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Hermenêutica jurídica em Kelsen

Apontamentos críticos

Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha

Sumário
1. Introdução. 2. Direito e Ciência do Direito.
3. Norma e proposição normativa. 4. Causali-
dade e imputação. 5. A norma fundamental e o
Direito como um sistema dinâmico de normas.
6. Do processo de determinação do Direito. 7.
A interpretação jurídica em Kelsen. 8. Alguns
pontos críticos no modelo interpretativo da Te-
oria Pura. 8.1. A interpretação como mecanismo
subsidiário da aplicação. 9. Conclusão.

1. Introdução
José Florentino Duarte, em sua tra-
dução à “Teoria Geral das Normas”, de
Kelsen (1986), alertava o leitor desejoso de
aprofundar-se na obra do mestre de Viena
que se portasse como um verdadeiro dis-
cípulo, desarmado, por mais ilustrado que
fosse, pois somente assim, inspirado pela
modéstia, poderia captar o pensamento
do mestre. Entretanto, a advertência soa
mais grave quando o propósito é a crítica.
Confira (KELSEN, 1986, p. V):
“Se, porém, o leitor pretende criticar
a Kelsen, então o problema assume
outra projeção: arme-se, primeiro, de
amplíssimos conhecimentos jusfilo-
sóficos e, mesmo com uma bagagem
científica imensa, o árduo labor será
Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha é Juiz difícil, quiçá improfícuo, como acon-
Federal, Doutorando em Direito Público (PUC- teceu com aqueles que se arrojaram,
MG), Mestre em Direito (UGF-RJ) e especialista se aventuraram, se arriscaram a tal
em Direito Processual Público (UFF-RJ). cometimento”.

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Kelsen talvez seja daqueles magníficos dessas notas iniciais, partiremos para uma
autores que paradoxalmente assumem o exposição do modelo de interpretação
ápice da lista dos mais citados e também jurídica posto por ele. Finalmente, coloca-
dos menos lidos no meio jurídico (ao me- remos algumas considerações que parecem
nos em nosso país). De suas obras somente inserir algumas fissuras em seu sistema,
ouvimos falar por referências diretas ou justificando-as.
indiretas e, mesmo assim, somente de uma
forma parcial, já que, do vasto universo de
2. Direito e Ciência do Direito
artigos e livros (ultrapassam a cifra de seis-
centos), as referências parecem estacionar Kelsen (1999), ao lançar a sua teoria pura
na órbita da Teoria Pura do Direito. Talvez do direito, foi alvo de não poucas críticas,
isso justifique a falência das empreitadas as quais, também não raro, acabavam por
críticas a que nos referimos no excerto contradizerem-se. Como ele mesmo reco-
acima transcrito. nheceu, por vezes sua teoria era tachada
Mesmo diante dessa evidente dificulda- de fascista, ao passo que os fascistas a viam
de, certo é que alguns dos postulados kel- como liberal-democrata; por sua vez, os
senianos são de difícil sustentação na atu- comunistas a viam como ideologia de um
alidade, sobretudo em face das evoluções Estado capitalista, ao mesmo tempo em
experimentadas nos campos da Filosofia que os nacionais-capitalistas a desquali-
e Teoria do Direito, que aportaram novas ficavam. Se no campo político a celeuma
dimensões (e por que não dizermos também não se resolvia, melhor sorte não lhe restou
novos paradigmas) à ciência jurídica, de que entre os religiosos. A teoria Pura era, para
é exemplo o giro lingüístico-pragmático. alguns, ligada à escolástica católica e, para
Esse trabalho não tem por escopo a críti- outros, uma teoria protestante do Estado
ca da teoria pura do direito, porquanto seria e do Direito, havendo também quem a
natimorta e fracassada, seja pelo esforço visse como marcada por um ideário ate-
decorrente da dimensão da obra criticada, ísta (KELSEN, 1999, p. XIII). Kelsen (1999)
seja pela extensão da pesquisa daí derivada, explica essa crítica multifacetada, que não
o que fugiria por completo aos modestos escapa a qualquer orientação política ou
objetivos perseguidos. Por isso mesmo, religiosa, exatamente em razão do seu grau
efetuamos um corte epistemológico, bus- de pureza. Então, em que consiste e a que
cando um tema sobre o qual Kelsen não se se refere tal pureza?
debruçou demasiado, a saber, a hermenêu- Inspirado no êxito das ciências da
tica jurídica. O mestre foi econômico no seu natureza, pretendia Kelsen (1999) repro-
tratamento, o que inicialmente sinalizaria duzi-lo no âmbito das ciências naturais,
para a falsa conclusão de que a sua análise especificamente na Ciência do Direito, o
seria mais simples. Puro engano! Após uma que almejava conseguir depurando-a de
breve pesquisa, percebemos que o tema, a qualquer elemento estranho ao seu objeto,
despeito da referida economia, está conec- sobretudo os de índole política. Esse objeti-
tado com diversos outros postulados seus, vo é explícito no prefácio à primeira edição
como, aliás, é uma nota típica do sistema da sua “Teoria Pura do Direito” (KELSEN,
por ele construído, o que inflaciona nosso 1999, p. XI):
estudo. “Há mais de duas décadas que
Exatamente por isso, o trabalho tem iní- empreendi desenvolver uma teoria
cio com uma análise introdutória daqueles jurídica pura, isto é, purificada de
institutos ou elementos da obra de Kelsen toda ideologia política e de todos os
que manifestam uma conexão mais direta elementos da ciência natural, uma
com a hermenêutica jurídica. Armados teoria jurídica consciente da sua

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especificidade porque consciente da critério de valor para o Direito positivo”, o
legalidade específica do seu objeto. que configuraria para o mestre um renas-
Logo desde o começo foi meu intento cer de uma metafísica do Direito natural”
elevar a Jurisprudência1, que – aberta (KELSEN, 1999, p. XVIII).
ou veladamente – se esgotava quase Em suma, a pureza de sua teoria se refere
por completo em raciocínios de polí- à Ciência do Direito e consiste basicamente
tica jurídica, à altura de uma genuína em excluir do seu campo de estudos tudo
ciência, de uma ciência do espírito. aquilo que não se refira ao seu objeto, tudo
Importava explicar não as suas aquilo que não seja possível de determinar-
tendências endereçadas à formação se como Direito e, em última análise, tudo
do Direito, mas as suas tendências aquilo que não se possa identificar com a
exclusivamente dirigidas ao conheci- norma jurídica3.
mento do Direito, e aproximar tanto
quanto possível os seus resultados do
3. Norma e proposição normativa
ideal de toda a ciência: objetividade
e exatidão”. Partindo da delimitação do objeto da ci-
Desse excerto já podemos constatar ência jurídica, Kelsen estabelece a distinção
que a pureza pretendida por Kelsen não entre norma e proposição normativa.
se refere propriamente ao Direito, uma vez A norma jurídica seria um impera-
que ele bem o reconhece como “campo da tivo posto pela autoridade competente,
disputa política e da afirmação de valores” um comando por ela estabelecido, uma
(SGARBI, 2006, p. 33), mas à ciência, que permissão, ou ainda uma atribuição de
tem nele o seu objeto, ou seja, a Ciência do competência. Ainda que se tenha em mente
Direito. De fato, denunciando a confusão que tais imperativos sejam expressos por
que se estabelece entre a “Jurisprudência” meio de fórmulas lingüísticas, certo é que
e outros setores do conhecimento humano, não se trata de um mero enunciado, uma
tais como a psicologia, a sociologia, a ética mera proposição, mas de um comando, de
e a teoria política, justificada na evidente um ato produtor do Direito, seja ele um ato
conexão existente entre elas e o próprio Di- posto pelo legislador, pela Administração
reito, pugna por uma purificação da Ciência Pública, seja pelo juiz (a diferença aqui
que o estuda, visando antes determinar o não é de ordem qualitativa, pois sempre
que ele é, em vez de pretender afirmar o estamos em um processo de determinação
que ele deveria ser, conseqüência imediata do Direito, como adiante melhor esclare-
da promiscuidade entre aqueles setores2. ceremos).
Esvai-se daí a crença de poder “definir Por sua vez, a proposição jurídica é um
um Direito justo e, conseqüentemente, um enunciado formulado pela Ciência do Di-
reito visando à descrição do seu objeto. Por-
1
A expressão jurisprudência não tem aqui o mes-
tanto, trata-se de uma distinção qualitativa
mo sentido que empregamos em nosso país, mas como
obra dos teóricos do Direito, em nosso meio jurídico (prescrição/descrição), em que a norma
indevidamente denominada “doutrina”. jurídica é um ato da autoridade que produz
2
“Esta confusão pode porventura explicar-se o Direito e a proposição jurídica, um juízo
pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que
hipotético da ciência jurídica que descreve o
indubitavelmente têm uma estreita conexão com o
Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar sistema posto, tal como fica claro no excerto
o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, seguinte (KELSEN, 1999, p. 81):
fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa
conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo 3
“Na afirmação evidente de que o objeto da
metodológico que obscurece a essência da ciência ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação
jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela – menos evidente – de que são as normas jurídicas o
natureza do seu objeto” (KELSEN, 1999, p. 2). objeto da ciência jurídica” (KELSEN, 1999, p. 79).

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“Na distinção entre proposição jurídi- estão alicerçadas em um princípio causal.
ca e norma jurídica, ganha expressão Exemplificando: se deixo um corpo solto no
a distinção que existe entre a função espaço, ele cai porque sobre ele atua uma
do conhecimento jurídico e a função, força – o peso – decorrente da aceleração
completamente distinta daquela, de da gravidade. Em outras palavras, quando
autoridade jurídica, que é representa- solto um corpo outrora suspenso, constato
da pelos órgãos da comunidade jurídi- o efeito da sua precipitação, causado pela
ca. A ciência jurídica tem por missão atuação da gravidade sobre aquela massa.
conhecer – de fora, por assim dizer – o Portanto a lei que rege o seu movimento
Direito e descrevê-lo com base no seu está estabelecida segundo um princípio
conhecimento. Os órgãos jurídicos causal. Prosseguindo na análise, a física, ci-
têm – como autoridade jurídica – antes ência que, entre outros objetos, estuda o mo-
de tudo por missão produzir o Direito vimento, descreve aquela lei (proposição)
para que ele possa então ser conhecido asseverando: dado que um corpo seja solto
e descrito pela ciência jurídica”. no espaço, ele se precipitará em velocidade
Exatamente por isso, o cientista do Di- crescente, porque sobre a sua massa atua a
reito não pode, despindo-se da necessária aceleração da gravidade. Portanto, se é A,
neutralidade, estabelecer proposições ali- então é B (se solto o corpo, então ele cai).
cerçadas em juízos de valor que extrapolem Por sua vez, o princípio ordenador nas
a sua função meramente descritiva do siste- ciências sociais não é a causalidade, mas a
ma de normas. A pureza da teoria, portan- imputação. Aqui, a estrutura da norma re-
to, é uma pureza epistemológica (corte que guladora é bem distinta. Em primeiro lugar,
exclui da ciência jurídica qualquer objeto a por sua origem, que é derivada de um ato
ela estranho) e também uma pureza valora- da vontade humana. Quando a prisão de
tiva (corte axiológico), ou seja, ao cientista alguém é determinada em razão do crime
do Direito, impõe-se descrever o objeto da cometido, somente por assimilação verbal
sua ciência e não valorá-lo; as proposições poderíamos afirmar que ele é preso “por
jurídicas são da ordem do ser e, por isso causa” do ilícito perpetrado. A expressão
mesmo, não tem cabimento falar-se em va- assume aí uma conotação completamente
lidade ou invalidade da proposição, senão distinta da hipótese anterior. Pode ocorrer (e
na sua verdade ou falsidade4. freqüentemente ocorre) de alguém praticar
um crime e mesmo assim permanecer em
4. Causalidade e imputação liberdade, sem que, com isso, a norma pe-
nal que determina a sua prisão deixe de ser
Para Kelsen (1999), na natureza os even- válida. O que apenas podemos afirmar (pro-
tos estão conectados entre si segundo um posição normativa) é que, dado que alguém
princípio causal, daí por que as ciências pratique determinado ato ilícito, então essa
que a descrevem – ciências da natureza – pessoa deve ser presa. Em outras palavras:
4
“A distinção revela-se no fato de as proposições se é A, então deve ser B (se o homicídio é
normativas formuladas pela ciência jurídica, que cometido, então o seu autor deve ser preso)5,
descrevem o Direito e que não atribuem a ninguém
quaisquer deveres ou direitos, poderem ser verídicas 5
A expressão “deve ser” é plurissignificativa e aqui
ou inverídicas, ao passo que as normas de dever-ser, o seu conteúdo semântico não está ligado à idéia de pro-
estabelecidas pela autoridade jurídica – e que atribuem babilidade, ou seja, no sentido de que se A comete um
deveres e direitos aos sujeitos jurídicos – não são verí- crime, então provavelmente será preso. Em verdade, o
dicas ou inverídicas, mas válidas ou inválidas, tal como “deve ser” aqui empregado significa que se A comete
também os fatos da ordem do ser não são quer verídicos, um crime, então há uma determinação legal que impõe
quer inverídicos, mas apenas existem ou não existem, a aplicação da pena de prisão (ele deve ser preso), no
somente as afirmações sobre esses fatos podendo (sic) sentido de dever ser preso. A norma prevalece mesmo
ser verídicas ou inverídicas.” (KELSEN, 1999, p. 82). que esse dever não se materialize, como vimos.

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mesmo quando B não ocorra. Resumindo, “a tar a sua conduta segundo o que nela está
conseqüência do ilícito é imputada ao ilícito, preceituado. O que lhe dá esse atributo não
mas não é produzida pelo ilícito, como sua é o seu conteúdo, mas sobretudo a legitima-
causa” (Kelsen, 1999, p. 91). ção de quem a põe, ou seja, a norma vale
Uma outra distinção apontada por Kel- porque, independentemente do que vem a
sen (1999) é que, na relação de causalidade, estabelecer, é um ato produzido por alguém
os elos que unem os eventos se desdobram autorizado a fazê-lo (competência). Assim,
em uma cadeia infinita, ou seja, a conse- a norma posta deve ter o seu fundamento
qüência produzida por uma determinada de validade alicerçado em uma outra nor-
causa é, por sua vez, causa produtora de ma que lhe é, portanto, superior.
outro evento e assim sucessivamente. Da Por sua vez, a norma que confere valida-
mesma forma, se percorrermos esse trajeto de a outra pode ter a sua própria validade
em sentido inverso, a causa de um determi- questionada, reclamando um substrato de
nado evento é, por sua vez, conseqüência validação em outra norma superior a ela
provocada por uma causa mais remota e e assim sucessivamente. Se, como vimos,
assim sucessivamente. Com o princípio da o sistema normativo está fundado em um
imputação, tal não ocorre, já que a regra de princípio da imputação, que não se sujeita
“causação” é fruto da vontade humana, a uma cadeia infinita, certo é que devemos
pelo que a série de imputação é limitada, pressupor um limite, sob pena de termos
existe um ponto terminal6. que recorrer a uma noção metafísica para
sustentar o nosso sistema, o que, por óbvio,
5. A norma fundamental e o Direito é repudiado pelo mestre de Viena.
como um sistema dinâmico de normas Para conferir uma unidade ao ordena-
mento jurídico, Kelsen (1986) então recorre
Do mundo do ser não deriva o dever ser! a uma norma que já não é mais posta,
Explica-o Adrian Sgarbi (2006, p. 42): mas pressuposta. Ela é algo abstrato, cujo
“Uma vez que de um ser (mundo dos questionamento de validade não é mais
fatos, mundo regido pela causalidade possível e à qual ele denominou norma
e cuja manifestação se observa nas fundamental7.
leis físicas) não deriva um dever Para Kelsen, os sistemas normativos po-
(mundo das normas, mundo regido dem ser de dois tipos: estáticos ou dinâmi-
pelo princípio da imputação e que se cos. Os primeiros são estruturados com base
manifesta nos comandos jurídicos), em um conteúdo previamente determinado,
apenas de uma norma pode advir a que pode ser alcançado por mera dedução,
validade de outra norma”. pelo que todas as normas do ordenamento
Para Kelsen (1986), quando afirmo que
uma norma vale, isso significa que ela 7
Em sua obra póstuma “Teoria Geral das Nor-
vincula um indivíduo, que ele deve pau- mas”, Kelsen (1986, p. 329) introduz ligeira alteração
no conceito de norma fundamental antecipado em sua
6
“O pressuposto a que é imputada a conseqüên- Teoria Pura, afirmando que “a norma fundamental
cia numa lei moral ou jurídica, como, por exemplo, a de uma ordem jurídica ou moral positivas (...) não é
morte pela pátria, o ato generoso, o pecado, o crime, positiva, mas meramente pensada, e isto significa uma
a que são imputados, respectivamente, a veneração norma fictícia, não o sentido de um real ato de von-
da memória, o reconhecimento, a penitência, a pena, tade, mas sim de um ato meramente pensado (...) Por
que são imputadas, respectivamente, à morte pela conseguinte, é de se observar que a norma fundamen-
pátria, ao ato generoso, ao pecado e ao crime, não têm tal, no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se
necessariamente de ser também pressupostos a que não é hipótese – como eu mesmo, acidentalmente,
sejam de atribuir novas conseqüências, o número dos a qualifiquei –, e sim uma ficção que se distingue
elos de uma série imputativa não é, como o número de uma hipótese pelo fato que é acompanhada pela
dos elos de uma série causal, ilimitado, mas limitado.” consciência ou, então, deve ser acompanhada, porque
(KELSEN, 1999, p. 101). ela não corresponde à realidade.”

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já estariam contidas na norma pressuposta que não existe e, portanto, não sendo objeto
e, assim, a conduta que ela determina aos de um ato de vontade, é puro pensamento,
indivíduos é devida em razão do seu conte- o que lhe acarreta um problema não solu-
údo. Portanto, a norma fundamental desse cionado, que já se viu adiantado em sua
sistema não confere apenas um fundamento obra póstuma, a saber, a contradição. De
de validade, mas também um conteúdo vá- fato, se a norma fundamental tem por fim
lido (ou de validade). O mestre exemplifica conferir unidade ao ordenamento norma-
(KELSEN, 1999, p. 218): tivo, sendo mera abstração ela contradiz a
“Assim, por exemplo, as normas – realidade e a si mesma8.
não devemos mentir, não devemos Alinhado à sua finalidade de purificação
fraudar, devemos respeitar os com- da Ciência do Direito, não se poderia pres-
promissos tomados, não devemos supor em Kelsen uma norma posta por um
prestar falsos testemunhos – podem ato de vontade, cujo conteúdo fosse mera
ser deduzidas de uma norma que dedução de um preceito validante. Tal
prescreve a veracidade. Da norma postura conduziria a um questionamento
segundo a qual devemos amar o do sistema posto, em razão de critérios
nosso próximo podemos deduzir as metajurídicos. Portanto, o Direito seria um
normas: não devemos fazer mal ao sistema dinâmico, segundo o qual, a Consti-
próximo, não devemos, especialmen- tuição, como primeiro ato de vontade posto
te, causar-lhe a morte, não devemos com base na norma fundamental, deixa fora
prejudicar-lhe fisicamente, devemos de questão o seu conteúdo e o da ordem
ajudá-lo quando precise de ajuda”. jurídica erigida com base nela. Não importa
Os sistemas dinâmicos, por sua vez, “se esta ordem é justa ou injusta; e também
não valem por seu conteúdo deduzido da não importa a questão de saber se a ordem
norma fundamental. O que importa é um jurídica efetivamente garante uma relativa
quadro de determinação de competências, situação de paz dentro da comunidade por
as quais, quando exercidas, é que vão ela constituída. Na pressuposição da nor-
revelar os conteúdos normativos. Como ma fundamental não é afirmado qualquer
destacamos, a questão reside na outorga de valor transcendente ao Direito positivo”
validade à norma posta. Se ela pressupõe (KELSEN, 1999, p. 225).
um fundamento que lhe confira tal atributo,
então esse fundamento, sobretudo na con- 6. Do processo de determinação do Direito
cepção dinâmica do sistema normativo, só
pode estar em outra norma. Se essa outra Para Kelsen, a produção normativa,
norma, por sua vez, é também questionada, como vimos, é fruto de um ato de vontade,
devo buscar uma outra que lhe dê suporte a qual, não nega ele, está permeada de in-
de validade e assim sucessivamente, o terferências políticas, religiosas, ideologias,
que poderia levar-nos a um regressum ad valorações etc., mas que deve ser explicado
infinitum. Portanto, necessariamente de- 8
“a suposição de uma norma fundamental – como
vemos recorrer a uma norma fundamental porventura a norma fundamental de uma ordem
que dê sustentação ao sistema. “Como a moral religiosa: ‘Deve-se obedecer aos mandamentos
norma fundamental é o fundamento de de Deus, como determina historicamente a primeira
Constituição’ – não contradiz apenas a realidade,
validade de todas as normas pertencentes porque não existe tal norma como sentido de um
a uma mesma ordem jurídica, ela constitui real ato de vontade; ela também é contraditória em
a unidade na pluralidade destas normas” si mesma, porque descreve a conferição de poder de
uma suprema autoridade da Moral ou do Direito e
(KELSEN, 1999, p. 228). Que fique claro que
com isto parte de uma autoridade – com certeza ape-
ela somente alcançaria a sua finalidade se nas fictícia – que está mais acima dessa autoridade.”
concebida abstratamente, algo efetivamente (KELSEN, 1986, p. 329).

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pela Ciência do Direito sob um regime de- Fica claro, portanto, que não há uma
purado, visando-o somente pelo prisma do distinção de ordem qualitativa10 entre le-
seu objeto (a norma jurídica). Assim, o que gislação e execução, posto que todo ato de
confere validade ao ato não seria propria- legislação nos conduz à idéia de aplicação
mente o seu conteúdo, mas a autorização de uma norma superior. Confira (KELSEN,
para produzi-lo. Essa perspectiva faz do 2003, p. 124):
sistema jurídico um sistema dinâmico de “(...) costumam-se distinguir as
normas, como visto. funções estatais em legislação e exe-
Conseqüência desse modelo, é que o cução, que se opõem assim como a
princípio da causalidade não se presta a criação ou a produção do direito con-
explicar essa realidade sensível (mundo siderado como simples reprodução
do ser), ao contrário, é ela que deve ser (...) Mas essa concepção da relação
conduzida pela norma, segundo o princípio entre legislação e execução é inexata.
da imputação (dever ser), daí a caracte- Essas duas funções não se opõem de
rística primordial da norma como ato de maneira absoluta, como a criação à
vontade. aplicação do direito, mas de maneira
Quando o legislador põe a norma le- puramente relativa. Examinando-as
gal, independentemente do seu conteúdo melhor, vê-se que cada uma delas
(ao menos de certa forma9), o que a torna se apresenta, na verdade, ao mesmo
válida é o fato de ele estar autorizado pela tempo como um ato de criação e de
Constituição a estabelecê-la. Assim, a lei é aplicação do direito”.
concebida como aplicação da Constituição. E prossegue (KELSEN, 2003, p. 125):
Da mesma forma, o juiz e o administrador, “Como a Constituição regula, no es-
ao estabelecerem a sentença ou o ato admi- sencial, a elaboração das leis, a legis-
nistrativo (vistos também como normas), lação é, com respeito a ela, aplicação
estão aplicando a legislação. do direito. Com relação ao decreto e
a outros atos subordinados à lei, ela
9
Veja que o próprio Kelsen (1999), ao enfrentar é, ao contrário, criação do direito;
a questão das antinomias, assevera que “a norma
o decreto é, também, aplicação do
fundamental não empresta a todo e qualquer ato o
sentido objetivo de uma norma válida, mas apenas ao direito com respeito à lei e criação
ato que tem um sentido, a saber, o sentido subjetivo de do direito com respeito à sentença e
que os indivíduos se devem conduzir de determinada ao ato administrativo que o aplicam.
maneira” (KELSEN, 1999, p. 231). Assim, uma norma
Estes, por sua vez, são aplicação do
que simultaneamente proíbe o aborto em determinada
situação e o autoriza, sob o mesmo pressuposto, não direito, se olharmos para cima, e
faz sentido e não pode ser tida como válida somente criação do direito, se olharmos para
porque derivada da autoridade competente. Não baixo, isto é, no que concerne aos atos
bastasse esse aspecto, também é reconhecido que pelos quais são executados”.
as constituições, a par das normas de atribuição de
competência para a produção normativa, as quais A distinção, portanto, seria apenas de
Kelsen denomina de materialmente constitucionais, grau, posto que, à medida que descemos
encerram em seu bojo outras que circunscrevem o na pirâmide normativa, o grau de liberdade
domínio do conteúdo normativo a ser posto pelo do aplicador vai reduzindo.
legislador, sobretudo no que tange à imposição de
restrições materiais. Portanto, de certa forma, há
também a possibilidade de a autoridade competente 10
“Decerto que existe uma diferença entre estes
não editar um ato normativo válido, porque desviante dois casos, mas é uma diferença somente quantitativa,
daquele conteúdo prévio. Entretanto, isso não faz o não qualitativa, e consiste apenas em que a vinculação
sistema vincular-se a um princípio estático, posto do legislador sob o aspecto material é uma vinculação
que, qualquer que seja a norma posta, não deriva por do juiz, em que aquele é, relativamente, muito mais
dedução lógica da norma fundamental, como um seu livre na criação do Direito que este.” (KELSEN, 1999,
elemento analítico. p. 393).

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7. A interpretação jurídica em Kelsen A primeira é aquela levada a efeito pelo
órgão aplicador do Direito, ao passo que
Kelsen (1999) construiu um sistema es-
não-autêntica é a empreendida pelos que
tritamente lógico, razão pela qual, a despei-
apenas obedecem às normas jurídicas.
to de haver dedicado poucas linhas ao tema
Como visto, a produção normativa,
da interpretação no Direito, certo é que o fez
tomada como ato de aplicação do Direito,
ao final da sua obra clássica (Teoria Pura do
pressupõe um substrato de validade que,
Direito), exatamente porque pressupõe as
em certa medida, também determina o
noções que previamente exploramos.
conteúdo da norma a ser produzida. Uma
De fato, partindo-se da idéia de aplica-
sentença, por exemplo, ao estabelecer a
ção, recém abordada, os órgãos jurídicos,
norma aplicável a um caso determinado,
ao produzirem as normas do sistema, estão
está, de certa forma, produzindo o Direito
ligados a um processo de aplicação do Direi-
e também o aplicando, já que, em certa me-
to, pelo que a interpretação é algo que deve
dida, é um ato de execução da legislação.
necessariamente acompanhar esse processo
Em que pese a sua natureza executiva, não
de progressão de um escalão normativo
pode estar inteiramente determinada pela
superior a um inferior. É que, ao produzir
norma do escalão superior, porquanto,
a lei, o legislador está, em última análise,
como a norma jurídica é um ato de von-
aplicando a Constituição, o que exige a
tade, como tal estaria desnaturada, nessa
compreensão prévia do que é aplicado. Da
hipótese. Por isso mesmo, Kelsen (1999)
mesma forma, ao prolatar uma sentença, se a
introduziu a noção de moldura normativa,
tomamos como resultado de um processo de
compreendida como aquele âmbito de li-
aplicação das leis, impõe-se a compreensão
berdade em que atua o órgão aplicador do
prévia das leis que aplico. Tal característica
Direito12 (KELSEN, 1999, p. 388):
nos leva a uma compreensão da interpreta-
“A norma do escalão superior não
ção jurídica como um processo universal e
pode vincular em todas as direções
essencial à produção do Direito.
(sob todos os aspectos) o ato através
Por outro lado, os indivíduos, sujeitos
do qual é aplicada. Tem sempre de
às normas postas pelos órgãos aplicadores
ficar uma margem, ora maior ora me-
do Direito, estão obrigados ao dever ser
nor, de livre apreciação, de tal forma
nelas instituído e, ao se conduzirem na
que a norma do escalão superior tem
forma devida, diz-se que observam tais
sempre, em relação ao ato de produ-
normas (jamais a aplicam, porque não
ção normativa ou de execução que
criam Direito). De qualquer forma, também
a aplica, o caráter de um quadro ou
aqui, a determinação normativa precisa ser
moldura a preencher por este ato”.
apreendida pelo sujeito ao qual é destinada,
Portanto, vê-se que há um quadro de
pelo que também para ele, nesse processo
relativa indeterminação, a justificar aquele
de observância do Direito, assume relevo
a interpretação jurídica. como visto. Assim, quando um juiz interpreta a lei no
Estabelecida a distinção entre aplicação processo de que resulta a sentença, estamos diante de
do Direito e a sua observância, Kelsen (1999) interpretação autêntica.
12
Kelsen (1999) exemplifica: “Mesmo uma ordem
deduz daí a diferença entre o que denomi- o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele
nou interpretação autêntica e não-autêntica11. que a cumpre ou executa uma pluralidade de determi-
nações a fazer. Se o órgão A emite um comando para
11
Não se retorna aqui à clássica distinção entre que o órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de
interpretação autêntica e não-autêntica, em que é decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde
tomada a primeira somente como aquela levada a e como realizará a ordem de prisão, decisões essas
efeito pelo próprio órgão que produziu a norma. Para que dependem de circunstâncias externas que o órgão
Kelsen (1999), a interpretação é autêntica quando emissor do comando não previu e, em grande parte,
conduzida por um órgão aplicador do Direito, tal nem sequer podia prever” (KELSEN, 1999, p. 388).

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espaço de liberdade reservado ao aplica- combina-se com um ato de vontade
dor do Direito, a que Kelsen denominou em que o órgão aplicador do Direito
moldura normativa. É irrelevante que tal efetua uma escolha entre as possibi-
indeterminação tenha sido desejada ou lidades reveladas através daquela
não (tal como ocorre, v.g., em decorrência mesma interpretação cognoscitiva.
da plurisignificatividade semântica dos Com este ato, ou é produzida uma
termos empregados na norma), ou ainda norma de escalão inferior, ou é exe-
que ela se circunscreva ao fato condicio- cutado um ato de coerção estatuído
nante ou à conseqüência condicionada, o na norma jurídica”.
que importa é que ela existe e que todo ato Finalmente, no âmbito da Ciência do
que se deixe enquadrar naqueles limites Direito, como não se trata de uma posição
será válido. vinculante, criadora, a interpretação se li-
Ora, se, como vimos, o ato de criação mita ao aspecto gnosiológico, é puro ato de
normativa é um ato de aplicação do Direito; conhecimento, daí a crítica da Teoria Pura à
se esse pressupõe a compreensão do que é Jurisprudência dos Conceitos, que pretende
aplicado; e se o compreendido não pode exatamente, por um ato de conhecimento,
ser univocamente determinado, então o ato criar Direito novo.
de interpretação que o pressupõe consiste Portanto, a única possibilidade da
exatamente na determinação daqueles limi- interpretação empreendida pela “juris-
tes em que a aplicação seria válida, ou seja, prudência” é a de evidenciar as múltiplas
“o resultado de uma interpretação jurídica possibilidades significativas da norma e,
somente pode ser a fixação da moldura que em conseqüência, retornamos ao princípio
representa o Direito a interpretar e, conse- norteador da Teoria Pura, do qual conclu-
qüentemente, o conhecimento das várias ímos que a adoção de preferências nesse
possibilidades que dentro dessa moldura processo configuraria intervenção de juízos
existem” (KELSEN, 1999, p. 390). políticos sobre o ato de conhecimento, o
Por tudo isso, sempre fracassaria a ten- que, para a Ciência do Direito, seria desas-
tativa de buscar um método que pudesse troso, já que desnaturaria o seu objeto.
proporcionar um sentido unívoco para a
norma a aplicar. Qualquer das opções até 8. Alguns pontos críticos no modelo
hoje experimentadas falharam exatamente
interpretativo da Teoria Pura
porque não consideraram aquele quadro
de indeterminação próprio da norma va- O conjunto teórico incorporado pela
lidante (de escalão superior) e, por via de Teoria Pura do Direito traz inúmeras vanta-
conseqüência, porque esqueceram que o ato gens. Os cortes epistemológico e axiológico
de aplicação do Direito é resultado, para introduzidos por Kelsen (1999) conduzem
Kelsen, de um ato de conhecimento (inter- à depuração de ideologias e juízos de valor
pretação que conduz o aplicador ao quadro na Ciência do Direito, aproximando-a da
normativo possível), combinado com um idéia científica de rigor e precisão. Se de
ato de vontade (aplicação propriamente um lado esse aspecto de ciência rigorosa,
dita em que, nos limites da moldura estabe- de inspiração matemática, contamina o
lecida, é eleita uma possível norma). mestre, de outro, não o deixa conduzir-se
É o que sintetiza o mestre (KELSEN, por um método que tenha por objetivo
1999, p. 394): proporcionar a infalibilidade e a certeza
“(...) na aplicação do Direito por um na aplicação do Direito. Kelsen está mais
órgão jurídico, a interpretação cog- atraído por uma análise do modo jurídico
noscitiva (obtida por uma operação de operação do que pela prescrição de um
de conhecimento) do Direito a aplicar roteiro adequado, visando ao ideal de certe-

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za e univocidade (que lhe parece inatingível to de sua função formal de atribuição de
no Direito13). competência para a elaboração de outra,
De fato, ao estabelecer o ato de produ- pode, em certa medida, determinar o con-
ção do Direito como um ato de vontade, teúdo da norma validada, mas jamais essa
desautoriza qualquer pretensão de objeti- delimitação será absoluta, sempre perma-
vidade e certeza inquestionável. A pureza necendo um quadro ou moldura, dentro do
da Ciência Jurídica estaria exatamente em qual se movimentará o órgão de produção
reconhecer na norma o limite do seu objeto, jurídica. Assim, mesmo considerando o ato
dele expurgando quaisquer incursões na normativo um ato de aplicação do Direito,
seara do dever ser. sempre existirá um âmbito de aplicação
Quando a Ciência Jurídica, em vez de que permite afirmar a natureza voluntária
apenas descrever o seu objeto o valora, do ato produzido.
imiscui-se no ato de produção jurídica, pre- Nesse contexto, como vimos, a aplicação
tendendo afirmar o que deve ser o Direito. pressupõe o conhecimento da(s) norma(s)
Se assim ocorresse, o órgão de produção ju- aplicada(s), o que faz sobressair o papel
rídica deveria apenas conformar-se ao que subsidiário da interpretação jurídica, que
já estaria antecipadamente determinado a teria por objeto exatamente a determinação
ele, o que conduziria ao absurdo, por exem- daquela moldura normativa, a fim de pré-
plo, de imaginarmos que da Constituição estabelecer os limites de atuação válida do
somente haveria a possibilidade de uma órgão de aplicação normativa.
única solução legislativa, o que seria um Esse modo de ver as coisas evidencia
absurdo, sobretudo diante da já afirmada uma operação por etapas, que, em um
natureza do ato de aplicação do Direito primeiro momento, eu conheceria a re-
como um ato de vontade. Esse quadro alidade para depois aplicá-la (subtilitas
conduziria a uma antecipação fracassada, intelligendi, subtilitas explicandi e subtilitas
já que o objeto da Ciência do Direito é a applicandi). Esse fracionamento do processo
norma jurídica, competindo a ela descrever compreensivo vai de encontro à visão de
a ordem posta e não opinar sobre como compreensão como aplicação, de matiz
ela deveria ser (da ordem do ser não pode gadameriana e tão bem colocado por Lênio
derivar o dever ser). Streck (2006, p. 141):
Entretanto, esse construto bem elabora- “O texto não é, assim, apenas um
do parece desconsiderar alguns problemas enunciado lingüístico, que não se
de fundo, sobretudo no quadrante da in- sustenta em discursos de funda-
terpretação jurídica, como adiante vamos mentação; o texto não existe em uma
apontar. espécie de ‘textitude’ metafísica; o
texto é inseparável de seu sentido;
8.1. A interpretação como mecanismo textos dizem sempre respeito a algo
subsidiário da aplicação da faticidade; interpretar um texto é
Como visto, o modelo kelseniano pro- aplicá-lo; daí a impossibilidade de
põe que uma norma jurídica encontra o seu cindir interpretação de aplicação”.
fundamento de validade em outra norma É evidente o recurso à diferença ontológi-
de escalão superior. Essa norma, a despei- ca, base da hermenêutica filosófica, em que
se estabelece a distinção, sem cisão, entre
13
“com a sua teoria da norma fundamental, a ser e ente, ou seja, o ente somente existe no
Teoria Pura do Direito de forma alguma inaugura um seu ser e o ser, por sua vez, somente pode
novo método do conhecimento jurídico. Ela apenas
consciencializa aquilo que todos os juristas fazem
ser o ser de um ente! Essa tessitura filosó-
– quase sempre inconscientemente (...)” (KELSEN, fica foi manejada por Streck (2006) para
1999, p. 228). estabelecer a distinção entre norma e texto.

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Efetivamente, o texto não contém a norma, uma herança do pensamento metafísico,
como algo que, sendo-lhe inerente, pudesse que se manifesta na dualidade sujeito-
ser expurgado por um ato do intérprete (tal objeto, como se a norma validante pudesse
como pressupõem aqueles que vêem a inter- encerrar em si mesma um sentido próprio,
pretação como a busca do sentido e do al- apto a ser captado por um solipso sujeito,
cance da lei (cf. MAXIMILIANO, 1984, p. 1). ainda que esse sentido esteja cerrado em
Na visão de Streck (2006), o texto está para uma moldura de possibilidades, dentro
o ente, assim como a norma para o seu ser. da qual o órgão legiferante pudesse con-
Esse sentido textual revela a norma no seu duzir-se. Como se ele, legislador, devesse
acontecer, no seu desvelar histórico, e essa buscar, por exemplo, os possíveis sentidos
sua verdade não pode ser enclausurada. da Constituição unicamente a partir da
Nesse sentido é que se pode também vis- Constituição.
lumbrar a norma somente na sua aplicação. O ser humano é o único ente que, em
Ora, “na escrita, o sentido do falado está aí seu ser, tem um mundo, no sentido de que
por si mesmo, inteiramente livre de todos está atrelado a uma tradição que herda e
os momentos emocionais da expressão do que, ao mesmo tempo, vai reconstruindo.
anúncio” (GADAMER, 2002, p. 571). Não há É dessa conversa com a tradição que os
uma intenção a ser reconstruída, tampouco sentidos se desvelam, razão pela qual, não
um plexo de sentidos inicialmente dado. se pode pretender uma objetividade estéril,
Não há reconstrução do sentido do texto, nem mesmo para o cientista do Direito. Ele
mas construção contextual da norma pelo e também o órgão de aplicação do Direito, e
intérprete. Daí o acerto de Gadamer (2002), ainda aquele que apenas obedece às normas
ao afirmar que interpretação é applicatio. jurídicas, estão ungidos desse substrato
Esse argumento agrega dificuldades histórico que conduz ao que denominamos
à sustentação do modelo interpretativo pré-compreensão, a qual, longe de ser um
fracionado proposto por Kelsen (1999), já problema para a compreensão do Direito,
que, não havendo um sentido imanente, é uma condição de possibilidade dela. Essa
aquela moldura não pode ser apreendida, situação hermenêutica do sujeito estabelece
senão no momento mesmo da aplicação da um horizonte que projeta um raio de visão
norma, e aí já não nos parece haver espaço compreensiva.
para falar sequer em moldura. A busca frenética por uma objetividade
Não bastasse isso, parece que não foi científica descola o direito da realidade.
percebido o caráter histórico da verdade e Pretender ver o intérprete como uma mô-
o papel dos sujeitos na sua conformação. De nada, isolada do mundo e da história, capaz
fato, afirmar que há uma moldura prévia de apreender a realidade afastando-se dela
que limita o sentido possível da normati- é uma pretensão absurda. O homem é um
vidade, cabendo ao intérprete encontrar ser histórico e é pela e na história que trava
essas fronteiras, deixaria para trás (ao contato com os entes intramundanos.
menos) a questão da dinâmica do quadro.
Pelo menos deveríamos considerar que
9. Conclusão
aqueles limites também são cambiantes. É
que não há um sentido prévio inerente ao O arquétipo racional estabelecido por
texto normativo, que deva ser buscado, mas Kelsen, que superficialmente procuramos
um uso concretizado pelos sujeitos, que expor, não pode ser cindido, pelo que a sua
se inserem em um contexto comunicativo teoria da interpretação jurídica está confor-
interativo e dialético. mada aos substratos da sua Teoria Pura.
Parece que ainda se está arraigado a A objetividade que pretende empre-
uma noção de verdade inerente ao objeto, ender no momento interpretativo, como

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uma etapa preparatória ao momento de empreendimento que intente compre-
aplicação do Direito, bem como a postura ender objetivamente, em absoluto,
neutra do cientista do Direito, que não pode qualquer tipo de fenômeno, eis que
senão compreender o seu objeto de estudo, a compreensão, como dito, sujeita-se
o Direito, descrevendo-o sem valorá-lo, também à tradição a qual pertence
acabam por empobrecer demasiadamente aquele que se dá ao conhecer”.
o seu modelo. Assim, Kelsen, em seu ideal de pureza
Veja que não pretendemos criticar toda científica, busca uma objetividade na Ci-
a obra de Kelsen, como desde o início ência do Direito, somente alcançada pela
alertamos, mas apenas questionar os pres- distinção entre as noções de ser e dever
supostos do seu modelo interpretativo, ser. Ao cientista não cabe externar juízos do
muito embora, dada a íntima conexão que segundo tipo, cabendo apenas dizer o que
acabamos de mencionar, nossas críticas o Direito é. Em última análise, reconhece
acabam-se refletindo também em outros que a ele cabe tão-somente compreender o
postulados da sua Teoria Pura. Direito de forma ascética, contemplativa,
Efetivamente, a neutralidade como ideal sem introjetar-se em seu objeto de estudo.
da Ciência do Direito não pode sustentar- A questão que fica é: como fazer isso? Como
se, em face da noção de situação histórica poderia o intérprete anular as suas pré-
do intérprete. A compreensão não pode compreensões que a tradição lhe deixou?
dar-se fora da situação em que ele se Como poderia ele saltar da história para
encontra, porque “toda forma de compre- ver a história?
ensão é historicamente situada, de sorte Da mesma forma, quando o aplicador
que toda possibilidade de realização se dá do Direito estabelece uma nova norma, ele
apenas no contexto do horizonte daquele o faz autorizado e balizado por outra, de
que se põe a conhecer” (PEREIRA, 2007, escalão superior (o legislador, por exemplo,
p. 27). Corolário dessa premissa é que o produz a lei, autorizado e, de certa forma,
intérprete só compreende partindo de pré- conformado pela Constituição), concreti-
compreensões advindas daquele horizonte zando um ato de vontade manifestado na
em que se situa. sua opção de eleição de uma entre as várias
É exatamente por isso que a pretendida possibilidades que a moldura normativa
neutralidade do intérprete (seja do cientista lhe autoriza. Assim, o ato de aplicação do
do Direito, seja daquele que o aplica, seja Direito seria um ato de vontade, precedido
ainda do que meramente compreende a de um ato de puro conhecimento, consis-
norma para observá-la) é fracassada. tente na identificação daquele rol de possi-
Como dissemos, constatar esse quadro bilidades já antecipadamente presentes na
de pré-compreensão não nos revela um norma autorizadora.
obstáculo, mas antes uma condição de Novamente aqui, temos uma submis-
possibilidade do conhecimento (PEREIRA, são a um juízo de mera constatação de
2007, p. 28): uma realidade que me é dada: a moldura
“Assim sendo, o homem, ao interpre- normativa. Caberia ao aplicador do Direito
tar qualquer fenômeno, já possui an- aplicá-lo por um ato de vontade, permeado
tecipadamente uma pré-compreensão de ingerências políticas, morais etc., por-
difusa do mesmo, um pré-conceito, tanto um ato de liberdade que, todavia, é
uma antecipação prévia do seu senti- precedido de um ato estéril, de mero conhe-
do, influenciada pela tradição em que cimento, livre de todas essas interferências.
se insere (suas experiências, seu modo Novamente permanece a questão: como
de vida, sua situação hermenêutica fazê-lo? Esse salto para fora da história é
etc.). Por esse motivo, fracassará todo uma premissa assumida: “Como se fosse

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possível vendar os olhos para aquilo que KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre:
forma a nossa herança cultural, como se nos S. Fabris, 1986.
fosse dado pular a nossa própria sombra” ______. Teoria pura do direito. 6 ed. São Paulo: M.
(PEREIRA, 2007, p. 33). Fontes, 1999.
Se fixamos a idéia de que não existe um ______. Jurisdição constitucional. São Paulo: M. Fontes,
ser entificado, um sentido estático aprisiona- 2003.
do no tempo pela lei, apto a ser descoberto MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do
pelo intérprete, logo percebemos a dificul- direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
dade de adoção das premissas que orientam
PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica filosófica e
a teoria da interpretação em Kelsen. constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
SGARBI, Adrian. Clássicos da teoria do direito. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006.
Referências
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição,
hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro:
COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3 ed. São
Lumen Juris, 2006.
Paulo: M. Limonad, 2000.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços
fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 4 ed.
Petrópolis: Vozes, 2002.

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