagem, da organização social, da comensali-
dade, etc.; e implicaram em mecanismos de informação e de integração social,
ou seja, em sistemas sociais expandidos, pois integraram maior número de in-
divíduos, já que exigiam longa fase de preparo, colaboração entre os membros
dos grupos e também a conservação da carne obtida por grande período de
tempo (Perlés, 1998; Flandrin, 1998).
Para situar o leitor acerca dos fenômenos climáticos que ocorriam em nos-
so planeta, é importante citar o Período Glacial de Würm, última grande gla-
ciação, que se deu há cerca de 20.000 anos atrás. A glaciação de Würm foi rude,
nela, os desertos, particularmente o Sahara, expandiram-se em direção ao nor-
te e ao sul, e, dentre outros efeitos, observou-se que o teor em gás carbônico da
atmosfera diminuiu e a temperatura global também (Motoki et al, 2009; Tardy,
1997).
A partir do ano 8.000 a. C., ocorre a acentuação do derretimento das gelei-
ras, e com isso as latitudes médias da Europa passam a ter um clima temperado
úmido, e algumas transformações acontecem. Dentre elas, podemos citar que
as vegetações de tundra, estepes e campinas vão dando lugar às florestas, ou
seja, a vegetação se torna mais densa. Ao mesmo tempo, as grandes manadas
de herbívoros desaparecem ou refugiam-se mais ao norte. Com isso, a carne
disponível diminui e, consequentemente, o seu consumo também, devido aos
grandes animais serem substituídos por animais de pequeno porte, dispersos
e mais difíceis de capturar na densidade da floresta. Dessa maneira, outras fon-
tes de alimento tornam-se relevantes, como: vegetais, peixes, moluscos e pás-
saros (Perlés, 1998).
Assim, nas florestas temperadas em que havia caça e recursos aquáticos
em abundância, a base alimentar do Período Mesolítico era rica e permitia a
fixação dos indivíduos nesses locais. Ou seja, quando as condições ambientais
eram propícias, os indivíduos se mantinham naquela região, tanto é que nas
florestas que nessa época foram fartas em caça e pesca, é onde se encontram os
vestígios de habitações mais duradouras, onde era permitida a exploração dos
recursos sazonalmente abundantes e onde era possível a formação de estoques
de alimentos. Entretanto, isso não ocorria em todas as regiões, em outras áreas,

capítulo 4 • 121
os grupos foram obrigados a explorar espécies animais e vegetais pequenas
(como moluscos e ervilhas), as quais rendiam pouca energia a quem os consu-
misse. Nestes casos, os grupos precisavam migrar para outras regiões em busca
de alimento, e assim se observou uma grande mobilidade de alguns grupos me-
solíticos, que se instalavam por pouco tempo em habitações leves para explorar
(e esgotar) os recursos que os territórios ofereciam (Perlés, 1998).
Com o tempo, por meio de observação da natureza, os homens foram per-
cebendo que as sementes que caíam sobre terra multiplicavam suas colheitas
em poucos meses. Os indivíduos começaram então a desenvolver a agricultura
e também a criação de animais, o que aumentava a garantia de alimento e di-
minuía a necessidade de constante deslocamento, assim, os indivíduos acaba-
ram trocando a vida nômade pela vida em pequenas aldeias. Dessa maneira,
no início do período Neolítico, surgiu uma espécie de “revolução econômica”,
chamada de “Revolução Neolítica”. Tal expressão refere-se justamente a este
movimento de transição do nomadismo para a sedentarização do Homo sa-
piens, que foi possibilitado pelas técnicas de cultivo agrícola, pelas condições
propícias à estocagem de alimentos e pela criação de animais. A agricultura e a
criação de animais satisfariam, então, à necessidade de intensificação da pro-
dutividade das principais espécies consumidas (Recine e Radaelli, 2001; Perlés,
1998).

Outro marco importante do Neolítico foi a invenção do arco, da flecha e do arremessa-


dor de lanças (Recine e Radaelli, 2001).

Para Jacques Cauvin (1994) a Revolução Neolítica não se consistiu em uma


resposta às dificuldades econômicas, mas sim na expressão de uma mudança
social e ideológica que modificou a relação entre o homem e o meio (Cauvin,
1994). Com a abundância na produção de cereais que ocorreu em algumas re-
giões, intensificou-se o processo de desenvolvimento agrícola pelos povos anti-
gos (Recine e Radaelli, 2001). E a domesticação das espécies animais e vegetais
estendeu-se ainda por milênios, sendo acompanhada inclusive por uma sele-
ção das espécies a serem consumidas. Em regiões como a Europa temperada
ou nórdica, por exemplo, a alimentação à base de cereais e de carne de animais
domésticos era ainda complementada pela exploração dos recursos silvestres,
o que resultou numa alimentação mais farta e equilibrada (Perlés, 1998).

122 • capítulo 4
Dessa forma, a Revolução Neolítica mostra-se como um capítulo fundamen-
tal da História da Alimentação Humana, lançando a base da nossa alimenta-
ção tradicional, com a cultura de cereais (como trigo, centeio, aveia e cevada),
e também com a criação de animais para consumo, como carneiros, cabras,
bois e porcos. É interessante saber também que desde este período o trigo já
era utilizado para fabricar pães fermentados e bolos, o que mostra a importân-
cia dos cereais e reforça a relevância da Revolução Neolítica para a alimentação
humana (Perlés, 1998).

4.3.2  Antiguidade e Idade Média

De acordo com o trabalho de Recine e Radaelli (2001), por meio da análise das
tumbas do Antigo Egito (datadas de épocas a partir do quarto milênio antes de
Cristo), é possível descobrir os alimentos que eram consumidos pelos faraós:
massas, frutas, legumes, laticínios, especiarias, cereais, condimentos, carnes,
peixes, mel e bebidas. As fontes escritas e figurativas do Egito antigo apontam,
como modalidades de produção alimentar, a agricultura, criação de animais,
caça e pesca. Saúde e longevidade, para os egípcios, dependiam dos prazeres
da mesa, sendo que a inapetência era considerada sinal de doença. Eles eram
grandes conhecedores da farmacopeia, das propriedades das ervas medicinais
e já relacionavam a alimentação com a cura de moléstias.
Os primeiros grãos cultivados pelos povos antigos foram os cereais (trigo,
milho, arroz e cevada). Com relação à importância do trigo, sabe-se que já em
tempos pré-históricos o trigo era o alimento básico do homem e no antigo Egito
já era cultivado 3.000 anos antes de Cristo; esse alimento era usado pelos faraós
como forma de pagamento e já se fabricava o pão. Ainda antes da era cristã,
gregos e romanos produziram trigo e o levaram para o resto da Europa, pois se
tratava de um cereal nobre, preferido pelos ricos, enquanto a plebe e os escra-
vos consumiam a cevada (Recine e Radaelli, 2001).
Na Antiguidade (período compreendido entre o ano 4.000 a. C. e o século V,
quando termina com a queda do Império Romano), o vinho era a principal be-
bida. A alimentação na Roma Antiga era bastante parecida com a alimentação
na Grécia. Os médicos já conheciam muitos dos efeitos preventivos e terapêuti-
cos da alimentação. Os textos de Hipócrates (famoso médico da Grécia Antiga,
conhecido como o “Pai da Medicina”) fazem referência a alguns produtos ali-
mentícios consumidos pelos gregos e também à associação entre alimentos e

capítulo 4 • 123
combate a doenças. Nesses trabalhos são citados alguns alimentos e algumas
atividades realizadas para adquirir alimentos (Recine e Radaelli, 2001). Tais ali-
mentos/atividades estão dispostos na Tabela 4.2.

Alimentos: Cevada, trigo, favas, grão-de-bico, lentilhas, gergelim, queijos, frutas secas
e frescas, hortaliças como alho, cebola e agrião, condimentos como poejo, manjericão
e tomilho.

Atividades: Criação de bovinos, suínos, ovinos e de cães (para consumo); caça de


javalis, lebres, raposas e aves; pesca de peixes e moluscos.

Tabela 4.2 – Alguns produtos alimentícios e atividades desenvolvidas pelos homens para
aquisição de alimentos na Antiguidade, citados nos textos de Hipócrates (“Pai da Medicina”).
Fonte: Recine e Radaelli (2001).

Conforme aponta Garcia (1995) em seu trabalho, a disseminação da utiliza-


ção de tipos diferentes de alimentos entre os continentes se deve muito ao co-
mércio e à introdução de plantas e animais domésticos em novas áreas. Gregos
e romanos tinham um comércio de grande porte, com plantas comestíveis,
azeite de oliva e importação de especiarias no Extremo Oriente em 1000 antes
de Cristo (Garcia, 1995).
Na cozinha da Idade Média - séculos V a XV depois de Cristo – é como se as
pessoas se preocupassem mais com a aparência do que com o sabor dos pratos,
mas três sabores se destacavam (Recine e Radaelli, 2001):

•  O forte, por causa das especiarias (temperos);


•  O doce, pelo uso do açúcar;
•  O ácido, graças ao vinagre, ao vinho e aos sucos de frutas cítricas.

Durante a Idade Média, houve um aperfeiçoamento lento dos modos de


produção de alimentos, mas a alimentação em si não se desenvolveu. Quando
os árabes invadiram a Espanha em 711 houve a entrada de plantas comestíveis
importantes para a Europa. Neste período, os invasores sarracenos levaram
arroz, vegetais, frutas, condimentos e a cana de açúcar para o sul da Europa
(Garcia, 1995; Ornellas, 1978; Savarin, 1995).

124 • capítulo 4
Segundo Abreu e colaboradores (2001), o fato de o Mediterrâneo ter sido
dominado por árabes abalou drasticamente a estrutura da sua região e apenas
no século XII é que o Mediterrâneo reconquistou destaque no sistema comer-
cial europeu e que as especiarias voltaram a ter importância em toda a Europa.
Segundo Medved (1981), com as cruzadas, iniciadas em 1096, milhares de pe-
regrinos entraram em contato com o Oriente Médio, e um comércio intenso se
estabeleceu.
O uso de especiarias e de ervas aromáticas em banquetes era sinônimo de
riqueza na Idade Média. Essa preferência da classe rica por especiarias e ervas
aromáticas em banquetes na Idade Média mostra como a posição social de um
indivíduo pode influenciar em seus hábitos e práticas. Tal fenômeno pode ser
elucidado através das palavras do autor Pierre Bourdieu (1989):

[...] Sem dúvida, os agentes constroem a realidade social; sem dúvida, entram em lutas
e relações visando a impor sua visão, mas eles fazem sempre com pontos de vista, in-
teresses e referenciais determinados pela posição que ocupam no mesmo mundo que
pretendem transformar ou conservar (1989, p. 8).

Portugal, Espanha e Veneza competiram no financiamento de viagens ma-


rítimas para descobrir centros produtores de especiarias e apoderar-se deles,
nos séculos XV e XVI. Essas viagens foram importantes na descoberta de novos
alimentos e especiarias, e expressaram o tamanho do domínio econômico dos
países que as realizavam. Ao se analisar os fatos ao longo da história percebe-se
que o poder econômico e o monopólio do comércio passaram por vários povos,
o que possibilitou grande intercâmbio de cultura, hábitos, culinária e conheci-
mentos (Abreu et al, 2001).

4.3.3  Idade Moderna

A agricultura antes era de subsistência, mas, nesta fase, que durou aproxima-
damente dos séculos XV a XVIII, passa a ter fins comerciais. Alimentos como
tomate, batata, milho, arroz, entre outros, tornam-se importantes na alimen-
tação ocidental. O pão era bastante consumido por todas as classes sociais e
as crises na produção de cereais durante esse período tiveram impacto direto
sobre a mortalidade (Recine e Radaelli, 2001).

capítulo 4 • 125
É importante pontuar ao leitor algo que aparentemente não se relaciona
com Nutrição e Antropologia, mas que indiretamente afetam esses campos. A
descoberta oficial da América, resultante das tentativas de novas descobertas
e as outras viagens que Cristóvão Colombo realizou não tiveram apenas reper-
cussões políticas e econômicas. As caravelas do navegador voltaram com novos
ingredientes de cozinha. Se não encontrou um trajeto mais rápido para buscar
as especiarias no oriente, como prometera, Colombo foi pelo menos um bri-
lhante estimulador de descobertas gastronômicas. Assim, muitos alimentos
foram à Europa, trazidos da América: tomate, batata, abacaxi, abacate, amen-
doim, baunilha, milho, mandioca, feijão, pimentas, provocando uma revolu-
ção nas receitas da época (Garcia, 1995; Gula, 1997).
Os europeus desprezaram os tubérculos encontrados no Novo Mundo. A
batata era usada por eles para alimentar porcos, prisioneiros e camponeses po-
bres (Mezomo, 1985) (entretanto, é importante considerar aqui que isto muda
no século XVIII, sendo ela a partir de então um alimento bastante importan-
te em alguns locais). O milho foi utilizado pelas camadas sociais de reduzidas
posses, surgindo assim as preparações econômicas, como mingaus e polentas.
Percebe-se que o milho e a batata foram certamente as contribuições mais sig-
nificativas que beneficiaram as populações menos favorecidas em recursos ali-
mentares. Já o cacau, a baunilha e o tomate ascenderam às esferas de maior
sofisticação culinária, comparecendo à mesa dos ricos (Ornellas, 1978).
É importante, também, que se mencione aqui sobre o “Mercantilismo”, o
qual teve contribuição decisiva para estender as relações comerciais do âmbi-
to regional para a esfera internacional, consistindo-se em uma fase de transi-
ção entre o feudalismo e o capitalismo moderno. Antes, porém, de falarmos
de mercantilismo, é necessário contextualizar o leitor sobre o que ocorria no
período do “Feudalismo”. Neste sistema, as trocas eram basicamente locais e
regionais e não formavam o centro do sistema econômico (como acontece no
mercantilismo), ou seja, o feudo era fechado em si mesmo e as relações exter-
nas se limitavam ao necessário (Souza, 2015).
Com o mercantilismo, se intensificaram as trocas de novos produtos entre
os países europeus, asiáticos e árabes, e foi desenvolvido o sistema manufa-
tureiro doméstico, artesanal, o que deu origem à indústria capitalista, sendo
que em um primeiro momento, o mercador-capitalista fornecia ao artesão a
matéria-prima, para que transformasse em produto a ser comercializado, mas
depois o mercador-capitalista passou a fornecer as máquinas, as ferramentas

126 • capítulo 4
e, em muitas ocasiões, o próprio prédio onde os bens seriam produzidos. Dessa
maneira, no lugar de comprar dos artesãos os produtos que vendia no mercado,
ele acabou contratando também os trabalhadores necessários à produção, pas-
sando a reuni-los em um mesmo local, o que deu origem a fábrica. A formação
de grandes capitais, a expansão dos mercados e o surgimento do trabalho assa-
lariado deram nascimento ao sistema capitalista (Souza, 2015).

4.3.4  Idade Contemporânea

Na Idade Contemporânea, a agricultura de mercado continuou crescendo e


uma variedade cada vez maior de frutas e verduras passou a ser cultivada e con-
sumida. A ingestão de açúcar até então era restrita às elites sociais, mas nesta
época se difundiu na alimentação popular. Ocorreu também um aumento no
consumo de ovos e de gorduras, de origem vegetal e animal (Recine e Radaelli,
2001).

“Economia de Mercado” é, de forma geral, a aplicação dos ideais liberais na econo-


mia, com a mínima intervenção do Estado e a centralidade no mercado e na iniciativa
privada. Alguns dos principais pressupostos que devem ser respeitados para o seu
adequado funcionamento são: os agentes econômicos devem ter liberdade de ação;
os preços vigentes devem espelhar o grau relativo de escassez de bens e serviços; e
as trocas feitas pelos agentes econômicos precisam ser uma soma positiva (Oliveira,
2008; Brasil Escola, 2015).

As autoras Recine e Radaelli (2001) apontam algumas técnicas usadas pelo


homem, que são anteriores ao uso da cerâmica, mas que persistiram até a Idade
Contemporânea:

•  Aquecer água com pedras quentes. Curiosidade: no Brasil, também se


empregava essa técnica no preparo do “café do comboieiro” ou “café de pedra”,
onde se misturava o pó do café na água fria e se jogava uma pedra aquecida no
recipiente.
•  Assar pelo calor, após a retirada das pedras aquecidas, num forno subter-
râneo, ou acender o fogo sobre uma panela enterrada, técnica comum no Brasil
do século XVI.

capítulo 4 • 127
•  Assar ao calor das brasas, o que deu origem ao “churrasco”.
•  Cozinhar nas cinzas. No século XVII, no Brasil, os índios preparavam pei-
xes embrulhados em folhas e os colocavam debaixo de cinzas para cozinhar ou
assar.

Até o século XX, descobertas importantes levaram ao progresso e também


à modificação dos costumes alimentares. Abreu (2000) destaca algumas delas:

•  Renovação das técnicas agrícolas e industriais;


•  Descobertas sobre fermentação;
•  Produção de vinho, cerveja e queijo em escala industrial;
•  Beneficiamento do leite;
•  Avanços na aplicação da genética no cultivo de plantas e criação de
animais;
•  Mecanização agrícola;
•  Desenvolvimento de processos para conservação de alimentos.

Pekkanivew desenvolveu um estudo comparando os padrões de consu-


mo alimentar no mundo, em 1975. Por meio deste trabalho, verificou-se uma
grande variação dos padrões de consumo nas diferentes partes do mundo.
Este autor constatou que conforme o nível de desenvolvimento econômico e
as condições de produção, áreas desenvolvidas consumiam diferentes propor-
ções de tipos de alimentos em relação àquelas em desenvolvimento: maiores
proporções de alimentos de origem animal, variados tipos de vegetais, frutos,
açúcares e bebidas, eram consumidos nas áreas desenvolvidas, e naquelas em
desenvolvimento consumiam-se grandes quantidades de cereais enquanto o
consumo de vegetais e frutas era menor do que nos países desenvolvidos, e o
consumo de alimentos de origem animal era mínimo.
Este autor apontou ainda que consumo de açúcar vinha aumentando em
todas as partes do mundo, mas, era particularmente elevado na América do
Norte, Oceania, países europeus e América Latina. Quanto aos óleos e gorduras,
as mais altas taxas de ingestão ficavam entre os países da Europa e América do
Norte. Sobre as bebidas alcóolicas, as mais comuns no mundo eram cervejas e
vinhos, e o principal consumo ocorria na Europa.
Este estudo de Pekkanivew (1975) é importante não só para que o leitor com-
pare o padrão de consumo com o que foi relatado nos parágrafos anteriores,

128 • capítulo 4
acerca de épocas mais remotas da civilização humana, mas leva também o futu-
ro profissional de saúde a refletir sobre aspectos que interferem nos padrões de
consumo dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, as desigualdades na
disponibilidade dos alimentos, nas condições climáticas e nas possibilidades
técnicas. Por exemplo, nos países em desenvolvimento a precariedade no trans-
porte e na educação alimentar, e certos costumes religiosos podem restringir o
consumo alimentar.
Passe o leitor, agora, a pensar nos dias de hoje. No tamanho da variedade de
produtos alimentícios com os quais o ser humano conta. As novidades surgem
a cada momento, com isso, acompanhar as alterações na área dos alimentos
tornou-se um grande desafio, pois mesmo os produtos considerados “natu-
rais”, como a soja por exemplo, podem ser modificados através de processos
diferenciados de cultivo e maquinaria genética.
Cada vez mais aumentam as alternativas nas indústrias de alimentos e nos
serviços de alimentação. Alimentos congelados, pré-cozidos, enlatados, con-
servas, drive-thru, fast-food, delivery e self-service são só alguns exemplos. E
com o passar do tempo, os tipos de alimentos consumidos nos diferentes paí-
ses aparentam ser cada vez mais semelhantes. Quanto à essa homogeneidade,
as autoras Recine e Radaelli (2001) afirmam que a mesma é relativa e mais apa-
rente do que real, uma vez que os comportamentos alimentares são adaptados
à cultura de cada povo e país, em estruturas fortemente marcadas pelas particu-
laridades locais, com um forte apego à sua própria identidade.
Crescimento demográfico, industrialização e urbanização são fatores que
alteraram o consumo alimentar e o estilo de vida das pessoas, favoreceram o
sedentarismo, a restrição da necessidade de gasto de energia para as ativida-
des diárias e facilitaram o consumo de alimentos prontos e de alta densidade
energética. Com isso, aumentaram os problemas de saúde - obesidade, hiper-
tensão e alguns tipos de câncer. Além disso, no cenário atual, o alimento até
está disponível, mas não é acessível para muitas pessoas, o excedente global de
alimentos não se traduz em segurança alimentar para todos. Ademais, muitos
países do mundo importam alimentos, portanto não produzem eles mesmos
aquilo que consomem. No caso de alguns países, essa importação tem pouca
importância, mas no caso de outros como Bangladesh, Etiópia e Haiti este fator
influencia muito na manutenção da pobreza e da fome (Comité Nacional de los
Estados Unidos, 1992).

capítulo 4 • 129
Hoje em dia, a distribuição de alimentos é desigual no mundo e afeta os
padrões de consumo das populações. Abreu e colaboradores (2001), bem como
muitos outros artigos científicos, mostram a existência de diferenças na distri-
buição de alimentos nos países desenvolvidos e em desenvolvimento e também
dentro de um mesmo país. Isso demonstra a importância dos fatores políticos,
geográficos e econômicos. Nos países desenvolvidos existe abastada oferta de
alimentos, mas o consumo sob o ponto de vista nutricional nem sempre é ade-
quado, simultaneamente, as populações dos países em desenvolvimento têm
escassez de alimentos sem dispor de recursos educativos, ambientais e finan-
ceiros para obtenção dos mesmos, apresentando como consequência a fome e/
ou subnutrição (Abreu et al, 2001).

CONEXÃO
As autoras Priscilla Machado Moraes e Cristina Maria de Souza Brito Dias redigiram um
artigo em 2012 bastante pertinente ao tema deste capítulo e também muito aplicável à prá-
tica clínica do profissional de saúde. Este artigo apresenta uma revisão sobre a história da
alimentação e sua influência no desenvolvimento da obesidade infantil. Percorre diferentes
momentos históricos, acompanhando as principais transformações ocorridas na sociedade
e, como consequência, na alimentação das famílias. Vale a pena conferir! Está disponível
em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index. php/psicologia/article/view/21755/20286> e sua
referência completa encontra-se ao final deste capítulo (Moraes e Dias, 2012).

4.4  História e Comensalidade Humana


Como o leitor deve ter notado, a história do homem se confunde com a histó-
ria da alimentação. E sabe-se que a partilha de alimentos (comensalidade) é
praticada pelo ser humano desde os tempos da caça e da coleta. Como já colo-
cado neste livro, o fogo é utilizado há aproximadamente dois milhões de anos
para cozinhar e foi dominado, isto é, o homem conseguiu fazer fogo, há 500.000
anos. E pode-se dizer que esse poder de passar o alimento de cru a cozido foi tão
importante que deu origem à “cozinha”.
Lévi-Strauss (2004) interpretou essa modificação do alimento do cru ao co-
zido como o processo de passagem do homem da condição biológica para a

130 • capítulo 4
social. Este autor estudou sobretudo os indígenas do Brasil, que têm aversão
à carne crua. Mas é importante esclarecer que esta aversão não é universal. Al-
guns indivíduos comem carne crua e apodrecida, como os esquimós e outros
povos, e muitos a comem quase crua, como alguns ocidentais. O gosto pela
carne cozida é uma questão culturalmente construída, assim como o gosto em
geral.
É claro que o comportamento alimentar do homem não se diferenciou ape-
nas pela invenção da cozinha, propriamente dita, mas também por tudo o que
veio junto dela, por tudo o que ela representou: pela comensalidade e pela fun-
ção social que as refeições adquiriram. E nisso, o fato de o alimento passar por
processo de cocção teve fundamental importância, já que favoreceu interações
entre as pessoas (mesmo que nem todas as pessoas consumam apenas alimen-
tos cozidos, como citado no parágrafo anterior, caso dos esquimós).
De acordo com Moreira (2010), a palavra “comensalidade” deriva do latim
“mensa” que significa conviver à mesa, o que envolve não somente o padrão ali-
mentar ou o quê se come, mas, principalmente, como se come. Dessa maneira,
a comensalidade deixou de ser considerada uma consequência de fenômenos
biológicos ou ecológicos e se tornou um dos fatores estruturantes da organiza-
ção social.
Complementando esse aspecto, estudos demonstram, por exemplo, que fa-
zer refeições em família contribui para o bom estado nutricional, relacional e
para melhor qualidade de vida, principalmente entre jovens (Moreira, 2010).
Em 1970, os autores Allen, Patterson e Warren realizaram um estudo acerca
desta temática, no qual analisaram a frequência de refeições que estudantes
realizavam junto a família, a qualidade da comida, o apetite dos estudantes e o
membro da família que cozinhava. Neste trabalho, o grau de comensalidade da
família foi positivamente relacionado à interação dos pais na tomada de deci-
são, à percepção do quanto se é amado, ao desempenho do papel familiar e às
notas do estudante na escola (Allen, Patterson e Warren, 1970).
Em outra pesquisa, desenvolvida posteriormente por Hertzler e colabora-
dores (1976), acerca da companhia familiar nas refeições, foram avaliadas as
atividades alimentares da família (dentre elas: o comer junto, o planejamento
de compras, a preparação e a limpeza), bem como a relação dessas atividades
com o comportamento de meninas adolescentes. O que se observou foi que nas
atividades em que as meninas participavam acompanhadas de pelo menos um
membro da família, a percepção dessas adolescentes sobre recepção de aten-

capítulo 4 • 131
ção, disciplina, encorajamento e compartilhamento de confidências estava
em harmonia com outros membros da família. Enquanto isso, entre as garotas
que tiveram baixa pontuação nas atividades alimentares com a família, houve
correlação com anemia, com desconhecimento de alimentos fontes de ferro e
também com baixa frequência na ingestão dos mesmos. Já entre as garotas que
receberam altas pontuações no escore de atividades alimentares com a famí-
lia, houve pequena ou mesmo nenhuma correlação com anemia (Hertzler et al,
1976).
Ao longo dos anos, a forma como os indivíduos se alimentam foi sofrendo
alterações. Por exemplo, hoje em dia a falta de companhia para comer tem se
tornado comum. De acordo com a pesquisadora Diez-Garcia (2003), acredita-se
que o isolamento no ato de comer seja concomitante ao enfraquecimento do
espaço familiar como unidade social. Tal comportamento pode ser induzido
também pelo mercado, pois as pessoas vivem mais sós e têm também horários
distintos dentro de suas famílias, o que dificulta que as refeições se realizem
em família.
Mas como e quando se iniciaram estas mudanças? Provavelmente tenha
surgido a partir de 1950, junto dos drive-thrus2 nos Estados Unidos, inaugura-
dos inicialmente na Califórnia pelos irmãos McDonalds. Esses drive-thrus se
expandiram rapidamente desde então. É possível que a guerra também tenha
contribuído para promover mudanças de hábitos e adoção de novos tipos de
alimentos diretamente relacionados à dieta dos soldados, como exemplo a pro-
pagação da Coca-Cola após a Segunda Guerra Mundial. E, por falar nas mudan-
ças da alimentação contemporânea, não se pode deixar de citar que a Indústria
também foi decisiva nesse sentido. Tecnologias como as técnicas de conserva-
ção dos alimentos, as conquistas da microbiologia e a liofilização permitiram
grandes avanços/mudanças na maneira como os indivíduos comem (Moreira,
2010; Carneiro, 2003).
Além dos fatores já colocados, tem que ser lembrada a inserção da mulher
no mercado de trabalho, fato que de certa forma influenciou a produção dos
alimentos pré-preparados pela indústria, que pensava na mulher que agora dis-
punha de menos tempo para cozinhar (Moreira, 2010). Outro fator relevante é o
apontado nos trabalhos de Franco (2004) e de Collaço (2004): a disponibilidade
de tempo para cozinhar depende de para quem se destina a preparação, sendo

2  Drive thru é um serviço de vendas de produtos, normalmente alimentos fast food, que permite ao cliente comprar
o produto sem sair do carro.

132 • capítulo 4
mais valorizada quando a refeição é feita para a família e menos importante
quando o consumo é apenas para si mesmo (Franco, 2004; Collaço, 2004).
De acordo com Flandrin e Montanari, (1998), outros fatores que são relacio-
nados ao isolamento no ato de comer e que facilitaram também que as refei-
ções passassem a ocorrer com maior frequência fora de casa são:

•  Elevação do nível de vida e de educação das pessoas;


•  Generalização do uso do carro;
•  Acesso mais amplo da população ao lazer, férias e viagens;
•  Migrações dos indivíduos do campo para a cidade
•  Surgimento de novos valores, como a capacidade de escolha orientando a
organização do consumo.

Acerca destes fatores, pode-se falar também sobre a indústria e os serviços


de alimentos. Estes propiciam à vida do comensal contemporâneo uma infra-
estrutura cuja lógica é pautada pela otimização do tempo e trabalho pois, na
curta pausa que as pessoas dispõem para comer, a pressa é um dos traços mais
visíveis nos centros urbanos, com abreviamento do ritual alimentar em suas
diferentes fases, da preparação ao consumo. O comer transforma-se em mera
operação de reabastecimento. A comida é chamada de fast (rápida) por estar
imediatamente pronta para ser consumida e também por poder ser engolida
depressa (Moreira, 2010; Diez-Garcia, 2003).
Comer é um ato realizado pelo indivíduo em seu interesse mais pessoal,
mas, comer acompanhado, entretanto, coloca necessariamente o indivíduo
diante do grupo. Usando-se o ato de comer como veículo para relacionamentos
sociais, a satisfação da mais individual das necessidades torna-se um meio de
criar uma comunidade. Neste mesmo raciocínio, a origem da palavra compa-
nhia deriva da palavra latina companion, que significa: “uma pessoa com quem
partilhamos o pão” (Moreira, 2010). Partir o pão, por sua vez, e partilhá-lo com
amigos significa a própria amizade, e também confiança, prazer e gratidão pela
partilha (Visser, 1998).
Diante dessas informações, é importante que o profissional de saúde esti-
mule a realização de refeições em companhia de familiares e/ou de cuidadores,
com a valorização do consumo de alimentos da terra (evitando-se os fast-foods),
no sentido de maximizar a segurança alimentar e nutricional, principalmente
com grupos em situação de vulnerabilidade social.

capítulo 4 • 133
CONEXÃO
Para conhecer um pouco mais sobre a relação entre alimentação, história e o corpo dos indi-
víduos, bem como entender que a alimentação realmente se relaciona com as características
da sociedade e da época em que o sujeito está inserido, acesse o vídeo disponibilizado no
link: https://www.youtube.com/watch?v=KT-ee-XA6WQ. Este vídeo aponta vários aspectos
envolvidos nesta temática, levantando questões bastante aplicáveis à realidade dos indivídu-
os, com dicas para o profissional de saúde utilizar em sua atuação clínica. Confira!

4.5  Antropologia da Alimentação


De acordo com o autor Sidney Wilfred Mintz (2001), as comidas têm histórias
sociais, econômicas e simbólicas complexas, e o gosto do ser humano pelas
substâncias não é inato: ele se forja no tempo e também em interesses econô-
micos, poderes políticos, necessidades nutricionais e significados culturais. Ao
estudar o açúcar, por exemplo, esse autor levou em consideração a sua história
social, e ressaltou que antes de esse produto ter chegado à mesa do operariado
industrial emergente do século XIX, na Inglaterra, ele teve lugar na farmaco-
peia medieval, da mesma forma que o tomate, vindo das Américas, foi também
recusado pelos ingleses durante o século XVIII por acreditarem ser ele preju-
dicial à saúde (Wilson, 1973). Isso mostra que o gosto e o paladar, em vez de se
naturalizarem, são, portanto, cultivados no emaranhado da história, da econo-
mia, da política e da própria cultura (Canesqui e Garcia, 2005).
Diferentes trabalhos apresentados neste livro traçam um panorama da
abordagem sócio-antropológica da alimentação, mas esta sessão do livro tra-
tará especificamente de focalizar as contribuições da Antropologia no campo
da Alimentação.
Garcia (2005) falando a respeito da aplicação da antropologia em diferen-
tes áreas da nutrição, afirma que é quase impossível não esbarrar em outros
conhecimentos no estudo da alimentação e da nutrição, posto que há muitas
indagações referentes à alimentação que remetem ao seu caráter interdiscipli-
nar, como por exemplo:

134 • capítulo 4
•  A diversidade dos sistemas alimentares, ou seja, a forma como se estabe-
leceram a utilização, a combinação de ingredientes e as maneiras de preparar
os alimentos nas diversas sociedades;
•  As pressões que operam sobre as escolhas alimentares;
•  As mediações socioculturais de procedimentos e práticas relacionados à
alimentação são constituídas e reconstituídas;
•  A maneira como dado repertório de alimentos é considerado comestível
por algumas sociedades e, ao mesmo tempo, não é considerado comestível por
outras;
•  O impacto das diferentes composições alimentares derivadas de combi-
nações estabelecidas por diferentes culinárias sobre a saúde;
•  As formas como as tecnologias podem transformar a cadeia alimentar.

Essas questões, entre outras não apresentadas aqui, mas, possivelmente


conhecidas pelo leitor, mostram o quanto é necessário ter diferentes áreas do
conhecimento no estudo da alimentação.
Fischler (1995) aponta que é necessário reunir “imagens fragmentadas” do
homem biológico, bem como do homem social, do arcaico e também do con-
temporâneo, para que se tenha uma compreensão completa da alimentação
humana. E isso implica em recuperar o elo histórico e contextualizar social-
mente problemas circunscritos na análise biológica, ou seja, implica em consi-
derar a antropologia no campo da alimentação, de modo a inserir nos estudos
da nutrição uma preocupação mais ampla do fenômeno alimentar. O bom pro-
fissional de saúde não pode se limitar a entender o tema “Alimentação/Nutri-
ção” sob um ângulo somente. É preciso ir além!
Fischler (1995) coloca ainda que para compreender o comportamento ali-
mentar, é necessário levar em consideração cada vez mais a natureza e a cultura
(de modo conjunto, ou seja, sem dissociá-las, e sim integrando-as num proces-
so co-evolutivo biossociocultural).
A alimentação está situada entre as instâncias da natureza e da cultura, por
isso, tem, por um lado, as propriedades nutritivas no sentido de atender as ne-
cessidades biológicas do homem, e, por outro lado, o comportamento alimen-
tar de grupos sociais intimamente entranhado no sistema sociocultural. Ao se
analisar a alimentação do ponto de vista nutricional, percebe-se que a diversi-
dade alimentar garante uma dieta equilibrada e aporte necessário de macro e
micronutrientes. Porém, ao se analisar os caminhos encontrados pelo homem

capítulo 4 • 135
para satisfazer às suas necessidades nutricionais no decorrer de sua evolução,
caminhos estes que são vários, percebe-se que o resultado disso é uma varieda-
de de combinação de alimentos e uma estrutura simbólica que compõe cada
sistema alimentar e culinário, os quais não coincidem, necessariamente, com a
definição do que é comestível e do que não é comestível nas diferentes culturas
(Garcia, 2005).
Rozin (2002), por sua vez, defende a interação entre o biológico, o cultural
e as experiências individuais para explicar as escolhas alimentares. Dessa ma-
neira, as características biológicas do homem onívoro são incorporadas pela
cultura e, justamente por fazerem parte da cultura, são introduzidas novamen-
te em cada nova geração de indivíduos. Seguindo esta linha de pensamento,
conclui-se que qualquer que seja o aspecto da alimentação assumido, ele estará
relacionado a outros, o que o torna inevitavelmente integrado.
Mesmo sendo a alimentação uma necessidade biológica, os alimentos se
compõem tanto de nutrientes como de significados, cumprem tanto uma fun-
ção biológica como social, são digeridos tanto por processos orgânicos como
por representações que vêm de fora, tendo sido geradas pelo entorno cultural
(Garcia, 2005).

Ou seja, o homem é ao mesmo tempo onívoro e seletivo: costuma eleger e hierarquizar


de modo a classificar o que é comestível e não-comestível, o que é recomendável e não
recomendável, o que pode ser executado e o que não pode ser executado. Ao introduzir
o alimento na boca, o indivíduo aciona processos fisiológicos, psicológicos, ecológicos,
econômicos e culturais; todos, estreitamente vinculados, constituem os condicionantes
do comportamento alimentar (Gracia, 1996).

Ao estudar a Antropologia da Alimentação, é fundamental que o leitor se


lembre que nas práticas alimentares estão contidas: a identidade cultural, a
condição social e a memória familiar expressa nos procedimentos relaciona-
dos à escolha e à preparação do alimento e ao seu consumo propriamente dito,
manifestando-se na experiência diária por meio daquilo que se come, de como
se come, dos desejos por certos alimentos e preparações, do lugar em que se
come, dos modos de preparar a comida, etc. Além disso, há que se considerar
também que os costumes alimentares locais e regionais, os adquiridos nas
diferentes fases da vida, os moldados por pressões sociais, as informações, a

136 • capítulo 4
publicidade, as experiências marcantes como a escassez alimentar, a alimen-
tação na infância e no adoecimento. Todos esses aspectos influenciam a rela-
ção dos indivíduos com a comida. Eles estão contidos no comportamento ali-
mentar e guardam a experiência sociocultural dentro da experiência pessoal
(Garcia, 2005).
Estudar práticas alimentares implica que a Antropologia se volte a proce-
dimentos relativos à alimentação dos grupos humanos associados a atributos
socioculturais (considerando questões como: o que se come, quanto, como,
quando, onde e com quem se come; bem como a seleção de alimentos e os as-
pectos referentes ao preparo da comida). Isso significa se reportar a aspectos
subjetivos associados ao comer, como por exemplo: aos alimentos e prepara-
ções apropriados para situações diversas, às escolhas alimentares, à combi-
nação de alimentos, à comida desejada e apreciada, aos valores atribuídos a
alimentos e preparações e aquilo que o indivíduo pensa que comeu ou que gos-
taria de ter comido.
Se o leitor estiver atento ao que está sendo colocado aqui, terá percebido
que o estudo das práticas alimentares envolve muito mais que a dimensão bio-
lógica. Esse estudo capta também as dimensões socioculturais, cognitivas e
afetivas da relação do homem com a comida. Quando se focaliza a alimentação
apenas sob a dimensão biológica se perde a oportunidade de ver e considerar
essas outras dimensões.
A importância de o profissional de saúde considerar essas outras dimensões
em sua atuação profissional está no fato de que quando se tenta impor a adoção
de um outro modelo de dieta ou mesmo recomendações pontuais de inclusão
e exclusão de alimentos, corre-se o risco de negligenciar a cultura alimentar do
indivíduo que recebe essas recomendações, por não se levar em consideração
o impacto e a forma com que essas mudanças propostas serão absorvidas por
esse sujeito.
É preciso lembrar que este indivíduo já possui um conjunto de regras re-
lacionadas à alimentação, tais como os alimentos mais usados e aqueles que
constituem a base de sua dieta, a organização do cardápio cotidiano e festi-
vo, as possíveis combinações, as técnicas de preparo e os temperos que pro-
porcionam os sabores mais marcantes e que permitem caracterizar a comida
como uma particularidade cultural e assim reconhecê-la pela familiarização
com determinados pratos e alimentos, por meio dos quais é possível também

capítulo 4 • 137
manifestar o sentimento de pertencimento a uma cultura ou de alteridade3 em
relação a ela (Garcia, 2005). Ignorar essas “regras” embutidas no repertório pes-
soal e/ou coletivo dos indivíduos implica em diminuir e muito a garantida de
eficácia das recomendações propostas.

CONEXÃO
No artigo “Comida e Antropologia: Uma Breve Revisão”, Mintz (2001) traça um excelente pa-
norama da relação entre o homem e a comida ao longo do tempo, com opiniões de diversos
antropólogos estudiosos do assunto. Este texto está disponível no link: http://www.uff.br/
saudecultura/artigos-encontro-6/Texto08.pdf
Vale a pena conferir!

REFLEXÃO
A imposição de modelos dietéticos pautados apenas na racionalidade nutricional restringe
a alimentação à sua relação com a saúde e a doença, porém, há que se pensar também
que tais intervenções se dão numa estrutura culinária, vivida e experimentada culturalmente,
portanto essas intervenções serão reintegradas, irão adquirir novos significados, sofrerão
mudanças e adaptações na alimentação, produzindo alternativas e modalidades que não
necessariamente são próximas ao modelo proposto (Garcia, 2005).
Diante desta realidade, espera-se que o futuro profissional de saúde, ao tomar conhecimento
das questões apresentadas neste capítulo, se sensibilize para uma leitura também antropo-
lógica das intervenções nutricionais, na busca de uma visão mais crítica para as imposições
normativas no campo da nutrição.

Conclusões:

A Etnografia descreve as sociedades humanas, sejam elas tribos indígenas ou


qualquer outro grupo social, observando e analisando grupos humanos con-
siderados em sua particularidade, visando à reconstituição, tão fiel quanto
possível, da vida de cada um deles. É importante na coleta de dados sobre Ali-

3  Por meio da alteridade conseguimos ver/notar aquilo que geralmente não conseguiríamos ver, devido à nossa
dificuldade em nos atentarmos àquilo que nos é habitual, familiar e “evidente” (Laplantine, 1999).

138 • capítulo 4
mentação e Nutrição, pois fornece informações importantes no entendimento
de como, quando, quanto, onde e por quê os indivíduos de grupos humanos
específicos se alimentam.
A história do homem é marcada pela história da alimentação. As popula-
ções desenvolveram seu padrão alimentar em função da disponibilidade dos
alimentos acessíveis para a região e das condições em que se encontravam, em
cada época da História. Os padrões de consumo alimentar variam grandemen-
te nas diferentes partes do mundo, dependendo tanto de fatores socioculturais
como do grau de desenvolvimento tecnológico e das condições econômicas e
políticas da produção.
É importante que o futuro profissional de saúde analise as informações
fornecidas pelos estudos antropológicos e históricos da alimentação, perce-
ba como estes trabalhos evoluíram ao longo do tempo e como podem ofertar
subsídios para auxiliar sua atuação profissional nos dias de hoje (no sentido de
conseguir adequar as recomendações nutricionais e de saúde à realidade e ao
contexto das populações que atender).

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capítulo 4 • 143
144 • capítulo 4
5
Globalização
É importante que o leitor saiba que no início da década de 90, houve no Bra-
sil um crescimento considerável nas importações de produtos alimentares
industrializados (refrigerante, cerveja, cacau, embutidos, congelados, bebi-
das lácteas, bolachas doces, etc.) e que com a globalização alguns produtos
sofreram uma “desterritorialização”, sendo considerados como alimentos
pertencentes ao mundo, como é o caso da cerveja, do biscoito, do chocolate
e do refrigerante. Algumas comidas deixaram então de ter vínculo territorial,
sendo assim, a pizza e o hambúrguer, por exemplo, perderam suas origens
e tornaram-se produtos da cozinha industrial, embutindo nas pessoas uma
ideia de “modernidade”, como símbolo do primeiro mundo. Com isso surge
uma dieta rica em alimentos de elevada densidade energética, gorduras e açú-
car refinado, alimentos estes que apresentam estreita relação com as doenças
crônicas não degenerativas (Silva, 2008; Garcia, 2003).
Da mesma maneira que alguns costumes dos sertanejos, por exemplo, se
modernizaram ao longo do tempo (como o uso da bicicleta e da moto no lugar
do cavalo), a alimentação também sofreu a influência da contemporaneidade.
Apesar da dieta básica desses indivíduos se reproduzirem ao longo das gera-
ções, mantendo a tradição da comida habitual e da cultura local, a incorpora-
ção de novos hábitos alimentares (como o consumo da cerveja em substituição
à cachaça) é uma demonstração clara dessa influência (Franco, 1996).
A ocidentalização da dieta, a globalização dos hábitos alimentares, a im-
portação de alimentos, os fast foods, o marketing das grandes empresas trans-
nacionais, além das transformações na produção e no processamento dos ali-
mentos ocorridas nas últimas três décadas, têm contribuído para mudanças
diversas na estrutura da alimentação (Carneiro, 2003).
Por esses motivos, entre outros a serem colocados adiante, o presente capí-
tulo vem abordar o contexto da globalização. Afinal, o leitor, futuro profissional
de saúde, não pode ficar alheio ao fato de que a globalização tem contribuído
para a hegemonia de um modelo ocidental de alimentação e também para a
individualização do comportamento alimentar (Moreira, 2010).

146 • capítulo 5
OBJETIVOS
Que o aluno desenvolva a capacidade de:

•  Entender a influência da globalização nas dimensões individuais e coletivas;


•  Ter uma visão crítica sobre os efeitos da globalização na alimentação regional;
•  Argumentar sobre os fast-foods;
•  Reconhecer e avaliar o papel da globalização na cultura e autoimagem corporal;
•  Entender os desafios decorrentes da interferência da globalização nos hábitos alimentares
e pensar em soluções para os mesmos.

capítulo 5 • 147
5.1  Globalização e Alimentação
Conforme colocado em capítulos anteriores deste livro, a alimentação é uma das
atividades humanas mais importantes, não só pelas razões biológicas óbvias, mas
também porque envolve aspectos econômicos, sociais, científicos, políticos, psico-
lógicos e culturais que são fundamentais na dinâmica da evolução das sociedades.
São consideráveis, por exemplo, os recursos financeiros envolvidos em alimenta-
ção, eles correspondem a um montante muito superior ao de vários outros setores.
Diante deste panorama, nesta sessão, serão abordadas questões relativas à alimen-
tação e às práticas alimentares humanas no contexto do mundo globalizado.
De acordo com Proença (2010), a globalização trata-se de um dos processos
de aprofundamento da integração econômica, social, cultural e política que
vem impulsionando o mundo, principalmente considerando as facilidades de
transporte e difusão de informações, produtos e interação entre as pessoas.
Entretanto, isso fez com que a alimentação atual venha passando por um pro-
cesso de distanciamento humano em relação aos alimentos.

A globalização pode ser definida como a intensificação das relações sociais em escala
mundial, que ligam locais distantes entre si, de tal maneira que acontecimentos locais são
modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa (Giddens,
1991; Ianni, 1994), por isso há quem diga que ela promove o encurtamento do espaço e do
tempo. A globalização é um fenômeno relativamente recente. Origina-se na expansão marí-
tima europeia (século XV), sofre amadurecimento com a Revolução Industrial e as políticas
imperialistas e colonialistas (século XIX), se consolidando com a globalização neoliberal
(século XX). Sua primeira fase foi resultado de grandes investimentos estatais e privados
em busca de novas rotas marítimas da economia do mundo (Europa) em direção às outras
economias mundiais (China, Índia, África e América). No século XV, a globalização se fez
sob a tutela das monarquias absolutistas que detinham centralização política e mobilizavam
recursos financeiros e militares para atingir as mais longínquas regiões do planeta em bus-
ca da ampliação de seus raios de ação e assim consolidar seus impérios. Portugal, Espanha,
Inglaterra, França e Holanda se destacaram nessa etapa da globalização. Pode-se dizer que
a globalização representa uma nova fase do capitalismo e seu sustentáculo ideológico foi a
doutrina mercantilista, aliada a uma legislação que estabelecia medidas protecionistas, in-
centivos fiscais e garantia de monopólios das companhias de comércio sobre os mercados
internacionais de produtos e escravos, e que impunha o pacto colonial (limitando o comér-
cio das colônias apenas às suas respectivas metrópoles) (Silva e Junior, 2008).

148 • capítulo 5
Em decorrência de novas demandas geradas pelo modo de vida urbano, é
imposta ao comensal a necessidade de reequacionar sua vida conforme as con-
dições das quais dispõe: tempo, recursos financeiros, locais disponíveis para
se alimentar, local e periodicidade das compras, etc. As soluções são capita-
lizadas pela indústria e pelo comércio, apresentando alternativas adaptadas
às condições urbanas e delineando novas modalidades na forma de comer, o
que certamente contribui para mudanças no consumo alimentar (Diez-Garcia,
2003). Nesse sentido, Ornellas (2010) desenvolveu um trabalho onde mostra
a evolução da alimentação através do tempo. Neste trabalho percebe-se que a
preocupação do homem com a aquisição dos alimentos vem se modificando
em relação à forma de produzir e de distribuir os alimentos.
O desenvolvimento tecnológico atual possibilitou a produção de alimentos
em larga escala, sua conservação por longo tempo e seu transporte de maneira
a facilitar o seu acesso. Com isso é possível que os alimentos sejam produzidos
fora da estação do ano e dos locais tradicionais, e que sejam acessíveis em lo-
cais distantes da sua produção. Isso pode gerar novos contextos de consumo
(por aqueles que acham interessante consumir um alimento fora de sua época,
por exemplo), mas também pode gerar desperdício (pela rejeição dos alimen-
tos não identificados no consumo usual). Olhando a situação sob este último
ângulo, nota-se que a própria industrialização pode distanciar o alimento das
pessoas, na medida em que pode dificultar a percepção da origem e/ ou dos in-
gredientes que compõem um determinado alimento (Proença, 2010).
Uma outra característica que veio com a globalização é a obrigatoriedade
das indústrias alimentícias declararem no rótulo de seus produtos os ingre-
dientes que os compõem, como uma exigência das agências controladoras. A
respeito disso, o consagrado autor Pollan destaca que isso pode causar estra-
nheza às pessoas, pela falta de reconhecimento dos nomes de produtos quími-
cos citados na lista de ingredientes como componentes alimentares. Por isso,
este autor recomenda que “se coma somente aquilo que a sua avó identificaria
como alimento” (Pollan, 2008).
Nos dias de hoje seguir à risca essa recomendação de Pollan (2008) torna-se
difícil diante de tantas alterações do que antes de conhecia como comida. A pró-
pria concepção espacial da cozinha nas casas vem se transformando! Antes um
espaço reservado, agora um ambiente aberto para a área social. Porém, obser-
va-se, muitas vezes, que essas áreas gourmet das casas parecem não terem sido
feitas realmente para se “cozinhar”, posto que os acabamentos, equipamentos

capítulo 5 • 149
e utensílios são selecionados e adquiridos mais pela sua capacidade de com-
binar com a decoração do espaço do que por sua funcionalidade para o ato de
preparar alimentos (Proença, 2010).

A comida é percebida como um sistema de comunicação, um corpo de imagens, um


protocolo de usos, situações e condutas. Quando um alimento é comprado e consu-
mido, ele deixa de ser apenas um alimento e passa a ser um signo. Consumido, esse
mesmo alimento expõe e transmite uma situação, e assim constitui uma informação,
tornando-se significante (Fonseca et al, 2011; Barthes, 1993-1995).

Outro advento da globalização é a ascensão das preocupações com a gastro-


nomia, com destaque para a comida que representa etnias tradicionais. Com
as possibilidades da globalização, as modas gastronômicas vêm aparecendo.
Observa-se o destaque recente da comida japonesa, tailandesa, mexicana,
peruana e turca, em muitos lugares, além dos restaurantes ditos típicos, sim-
plesmente misturando-se às comidas locais. Um restaurante brasileiro do tipo
buffet pode ser um bom exemplo: ele oferece sushi, prato típico da culinária
japonesa, em churrascarias, as quais são típicas do Brasil (Proença, 2010).
Segundo Fischler (1990), essas adaptações da culinária dos restaurantes
estrangeiros com a comida típica da cozinha receptora afetam não apenas os
produtos ou os sabores, mas também as estruturas profundas da culinária de
origem, sua gramática e sua sintaxe. Ao fazer essas modificações são introdu-
zidos novos pratos na culinária do país estrangeiro, preservando algumas ca-
racterísticas da culinária de origem e assim se produz uma nova versão de um
prato. Por exemplo, há a pizza em sua versão original, a italiana, mas também
há a pizza na versão brasileira, na versão norte-americana, etc., sendo que essas
versões já foram absorvidas, readaptadas e se desgarraram da original. Existe,
entretanto, uma essência da pizza: a massa, o tomate, o orégano e o queijo.
Fischler (1990) chama essa diluição das características genuínas em benefício
do consumo em massa como o “mínimo denominador comum”. Ocorre então
uma “retradução” dos pratos típicos e eles sofrem metamorfoses até se adequa-
rem ao consumidor global.
A globalização também trouxe repercussões quanto à maneira como as pes-
soas assimilam internamente as novas informações que recebem. Observa-se
o crescimento da ansiedade com relação à alimentação, devido à necessidade

150 • capítulo 5
que os indivíduos apresentam de acesso a informações sobre o tema, junto da
dificuldade de entender e se relacionar com a diversidade de informações, mui-
tas vezes controversas. Além disso, ocorre também o desenvolvimento de pro-
cessos de culpa com relação à alimentação, culminando, em muitos casos, com
o desencadeamento de transtornos alimentares graves. Um desses transtornos
é a “ortorexia” (preocupação excessiva com a alimentação percebida como sau-
dável) (Bratman, 2004).
O processo de globalização intensifica também fatores de risco associados
ao consumo dos alimentos. Destacam-se aqui os relacionados à manipulação,
processamento e conservação dos produtos alimentícios. A inadequação ao
consumo pode ocorrer pela decomposição dos alimentos por agentes físicos,
químicos e biológicos; pela contaminação acidental ou introdução consciente
de substâncias tóxicas ou inconvenientes à saúde; pela transmissão de doenças
ao homem através de alimentos de origem animal; ou pela contaminação dos
alimentos por microrganismos que, muitas vezes, utilizam o alimento como
meio de multiplicação. As irregularidades vão desde a identificação de excesso
de agroquímicos em produtos vegetais até parasitas, hormônios e medicamen-
tos veterinários em produtos animais, e também o acréscimo de aditivos de
utilização polêmica em alimentos industrializados, isso sem falar na questão
controversa da manipulação genética dos alimentos, visando melhorar tan-
to seu rendimento e resistência a pragas quanto sua composição nutricional
(Proença, 2010).
A globalização trouxe muitas mudanças no padrão alimentar humano, as
quais devem ser entendidas por seus aspectos objetivos e subjetivos, levando-se
em consideração a urbanidade como contexto da comensalidade contemporâ-
nea. A globalização da economia e a industrialização exercem um papel impor-
tante, devido à gama de produtos e serviços distribuídos em escala mundial e
ao suporte publicitário envolvido (Diez-Garcia, 2003). Observa-se, por exemplo,
uma tendência crescente para o consumo de alimentos de maior concentração
energética, e isso é promovido pela indústria de alimentos através da produção
abundante de alimentos saborosos, de alta densidade energética e de custo re-
lativamente baixo (Drewnowski, 2000).
A globalização é bastante abrangente quando se pensa nos setores que tem
relação com o produto alimentício final que chega ao consumidor, pois ela
atinge a indústria de alimentos, o setor agropecuário, a distribuição de alimen-
tos em redes de mercados de grande superfície e em cadeias de lanchonetes e

capítulo 5 • 151
restaurantes. A difusão da ciência nos meios de comunicação e o uso do dis-
curso científico na publicidade de alimentos também exercem seu papel no
cenário das mudanças alimentares. E, embora nos países mais pobres estas
tendências de consumo estejam distribuídas diferentemente nos segmentos
de classes sociais de acordo com as possibilidades de acesso aos bens de con-
sumo, no plano simbólico os desejos de consumo por si só marcam uma incli-
nação a este perfil alimentar (Diez-Garcia, 2003).
De acordo com os trabalhos desenvolvidos pela autora Rosana Pacheco da
Costa Proença (Proença, 2005; Proença, 2009 e Proença, 2010), ressaltam-se,
além do que foi exposto acima, grandes tendências de comportamento nas pes-
soas, com relação à alimentação nas sociedades de consumo dos países indus-
trializados. Entre essas tendências, pode-se citar: a autonomia, a conveniência,
a desestruturação das refeições, o convívio, o cosmopolitismo, o refinamento,
a valorização do natural, a valorização da alimentação fora de casa, e também a
preocupação com a saúde e o equilíbrio alimentar. Algumas características des-
sas tendências seguem abaixo (Proença, 2005; Proença, 2009; Proença, 2010):

•  Autonomia: representa a aspiração das pessoas à diversidade, tanto de


produtos como de serviço e local da alimentação, numa tentativa de rompi-
mento com as tradições.
•  Conveniência: demonstra o desejo de poder contar com os progressos
técnicos disponíveis para simplificar o momento da refeição. Exemplos: desen-
volvimento do autosserviço (self-service), que otimiza a relação entre o tempo
despendido e a possibilidade de escolha; e a preferência por alimentos que
aportem facilidade de manipulação e preparo, bem como a possibilidade de
consumo instantâneo.
•  Desestruturação das refeições: realidade influenciada principalmente a
partir de alterações observadas em praticamente todos os locais do mundo in-
dustrializado, nas características de urbanização e modificações na estrutura
familiar.
•  Convívio no momento das refeições: ainda é considerado importante,
mesmo que, em lugar de membros da família, elementos da coletividade da
qual a pessoa faz parte sejam envolvidos em alguma refeição.
•  Cosmopolitismo: apresenta o desejo de que a alimentação favoreça
a evasão, proporcionando refeições diferentes, numa tentativa de rompi-
mento com a monotonia, que pode ser exemplificada pelo desenvolvimento

152 • capítulo 5
– principalmente nos meios urbanos – da alimentação étnica, que reproduz
costumes alimentares de diferentes povos.
•  Aspiração pelo refinamento: revela a busca da variedade e da sofisticação
alimentar, demonstrada pelo aumento de oferta, tanto em quantidade como
em diferenciação, de itens alimentares no mercado.
•  Valorização do natural: é constatada, pelos indicadores do mercado, a
ascensão dos produtos naturais, orgânicos ou biológicos, cuja denominação
varia de acordo com cada país.
•  Valorização da alimentação fora de casa: embora, em muitos momentos,
a opção de alimentar-se fora de casa se apresente como a única possível, obser-
va-se, também, a vontade explícita dos indivíduos de se alimentarem fora de
casa na procura do atendimento das condições impostas pela transformação
do modo de vida.
•  Preocupação com a saúde e o equilíbrio alimentar: os avanços tecnoló-
gicos permitem à indústria alimentícia oferecer ao mercado produtos com ca-
racterísticas muito específicas, comercializados sob diferentes denominações,
segundo a sua procedência e suposta finalidade: alimentos funcionais, alimen-
tos para usos específicos, fármaco-alimentos ou nutracêuticos1.

Diante do exposto, apesar do efeito deletério que a globalização produz na


alimentação humana em alguns sentidos, por outro lado, a ciência a demons-
tra também o que, empiricamente, sempre foi de conhecimento das pessoas:
a importância do prazer de comer. Torna-se assim, nos dias de hoje, de vital
importância o respeito pelo tipo de alimentação que o indivíduo ingere naque-
le determinado momento de sua vida e pela história pessoal relativa à alimen-
tação, demonstrando-se que as pessoas estão cada vez mais exigentes com os
alimentos e cada vez mais preocupadas com as consequências do ato alimentar
(Proença, 2010).

5.2  Dimensões Individuais e Coletivas


Quando um indivíduo come acompanhado por outra(s) pessoa(s), o ato de co-
mer se transforma num veículo para o desenvolvimento de relacionamentos

1  Nutracêuticos são compostos bioativos de alimentos apresentados na forma farmacêutica, como em cápsulas,
comprimidos, tabletes etc. (Cozzolino, 2012).

capítulo 5 • 153
sociais. Assim, o “comer” se torna um meio para se criar uma comunidade (Mo-
reira, 2010). Apesar disso, de acordo com Moreira (2010), a cozinha apresenta
a tendência de se individualizar cada vez mais, e nas próximas décadas, cada
membro da família se alimentará a seu gosto, seja por motivos dietéticos, por
convicções filosóficas ou por se render à publicidade.
Essa individualização nas tomadas de refeições vem sendo concomitante
ao enfraquecimento do espaço familiar como unidade social. Os adolescentes,
por exemplo, tendem a consumir cada vez mais alimentos que caracterizam o
gosto de sua faixa etária e terão em casa maior autonomia na decisão alimen-
tar. As preferências alimentares deles já são levadas em conta no momento das
compras e no preparo de refeições, e a utilização do forno microondas também
facilita que os jovens comam sozinhos, o que contribui para o fim das refeições
em família e para a erosão do próprio conceito de “refeição” (Moreira, 2010;
Carneiro, 2003; Franco, 2004; Fernández-Armesto, 2004).
Em vários países a realização de refeições em horários regulares e na com-
panhia da família está se tornando rara na vida das pessoas, principalmente
durante os dias úteis da semana. O almoço vem desaparecendo e dando lugar
ao hábito de comer aos poucos durante períodos prolongados; as pessoas têm
comido ao mesmo tempo em que realizam outras atividades, desviando seus
olhares dos outros indivíduos; os comensais urbanos têm buscado sanduíches
impessoais; muitos optam por pratos prontos de prateleiras refrigeradas e os
consomem às pressas, sozinhos; e antes de sair de casa pela manhã os indiví-
duos raramente tomam café da manhã na companhia de seus entes (Franco,
2004).
Nesse panorama, de acordo com Diez-Garcia (2003), a comensalidade con-
temporânea se caracteriza por vários fatores, os quais são citados na Tabela 5.1,
abaixo.

Escassez de tempo para o preparo e consumo de alimentos;

Presença de produtos gerados com novas técnicas de conservação e de preparo, que


agregam tempo e trabalho;

Vasto leque de itens alimentares;

154 • capítulo 5
Deslocamentos das refeições de casa para estabelecimentos que comercializam ali-
mentos, como: restaurantes, lanchonetes, vendedores ambulantes e padarias;

Crescente oferta de preparações e utensílios transportáveis;

Oferta de produtos provenientes de várias partes do mundo;

Arsenal publicitário associado aos alimentos;

Flexibilização de horários para comer agregada à diversidade de alimentos;

Crescente individualização dos rituais alimentares.

Tabela 5.1 – Características da Comensalidade Contemporânea. Fonte: Diez-Garcia (2003).

Apesar desses fatores que caracterizam a comensalidade contemporânea,


ainda se considera a casa como o espaço ideal nas referências alimentares,
pois, em casa uma pessoa é alguém, enquanto que a rua é o mundo da impesso-
alidade, da ausência de vínculos, o “local perigoso”. Dessa maneira, surgem as
denominações “comida de casa” e “comida da rua” (Moreira, 2010).
A comida de casa reflete que o alimento é feito por alguém e direcionado
para alguém, levando em consideração determinados cuidados. Já na comida
da rua, a legitimidade do alimento pode ser obtida pela presença de um pro-
fissional especializado para a elaboração, cujo conhecimento foi adquirido
através do estudo e do aprimoramento de técnicas (Diez-Garcia, 2003; Collaço,
2004).
O papel da alimentação fora de casa na vida contemporânea é reconhecido
pela Organização Mundial de Saúde (OMS) quando, no documento “Estratégia
global para alimentação, atividade física e saúde”, os restaurantes comerciais e
coletivos são citados dentre os seus parceiros preferenciais para a consecução
dessa estratégia (Spang, 2003).
A importância da alimentação fora de casa se destaca e é crescente. No pla-
no da alimentação coletiva, nota-se a expansão de prestadores de serviços de

capítulo 5 • 155
alimentação em empresas, hospitais e escolas, entre outros. E, na alimentação
comercial, se observam desde pequenos estabelecimentos até conglomerados
de fast food. Além da possibilidade de massificação de cardápios e indução de
novos comportamentos alimentares, muitas vezes, essas empresas de alimen-
tação coletiva e comercial difundem também formas diferentes de trabalhar
com os alimentos, contribuindo para o discutido distanciamento dos alimen-
tos e dos indivíduos (Proença, 2010).
Em geral, os comensais urbanos preferem se alimentar de algo que seja con-
sumido mais rapidamente no almoço. Assim, a “comensalidade” (conforme foi
definida no capítulo 4, na sessão “História e Comensalidade Humana”) torna-
se restrita ao período da noite, ao “jantar com calma” ou às refeições de final
de semana. Sob a mesma perspectiva, nos grandes centros urbanos, a refeição
em família, que é símbolo da vida doméstica, tenderá a ser semanal, provavel-
mente a sincronização familiar da refeição deverá ocorrer no final de semana e,
diariamente, quando a família se reunir para comer, será provavelmente para
jantar. Como consequência, a cozinha materna e os hábitos alimentares da fa-
mília perderão importância na formação do gosto. Observa-se assim, que a glo-
balização tem contribuído para a hegemonia2 do modelo ocidental de alimen-
tação e também para a individualização do comportamento alimentar humano
(Moreira, 2010; Franco, 2004; Collaço, 2004; Fernández-Armesto, 2004).
Observa-se, entretanto, no Brasil, um fenômeno que minimiza os efeitos da
tendência mundial do aumento de consumo de refeições desestruturadas, com
a popularização dos restaurantes que servem refeições por peso. Esse mode-
lo de prestação de serviços em alimentação permite, de maneira rápida e com
um custo semelhante ao de um lanche comum, que a pessoa faça uma refeição
completa (Proença, 2010). Pesquisas demonstram que essa opção pode, sim,
representar alternativa saudável de alimentação (Jomori, 2006; Santos, 2009;
Bernardo, 2010).
É inegável que a disseminação desse modelo no país demonstra sua acei-
tação pela população, que busca essa opção levada por questões econômicas,
de disponibilidade de tempo, de saúde e de prazer. Apesar disso, é evidente a
necessidade de o profissional de saúde orientar as pessoas para que as escolhas
alimentares, mesmo quando ocorrerem em restaurantes, sejam coerentes com
as suas necessidades nutricionais (Proença, 2010).

2  Hegemonia: supremacia; domínio, poder que algo ou alguém exerce em relação aos demais (Dicionário Online
de Português, 2009).

156 • capítulo 5
É importante que o futuro profissional de saúde saiba que a opção rotineira
pela modalidade de refeição por peso é predominante no público adulto, mas
as diferenciações observadas no comportamento alimentar do público infantil
e adolescente também têm sido alvo de preocupações de saúde pública, pelos
seus possíveis reflexos na vida adulta.
As pesquisas mostram que, hoje em dia, as pessoas nessa faixa etária jovem,
diferentemente de gerações anteriores, geralmente querem ser mais autôno-
mas e escolher o que comem, preferindo as refeições incompletas. Além disso,
principalmente entre os adolescentes, observam-se diferentes comportamen-
tos de acordo com o sexo: as adolescentes do sexo feminino demonstram uma
preocupação crescente com a pressão da estética corporal e com o impacto
do discurso nutricional no sentido da redução calórica. Ainda neste capítulo,
na sessão intitulada “Influência da Globalização nas Cultura, Auto-Imagem
Corporal e Escolhas Alimentares” será abordado mais sobre este assunto. Já
se pode adiantar, entretanto, que em geral as adolescentes valorizam mais o
suposto valor calórico reduzido do que o prazer gustativo dos alimentos, verifi-
cando-se, em decorrência, taxas crescentes de distúrbios como anorexia nervo-
sa e bulimia nesse grupo etário. Já os adolescentes do sexo masculino demons-
tram dar mais importância ao sabor e aos rituais alimentares, apresentando
um consumo maior de alimentos. Nesse grupo, ocorre o consumo exagerado
de suplementos nutricionais, estimulados, provavelmente, pela crença de uma
formação rápida de massa muscular, um fenômeno já identificado como vigo-
rexia (Proença, 2010).
Ao se tratar de peculiaridades como as apresentadas acima, é crucial lem-
brar que, conforme já colocado em capítulos anteriores deste livro, nas dimen-
sões individuais e coletivas a alimentação está envolta nos mais diversos sig-
nificados, desde o âmbito cultural até as experiências pessoais. Nas práticas
alimentares dos indivíduos, as quais vão desde os procedimentos relacionados
à preparação do alimento até o seu consumo, propriamente dito, a subjetivi-
dade veiculada neste contexto inclui a identidade cultural, a condição social, a
religião, a memória familiar e a época em que perpassam por esta experiência
diária, entre outros (Garcia, 1997).
Uma outra característica da globalização que diz respeito às dimensões indi-
viduais e coletivas é a preocupação com a gastronomia, observada na crescente

capítulo 5 • 157
procura por publicações e formação na área, e por uma melhoria das relações
entre as pessoas e os alimentos.
Um movimento mundial nesse sentido é o slow food, o qual vem sendo
desenvolvido com o objetivo de resgatar uma cadeia cultural envolvendo os
alimentos, da produção ao consumo. O termo tenta contrapor-se ao fast food
(comida rápida), tema que será abordado em sessão específica do presente ca-
pítulo. No slow food (comida lenta) é difundindo a calma ao comer, o máximo
proveito da refeição, considerando, além do conteúdo nutricional, os aspectos
culturais e de prazer. A proposta básica é resgatar os produtos gastronômicos,
ameaçados pelo processo industrial, pelas regras de grande distribuição e pela
degradação ambiental (Proença, 2010).
Além disso, pode-se dizer também que, nos dias de hoje, a alimentação dos
indivíduos e das coletividades é profundamente diferente daquela praticada
pelos antepassados da geração atual, que viviam em contato com a natureza,
alimentavam-se de tudo quanto ela lhes oferecia. Atualmente, é rara a família
que pode almoçar em casa, seja por falta de tempo ou pela distância entre o lo-
cal de trabalho e as residências. E justamente para suprir essa necessidade tão
básica dos indivíduos, os restaurantes proliferaram-se nos últimos anos, sendo
vários os seus tipos (Abreu, Chaud e Torres, 2012).
Há que se considerar também que nos tempos de hoje, os alimentos são
produzidos e transformados segundo técnicas modernas, que algumas vezes
chegam até a alterar seu valor nutritivo. Ademais, para fazer suas escolhas, tan-
to na dimensão individual quanto na coletiva, o homem já não tem mais o ins-
tinto dos povos tradicionais, pois está, na verdade, envolvido por preferências e
hábitos alimentares requintados, e, ainda, induzidos pela propaganda em mas-
sa, o que pode representar um perigo (Abreu, Chaud e Torres, 2012).
Góes (2008) aponta que a modificação no estilo de vida nas últimas décadas,
principalmente na vida urbana, devido à industrialização, distribuição de ali-
mentos, urbanização e marketing, tem influenciado os hábitos alimentares nas
dimensões individuais e coletivas. O consumo de alimentos industrializados,
semi-prontos, a economia de tempo e a praticidade, têm colaborado para essas
mudanças no ato de comer e para mudanças nas escolhas alimentares. Dessa
forma, a alimentação tradicional, baseada na refeição, vem disputando espaço
com novas opções alimentares.

158 • capítulo 5
O grande sustentáculo da globalização na esfera alimentar é o desenvolvimento indus-
trial, que afeta substancialmente a produção, conservação, distribuição, transporte e
transformação dos gêneros alimentícios. A industrialização ocupa um lugar entre o ali-
mento e a natureza, e interfere na produção dos gêneros e na transformação culinária.
A produção e o consumo do alimento moderno estão cada vez mais desenraizados dos
seus espaços geográficos, ultrapassando os limites climáticos aos quais eram tradicio-
nalmente associados. Tais fenômenos trazem múltiplas consequências, como o risco da
padronização dos gêneros e de suas características organolépticas dos alimentos (ou
seja, as características que podem ser percebidas pelos sentidos humanos, como cor,
odor, textura e sabor); e a perda de um saber-fazer culinário doméstico, tradicionalmen-
te transmitido por gerações, o que também resulta em uma homogeneização do gosto
alimentar (Poulain, 2003, Santos, 2008).

5.3  Regionalismo e Globalização


Boaventura de Sousa Santos afirma que o fast food é um dos exemplos de como
um fenômeno regional se torna globalizado com sucesso. Segundo ele, o lo-
calismo globalizado ocasiona sérios impactos ecológicos, econômicos, histó-
ricos, sociais e culturais, principalmente para os países em desenvolvimento
(Santos, 2005).
A influência de um novo padrão de alimentação trazido pela globalização,
que é caracterizado pelo consumo de alimentos comercializados prontos, atin-
ge também os comensais que vivem nas áreas rurais. E é importante que os
futuros profissionais de saúde saibam disso, pois a zona rural pode ser uma
das áreas de abrangência de seu trabalho, e é preciso que os mesmos estejam
preparados para a realidade com que se depararem. Muitos agricultores ten-
dem a não consumir mais os alimentos da terra de sua produção e preferem
comercializá-los em troca de produtos alimentícios industrializados. Com isso,
a identidade alimentar regional tende a apresentar um padrão de consumo que
mescla alimentos da terra e alimentos característicos do fast food, tanto nas
capitais quanto nas áreas rurais, e caracteriza-se por um repertório com baixo
consumo de frutas, legumes, verduras e laticínios e alto consumo de alimentos
ricos em gorduras saturadas e açúcar (Moreira, 2010).

capítulo 5 • 159
Aproveita-se este espaço para chamar a atenção do leitor, pois, diante da
situação aqui exposta, faz-se necessário, além do estímulo à realização de re-
feições em companhia de familiares e ou de cuidadores, também a valorização
do consumo de alimentos da terra, para contribuir com a segurança alimentar
e nutricional dos indivíduos, principalmente dos que estão em situação de vul-
nerabilidade social.
Voltando a falar da relação entre regionalismo e globalização, pode-se co-
locar o apontamento feito pela autora Diez-Garcia, em artigo publicado no ano
de 2003. Ela defende a ideia de que a padronização de certas instâncias das
práticas e do comportamento alimentar facilitam as mudanças na alimenta-
ção que vão sendo incorporadas como parte do modo de vida e como consequ-
ência deste. Por serem pressionadas pelo poder aquisitivo, pela publicidade e
pela inegável praticidade, as práticas alimentares vão se tornando permeáveis
às mudanças, representadas pela incorporação de novos alimentos, formas de
preparo, compra e consumo.
Contudo, essas mudanças não se instalam com a mesma facilidade em to-
dos os ambientes e em todas as sociedades. É possível que tais alterações en-
contrem mais ou menos resistência, dependendo da cultura alimentar, do grau
de consolidação de suas práticas e do quanto as mesmas são simbolicamente
valorizadas. A permeabilidade de cada cultura alimentar a novas práticas é um
aspecto a ser analisado levando-se em conta componentes da própria cultura
(Diez-Garcia, 2003).
Ou seja, é inegável que as mudanças dos hábitos alimentares se articulem
e acompanhem as mudanças sociais em geral. Em contraposição a isso, não se
pode esquecer que ainda se vêem práticas alimentares tradicionais pela con-
formação das identidades pessoais, grupais, comunitárias, locais e regionais
(Corti, 1997, Damatta, 2004; Poulain, 2004; Rial, 2004). E nesse aspecto, obser-
va-se que arraigados hábitos alimentares localistas têm exigido adaptações de
cardápios das redes de fast-food (Oliveira e Freitas, 2008).
Segue agora o caso do Brasil, que mostra um pouco sobre como a globaliza-
ção adentrou o país, no que diz respeito à alimentação e como esta foi transfor-
mando a configuração do espaço alimentar.
De acordo com pesquisas publicadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) desde o ano de 1993 até o ano de 1996, no início da déca-
da de 90, com a abertura de mercado, houve um crescimento considerável nas
importações de alimentos no Brasil. No período de 1992 a 1995 a importação

160 • capítulo 5
de produtos alimentares industrializados cresceu 409%. O maior aumento foi
observado nas preparações alimentícias diversas (1193%), no cacau e em outras
preparações à base de cacau (1237%) e em preparações à base de cereais (538%).
A importação de leite e derivados cresceu 970% e a de bebidas, líquidos alcoóli-
cos e vinagre cresceu 640% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1993;
1994; 1995; 1996).
Além de ter havido na sequência cronológica o consumo crescente de ali-
mentos industrializados, outros canais implementaram a cultura alimentar
globalizada no Brasil, tais como o aumento da comercialização de alimentos
feita através de rede de supermercados de grande superfície – os hipermerca-
dos. No Brasil, o jornal Folha de São Paulo do ano de 1998 mostrava que 27,8%
da comercialização de alimentos já era feita através de hipermercados (Folha
de São Paulo, 1998).
Ortiz (1994), em seu trabalho, falou sobre as transformações no que diz res-
peito à cultura e aos aspectos políticos e econômicos decorrentes da globaliza-
ção. Para ele, a globalização é um processo em construção, distinto do processo
de internacionalização, que vem a ser um aumento da extensão geográfica das
atividades econômicas através das fronteiras nacionais. A globalização da eco-
nomia constituiria então uma forma mais avançada e complexa da internacio-
nalização, envolvendo um certo grau de integração funcional entre atividades
econômicas dispersas, aplicando-se à produção, distribuição e consumo de
bens e serviços, organizados a partir de uma estratégia internacional, voltada
para o mercado mundial. Ortiz considera, portanto, que a cultura mundializa-
da está fundamentada nas transformações de ordem estrutural (Ortiz, 1994).
As características da globalização configuram uma sociedade universal,
promovem o deslocamento de coisas, indivíduos e ideias, desenraizam e pro-
movem uma desterritorialização generalizada, modificando substancialmen-
te as condições de vida e trabalho, os modos de ser, sentir, pensar e imaginar
(Ianni, 1993). Segundo Ianni (1993), a desterritorialidade é uma característica
essencial da sociedade global, já que as estruturas de poder econômico, políti-
co, social e cultural são internacionais, mundiais, descentradas, não dispondo
de uma localização física.
Com o exposto, pode-se perceber que tanto a visão de Ortiz (1994) quanto
de Ianni (1993), acerca do processo de globalização tem elementos objetivos e
subjetivos da sociedade. Pensar em aspirações, utopias, imaginação, enquanto
elementos difusos em escala global, pode ajudar a refletir sobre a imposição

capítulo 5 • 161
de valores relacionados aos alimentos, à saúde e ao corpo, bem como sobre as
tendências de consumo alimentar que acompanham o desenvolvimento eco-
nômico e, portanto, estão associados à internacionalização da economia e aos
processos de globalização (Diez-Garcia, 2003), mesmo quando estes processos
ocorrem em escala regional.
Durante o último século, dois movimentos acentuaram o processo de mun-
dialização e apresentam importância diretamente relacionada aos processos
de regionalismo e globalização: a diversificação de produtos e a passagem da
cozinha tradicional, com a preparação de pratos típicos, para uma cozinha
industrial.
De acordo com a autora Diez-Garcia (2003), deste modo há um desenraiza-
mento da alimentação. Assim, hoje é possível que se encontre pratos típicos de
qualquer parte do mundo, e os alimentos, que antes eram sazonais nos países
desenvolvidos, são agora oferecidos durante todo o ano. A desterritorialização
do alimento difunde-o em escala mundial! Ou seja, produtos como cerveja, bis-
coito, chocolate e refrigerante pertencem ao mundo. Questiona-se com isso o
que houve então com a comida tradicional típica. Na verdade, ela persiste, mas
metamorfoseada para adaptar-se à expansão, isto é: perdeu sua peculiaridade.
Desse modo, a comida deixa de ter vínculo territorial! Neste sentido tanto faz
uma pizza, um hambúrguer ou um croissant, todos perderam suas origens ou
sua essência tradicional e, embora mantenham seu valor simbólico, tornaram-
se produtos da cozinha industrial.
Em linhas acima foi falado sobre como a globalização se instalou no Brasil.
Observa-se que neste país ocorre a valorização do modelo norte-americano
como referência de modernidade, como símbolo do primeiro mundo. O cresci-
mento de lanchonetes norte-americanas no Brasil, por exemplo, reflete a ade-
são ao que representa o “ideal americano” (Diez-Garcia, 2003).
Já com relação à América e à Europa, observa-se que a América passou por
experiências precoces em muitos domínios, como nos quesitos econômico,
social e civilizatório, e nesse local as tendências observadas na desestrutura-
ção das práticas alimentares foram detectadas já nos anos 60 (Fischler, 1995).
Enquanto isso, na Europa, os costumes tradicionais proibiam a mistura de ati-
vidades; por isso as refeições são, de certo modo, preservadas até hoje, têm-se
um espaço e um tempo reservados e seus deslocamentos aparecem em menor
grau nos meios urbanos dos países europeus. Este espaço reservado às práti-
cas alimentares no continente europeu poderia derivar da valorização e do

162 • capítulo 5
sentimento de pertencimento manifestado na gastronomia, de modo que a ali-
mentação nutre a identidade cultural (Diez-Garcia, 2003).
Dentro dessa temática, Fonseca e colaboradores (2011) desenvolveram um
trabalho que buscou apresentar o que a “modernidade alimentar” representa
para a sociologia e para a antropologia. Segundo este grupo de pesquisadores,
o conceito de “modernidade alimentar” sintetiza e representa os impactos que
a alimentação tem sofrido em função das transformações sociais, econômicas
e culturais ocorridas na sociedade contemporânea. Eles ressaltam ainda que os
alimentos não se deslocam sozinhos pelos canais; o fluxo é controlado por in-
divíduos e grupos sociais que agem de acordo com suas próprias lógicas, sejam
elas familiares, religiosas, econômicas ou profissionais, entre outras.
Em suma, a presença de crenças, valores e significados precisa ser conside-
rada nos estudos sobre consumo alimentar. A compreensão do que representa
a modernidade alimentar é um exemplo da contribuição que a sociologia e a
antropologia podem oferecer para os estudos de nutrição. Pouco se conhece so-
bre quais aspectos da escolha alimentar são capazes de diferir um grupo social
do outro ou mesmo um país do outro, mas nesse sentido a sociologia e a antro-
pologia podem ajudar o conhecimento sobre a alimentação dos grupos sociais.
Ao compreender o fenômeno alimentar e o seu consumo em uma abordagem
mais qualitativa, pode-se avançar na construção das ciências nutricionais, pri-
vilegiando-se uma abordagem compreensiva sobre o alimento e a alimentação
nos dias atuais (Fonseca et al, 2011).

CONEXÃO
Para entender como toda essa teoria a respeito da influência da globalização nos hábitos ali-
mentares humanos funciona na prática, bem como compreender com exemplos reais como
se dá a relação da globalização com o regionalismo, assista ao vídeo português chamado
“Toda Verdade – Globalização Alimentar”, publicado em 2015. É interessante como este
vídeo coloca outros pontos de vista da globalização, entre eles o fato de que a para vender
um produto alimentício ele precisa ter preço acessível e para isso, é utilizada mão-de-obra
humana barata no campo. Você já parou para pensar em como a globalização pode fazer com
que seja sacrificada a vida dos funcionários de grandes exploradores agrícolas? Este vídeo
mostra e está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hdCFhl3Y0No>.

capítulo 5 • 163
5.4  Fast Food
Oliveira e Freitas (2008) desenvolveram um interessante capítulo sobre o tema
dos fast-foods no livro intitulado “Escritas e Narrativas sobre Alimentação
e Cultura”, publicado em 2008, onde, por meio de uma revisão da literatura,
apontam vários significados para o termo fast-food. Alguns destes conceitos
seguem na Tabela 5.2.

1. “Alimentação industrializada à base de sanduíches cárneos, embutidos, queijos


amarelos e molhos cremosos, capitaneado pelo hambúrguer e pela batata frita, habi-
tualmente acompanhados de refrigerante Trata-se de uma alimentação normalmente
muito calórica, rica em gordura, carboidratos e sal, pobre em vitaminas, minerais e fi-
bras alimentares. Esta versão, considerada como típica e tradicionalmente americana,
submete-se a mestiçagens, adaptando-se às tradições gastronômicas e paladares em
diferentes contextos, constituindo-se por assim dizer em fast-food fusion”;

2. “Modelo de lanchonete, restaurante, estabelecimento ou loja, onde é servido o tipo


de comida acima descrito. Caracteriza-se tanto pela comida quanto pelo serviço, rápi-
do, eficiente, padronizado, impessoal. Os estabelecimentos majoritariamente integram
grandes cadeias multinacionais através do sistema de franquia. Por isso são, tal como a
comida que servem, estandardizados (estrutura física, instalações, equipamentos, em-
balagens, acessórios, modelo de gestão, publicidade), visando garantir a imagem da
rede”;

3. “Segmento do food-service, destinado ao varejo, integrado pelas redes de esta-


belecimentos já descritos. Constitui-se numa atividade econômica em franca expansão,
em conquista de novos mercados e em constante inovação”;

4. “Sistema alimentar que se configura como moderno e marcado pelo consumo pre-
ferencial de alimentos industrializados, pelo comer fora de casa e pelo uso de muitos
eletrodomésticos na cozinha doméstica”;

164 • capítulo 5
5. “Modelo de comer, baseado em tomadas ou ingestões não estruturadas, que se
opõe às regras tradicionais da comensalidade, que está assentada no comer à mesa as
típicas refeições ainda predominantes na cultura brasileira”;

6. “Conceito de cozinha no sentido de culinária, reportando-se aos pratos típicos


da alimentação fast-food e assemelhados, em versões sofisticadas e temáticas, para
preparação e consumo, inclusive no âmbito doméstico.
Nesta linha, tem sido ressaltado no ambiente da gastronomia uma moda do “hambúr-
guer de gourmet”, com uma certa elitização dos pratos e das práticas reconhecidas
como identificadoras da alimentação fast-food”;

7. “E, no sentido literal, “comida rápida” ou todo tipo de comida que é servida num
menor tempo possível porque já se encontra preparada para servir ou para rápida fi-
nalização. O serviço dos restaurantes de tipo buffet tem sido enquadrado nesta acep-
ção, também a comida por peso, o prato feito em restaurantes populares, botecos, e a
comida de rua. Nesta, encontra-se a mais emblemática iguaria da culinária baiana: o
acarajé”.

Tabela 5.2. – Diferentes significados encontrados para o termo fast-food. Fonte: Oliveira e
Freitas, 2008.

Como se pode perceber, a noção de fast-food mais comumente encontrada


foi relacionada a comida (um tipo de comida ou a referência de preparo rápido
ou comida pronta para servir nos estabelecimentos comerciais), aparece tam-
bém o sentido de lugar de produção e venda de comida com as características
já citadas. Em suma, na diversidade de conceitos gerados pelo termo fast-food
encontram-se sentidos correlatos e discrepantes. Ao se pensar numa associa-
ção mais imediata, este termo pode significar comida ou o lugar onde se co-
mercializa refeição rápida, caracterizando a produção, o serviço e o consumo,
bem como um estilo de comer e viver. Já do ponto de vista nutricional e da gas-
tronomia, para que o conceito fast-food seja atribuído à alimentação, precisa-
se considerar, necessariamente, a identificação dos ingredientes e a forma de
preparação (Oliveira e Freitas, 2008).
Vendo a terminologia sob uma outra ótica, o termo fast, vindo da língua in-
glesa, corresponde atualmente a uma temporalidade significante de um estilo

capítulo 5 • 165
de vida moderno e urbano (Elias, 1998). Como o tempo é um elemento-chave
no mundo contemporâneo, os fast-foods são ágeis, poupam o tempo de pre-
paro e de ingestão e são deslocáveis para qualquer espaço. Como uma das ex-
pressões do movimento de aceleração da vida, os fast-foods não se difundem
por seu traço cultural, mas, sim, por exprimir a modernidade do mundo (Diez-
Garcia, 2003).
Conforme Oliveira e Freitas (2008), ao reunir numa mesma expressão os ter-
mos fast e food nasce uma regulação do tempo da conduta do comer, sendo o
tempo, aparentemente, um condicionante do mercado, pois na dimensão glo-
bal do termo, o tempo de preparo e o tempo de comer implicam em valor de co-
mércio. Nesse sentido, o fast-food é um acontecimento civilizador e moderno,
levando em consideração que o indivíduo sai da casa para o público e anseia
por liberdade do consumo.
O conceito de fast-food (comida rápida) nasceu nos Estados Unidos em
1955, entretanto suas origens remontam aos séculos XVIII e XIX. Desde então
se espalharam pelo mundo, do ocidente ao oriente, e hoje há estabelecimentos
de fast-food desde a Rússia, até o Japão, América, Europa, etc. Essa dissemi-
nação se deve muito à importação do modo de vida norte-americano, fazendo
com que grande parte dos seus hábitos fosse copiada, inclusive parte dos hábi-
tos alimentares (Abreu, Chaud e Torres, 2012).
Atualmente bilhões de hambúrgueres são consumidos por ano pelo mun-
do, mas o conceito de fast-food não se restringe apenas a hambúrgueres, mas
também a outros tipos de comida rápida, tais como: pizza, comida chinesa, me-
xicana e outros, cuja influência cultural de outros povos está implícita (Abreu,
Chaud e Torres, 2012).
Os Estados Unidos, entre os anos 20 e 40, passaram por grandes transfor-
mações nos hábitos alimentares ligadas à emergência de grandes companhias
processadoras de alimentos e à vida na cidade. Da falta de tempo para comer
em casa surgiu a necessidade de uma boa refeição a preços acessíveis. Assim, a
modernidade impôs seu ritmo aos costumes, os drive-in adequaram a refeição
ao ritmo necessário.
Em seu trabalho, Abreu, Chaud e Torres (2012) mostram que tal transfor-
mação expressou não apenas uma mudança de “comportamento”, mas o fim
da refeição enquanto "instituição social". No mundo moderno, o momento da
reunião e da comunhão alimentar dos membros da família é modificado. Da
refeição estruturada com entrada, prato principal e sobremesa, passa-se a uma

166 • capítulo 5
alimentação fragmentada; a alimentação anteriormente realizada em horários
fixos passa a se realizar em horas variadas; o tempo e o local onde os alimentos
são ingeridos passam por uma dessincronização; o ato de comer se deslocaliza
e realiza-se um movimento de aceleração da vida (Giddens, 1991).
Em contrapartida, há hoje em dia uma grande publicidade para os alimen-
tos e para o preparo desses, com uma série de revistas, programas de televisão,
vendas de livros de receitas e colunas em jornais tratando desse assunto. Com
isso, o caráter de produção e distribuição de alimentos vem mudando, pressio-
nando uma reestruturação na indústria, o que afeta outros segmentos indus-
triais. E assim a competição gera mais propaganda e mais promoção de fast-
foods ainda (Beardsworth e Keil, 1997).
O mais impressionante é que as pessoas vão se acostumando a toda essa
mudança e vão se adaptando de acordo com suas necessidades, principalmen-
te no que se refere ao poder aquisitivo, que na maioria das vezes determina qual
será o cardápio do dia. Muitas vezes este cardápio não é saudável, mas é o que
vai saciar a fome por algumas horas (Abreu, Chaud e Torres, 2012). O futuro
profissional de saúde deve se atentar a essa sequência de acontecimentos, pos-
to que elas afetam diretamente o estado nutricional e a saúde das pessoas de
hoje!
O conceito de fast-food tem passado por mudanças significativas ao longo
do tempo. Ultimamente, este conceito tem se desenvolvido também num es-
pectro de comida preparada, em que se oferece de tudo, desde sanduíches e
saladas, até pizzas, pastéis, comidas étnicas, donuts e lojas de conveniência.
Incluem-se, ainda, restaurantes tipo self-service e "por quilo", cafés, produtos
de padaria e serviço de entrega domiciliar (Abreu, Chaud e Torres, 2012).
Há que se considerar também que nos dias de hoje o uso da alimentação
como forma de “entretenimento” permite que a alimentação seja dispersa para
outros ambientes, além do ambiente domiciliar, sem um lugar e nem um tem-
po próprio destinado a ela (Moreira, 2010). Nesse processo, o comer foi espa-
lhado para além da casa e avançou também para além da mesa, invadido por
outras atividades que estimulam o consumo calórico excessivo, sem que neces-
sariamente o comensal contemporâneo se dê conta disso (Diez-Garcia, 2003).
Novidade ou tradição, saúde ou indulgência3, economia ou extravagância,
conveniência ou cuidado: para o autor Alan Warde (1997) estas são as principais

3  Indulgência: Facilidade para perdoar os erros; ato de absolver um castigo, uma pena, uma ofensa. etc.; clemência,
tolerância ou perdão (Dicionário Online de Português, 2009).

capítulo 5 • 167
contradições das recomendações que guiam a seleção dos alimentos e os hábi-
tos alimentares nos contextos sociais do capitalismo avançado, as quais se vei-
culam acompanhadas por um tom moral (Warde, 1997). E que indivíduo nunca
vivenciou pelo menos um conflito interno em que pesava duas dessas caracte-
rísticas opostas na hora de decidir qual prato comer?!
Conforme foi vastamente abordado neste livro, a maneira como as pessoas
se alimentam ultrapassa o ato de comer em si e se articula com outras dimen-
sões sociais e com a identidade, tanto é que não se deu ao acaso o crescente
sucesso das cadeias alimentares de fast-food (como a do McDonald's e outras),
que muito investiram na publicidade alimentar e que por meio de imagens vei-
culam novas representações sobre o modo de vida moderno. Rial (1996), inclu-
sive, aborda esta temática em seu trabalho.
Mintz (2001), ao citar o livro de James L. Watson Golden Arches East, sobre
o Mc Donald's, lembra que na China, comer no McDonald's é sinal de mobili-
dade ascendente e de amor pelos filhos. Onde quer que o McDonald's se ins-
tale na Ásia, as pessoas parecem admirar a iluminação feérica4, os banheiros
limpos, o serviço rápido, a liberdade de escolha e o entretenimento oferecido
às crianças. Mas também se coloca que eles gostam mais dessas coisas do que
propriamente da comida! Segundo Mintz (2001), o McDonald's mobiliza outros
valores, não apenas restritos à refeição rápida.
Este estilo de alimentação já tem sido alvo de estudo há algum tempo. Em
trabalho acerca da globalização publicitária, Rial, em 1993, ressaltou a especifi-
cidade da culinária do fast food na divulgação de novas formas de se alimentar,
na redefinição dos espaços das refeições e do seu tempo, junto com a modifi-
cação da própria estrutura da alimentação. No passado, a alimentação se de-
marcava geográfica, temporal e simbolicamente, e as ocorrências alimentares
separavam o tempo, estimulando a sociabilidade familiar, ou interrompiam a
jornada de trabalho, marcando a comida os momentos cotidianos e não-coti-
dianos. Já as formas de alimentação no mundo moderno e as mudanças nas
práticas alimentares movem-se pela demarcação de novos espaços e pela velo-
cidade. Apesar disso, elas não são imediatamente percebidas!
Fischler (1979) ressalta em seu trabalho que “os comedores modernos con-
tinuam pensando que fazem três refeições por dia, um pouco como os amputa-
dos que sentem por um longo tempo o seu braço ou perna perdidos, como um
membro fantasma”.

4  Feérica: Que faz parte de um mundo de fantasia; mágica; que expressa ou pode conter luxo; deslumbrante; que
confunde a visão por ser excessivamente clara; ofuscante.

168 • capítulo 5
CONEXÃO
Para conhecer um pouco mais sobre tópicos característicos da alimentação da vida
globalizada, como a falta de tempo para se alimentar, os riscos inerentes ao consumo
da alimentação industrializada, o aumento da alimentação fora de casa, bem como
alguns mitos relacionados à alimentação moderna, assista ao vídeo disponibilizado em:
<https://www.youtube.com/watch?v=hR8f01p56TU>.

De acordo com Oliveira e Freitas (2008), o comportamento do consumidor


brasileiro acompanha uma tendência mundial e a discussão sobre fast-food
ganha relevância no Brasil na medida em que há uma expansão do hábito de
comer fora de casa, principalmente nas grandes cidades. Outra coisa que tem
se expandido também é o consumo de comida industrializada, inclusive no
ambiente doméstico. Nesse campo, vale registrar os dados do crescimento do
chamado setor de food service.
O setor food service refere-se ao preparo de refeições fora do lar, comer-
cializadas em distintos tipos de estabelecimentos (restaurantes, cafés, hotéis,
bares, lanchonetes) e também fornecidas para unidades de alimentação insti-
tucional (fábricas, hospitais, quartéis, escolas e empresas diversas). Essa dis-
ponibilidade de comida pronta, que afeta o comportamento alimentar, chega
aos domicílios através da comercialização em padarias, lojas de conveniência,
delicatessens e supermercados. A comida pronta é também fornecida por res-
taurantes e outras unidades de produção através da entrega em domicílios, co-
nhecida como sistema delivery (Oliveira e Freitas, 2008).
Frente as transformações no tempo e no espaço das refeições nas socieda-
des urbano-industriais, que conduzem à realização e à valorização das refei-
ções rápidas e feitas fora do espaço doméstico, Garcia (1997) identificou, entre
os entrevistados de sua pesquisa no centro da cidade de São Paulo e os frequen-
tadores de restaurantes e de fast-foods, um forte discurso sobre a valorização
da “comida feita em casa”.
Nesse trabalho, os entrevistados relataram que no ambiente doméstico
pode-se mais facilmente controlar e confiar na limpeza e na higiene dos ali-
mentos e utensílios, ao contrário da comida feita em restaurantes e redes de
fast-foods, onde a desconfiança é maior em relação à ausência de tais cuidados.
A autora assinala ainda a convivência simultânea nas representações e nas prá-

capítulo 5 • 169
ticas alimentares de segmentos de populações urbanas metropolizadas, novos
e antigos modos de consumir e pensar os alimentos, as mudanças nas refei-
ções, sendo que aquelas feitas fora de casa marcam-se pelo tempo de trabalho,
descanso ou lazer, ou pelos negócios (para dados segmentos sociais), quando
se realizam em vários locais, tanto pelos comensais solitários quanto em grupo
(Garcia, 1997).
É importante ter em mente que a influência da globalização na alimentação
não se restringe ao surgimento dos fast-foods. Além de todas as consequências
deste processo no hábito alimentar, nas estruturas de produção, distribuição,
consumo e marketing, conforme apontado neste capítulo, têm-se ainda mais
exemplos do efeito da globalização no campo da nutrição. Alguns deles são:

•  A expansão das “franquias alimentares”, as quais recuperam as comidas


típicas que evocam identidades locais ou regionais;
•  O incremento das comidas “a quilo”, “chinesa” e “japonesa”, entre ou-
tras, de estilo massificado;
•  E ainda aqueles serviços alimentares concentrados nas praças de alimen-
tação dos shopping centers e que convivem com os restaurantes tradicionais,
ofertando culinárias sofisticadas, internacionais ou mesmo nacionais são só
mais alguns exemplos.

Para cada um desses segmentos citados acima, há clientelas específicas e


diferenciadas socialmente (Collaço, 2002). E o interesse por esses espaços ali-
mentares é crescente, do ponto de vista da antropologia urbana, posto que se
apresentam como os novos lugares para os estudos etnográficos.
Para concluir esta sessão, conforme apontam os autores Oliveira e Freitas
(2008), o termo fast-food se reporta a um modelo da modernidade alimentar,
marcado por um conjunto de práticas que envolvem novas escolhas alimenta-
res e a ruptura com os rituais tradicionais da comensalidade. Ademais, se re-
porta ao abandono das refeições em família no lar, à substituição de comidas
por merendas, à pressa do comer, à informalidade, à comida industrial, às no-
vas receitas rápidas, entre outros elementos.
Dessa maneira, não há como negar que a imagem da alimentação fast-food
associada ao estilo de vida hegemônico da sociedade pós-industrial, cosmopo-
lita e globalizada valoriza a individualidade e a privacidade. E os aspectos desse
novo comportamento alimentar combinam com a praticidade, a rapidez, a co-

170 • capítulo 5
modidade e a economia do mundo moderno (Oliveira e Freitas, 2008).
O futuro profissional de saúde deve saber que o termo fast-food em geral
está relacionado a repercussões nocivas à saúde, entretanto, quando esta é a
única alternativa do comensal, é preciso considerar que muitas vezes uma re-
feição equilibrada pode ser montada a partir da exuberante oferta do popular
restaurante bufett por quilo ou mesmo das opções de lanches disponíveis no
mercado, por exemplo. Por isso, para melhor subsidiar o discurso da educação
alimentar e nutricional, é importante que saiba e que consiga transmitir infor-
mações corretas sobre qual tipo de comida deve ser evitado, ou ter seu consu-
mo reduzido, bem como quais são as opções mais saudáveis.

Apesar da existência dos fast food no Brasil, estes não anulam as “comidas de rua”
integradas por um complexo e diversificado conjunto de opções alimentares oferecidas
à classe popular em particular. A precarização do trabalho no Brasil, caracterizada por
uma grande rede de mercado informal, compõe esta fatia do mercado alimentar que
tem tanto desempregados produzindo alimentos vendidos nas ruas, nas portas de es-
colas e outras instituições com um custo baixo, quanto indivíduos que buscam refeições
baratas, rápidas e consistentes, muitas vezes também inseridos no trabalho precário ou
informal para garantir a sua sobrevivência. Esta situação é pouco explorada do ponto
de vista científico, mas trata-se de uma vasta rede que compõem, de maneiras peculia-
res, as paisagens citadinas brasileiras (Santos, 2008).

5.5  Influência da Globalização na Cultura,


Auto-Imagem Corporal e Escolhas
Alimentares
O tamanho do corpo considerado ideal passou por inúmeras variações ao
longo da história. Isso se deve, em parte, à influência da economia. Em mo-
mentos de escassez de alimentos, a preferência era por corpos que possuíam
formas arredondadas, pois simbolizavam opulência e poder, e dessa maneira
estavam associados à saúde - até hoje, em populações pobres, ser “gordo” é si-
nal de status. Por outro lado, em épocas em que os alimentos se encontravam
disponíveis em abundância, a magreza se tornava revestida de valores para a

capítulo 5 • 171
sociedade: ser magro simbolizava o controle, ter a capacidade de trabalhar com
disciplina e de tolerar frustrações (Brownell, 1991).
Com a globalização, atualmente a situação é outra. Na maior parte do mun-
do, exceto em populações pobres, a sociedade convive com um paradoxo: ocor-
re abundância de alimentos, em consequência da riqueza econômica, e, simul-
taneamente, há a prática da restrição alimentar, imposta pelos ideais estéticos
modernos que acompanham a sociedade. Esse paradoxo é aumentado e refor-
çado pela mídia escrita e televisiva, quando a indústria de alimentos divulga
produtos obesogênicos utilizando-se de personagens magros, que refletem o
ideal estético de beleza.
A sociedade preconiza e a mídia veicula o ideal do corpo perfeito, o que faz
as pessoas, principalmente meninas na adolescência, sentirem uma insatisfa-
ção crônica com seus corpos, o que, muitas vezes, pode leva-las à depressão, à
adoção de dietas altamente restritivas, à prática extenuante de exercícios físi-
cos, à indução de vômitos e até a ingestão de laxantes e diuréticos, na tentati-
va de corresponder ao modelo cultural vigente (Andrade e Bosi, 2003). Moraes
(2001), em estudo sobre a percepção e a satisfação com a imagem corpórea, o
estado nutricional e o uso de dietas restritivas por adolescentes do sexo femini-
no demonstraram maior insatisfação com a imagem corpórea, maior distorção
da percepção corpórea e maior uso de dietas restritivas, quando comparadas a
seus pares do sexo masculino. Foi observado, também, que a insatisfação com
o próprio corpo e o uso de dietas restritivas aumentavam com a idade das ado-
lescentes e que nem sempre as dietas estavam vinculadas à necessidade real.
Considerando-se que, muitas vezes, a busca obsessiva pelo padrão de bele-
za pode levar os adolescentes a romperem a tênue linha divisória entre o cui-
dado saudável com o corpo e o sutil movimento de instalação de transtornos
alimentares (Andrade e Bosi, 2003), o profissional de saúde deve estar atento ao
relacionamento que seu paciente, principalmente as adolescentes, têm com a
alimentação e a imagem corpórea.
Atributo da globalização, a mídia, vertente do marketing, é responsável pela
veiculação de anúncios em meios de comunicação de massa, como jornais, re-
vistas, rádio e televisão (Houaiss e Salles, 2004), influenciando não apenas o
consumo de alimentos, mas a desconstrução da formação de hábitos e práticas
alimentares, principalmente na fase da infância e da adolescência.
A propaganda afeta mais profundamente as crianças que os adultos, pois é
feita para agradar as emoções, não ao intelecto (Linn, 2006). Pré-escolares têm

172 • capítulo 5
dificuldade em diferenciar comerciais de programas de televisão (Levin e Linn,
2004), e crianças um pouco mais velhas, apesar de fazerem esta distinção, ten-
dem a acreditar na mensagem divulgada no comercial (Kunkel, 2001). O con-
ceito de intenção persuasiva não é entendido por crianças com idade abaixo
dos 8 anos (Ross et al, 1984). Mas, embora crianças mais velhas e adolescentes
tenham maior senso crítico em relação à propaganda, isso não afeta sua ten-
dência de desejar ou comprar os produtos e alimentos exibidos nos comerciais
(Troiano e Flegal, 1984).
A vulnerabilidade de crianças e adolescentes na decisão de escolha e consu-
mo de alimentos pelos interesses midiáticos e, principalmente, empresariais
é estendida à medida que esse público é bombardeado por propagandas em
toda parte. Quigley e Watts (2005) relatam que as propagandas de alimentos
obesogênicos chegam a representar 70% do total das propagandas de alimen-
tos expostas ao redor das escolas e 2/3 dos comerciais televisivos em programas
infantis, além dos patrocínios que empresas fabricantes de alimentos obesogê-
nicos e redes de restaurantes fast food, oferecem às diferentes situações coti-
dianas (times de futebol, atletas, clínicas, hospitais e outros).

CONEXÃO
Para aprofundar o conhecimento acerca da relação entre o corpo e o comer na contempora-
neidade, leia o livro de Ligia Amparo da Silva Santos, publicado em 2008, chamado “O corpo,
o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais alimentares cotidianas a partir
da cidade de Salvador – Bahia”. Este livro está disponível gratuitamente pela internet em:
< http://static.scielo.org/scielobooks/38m/pdf/santos-9788523209087.pdf>.

5.6  Desafios para o Futuro


É importante que diante de tantas informações acerca das consequências da
vida moderna no hábito alimentar dos indivíduos, bem como nos novos es-
paços que se configuram para a tomada das refeições e nas novas opções de
consumo de produtos alimentícios, o profissional de saúde saiba ao mesmo
tempo se posicionar quanto às recomendações nutricionais para a população
que atende, mas que também consiga ponderar sobre o que é de fato possível

capítulo 5 • 173
dentro do contexto de cada indivíduo. Este profissional terá de estar preparado
para os desafios a enfrentar.
De acordo com Diez-Garcia (2003), se por um lado o processo de globaliza-
ção amplia a diversidade alimentar, por outro também a reduz, uma vez que
circula um mesmo leque de opções alimentares próprias da globalização.
Para esta autora, as mudanças na alimentação devem ser entendidas no
contexto sociocultural da urbanidade em seus determinantes objetivos e sub-
jetivos. E levanta ainda algumas questões, como a maneira como as diferentes
culturas irão absorver em seu cotidiano alimentar essa diversidade de padrões
alimentares e quais as mudanças que podem ser provocadas no repertório culi-
nário de referência. Segundo ela, essas são questões que merecem ser investi-
gadas para melhor se delinear a comensalidade contemporânea e assim apro-
fundar o conhecimento sobre os seus determinantes (Diez-Garcia, 2003).
Dentre os pontos a serem refletidos quanto aos desafios para o futuro que
a relação entre globalização versus hábito alimentar tem a trazer, pode-se citar
também que a transição nutricional, os modos e os gostos, particularmente no
ocidente, fazem nexo com a necessidade da pressa ao comer. Este comporta-
mento reflete nos hábitos alimentares dos indivíduos, e isso tem repercussões
no excesso de peso e em outros problemas de saúde (Góes, 2005).
De acordo com Popkin (1999), a adoção de uma dieta com excesso de ali-
mentos de grande densidade energética, ricos em gordura e em açúcar refinado
simples, com simultânea diminuição no consumo de carboidratos complexos
(fonte importante de fibras alimentares), tem se expandido já algum tempo,
sobretudo em situações de prosperidade econômica (Popkin, 1999).
O estudo de Góes (2005) mostra que são necessárias mudanças na alimen-
tação das pessoas que seguem o estilo urbano atual, posto que este contexto
envolve a comida da rua (de preparo fast – rápido), a qual causa adoecimento,
enfermidades cardiovasculares, diabetes, obesidade. O fast-food observado por
este autor inclui refrigerantes, batata frita, hambúrguer e seus artifícios que re-
gularizam um hábito conotado para informar a condição especular de um su-
jeito que se sente presente nesse mundo e não fora dele. Para os participantes
deste estudo, prazer e perigo relacionados à comida estão incluídos na neces-
sidade do consumidor de se sentir no mercado global ou na dinâmica de um
nivelamento cultural.
Não se pode ignorar o fato de que os valores da modernidade como pressa,
comodidade e praticidade contribuem para configurar o entorno dos novos com-

174 • capítulo 5
portamentos alimentares, sobretudo no meio urbano cosmopolita, onde os esta-
belecimentos de comercialização de comida tipo fast food mais se expandem. A
tecnologia disponibiliza modernos utensílios domésticos para o máximo apro-
veitamento do tempo e a comodidade, facilitando o consumo de comida indus-
trial, semi-pronta, pré-pronta e alimentos pré-cozidos, pré-lavados, para rápida
finalização em casa. Assim, hoje, observa-se uma multiplicação de arranjos que
configuram os novos modelos alimentares e que contrastam com o comer estru-
turado das tradicionais refeições domésticas (Oliveira e Freitas, 2008).
Vários autores pontuam uma conotação negativa para o fast-food, o qual se
constitui numa típica influência da globalização no hábito alimentar e no esti-
lo de vida das pessoas. De acordo com Oliveira e Freitas (2008), o preconceito
dirigido a este tipo de alimentação está embutido na expressão junk food5, cuja
associação com a comida fast é recorrente. Na categoria junk food encontram-
se além de fast-food, as guloseimas, os sorvetes e salgadinhos industrializados
e a comida de rua. Entretanto, ao mesmo tempo em que o fast-food é, sob a
perspectiva da saúde, considerado nocivo, este tipo de alimentação e a frequ-
ência aos estabelecimentos que a comercializa, são culturalmente significadas
como práticas divertidas, joviais e modernas, valores estes, muito difundidos.
Portanto, não há como o profissional de saúde negligenciar a existência desse
tipo de opção alimentar para os comensais.

A alimentação fast-food é considerada uma dieta de risco para a saúde ou no mínimo


como hábito alimentar inadequado. Diante do aumento da prevalência de altas taxas de
colesterol e triglicérides e da relevância epidemiológica dos problemas de sobrepeso,
obesidade, hipertensão arterial e diabetes mellitus, o negócio da alimentação fast-food
encontra-se numa posição de alerta. A desaprovação do consumo frequente da comi-
da fast-food pelo profissional nutricionista é lugar comum na literatura. Chega a ser
manifestada como uma repreensão: “Deixe de ser um fast-food ambulante, troque o
bombom que você carrega na bolsa por uma maçã”. “Carência de nutrientes provocada
por “alimentação rápida” pode desencadear inúmeras doenças”. Ademais, no campo da
nutrição a “síndrome da fome oculta” é atribuída a uma alimentação rica em gordura
saturada, açúcares e pobre em micronutrientes e fibras, características da comida fast
(Oliveira e Freitas, 2008; Giácomo, 2004).

5  Junk food são alimentos que tem baixo valor nutricional, normalmente produzidos sob a forma de lanhces
embalados que necessitam de pouca ou nenhuma preparação.

capítulo 5 • 175
Da mesma maneira que há essa tendência para uma alimentação menos
nutritiva, promovida pelas necessidades que a globalização evoca, conforme
abordado acima, parece haver também um desejo das pessoas para se alimen-
tarem de maneira mais saudável. Os chamados “alimentos funcionais” são um
exemplo disso e se configuram como um campo promissor de pesquisa e de
desenvolvimento da indústria alimentar, constituindo-se como mais uma das
possibilidades de modelos alimentares e dietas da sociedade contemporânea,
ao contemplar a diversidade dos grupos e dos mercados. Essa “possível” preo-
cupação com a saúde mostra que na alimentação moderna não há uma força ho-
mogeneizadora preponderante, é preciso que o leitor considere sempre as opi-
niões e os estilos de vida diferentes, quando estiver atuando profissionalmente.
Além disso, há também vários outros fatores que são concorrentes na ado-
ção de novos hábitos alimentares: a transformação da família, o trabalho da
mulher fora de casa, maior autonomia e liberdade das crianças e dos jovens
inclusive para escolher sua alimentação. Destaca-se, ainda, o crescimento das
cidades e as grandes distâncias que separam o lugar da moradia do lugar do
trabalho, problema agravado em muitas cidades brasileiras por um transporte
coletivo deficiente (Oliveira e Freitas, 2008).
Ou seja, percebe-se que o comportamento alimentar é complexo, e que in-
clui tanto determinantes externos quanto internos ao sujeito. Por exemplo, o
acesso aos alimentos, na sociedade moderna, predominantemente urbana, é
determinado pela estrutura socioeconômica, a qual envolve principalmente as
políticas econômica, social, agrícola e agrária.
Diante disso, as práticas alimentares, estabelecidas pela condição de clas-
se social, estão sob a ação de determinantes culturais e psicossociais. Embora
haja contrastes econômicos e socioculturais entre países pobres e ricos, os es-
tudos epidemiológicos mostram tendências sobre o consumo alimentar que
assinalam a reprodução de características similares. Isto é, o padrão alimentar
antes característico dos países desenvolvidos é atualmente uma preocupação
também dos países em desenvolvimento. As práticas alimentares contempo-
râneas têm sido influenciadas pelos avanços tecnológicos na indústria de ali-
mentos, na agricultura, pela globalização da economia, e têm sido alvo de preo-
cupação das ciências da saúde desde que os estudos epidemiológicos passaram
a demonstrar uma relação entre dieta e doenças crônicas associadas à alimen-
tação (Diez-Garcia, 2003).

176 • capítulo 5
Diante do contexto alimentar encontrado atualmente no mundo (globali-
zado), é de se esperar alguns desafios para o profissional de saúde no futuro,
afinal, vive-se hoje em um modelo da modernidade alimentar, marcado por um
conjunto de práticas que envolvem novas escolhas alimentares e ruptura com
os rituais tradicionais da comensalidade. Não se pode ignorar o que ocorre com
os comensais modernos: o abandono das refeições em família no lar, a substi-
tuição de comidas por merendas, a pressa do comer, a informalidade, a comida
industrial, as novas receitas rápidas, entre outros. Diante disso, este profissio-
nal deve entender as mudanças no padrão alimentar em seus aspectos objeti-
vos e subjetivos, e considerar a urbanidade como contexto da comensalidade
contemporânea (Diez-Garcia, 2003; Oliveira e Freitas, 2008).

Conclusões:

A globalização é um dos processos de aprofundamento da integração econômi-


ca, social, cultural e política que vem impulsionando o mundo, principalmente
considerando as facilidades de transporte e difusão de informações, produtos
e interação entre as pessoas. Ressaltam-se, com ela, grandes tendências de
comportamento nas pessoas, como: a autonomia, a conveniência, a desestru-
turação das refeições, o cosmopolitismo, o refinamento, a valorização da ali-
mentação fora de casa, mas também a valorização do alimento natural e a pre-
ocupação com a saúde e o equilíbrio alimentar.
Apesar de todas as características citadas neste capítulo referentes às in-
fluências desastrosas da globalização no ato alimentar, observa-se simulta-
neamente uma busca por um equilíbrio alimentar por parte dos indivíduos.
Embora este equilíbrio tenha o seu controle dificultado pela multiplicação de
opções de alimentos não saudáveis disponíveis, o mesmo aparece valorizado
pela conscientização da importância da alimentação na manutenção da saúde.
E essa busca pela qualidade reflete, além da procura pelo valor nutricional dos
alimentos, as preocupações com processos de produção e conservação de pro-
dutos alimentícios que valorizem tudo o que for natural, fator este estimulado
pela consciência ecológica, conforme apontou a autora Proença em seu traba-
lho (Proença, 2010).

capítulo 5 • 177
REFLEXÃO
Diante de todo exposto propõe-se que o futuro profissional de saúde reflita sobre uma pro-
posta de aprimorar a alimentação cotidiana sem desconsiderar a presença da Globalização,
a qual mostra-se como processo inevitável. Pensar nessa proposta não significa tentar privar
a população dos conhecimentos das ciências da nutrição, mas articulá-los com as dimensões
socioculturais da alimentação.
O convite é para um movimento além da educação nutricional tradicional, que se refere prio-
ritariamente aos nutrientes, para a educação alimentar e nutricional, considerando os dife-
rentes horizontes do ato alimentar: sua relação com a saúde, sua relação com o prazer e suas
dimensões sociais e simbólicas, respeitando os processos de socialização e de construção
das identidades que articulam as particularidades sociais, regionais, religiosas, entre outras
(Basdevant, 2000).

LEITURA
Artigo: “Alimentação e globalização: algumas reflexões”, da Autora Rossana Pacheco da Cos-
ta Proença, publicado em 2010.
Diante da abrangência do tema exposto neste capítulo, faz-se fundamental a leitura deste
artigo, o qual traz um panorama geral de como o ato de se alimentar, em todos os seus
aspectos, sofreu os efeitos do processo de globalização. Além disso, este trabalho aborda
temas como alimentação fora de casa, tendências nas sociedades de consumo e modismos
na alimentação, assuntos bastante atuais e comuns na realidade das pessoas a serem aten-
didas pelos profissionais de saúde. Vale a pena ler para entender melhor como se dão esses
processos e formular estratégias de ação possíveis dentro da realidade de cada sociedade.

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182 • capítulo 5
ANOTAÇÕES

capítulo 5 • 183
ANOTAÇÕES

184 • capítulo 5

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