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FRANÇOIS MAURIAC

DOR E ALEGRIA
-

DO CRISTAO
*

Tradução de
RosE MARIE G. MuRARo

FLAMBOYANT
Título do original :

Souffrances et Bonbeur du Chrétien

Copyright by
Edit!ons Grasset

Capa de JACQUES DoucHEZ

1962

Todos os direitos reservados pela


LIVRARIA EDITõRA FLAMBOYANT

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PREFÁCIO

LEGRJ.A DO CRJ.STÃO, responde à amarga


A perguntafeita. a 1.Q de outubro de 1928, na
Nouvelle Re,vue Française, sob o título: Dor do
cristão. É a leitura dêste último que esclarece o
que mais tarde o autor escreveu sôbre a alegria.
:Ele resigna-se, pois, a não separar os dois manus­
critos, apesar de o primeiro não corresponder mais
àquilo que hoje reputa como verdadeiro. Se, por
ocasião de sua primeira publicação em revista, al­
guns leitores pareceram atingidos até o escândalo,
e se essas páginas trouxeram a outros um raio de
luz enfraquecido, uma luminosidade dúbia, mn­
guém foi mais atingido que o próprio autor. Ha­
bitualmente êste desinteressa-se de sua obra, uma
vez acabada e entregue ao público. Mas hoje não
é mais por desinterêsse que evita reler Dor do

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DOR E ALEGRIA DO CRJSTÃO

cristão; é, ao contrarw, porque cada uma de suas


linhas o queima.
O mais estranho é que não cedeu, ao escre­
vê las, a um impulso interior; elas foram compos­
-

tas à margem dos Sermões de Bossuet e do Tra­


tado da concupiscência,. a pedido do sr. André
Billy. O autor havia aceito essa encomenda e a
havia empreendido com consciência, mas sem pra­
zer, como um dêsses deveres impostos pelos edi­
tôres aos dóceis escritores. Ora, talvez pela pri­
meira vez, a obra concluída, bem longe de se desa­
pegar dêle, ela continuou em suspenso: questão so­
lene levantada no meio de sua vida. Em tôrno de
uma obra de circunstância, de um trabalho exe­
cutado por encomenda, todo um destino se crista­
lizava. Alguém afastava as meias blasfêmias dessas
páginas, as pobres ironias, e exigia dêsse literato
que formulasse a objeção derradeira, a mais vergo­
nhosa: não aquela que inspira a exigência da ra­
zão, mas uma reivindicação mu ito baixa.
Alegria do cristão exprime o pasmo de uma
alma pacificada em um só dia, e fo i porque o

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PREFACIO

autor não quis fazer nenhuma correção: apenas


acrescentou alguns parágrafos que não haviam
achado lugar na revista. Não se pode hoje des­
cobrir nessas linhas alguma complacência e um
pouco de ingenuidade? por exemplo, esta ilusão,
em nenhuma parte expressa, mas que transparece
em ·cada palavra, de que os outros vão ficar aba­
lados, que nenhuma muralha de Jericó resistirá a
essa nova trombeta?
O que não é ilusão, e que o autor não podia
abandonar ainda quando escreveu alegria do cris­
tão, é a duração, a persistência de certo estado de
alma, essa impressão de uma novidade perpétua
e de uma imóvel renovação. Temias a rotina, a
usura dos atos semelhantes. Ora, a graça venceu
o hábito, o hábito permanece sem poder, e não
corrói mais a juventude inalterável da graça.
O milagre dêste magro riacho entre as pedras, _

mas que transborda em certas horas, não é o fato


de saciar a primeira sêde de uma criatura consu­
mida; é que depois de muito tempo, essa criatura
julgue que o que lhe custou outrora tantas lágri-

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DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

mas, não vale uma única gôta de água "jorrando


para a vida eterna".

"É minha sêde que amo, dizias, temo como a


morte, que ela um dia seja saciada". A perseve­
rança nos ensina que o fato de acalmar a sêde
não a destrói: nada que se pareça menos com a
saciedade. A necessidade e a exigência, permane­
cem sempre, mas sempre satisfeitas. E talvez o
tempo da sêca, que entristece tôda vida espiritual,
não seja apenas o fruto merecido de nossas recusas
e de nossas quedas; mas também uma precaução
amorosa da graça para que nossa miserável natu­
reza se beneficie com essas intermitências - inca­
paz ainda de suportar, mesmo de muito longe, o
azul imutável e. a luz sem sombras.
É um tesouro que o homem, já na curva da
idade, apena apaixonadamente contra seu coração,
esta certeza, êste conhecimento: o enobrecimento é
possível (é uma fórmula de Nietzsche). E a sua
descoberta o maravilha tanto mais quanto mais
pode avaliar sua própria miséria: o enobrecimen­
to de uma natureza sem nobreza é possível. Não

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PREFACIO

existem, para o Filho do Homem, casos desespera­


dos: nada há de muito baixo quando Deus se
abaixa_
Quanto aos sêres naturalmente nobres, sua
própria nobreza os obriga a conhecer o ponto pre­
ciso em que começam a ser vis, o lugar em que
tropeçam, o lugar desconhecido do mundo, mas
visíveis apenas para êles, em que sua sabedoria é
humilhada antes de não saberem que coisa imunda
que rí e zomba dêles. Resta sempre uma derradeira
vitória, a única que vale, e de que a mais nobre
criatura é incapaz, se não consente em ser desfeita,
se não se submete, não em um espírito de temor,
mas com um amor trêmulo ...
Um amor trêmulo. . . Eis o que deve tran­
qüilizar o cristão acusado de procurar a felicidade,
a segurança, a paz de acôrdo com o que Nietzsche
adolescente, escrevia à sua irmã: "Se quiseres o
repouso da alma e a felicidade, crê; se quiseres ser
um discípulo da verdade, procura." Mas, se acon­
tecer que o que procura, encontre? Deverá fingir
não ter achado? E se aquilo que tiver encontrado

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DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

fôr a cruz., e se o amor lhe tiver dado a fôrça de


desposá-la, envergonhar-se-á da paz, da imobilidade,
do repouso sangrento a que ela obriga àqueles que
se estendem sôbre ela?
Sem dúvida, não é senão demasiado verdade
que grande número merece a censura da Imitação:
"Muitos desejam alegrar-se com Jesus, mas quase
ninguém quer tomar parte em seus sofrimentos.
Muitos o seguem até à fração no pão, mas poucos
até beber com êle o cálice de sua paixão". Sim,
muitos merecem essa censura em vez da crítica in­
versa, que lhes é freqüentemente endereçada nos
dias de hoje: pois as mesmas pessoas escandaliza­
das por procurarmos na fé nosso confôrto, denun­
ciam em nós uma tendência mórbida para a dor e
o gôsto sádico da auto-punição. Ora, como escre­
ve admiràvelmente a primeira Abadêssa de Soles­
mes: "Nada há de absolutamente bom senão Deus
e sua vontade. O sofrimento só tem uma bondade
relativa e emprestada: é apenas um meio e não um
fim. No céu, êle não existirá mais. E neste mundo,
embora seja um processo para fazer brotar o amor,

12
PREFACIO

não lhe é indispensável. :Ele não faz o mérito, em­


bora freqüentemente seja sua ocasião, e, se o amor
não se lhe acrescenta, habita as sombrias moradas
em que se move o espírito do mal".
Pois que não há nada de absolutamente bom
senão Deus e sua vontade, o fiel, desejoso ao mesmo
tempo, de não procurar apenas o prazer, e de não
ceder ao atrativo doentio do sofrimento, vai antes
ao mais simples: entrega-se Aquele que mede nos­
sa capacidade exata. Espantosa economia da Gra­
ça ! Aquele que desejaria dar a vida, é pedido um
pequeno e humilde sacrifício quotidiano, e êle
vira a cabeça. Outro, que despreza a pusilanimi­
dade de seu coração, espanta-se por ser agarrado
por poderosas garras e levado para alturas que
nem mesmo um Nietzsche poderia imaginar: é
o vazio, é a noite, é o nada em que, pelo método
mais crucificante, João da Cruz elimina de seu ser
tudo aquilo que não é amor. Mesmo os fiéis mais
ordinários, logo reconhecem o fardo que lhes é re­
servado, a cruz à sua medida; cada wn dêles arrasta,

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DO R E ALEGRIA DO CRISTÃO

desde que está no mundo, um anjo familiar, um


anjo de Satã que o esbofeteia.
Depois disso, envergonhar-nos-íamos-da paz que
nos é concedida? Desde a idade madura, nossa eter­
nidade começa: e a velhice, se perseverarmos, será
a eternidade quase possuída. Em fim, dissipada a
tenebrosa tempestade da adolescência e da juven­
tude, os que crêem na vida eterna, não se espantam
de que, antes de haverem atingido a última duna
que os separa do oceano, o silêncio já se assemelha
a um outro silêncio. O espelho desliza, e a hora
está próxima, em que aquilo que nêle se refletia
como um enigma, vai surgir em sua inimaginável
perfeição.

Março de 1931

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DOR DO CRISTÃO
DOR DO CRISTÃO

Q CRISTIANISMO não faz concessões à carne;


mas suprime-a. "Deus exige tudo" escreve Bos·
suet. E Pascal: "Senhor, eu vos dou tudo".
É verdade que o casamento é um sacramento.
Mas, o casamento cristão, condenando a mulher à
fecundidade perpétua, condena o homem à perpé­
tua castidade. "É a mais baixa das condições do cris­
tianismo, escreve Pascal, do casamento, vil e preju­
dicial, segundo Deus". E Bossuet é ainda mais ter­
rível "Maculados desde o nascimento e concebidos
na iniquidade, escreve a Mme Cornuau, concebidos
entre os ardores de uma concupiscência brutal, na
revolta dos sentidos e na extinção da razão, deve­
mos combater até à morte o mal que contraímos ao
nascer".

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DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

É a grande atração do Islam, nessas cidades da


Tunísia, para onde fui no tempo do ramadan. Uma
religião praticável, uma religião a que todo um po­
vo se dobra sem sacrifícios desmesurados, que não
exige o impossível, não assassina a natureza, não
afasta o pobre gado dos seus bebedouros, nem do
estrume que aquece. Mais nada dessa exigência
cristã que, à primeira vista nos parece insensata:
morrer para renascer. É verdade: mas também um
povo mordido, corroído por uma lepra, uma raça
destruída por seus instintos inferiores, como praias
sem dique.
O que não impede que essa exigência ultrapas­
se nossas fôrças: fechar os olhos àquilo que Bossuet
denomina "� frágil e enganosa beleza dos corpos".
Mas êle mesmo denuncia, em um grito sublime, a
inimaginável exigência de Deus: "õ Deus, quem
ousaria falar dessa profunda e vergonhosa chaga da
natureza, dessa concupiscência que liga a alma ao
corpo, por laços tão ternos e tão violentos?" Eis
o drama: uma concupiscência que liga a alma ao
corpo. Poder-se-ia vencer o desejo, renunciar a

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DOR DO CRJSTÃ0

um corpo que não fôsse senão um corpo. Mas é


a alma que ama, é a alma que é amada. Como não
mais amar aquilo que se ama? Não possuímos
uma alma para desejar, outra para adorar e ainda
outra para amar. :É o mesmo ser em nós que adora
e que deseja possuir e estreitar o que ama. Não se
pode servir a dois senhores, nem amar a dois sêres.
É preciso olhar de frente a exigência cristã. As
multidões que enchem as igrejas nos domingos não
sabem o que estão fazendo; pois aderem a uma lei
que desconhecem.
O De��_dq�__s_!ist�-n�o q��.!_ ��-� amado; quer
ser_ o único amado. Não suporta que afastemos de
si um único suspiro; qualquer outro amor é uma
idolatria. E essa exigência é soberanamente racioft
nal. Impossível amar a criatura sem deificá-la. Ela
se torna o único necessário, ocupa o lugar de Deus:
o céu de sua presença, o inferno de sua ausência.

Existem, dir-se-á, afeifÕes legítimas, família,


os amigos. Mas essas afeições não são o amor, e
desde que se tornam amor, tornam-se mais crimino­
sas que as outras: incesto, sodomia.

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DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

Estamos errados em considerar os místicos como


cristãos de exceção; pois são os únicos cristãos ver­
dadeiros. Amar, é aspirar à posse. �les se exte­
nuam na busca de Deus, como os carnais, à procura
daquilo que amam. Trata-se de estreitar a Deus,
de possuí-lo. E é por isso que nada se assemelha
mais à linguagem da paixão, do que as santas efu­
sões dos místicos que escandalizam os tíbios.
Imensa felicidade, a dêsses amantes de Deus.
�les se aniquilam naquilo que amam. Bossuet tem
razão em apiedar-se dos cúpidos, que enlangues­
cem pelas criaturas : "a criatura não é nada, diz êle,
e nem mesmo pode receber a perda de uma outra
criatura nela". Na verdade, ela o pode, pelo es­
paço de alguns segundos. Mas é apenas um mo­
mento. No breve intervalo da união carnal acre­
ditamos ser um, e eis-nos de nôvo dois: êsse corpo,
êsse outro corpo, êsse muro, êsse peito fechado,
mundo fechado de carne e de sangue, em tôrno do
qual nós giranios, miserável satélite.
O místico, pode perder-se em seu Deus, - rio
no Oceano.

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DOR DO CRISTÃO

Mas êsse Deus incarnou-se, e podemos afirmar


sem blasfêmia que no amor místico tudo existe,
tudo, purificado, divinizado, e mesmo êsse apêgo
à "frágil e enganosa beleza dos corpos". O Deus
dos cristãos incarnou-se, fêz-se carne e habitou en­
tre nós. Quando Bossuet medita sôbre os pés do
Mestre beijados por Maria Madalena, ousou escre­
ver esta frase espantosa: "os perfumes, as lágrimas,
os cabelos, tudo vai junto .. . "
Nada de mais legítimo que a indignação de
um Bossuet e de um Pascal ante esta loucura que
nos leva a sacrificar o eterno ao perecível. Loucura
tão espantosa que nunca saberíamos examinar, de
muito perto, as razões (se ao menos não fôr absurdo
pensar que uma loucura possa ter razões) .
..

Para curar-nos dessa aberração, alguns apolo­


gistas recorreram a um método cujos frutos, aliás,
são bem poucos : sublinham aplicadamente todo o
efêmero dos apegos humanos. Pôr o infinito no
finito, unir-se a um futuro cadáver, que mau ne­
gócio ! repetem-nos êles.

21
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

A fraqueza dêsse método vem de que se diri­


gem à nossa razão, num assunto em que a razão
pouco tem a fazer. Apelam para o nosso bom sen­
so num plano em que o ser humano mais equilibra­
do está sempre em desequilíbrio.

�ão hªy_er<)a�eir� �.<?�-q_�e não seja uma lou­


.
�: "uma loucura manifesta, e de tôdas as loucu­
ras a mais louca", exclama Bossuet. Isto é tão ver­
dade, que torna vãs as demonstrações; pois um lou­
co, um viciado não calcula, não compara, não pro­
cura seu interêsse, mas obedece a um terrível dever:
seu vício, sua aberração, seu amor.

Entre tôdas as razões do amor humano, de que


Pascal nos diz que a razão não as conhece, existe
uma, justamente, que as mais eloqüentes palavras dos
pregadores sôbre o nada final da paixão, correm o
risco de reforçar, em vez de destruir. Pecadores
que somos, agarramo-nos ao nosso ser tanto mais
fortemente quanto o sabemos perecível. Quanto
mais nos repetem que a juventude só dura um dia,
que sua beleza fenecerá, que o corpo apodrecerá,

22
DOR DO CRJSTÃO

mais desejamos estreitá-lo, mais aspiramos a pôr eter­


nidade nesses abraços de uma hora.
Tôdas as considerações de Bossuet só conse­
guem fazer nosso culpável amor penetrar-se de um

desespêro que decuplica sua fúria.


Um amante, se tiver espírito matefísico,. é sem­
pre um amante desesperado, que se agarra tanto
mais à carne que ama, quanto mais se sente arrasta­
do com ela para o abismo inelutável.
Esta fuga ininterrupta do ser amado;· êsse fur­
tivo escorregar de todos os segundos, impede-nos
de nos desapegarmos d�Je.
Antes de amar, não davas importância à mor­
te, mas, desde que ames, nunca mais perdes o sen­
timento dessa condenação imposta à criatura que
queres mais que tua vida, mais que tua alma.
O que não podes olhar de frente, não é a tua
própria morte, mas a da criatura amada.
Quando, em seu famoso sermão sôbre a morte,
Bossuet permitiu-se "abrir um túmulo diante da
Côrte", talvez não tenha sido sua própria carne
que os jovens amantes que povoavam o Louvre, re-

23
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

conheceram, mas o corpo que preferiam a todo o


mundo. Com que furor o orador se empenha em
descrever o aniquilamento dessa forma adorada!
mas também, com que fúria acrescida alguns deve­
ram precipitar-se ao sair da capela, sôbre uma prêsa
destinada a perecer, e por tão pouco tempo ainda,
tão bela, viva e cheia de sangue!
Em outro ponto ainda, o pecador resiste a seus
objurgadores cristãos. A maioria dos escritores e
oradores sacros não distinguem nitidamente, pensa
êle, o amor da devassidão.
Quando falam de vergonha, de opróbrio, de
desgôsto, um amante exaltado, erguido acima de si
mesmo por sua paixão, curado, acredita êle, de
todo egoísm.�, capaz, de repente, de todos os sa­
crifícios, de tôdas as renúncias, não reconhece nada
do que experimenta nessas descrições e pinturas
medonhas.
:Este fervor destinado ao Criador e desviado
dêle em benefício da criatura, conserva um resto de
beleza que nenhuma mancha apaga, e que resiste aos
erros mais tristes.

24
DOR DO CRISTÃO

Entre tôdas as "verdades que enlouqueceram"


de que Chesterton nos diz que hoje correm o mundo,
deve-se colocar no primeiro lugar essa idéia român­
tica do amor sempre santo, sempre inocente, por­
que é o amor. •

Por mais que se diga, um ser que ama, nunca


consegue julgar-se criminoso. Evidência interior
mais forte que qualquer raciocínio.
E eis outra tentação - de tôdas a mais sutil
- a que o pecador cede por uma inclinação natu­
ral: crê que o sofrimento é redentor. Ora, não é
o amor o mais feliz, uma fonte inesgotável de do­
res ? Paixão significa sofrimento. Um cristão tem
o sentimento se expiar seu amor em cada segundo.
E encontra à sua disposição um imenso capital de
dores incessantemente acrescidas, e que não se es­
gota nunca.
Um ser que é uma chaga só, teme menos as
represálias de Deus. Ja sofreu demais. Onde po­
de ser ferido ? Já não tem sôbre o seu triste corpo,
sôbre o seu coração torturado, um único lugar que
não esteja sangrando.

25
DÔR E ALEGRIA DO CRJSTÃO

Temeridade, sem dúvida, e que um dia talvez


Deus castique, pois, segundo a Igreja, não é a dor
em si que resgata, mas a dor aceita, consentida, so­
frida em união com Cristo, em espírito de penitên­
cia e arrependimento.
Se amamos nosso pecado, de nada nos serve
sermos crucificados por êle, e tôdas as nossas lágri­
mas são vãs. Essa é a lei.
No entanto, mais fone que essa lei, sobrevive
nos cristãos prêsas de sua paixão, a perigosa ilusão
de serem resgatados por sua dor, por seu amor.
O cristão culpado, muitas vêzes cede a uma ou­
tra miragem. Empenhado muito a fundo na paixão,
perdido em plena floresta, convence-se de que do­
ravante não p ode mais voltar atrás. Mais vale con­
tinuar, segreda-lhe o demônio, mesmo no interêsse
de sua alma.
No fim da paixão, através da fumaça e do fo­
go, os pés queimados pela cinza, morrendo de sêde,
talvez acabe por reencontrar Deus. Terá então fe­
chado o círculo, voltado ao ponto de partida, à

26
..

DOR DO CRISTÃO

infância piedosa, às suas orações, seus escrúpulos,


sua pureza.
Deus é o caçador que segue as pistas e esprei­
ta sua prêsa atrás das moitas. Êle sabe por onde
passam nossos tristes corpos. Êle observa os ras­
tros humanos cujos instintos guiam nas mesmas ho­
ras, pelos mesmos atalhos, para os mesmos pra­
zeres.
Deus é paciente e sabe onde colocar a armadi­
lha que aprisionará o animal. "Já corremos por
todos os atalhos em que podíeis vos perder - diz
Bossuet no sermão sôbre o ardor da penitência -
já batemos tôdas as estradas pelas quais se pode
entrar em uma alma: e a esperança e o temor, e a
doçura e a fôrça, e o inferno e o paraíso, e a morte
certa e a vida duvidosa, tudo foi empregado".
Divino caçador, mas cujos batedores nem sem­
pre são hábeis. Os que têm missão trazer-lhe a ca­
ça, muitas vêzes a enfurecem.
Todos êsses cães nos latem nas pernas, quando,
já estamos no caminho de volta.

27
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

lHes tomaram partido, já apostaram, mas terão


jogado a cartada certa? Essa surda inquietação os
tornas impiedosos para com tôdas as Fedras •O> que
escolheram transir e arde de desejo. Tanto mais im­
piedosos quanto não tiveram o embaraço da escolha,
quanto não fugiram à tentação, e quanto a tentação
lhes tenha fugido.
Os santos são de outra raça. O Cura d'Ars,
moribundo, dizia que, mesmo que não houvesse
eternidade estava certo de não se ter enganado, por
que tinha vivido uma vida de amor. ô o ardente
" ,

amoroso" exclama Bossuet a propósito de Francis­


co de Paula.
O amor de Deus, e mats precisamente, o amor
de Deus feito Homem, dêsse Deus que se come e
que se bebe, é uma realidade, continuaria sendo
uma realidade, mesmo se o sobrenatural não exis­
tisse. "Só existem os cristãos, diz Bossuet, que se
podem gabar de que seu amor é um Deus".

(1) Referente a Fedra, do grego Phaidra, espôsa de Teseu.


(N. do Tr.)

28
DOR DO CRISTÃO

Por não se encontrar nos místicos, nem nos


santos êsse sombrio furor que os carnais suscitam
em certos devotos; é que um santo experimenta certa­
mente uma piedade, um terror ante o perigo que cor­
rem essas pobres almas, e também um horror que nas­
ce do conhecimento exato do que existe de horrível
no pecado, visto sub specie a.eterni. Um santo
tem tais sentimentos, mas todos impregnados de
ternura. O ardente desejo de salvar essas ovelhas
perdidas incita-os, freqüentemente, às mais impru­
dentes atitudes; mas êles nunca ficam obcecados e
não têm êsse ar de saciar um rancor, de ceder ao
ciúme.
De que teriam ciúmes os verdadeiros santos?
Não possuem o amor por acaso? São Bernardo
Chama o Espírito Santo de "o beijo da bôca de Deus,
um rio de alegria, um rio de puro vinho . .. "

Bossuet também conhece êsse puro amor, e


além de tudo amou cacn:tlmente em sua juventude,
e chegou (antes do sub-diaconato) até a assinar
um contrato de casamento. Enfim, não pertence
à espécie sem entranhas. De uma austeridade m-

29
DO R E ALEGRIA DO CRISTÃO

flexível, e quanto aos costumes, mais perto de Port -


Royal do que dos Jesuítas, a piedade que lhe ins­
piram os carnais transparece em todos os seus ser­
mões. Certamente, êsse Bossuet que nos diz que, "de
tôdas as paixões, a mais encantadora é a esperança",
e que no panegírico sôbre são Bernardo encontra
tais acentos para nos pintar um adolescente, devia
recordar-se de sua juventude.
Terá êle tudo esquecido dêsse jovem furor ?
Como tem mêdo de amar ainda ! Como teme fa­
zer-se amar ! " . ..Mas, êsse coração já ama . . . Não
acrescentes nenhuma centelha. Não, não farei na­
da para isso. . . Ah, é demais fazer um gesto, é
muito deixar escapar um suspiro, é muito lançar
um olhar, é demais, até, mostrar-se".
Bossuet se lembra do amor humano mesmo
quando saboreia o amor de Deus. Teme ainda os
dardos que nos vêm da criatura. E é por isso que
pensa nas almas em perigo com uma ternura frater­
nal. Nós o imaginamos no púlpito, percorrendo
com os olhos sua imensa assembléia, como para des­
cobrir as almas decaídas e trazê-las de volta à fôrça:

30
DOR DO CRISTÃO

"Não haverá aquí alguma alma enternecida que co­


mece a se desgostar de si mesma e a cansar-se de seus
excessos e de sua devassidão? . . ú alma, quem
.

quer que sejas, eu te procuro e não te vejo . . .


"

Bossuc.:t não é dêsses fariseus que se indignam


porque uma alma pecadora não renuncia de uma
só vez a tudo aquilo que ama. Êle estudou as
razões profundas dêsses adiamentos das almas que
sempre deixam para mais tarde a sua entrega para
Deus, a fim de poder superá-las : "Ela está pertur­
bada e inquieta, diz êle admiràvelmente, de Maria
Madalena; sua vida passada a entristece, mas hesita
em mudar tão logo; sua vigorosa juventude pe­
de-lhe ainda alguns anos, suas antigas ligações re­
tornam e parecem lamentar em segrêdo uma rup­
tura tão pronta; enfim, tôda a natureza conclui por
adiar e em levar ainda mais um pouco de tempo
para resolver-se".
Bossuet, para a salvação das almas, talvez não
revele tôda a verdade. Quando exalta o amor de
Deus e rebaixa o apêgo às criaturas, omite a obser­
vação de que as delídas espirituais são tão atraves-

31
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

sadas por sofrimentos, como as carnais - e pela


mesma espécie de sofrimentos. O místico conhece
a aridez espiritual, a ausência do espôso, o senti­
mento de abandono.
Enquanto nas ternuras humanas ainda pode­
mos acusar a criatura que nos engana ou que nos
abandona, a alma entregue a Deus sabe de ante­
mão que seu amante nunca está errado, que nunca
pode estar errado, que pode tomar-nos e abando­
nar-nos à sua vontade, e que devemos bendizê-lo,
tanto quando sua presença nos sacia, como quando
nos abandona nas trevas.
Nessas provações que Deus lhe inflige, a alma
fiel descobre os ardis de um amor infinito. Nada,
talvez, tenha ·mais enriquecido nossa idéia do amor
divino, como êsse paciente esfôrço, sustentado há
tantos séculos por multidões de almas santas, a fim
de compreender e amar a ausência do espôso, sua
fuga, seu silêncio inexorável. Assim, Pascal empres­
ta a Cristo, a frase famosa: "Não me procurarias se
já não me tivesses achado". E o autor da Imitação:

32
DOR DO CRISTÃO

"Quando acreditares estar longe de mim, é então que


talvez eu esteja mais peno de ti".
O que não impede, imagina o pecador, que
muitas almas não resistam à prova da ausência, do
silêncio. Muitos dos que beberam da água prome­
tida à Samaritana, ainda tiveram sêde.
Aqui ainda o cristão triunfa, sabendo que Deus
não pode nem se enganar, nem nos enganar, e que
o homem que não persevera até o fim e que, tendo
bebido e comido o sangue e a carne de Cristo,
volta a provar o .alimento dos porcos, certamente
terá desprezado grandes graças e cometido o pe­
cado contra o Espírito.
Resta a angústia de tantos excelentes padres e
pessoas consagradas a Deus; o terror que supe­
ram, mas que muitas vêzes os estrangula, de ter
renunciado em vão ao uso delicioso e criminoso
do mundo de que fala Pascal.
Bossuet não menciona essa angústia à alma que
quer capturar; Angústia que se encontra, também,
no amor humano. Pois, como uma criatura que

33
DOR E ALEGRIA DO CRJSTÃO

nos faz sofrer, nos parece, nas horas de lucidez,


despida de existência!

Talvez êsses pesares, êsses ·olhares lançados para


trás pelas pessoas que seguem o caminho da pie­
dade, não tenham outra razão além do apêgo à
carne e ao mundo que não destruíram, que não
fizeram senão transpor para o plano espiritual.

Bossuet afirma que nada há de mais diferente


do que viver segundo a natureza e viver segundo
a graça: sim, a diferença é infinita. Muitos cris­
tãos, mesmo entregues à vida d� piedade, que de­
sejam e que se crêem purificados, não são senão
cúpidos, com a obcessão de gozar.

Deus talvez seja a recompensa daqueles que


renunciam a' tôda alegria sensível, mesmo aquelas
de que Êle é o pretexto.

Deus quer que procuremos primeiro o deseno,


o despojamento.

Um corpo vivo não apenas nos esconde Deus,


como o arremeda: êle é a Sua caricatura. O menor
capim a que permaneçamos apegados nos esconde

34
DOR DO CRJSTÃO

Deus; mas, mesmo a imagem que nós fazemos de


Deus nô-lo esconde.
Deus só se dá totalmente à criatura que tudo
aniquilou no mundo e em si mesma.
Como acontece com o casal humano, Deus não
se une à sua criatura senão na total solidão com
ela. Santa Teresa costumava dizer que só havia
Deus e ela no mundo. :E nessa face a face, na
morte de tôda concupiscência, mas também de todo
desejo, de tôda aspiração, e mesmo de todo pensa­
mento, de tôda idéia separada de Deus, que o Ser
infinito penetra na alma até deificá-la.
Existirá outra concupiscência que não seja a
da carne? Na verdade parece-nos impossível dar
êsse nome à sêde de conhecer, ao desejo de saber
que atormenta o homem, a essa sublime paixão do
conhecimento que, mais do que nenhuma outra, dá
testemunho de nossa filiação divina.
Nesse ponto, como em qualquer outro, Bossuet
se mostra inflexível. Não poupa em nada o espí­
rito de curiosidade que o homem possui e que criou
tantas maravilhas. :Ele sabe muito bem que é di-

35
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

fícil impor limites ao mar, e que muito poucos


espíritos criados para a pesquisa e para a desco­
berta, são capazes de limitar aos fenômenos essa
sagrada curiosidade. E é por isso que êle a denuncia
furiosamentte em seu sermão sôbre a Igreja.
Repugna-nos chamar de concupiscência o espí­
rito de pesquisa, a paixão intelectual. Mas é bem
verdade que aquilo a que chamamos propriamente
concupiscência, penetra às vêzes no espírito, sem
que êste o saiba, e comunica-lhe a sua febre. Isto
é notável nos homens da Igreja, que se revoltaram.
Uma paixão, há anos recalcada, torna, para satis­
fa:zer-se, a máscara do espírito. A essa carne lon­
gamente asfixiada e em busca da saciedade, im­
porta que o cristianismo não seja verdadeiro.
.
A carne exige do espírito a prova de que a
renúncia à sua alegria não é exigida por ninguém.
Se eu pudesse escrever a vida de Lammenais,
mostraria primeiro, na época do Ensino sôbre a in­
diferença, uma criatura que, conhecendo seus abis­
mos secretos, adere aos mais extremos absolutis­
mos, reforça as mais pesadas cadeias. Mas, uma

36
DOR DO CRISTÃO

maré interior e onipotente, destrói tôdas as trin­


cheiras e exige sua satisfação; êsse turvo fluxo li­
bertado espalmar-se-á doravante até o infinito, mas
não sem ter exigido e obtido do espírito uma estre­
pitosa satisfação, e é a época de l'Avenir e da
ruptura com Roma.

O Padre Hyacinthe Loyson, por amar Mme.


Moriman, não queria que o Papa fôsse infalível.
A 30 de agôsto de 1870, declarava solenemente
"separar-se da Igreja de Roma, por ser esta atual­
mente herética e cismática, e constituir o maior
obstáculo ao progresso e à unidade da cristandade"
mas omitia acrescentar, "e ao meu casamento com
Emília Mériman".

E quando, enfim, rompe o voto de castidade,


escreve esta frase singular: "Nós amamos! Uma
nova era iniciou-se para a Igreja. O millenium co­
meçou". A carne e o sangue obrigam êsse infeliz
a fundar uma nova Igreja, em que será permitido
aos seus pontífices, e em que lhes será, mesmo,
recomendado, não dormir sozinhos.

37
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

"Prova-me que todos êsses sonhos são vãos, diz


a Carne ao Espírito, a fim de que eu possa for­
nicar em meu canto sem essa angústia de ofender
a Alguém, sem o terror de aumentar os sofrimen­
tos de um Deus".

E acrescenta ainda: "Não faço mal a ninguém;


porque o prazer seria o mal?".

lHe é o mal, e tu bem o sabes. De que outra


prova precisas além dêsse cego arrebatamento, dessa
degradação indefinida? Senta-te em um terraço de
café e olha êsse fluxo de faces. Que fisionomias
desonradas! "Até onde não desceria eu?" está ins­
crito em todos êsses corpos prostituídos.

É verdade que a cobiça avilta o ser humano,


e finalmente o destrói.
· Isto é um fato. Mas, e
a renúncia? Quantas vidas perdidas para a feli­
cidade! Quantos desvios! Quantos secretos nau­
frágios!

Não há certamente, pior atitude que a do ho­


mem que não escolhe, que renuncia pela metade e
só cede um pouco. Essa meia renúncia só serve

38
DOR DO CRISTÃO

para exátar a paixão. Sêres perdidos para Deus,


sêres perdidos para o mundo.
Mas, acontece que aquêles que conhecem a lei
invejam aquêles que não a conhecem.
Felizes os carrascos que não sabem o que fa­
zem! Para que te serve saber o que fazes, po­
bre alma?
Existirá no mundo um só homem, que, entre­
gue a tôdas as delícias da carne, permaneça em
união com Deus? A vida espiritual (mesmo fora
qualquer religião definida) será compatível com
a vida carnal ?
Uma carne que se sacia acompanha sempre um
espírito incapaz de aderir ao sobrenatural. Podem
existir no mesmo homem períodos alternados de
vida sensual e de vida espiritual, mas essas duas
vidas nunca podem coexistir.
"õ pureza! pureza! É êsse minuto de lucidez
que me deu a visão da pureza ! Pelo espírito é que
se vai a Deus. õ lancinante infortúnio ! "
Sim, lancinante infortúnio. A verdade a í está,
bem perto, "e talvez nos envolva com seus anjos

39
DOR E ALEGRIA DO CKISTÃO

que choram", mas, entre ela e nós, a concupis­


cência acumula trevas em que erramos coro os bra­
ços estendidos e as mãos tateando, tão extenuados
que jogamos a vida eterna contra um instante de
repouso sôbre um p eito .

Para salvar-nos de tal loucura, Bossuet encontra


tonalidades terríveis. Mesmo um ateu não poderia
ler sem tremer o sermão sôbre o empedernimento
do pecador. Mas, embora não queiramos ceder ao
covarde desejo de nos tranqüilizarmos, parece no
entanto, que o grande Bispo reduz o debate aos
seus têrmos extremos. O pecador que nos descre­
ver, é uma criatura completamente livre de ceder
ou de resistir à Graça. O Deus que lhe opõe é
um Deus rigoroso, e, diríamos, quase pobre de es­
pírito; um juiz que aplica a lei e não crê ter em
sua frente senão um indivíduo isolado, sem heran­
ças, sem raízes.

Essas veleidades, essas recaídas, êsse empeder­


nimento que expõem o pecador à eterna reprovação,
não encontram, para Bossuet, nenhuma outra razão
além de urna má vontade obstinada. 1He não se

40
DOR DO CRISTÃO

pergunta se cada um de nós aparece diante do Ser


infinito como um indivíduo isolado, ou como um
momento de uma raça.

Não procuro uma escapatória. Aceito a dou­


trina em todo o seu rigor. Mas êste é um fato tão
certo como a gravitação da terra: carregamos co­
nosco muito mais que nós mesmos; um homem não
é duplo como acreditava o Apóstolo, mas, múlti­
plo. O pecador em si é um mito. O que existe
é uma acumulação de tendências herdadas. E cer­
tamente, a pessoa moral existe porque nos criamos
a nós mesmos. Mas os resíduos que não servem
para essa criação, continuam a viver e a nos en­
venenar.

Vi sêres que pude observar desde a infância,


lutar contra tendências das quais até o nome igno­
ravam, tão profunda era sua pureza. A água sub­
terrânea abre lentamente um caminho, transpõe ou
contorna os obstáculos, parece dormir durante anos,
e subitamente jorra das profundezas do ser, - do
pobre ser humano, muitas vêzes estupefato ante o
que continha dentro de si sem que o soubesse.

41
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

E sem dúvida também existe a lei da. queda;


todos nós fomos engendrados na carne corrompi­
da; Deus não nos tenta além de nossas fôrças; a
Graça é proporcionada ao perigo que nos oprime;
para que fingir-se de corajoso contra Deus? lHe
é Aquêle que tem sempre razão; nós não podemos
senão estar errados.
Ê verdade, mas com que direito lhe atribuímos
êsse rigor uniforme? Cada um dos nossos proces­
sos será julgado à parte. Não lhe conhecemos tô­
das as testemunhas. Milhões de antepassados virão
testemunhar à barra da eternidade que nos trans­
mitiram inclinações que êles próprios receberam de
seus pais. E só Deus sabe o que pode resultar em
uma criança, <;lo encontro de duas tendências her­
dadas de antepassados diferentes.
Esta é uma hipótese que talvez não seja ab­
surda: Deus faz da raça o bode expiatório de
todos os pecados individuais, e condena a raça para
salvar o indivíduo.
Sem dúvida, a Escritura fornece a Bossuet tex­
tos impiedosos para o acabrunhamento do pecador.

42
DOR DO CRJSTÃO

Mas êle silencia tudo aquilo que nos poderia tran­


qüilizar. :me quer que tenhamos mêdo.
Ousaríamos pretender que Bossuet trai os de­
sígnios de Deus com ameaças tão terríveis? Não,
certamente: Cristo quis que a idéia da salvação
dominasse tôda a nossa vida. Para êle tratava-se de
convencer cada homem em particular de que o
único necessário é atingir o Reino e salvar sua
alma. Se é preciso salvá-la, é porque ela corre o
risco de se perder.
Tudo se passa como se Deus, decidido a sal­
var no fim tôda criatura, não quisesse, no entanto,
que a partida estivesse ganha de antemão. A eterna
contradição, incessantemente repetida, entre a liber­
dade do homem e a presciência divina parece-nos,
se não menos misteriosa, ao menos, mais tranqüili­
zadora, encarada sob êste aspeto: uma partida que
não pode estar ganha de antemão, e que, entre­
tanto, deve sê-lo no final.
Isto é absurdo, objetar-me-á um doutor. Ê
verdade, mas, no plano religioso, o absurdo não é
muitas vêzes, sinal de verdade?

43
DOR E ALEGRIA DO CRlSTÃO

Pois, bem, não! Deixemos a Bossuet a última


palavra. É preciso ler êsse maravilhoso sermão
sôbre o empedernimento, pronunciado em Saint
Germain, diante do Rei, a I. 9 de dezembro de
1669. Hora jam es! de
O texto comentado era:
somno surgere: já é hora de despertar do sono.
Nunca ninguém fêz explodir, aos ouvidos do
pecador, entorpecido na lama, uma ameaça tão pe­
netrante e terrível. Nela há uma psicologia de
Deus - se assim ousamos dizer - uma explicação
do atraso de sua justiça, que faz tremer, de tal
maneira Bossuet tem fôrça de persuasão. :É certo
que vivemos embriagados de impunidade, e que
acreditamos estar a justiça adormecida. Mas não nos
fiemos a êsse silêncio.

Nunca se ·respondeu com tanta fôrça à eterna


objeção do pecador: "Você bem que está vendo
que não me acontece nada de mal, que o céu não
me cai sôbre a cabeça". E Bossuet responde:
"Ã fôrça de estar irritado, Deus fecha dentro de
si tôda a sua cólera". Durante muito tempo havia
alguma coisa em nós que p rotestava contra nossos

44
DOR DO CRISTÃO

VICIOS: enquanto tal acontecia, nada estava perdido.


Mas o que faz tremer, é um homem que aceita
seu crime, que o enobrece, que se gaba dêle e vai
até fazer prosélitos. Se tal homem lesse com aten­
ção estas poucas linhas de Bossuet, ver-se-ia obri­
gado a se meter debaixo da terra : "Desde que
somos tão infelizes por estar de acôrdo com nossos
pecados, desde que, pelo mais indigno dos atenta­
dos, chegamos ao ponto de abolir em nós a santa
verdade de Deus, a impressão de seu dedo e de
suas luzes, a marca de sua justiça soberana, derru­
bando êsse augusto tribunal da consciência, é então
que o reino de Deus está destruído, que a audá­
cia da rebelião está consumada, e que nossos males
quase não têm mais remédio".

O implacável Bossuet redobra os golpes : dei­


xamos para amanhã a nossa conversão, acreditamos
ainda ter tempo, porque o tempo afeta sempre ser
uma imitação da eternidade; o ano passado parece
ressuscitar no seguinte, e, no entanto, diz-nos Bos­
suet : "As rugas de nosso rosto, os cabelos brancos,
as doenças, não nos fazem senão notar com evi-

45
DOR E ALEGRIA DO CRJSTÃO

dência, qual a parte de nosso ser que está arrui­


nada e dissolvida".
Êle nos persegue ainda, se por acaso lhe pe­
dimos que espere até que esta paixão, esta última
paixão que nos habita, tenha-nos deixado: "Quando
esta paixão que vos domina agora, quando êste se­
creto tirano de vosso coração tiver deixado o im­
pério que usurpou, não sereis por isso, nem menos
despojados, nem mais senhores de vós mesmos. Êle
deixará, por assim dizer, um sucessor de sua raça,
filho como êle, da mesma cobiça".. .

O inimaginável é que, convencido por êsse


admirável discurso, o sensual ainda resista.
O pecador tem a ilusão de não poder mais
curar-se de seu amor, como o leproso de sua úl­
cera. Ah, se bastasse, para que êsse amor o deixe,
para que essa chaga se feche, tocar a orla de al­
gum manto!! Se bastasse estar exposto sôbre uma
padiola, à margem de uma estrada, e a sombra do
Salvador passando sôbre êle, para matar o amor
culpado . . . Mas, todos os tratados de teologia e
de moral, os mais terríveis sermões, só obtêm de

46
DOR DO CRJSTÃO

um amante, êste vergonhoso lamento: "Não posso


deixar de amar".
Fatalidade da paixão: velha desculpa sôbre a
qual estamos errados em adormecer.
Ê verdade que a paixão, em um certo ponto
de seu crescimento nos domina, e que nada pode­
mos contra êsse câncer. Mas é verdade também,
que houve um momento em que ainda éramos do­
nos de nós mesmos. Poder-se-ia escrever um es­
tudo cujo título seria: Da vontade no amor. Em
um certo minuto, ainda era possível arrancar de
nós êsse germe. Recorda-te dêste tôrvo período:
brincavas com o fogo porque tu julgavas mais forte
que êle.
Hoje suspiras: "Se tivesse podido prever tan­
tos sofrimentos !" Hipócrita, reconhece que pressen­
tias, que desejavas, que chamavas êsse sofrimento.
O homem para quem amor sempre se confun­
diu com dor, gaba-se e se admira disso. Orgulha-se
de pertencer à raça daqueles que amam, que coloca
muito acima desta outra: os que são amados. A
dar-lhe crédito, existem duas espécies de sêres hu-

47
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

manos: os assassinos e os assassinados; os corações


apaixonados, sangrando de golpes a cada instante;
seus carrascos, aquêles que, mesmo sem o saberem,
ferem a criatura que escravizaram. Suas mais Ino­
centes palavras contêm um secreto veneno.
:E verdade que são quase sempre os mesmos
que fazem sofrer, quase sempre os mesmos que
sofrem. E não creiam que seja uma questão de
idade, de encantos. Certo rapaz de vinte e cinco
anos possui todos os dons, mas seus amôres são
todos infelizes. Se acontece que é amado, tal não
dura, e logo volta a retomar seu papel de vítima:
é sempre êle que acaba por ser tonurado. Em
compensação, vemos velhos "gagás" assediados por
indiscretas ternuras, por excessivas adorações. É
bem menos wÍla questão de idade e de beleza, do
que de caráter: aqui ainda, o caráter cria o destino.
Êste sofrimento que finges temer, tu o pres­
sentias, dizia eu. .Ele não te foi imposto, tu o qui­
seste, antes de sofrê-lo.
Os que se gabam de só saber amar e que ge­
mem por nunca terem sido amados, são quase sem-

48
DOR DO CRISTÃO

pre sádicos: amam o sofrimento, seu sofrimento;


só reconhecem o amor por seus golpes.
Crês que tua dor te defenderá no dia do jul­
gamento; mas talvez ela se volte contra ti. Infeliz,
tu a invocas como uma desculpa, enquanto é a ela
que cobiças.
É incrível mas verdadeiro que o apetite de
sofrer seja também uma concupiscência. Um mo­
ralista cristão poderia descobrir nêle uma vocação
desviada de seu objeto. É isto principalmente, que
faz a fôrça do cristianismo: êle dá um sentido à
dor; o cristão sabe porque sofre; em imitação de
seu Deus crucificado, em união com êle, toma parte
em Sua Agonia, coopera na redenção do mundo.
Como a água em vinho, nas bodas de Caná, Cristo
transmuda a dor em alegria. Ora, eis que tu frus­
tras o Criador em proveito da criatura: é pela cria­
tura, em u�ão com a criatura, que desejas sofrer,
que gozas em sofrer.
Protestas e negas que alguém possa se compra­
zer em tal martírio: "Se o senhor soubesse o que
sofro!" Sei, mas nunca fizeste nada para te liber-

49
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

tares. Nada há que prefiras a ser torturado por


tua paixão.
É contra nós mesmos que satisfazemos melhor
nossos instintos cruets. Os outros nem sempre es­
tão por perto, e, além disso, não temos póder sôbre
êles. Não somos testemunhas de tôdas as suas rea­
ções, mas, dos suplícios que nos infligimos, nada
nos escapa. Seguimos em nossas veias a marcha do
veneno que nos aprouve inocular-nos. Quando a
realidade não fornece ao ciumento substância com
que alimentar seu ciúme, êle imagina, êle inventa.
Aqui o campo é ilimitado: nada faz parar o furor
do carrasco de si mesmo. Em vão recebe as cer­
tezas, as garantias, os melhores testemunhos que
lhe possam acalmar: não descansa enquanto não
lhes empresta causas interessadas.

A paixão da infelicidade é a mats tenaz.

Seria preciso querer não sofrer. Mas, não so­


frer - argumentas - seria perder o sentimento da
vida: "Ao menos eu vivi!" diz o amante desespe­
rado. E não trocaria seu desespêro contra nenhu­
ma paz.

50
DOR DO CRJSTÃO

No lugar dêsse amor, se acaso o arrancasses de


ti, imaginas uni vazio que te faz horror. Tudo,
antes que encher êsse vazio com um Ser que não
se vê, que as mãos não tocam.
Ao despertar, procuras antes de tudo o lugar
de tua dor para te assegurares que existes. E lá
está ela, fiel como a vida, e vai reinar sôbre ti até
à noite, como o sol sôbre êste dia já tórrido. Tudo
será aniquilado em suas terríveis irradiações : os
sêres e as coisas se confundirão, farás teu trabalho
isolado de todos, no centro de uma atmosfera de
fogo. Afastas-te, sentas-te em um canto, abres um
livro. Mas as letras dansam nesta luz ofuscante.
Recomeças a página, persegues em vão um pensa­
mento que não se deixa apanhar. O pensamento
dos outros não pode mais abrir caminho até o teu.
Nenhuma saída. Sufocante amor, tarde sufocante.
Não há tempestade no horizonte. Nenhum baru­
lho vem da planície, além dêsse, bem junto de ti,
do pássaro nas fôlhas sêcas. Nenhuma esperança
de chuva. Mas, se não é de tua alçada suscitar as
nuvens no azul de fogo, ao menos resta-te algum

51
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

poder para perturbar esta canícula de tua pa1xao.


Olha no fundo de ti êsse sorriso misterioso, êsse
olhar, e então, como se o tempo se anuviasse, como
as grossas gôtas viessem esborrachar-se sôbre as
fôlhas, eis enfim o enternecimento, as lágrimas.
Há tão pouca esperança que o sofrimento nos
desvie dos amôres culpados, que devemos descul­
par os autores cristãos de querer agir sôbre nós pelo
terror. O inferno da paixão não nos amedronta
mais, mas, e o inferno eterno? Tal ameaça deve­
na �er onipotente sôbre os fiéis.
O dogma do inferno ·é tão espantoso, que mes­
mo aquêles que acreditam nêle não conseguem vi­
sualisá-lo. E é isso que lhe tira muito da eficácia.
.
Creio no inferno como em tudo aquilo que
ensina a Igreja (que, aliás, nada acrescentou às
palavras de Cristo : "Ide, malditos, para o fogo
eterno ... )
"

O fogo eterno. Mas, uma coisa é crer nesse


horror, e outra, concebê-lo. Quando nossa mãe nos
ameaçava entregar ao Lobisomem, escondíamos a

52
DOR DO CRISTÃO

cabeça, horrorizados, em seu vestido, com a mesma


confiança, com o mesmo amor.
O que cremos é inconcebível, e a teologia não
nos ajuda a conhecê-lo. Creio, mas sem tentar com­
preender. O inferno iluminado pelo Amor, dizem
êles. Deus confundido com um amante irritado e
que se vinga. Êsse pensamento nos faz horror.
Pois nós, que nos sabemos duros e cruéis, sabemo­
-nos, no entanto, capazes de amar sem sermos ama­
dos, de tudo dar, sem receber nada. Que amante
não sente com certeza que nenhuma traição, ne­
nhuma negação triunfaria sôbre seu amor? O que
nós somos, corações efêmeros dentro do tempo,
Deus não poderia sê-lo na eternidade?
Devemos crer em tôdas as palavras de Cristo,
em todos os dogmas da Igreja, - e nesse inferno
que espanta menos os carnais do que os tranqüi­
liza: "É muito horrível para ser verdade", dizem
êles. E se fôr falso, alegrem-se porque todo o resto
se desmoronará também.
É no entanto, verdade apesar de horrível. Mas
é preciso que Deus seja inocente do inferno. A

53
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

escolha do homem cria o inferno: um homem que,


diante da eternidade, decida livremente não ficar
do lado de Deus (Existe êsse homem ? ) .
inferno não é inerte.
O É um sutil espírito.
O demônio.
A cupidez com que a humanidade decaída está
corrompida, não pode ser vencida, a não ser por
um deleite mais poderoso e, que os jansenistas de­
nominavam o deleite vitorioso da Graça. Mas, o
mistério é que êsse deleite da Graça é um dom
gratuito de Deus. E mesmo quando êle o conce­
de, que dilaceração ! O cristão fica esquanejado.
"Não se pode servir a dois senhores", mas po­
de-se ser des�edaçado por dois senhores.
"Ou amará a um e odiará o outro . . . " Aí,
podemos continuar amando o Deus que traímos,
tanto mais quanto, carnais, não temos o sentimento
de que nossa traição o atinja. Eis aquilo de que o
pecador tem mais dificuldade em convencer-se, e sô­
hre êsse assunto, os teólogos têm bastante trabalho
em persuadi-los. O que nos engana é êsse traço di-

54
DOR DO CRISTÃO

vino que o amor mais profano deve, sem dúvida,


ao objeto infinito de que o desviamos.
Ê notável como certos escritores se deleitem em
introduzir a religião nos debates em que a carne
domina. Bem menos por instinto ou por gôsto do
sacrilégio, do que daquilo que subsiste de religioso
na mais carnal das paixões, êsses escritores não
conseguem apagar de suas histórias um traço de
misticismo dúbio, nem usar as coisas do céu como
temperos. Mas, da mesma forma que não se pode
falar do fluxo e do refluxo das águas sem falar
da lua, como narrar os movimentos do coração,
mesmo desviados, sem falar de Deus? :Eles não
acreditam estar blasfemando.
A razão moderna desregulada, é levada a ad­
mitir a identidade dos contrários. Sedutora lou­
cura, a dispensa da escolha, da aposta: a adoração
de Deus em sua criatura, a submissão a Deus no
instinto amoroso.
Essa impostura tornou-se tão flagrante, hoje,
na literatura, que nenhum cristão sincero pode mais

55
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

tapar os olhos: será expulso de suas últimas trin­


cheiras, até que se submeta ou apostasie. Aposta­
sia . .. À simples menção dessa palavra, o cnstao
mais tíbio experimenta a indignação que inflamava _

Simão Pedro quando sua tríplice negação foi-lhe


anunciada. Era preciso que êsse impulso de um
coração não ainda corrompido arrebatasse tudo.

Mas, a falta de fé detém o impulso do cora­


ção. Os próprios apóstolos, embora vivendo na
intimidade do Salvador, suplicavam-lhe : "Senhor,
aumentai nossa fé . . . " E :Ele lhes respondia tris­
temente: "Se tivésseis fé como um grão de mos­
tarda, diríeis a esta montanha . . . " Como um grão
de mostarda. Que é pois a fé de um cristão, mes­
mo daquele que se crê purificado? Será muito
mais do que a esperança ou o terror ? Esperança
da vida eterna, terror da reprovação.

Existe, no carnal que Deus persegue, o vergo­


nhoso temor de renunciar à prêsa em troca de uma
sombra. A miséria com que se deleita, permanece
uma certeza, à qual não se opõe senão urna pro­
messa e uma ameaça.

56
DOR DO CRISTÃ0

Por isso é que o carnal reclama um sinal - um


sinal material. "Se eu puser a mão na chaga do
Seu lado . .. " Esta graça, de que Tomé teve o
benefício, é concedida, com mais freqüência do que
acreditamos. A cura da pequena Périer, confirmou
Pascal na fé, - e também êsse "fogo" que êle viu,
ou cuja queimadura seu coração sentiu, na segun­
da-feira, 23 de novembro de 1654, desde cêrca das
dez e meia da noite até à meia-noite e meia. E
no papel que trazia costurado em sua roupa como
lembrança dessa noite bem-aventurada, apenas fêz
menção do fogo, mas escreveu por duas vêzes a
palavra Certeza.
E eis Pascal, bem claro agora, e exclamando:
"Aquêles que acreditam que o bem do homem está
na carne, e o mal naquilo que o desvia dos pra­
zeres dos sentidos, que se embriaguem e que mor-
ram . . ."
Mas, a essa decisão, o carnal responde em têr­
mos idênticos : "Aquêles que crêem que o bem do
homem está na religião, e o mal no prazer dos
sentidos, que se embriaguem com a sua renúncia,

57
DOR E ALEGRIA DO CKISTÃO

e que morram . . . " Debate sem fim que não po­


deria ser resolvido aqui em baixo. Mesmo os sêres
mais separados do Cristianismo, estão comprome­
tidos com êle. Cristo obriga todos os homens a
tomar partido. Quem não é por êle é contra êle.
Não nos cabe sair do jôgo.
Cristo criou o drama humano. E jogou-nos
em uma aventura que os homens de antes da En­
carnação, apenas pressentiram.
Teremos, pois, cedo ou tarde, que os colhêr.
Mas, queremos ganhar tempo. Ouvimos Bossuet
denunciar a ilusão de que o tempo do amor pas­
sará e que, nas portas da velhice, ser-nos-á mais
fácil dar a Deus um coração despojado do efêmero.
Já não vivemos bastante para saber que "seja o
que fizermos, amaremos sempre", como está es­
crito no Discurso das Paixões do amor? Quem per­
tence à raça dos amantes, corre o risco de conti­
nuar amante até na mais extrema velhice.
O coração não envelhece ao mesmo tempo que
o corpo. O estupor que nos causa, às vêzes, a vista
de nosso rosto no espelho, vem de que não vemos

58
DOR DO CRISTÃO

sempre nosso corpo lentamente destruído, mas que,


em compensação, estamos sempre em contato com
nosso coração que não muda.
O coração não ouve as advertências da carne.
Essas advertências, aliás, muitas vêzes só nos vêm
do nosso aspecto físico, e não do alquebramento do
desejo ou do poder diminuído do sangue.
O jovem coração dos velhos terá que sofrer até
o último dia.
Nunca acreditamos que é chegado o momento
de escolher Deus. Dirigimos a Deus, até o limiar
da morte, a súplica que Mme. du Barry fazia a
Sanson : "Senhor carrasco, ainda um minutinho . . .
"

O verdadeiro carnal só ama a glória porque


ela prolonga o tempo em que o homem ainda pode
ser amado.
Em uma certa idade, o que há de mais difícil
para acreditar, é que aquilo que se refere à carne
tenha tão grande importância, e que os rumores de
nossa pobre tempestade, ecoam até a eternidade.
Há um ridículo no amor humano. Não cabe
ao grande Bossuet no-lo revelar, mas tôdas as gran-

59
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

des obras profanas iluminaram êsse trágico absurdo.


Essa dansa de mosquitos, essa louca corrida atrás
de um ser que nem nos vê, essa indiferença à cria­
tura que nos persegue, e que por sua vez é per­
seguida.
O coração incandescente adora sua própria luz
sôbre a criatura que por ela é banhada. Tôda abra­
sada com teus raios, ela te deslumbra. Se te fôsse
dado vê-la fora do feixe luminoso que lanças sôbre
seu corpo . . . mas, em certas horas, ela te apareceu
assrm. Teus laços tinham-se tornado bastante for­
tes para que, sem temor, pudesse ver o que amas,
despojado de seu esplendor emprestado.
A medida que o tempó aperta mais fortemente
tuas cadeias, tua lucidez aumenta, até o dia em que
possas te defender por haveres criado o objeto de
tua loucura: desembaraçado do sortilégio com que
o havias revestido, reduzido à sua miséria, tu o
queres como tal.
Foi no comêço da paxxao que recriaste, que
reinventaste êsse objeto. Até que, finalmente, as
cadeias começam a penetrar em tua carne. E só

60
DOR DO CRISTÃ0

então, horrorizado, esforças-te por vê-lo tal qual é;


compara-os com os outros, cedes ao desprêzo, e êste
te invade, muitas vêzes sem que o nó desaperte.
Acontece também que o ser amado ganhe em
perder os embelezamentos com que o sobrecarre­
gaste. Esmaecidas as falsas côres, aparecem os mé­
ritos humildes, mais reais, que te retêm mais for­
temente que_ o ilusório encanto.
O que antes te havia seduzido nesta mulher,
já descobriste que não existe. Mas, mesmo des­
truída a miragem, o amor apega-se a essa pobre
terra para onde a miragem te conduziu.
À fôrça de te haver amado por aquilo que não
eras, aprendi a querer-te pelo que és.
Não tens mais necessidade de seres outra para
que eu te ame.
Os Doutôres cristãos estão à margem da con­
cupiscência como o menino que Santo Agostinho
viu em sonho e que queria esvaziar o Oceano.
Ingenuidade de Bossuet por acreditar que a
fuga é um grande remédio para o amor; como se
a ausência nos libertasse do que amamos ! É na

61
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

solidão que conhecemos nosso amor. Você, que não


está presente, é quem me possui. "Sempre precisei
da solidão para dizer o quanto amava . . . " Ê uma
confissão do Padre Lacordaire.
Se a ausência se prolonga, tua dor diminui e
te convences que amas menos. Mas, a lei do es­
quecimento não é fatal, como sustenta Proust, e
nem sempre é válida. O esquecimento é apenas
uma aparência, como o sono invernal de certas es­
pécies não é a morte. A ausência é o inverno do
amor, que se enterra e não mexe mais. Essa morte
aparente pode durar meses, até que ao sol da pre­
sença recuperada, surja como Lázaro e lance o
seu grito.
Se não fôr vencida pela graça, a concupiscên­
Cia só o será pela morte, por nossa morte. Pois
a morte da criatura amada não nos impediria de
tê-la nos braços em espírito. Os grandes imagina­
tivos conhecem êsse prodigioso trabalho do espí­
·
rito, que vai procurar até no fundo de sua juven­
tude as faces há muito desaparecidas ou destruí-

62
DOR DO CRISTÃO

das, e que as traz de volta, para que possam


gozar delas.
A concupiscência, cadela que escondeu uns
ossos e que os desenterra.
A imaginação renova indefinidamente as delí­
cias saboreadas uma única vez. Um só pecado re­
presenta sempre milhares de pecados : nunca cessa­
mos de reproduzir sua imagem primitiva.
Como curar a concupiscência? Ela nunca se
limita a alguns atos; é um câncer generalizado, a
infecção está em tôda parte. E é porque não há
maior milagre do que a conversão. Procuro, na
vida do Padre de Foucauld, o segundo em que o
oficial colonial um pouco obeso, devasso, mal repu­
tado por suas desordens, começa a transformar-se
no ser vestido de branco, desencarnado, e que o
amor consome quando consagra uma hóstia no
deserto.

63
ALEGRIA DO CRISTÃO
ALEG R IA DO CR I STÃO

" UE PRAZER é maior do que o próprio des-


Q gôsto do prazer ?" Em uma carta, Pascal co­
menta esta palavra de Tertuliano, para lembrar a
Mlle. de Roannez que a vida dos cristãos não é
uma vida de tristezas : "Não se deixam os praze­
res, a não ser por outros maiores", diz êle. :Esse
jansenista não quer que a piedade nos seja uma
amargura sem consôlo.
Assim, até um jansenista não aprovaria as no­
tas que escrevi comentando Bossuet, e que publi­
quei sob o título de Dor do cristão. Elas atingi­
ram gente demais e me valeram ao mesmo tempo,
muitos elogios e muitas críticas, para que eu não
tenha sentido algum tormento a seu respeito. Os
que as aprovam e os que as censuram, concordam
em reconhecer nelas os acentos de uma dor que

67
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃ0

não mente. Sempre acreditamos que a dor é sm­


cera. Ora, a dor pode mentir. Um homem divi­
dido contra si mesmo, e que escolheu viver nessa
divisão, precisa de argumentos, para justificar essa
loucura a seus próprios olhos. Maurice de Guérin
compara sua dor a um relâmpago que queima no
_
horizonte, entre dois mundos. Inscrevi essa ima­
gem como divisa nas armas invisíveis que cada um
de nós compõe para si. Nela admirava a expres­
são perfeita de meu destino e me convencia que
tal inquietação e a decisão que havia tomado de
oscilação, afastavam de mim a cólera dAquêle que
eu tinha o topete de pôr na mesma balança que
o mundo.
Outra desculpa de que me prevalecia era mi­
nha obra, expressão dessa dilaceração. A sorte das
palavras é estranha, a de mensagem, que nossa
geração usa tão prazenteiramente, serviu para me
confirmar na decisão de não escolher. Eu trazia
ao mundo a mensagem do jovem rico que Jesus
amou ao primeiro olhar, "mas que se afastou tris­
te, porque possuía grandes bens".

68
ALEGRIA DO CRJSTÃO

Nada - cremos hoje - do que nos é pe­


culiar, é absurdo. Nossa singularidade é nossa
razão de ser. Importa-nos acima de tudo nossa
posição, se fôr única, mesmo que seja indefensá­
vel. Quanto a mim, agarrava-me de tal maneira a
ela que cheguei ao ponto de ser logrado por uma
imagem: . "um relâmpago que queima no horizonte,
entre dois mundos . . . " Não há fogo que queime
a igual distância de Deus e do mundo; não esco­
lher, no plano sobrenatural, é já ter escolhido. E
eu tinha desta verdade um sentimento tão nítido,
que tinha que me defender, custasse que custasse,
diante de Deus, diante de mim mesmo e diante
do mundo.

O que par�ce sincero em Dor do cristão é um


certo toque de angústia. Mas, como já disse, a dor
pode mentir: e embora não tenha sido de propó­
sito deliberado, o jansenismo latente nessas pági­
nas, forneâa-me pretextos para brincar de relâm­
pago atraído ao mesmo tempo pelas alturas e pelas
p rofundezas, consumindo os alimentos terrestres e
voltado para o sobrenatural. Em grandes traços,

69
DOK E ALEGRIA DO CKISTÃO

o jansenismo não é senão o abuso da lógica hu­


mana nas coisas divinas. :Êsse rigor que nos em­
presta aos olhos do mundo a atitude lisongeira de
intransigentes, ilumina o lado abrupto das escar­
pas católicas.
Era sôbre todos os caminhos traçados pela
graça amorosa, e os refúgios sagrados para o ali­
mento e o repouso da alma, que eu encontrava
interêsse em espessar as trevas. Não renegava a
verdade, mas negava que fôsse acessível. E, por
exemplo, Dor do cristão testemunha minha obsti­
nação em levantar o espírito contra a carne, inimi­
gos que não podem viver - dizia eu - um sem
o aniquilamento do outro.
Desenvoltura do homem que presta ouvidos à
palavra eterna e a deforma segundo sua paixão,
em vez de a ela conformar sua vida efêmera.
O homem acusava o autor da vida, de não dar
lugar à carne; e o Autor da vida, vinga-se arras­
tando êsse corpo em seu amor, até que confesse
que a lei do espírito é a mesma da carne.

70
ALEGRIA DO CRJSTÃO

Quando Cristo afirma que é um alimento e


que é a vida, êle o é, literalmente} p ara nosso corpo.

A volúpia arremeda a morte: falsa agonia, o


falso último suspiro, os corpos estendidos, imóveis
e como chocados pelo prazer. Depois essa carica­
tura nos decepciona. A volúpia transforma-se na
procura dos limites do Nada. Trata-se de aproxi­
mar-se dêles o mais possível sem morrer: os en­
torpecentes.

Corpo do homem, templo do Espírito, que


ressuscitará no último dia. Catedral de carne em
que repousa a Carne do Senhor; e desde que a
presença sacramental desaparece, o coração carnal,
cêra viva, guarda a sua marca. Existe, mesmo, um
estado físico da Graça.

Cuidemos em não confundir com as provações


de uma alma orientada para Deus, a pobre angús­
tia que trai Dor do cristão, e que nasce da recusa
de escolher. Pascal compara as almas dessa espé­
cie a uma criança que é arrancada por ladrões dos
braços de sua mãe: "Ela não deve acusar da vto-

71
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃ0

lência que sofre, a mãe que a retém amorosamente,


mas seus injustos raptores".
Essa imagem nos dá idéia das duas fôrças po­
derosas que atraem a alma, cada uma para si e a
despedaçam. Duas fôrças onipotentes. Para al­
guns, submissos ao impulso vitorioso da carne, o
cristianismo existe ainda, mas é inerte: instrumento
necessário a algumas naturezas e inútil para outras,
pretendem êles; mas em todo caso, como urna mu­
leta que se usa segundo as necessidades, preciosa
aos tímidos, aos hesitantes, aos vacilantes; mas
aquêles que podem andar sozinhos não devem se
importar com ela: é isso o que André Gide, em
uma carta a René Schwob, chama o não-lhe-sentir­
-a-necessidade. · Assim, a exigência só pertenceria
ao homem, à sua paixão. A hipótese de uma ver­
dade exigente, soberana, amorosamente exigente,
nem sequer é encarada.
Na verdade, considerando-se apenas o texto da
carta, o não-lhe-sentir-a-necessidade é, na realidade,
o não-mais-lhe-sentir-a-necessidade, uma vez que
Gide escreve: "É certo que após haver e:xperimen-

72
ALEGRIA DO CRlSTÃO

tado violentamente essa contradição em mim mes­


mo, durante um longo período da minha juven­
tude {e mesmo CÇ)m algumas recaídas mais tarde)
pus tudo em ordem depois . . ."

Pôr tudo em ordem . . . Sim, sem dúvida, isso


é dado ao homem, o direito de recusa lhe penence.
Deus desaparece com a fome que temos dêle,
diz você, mas também, diz que foi preciso muito
tempo para reduzi-lo ao silêncio.
Quando os homens de hoje falam de recalque,
trata-se sempre do instinto mais baixo; é sempre a
mais baixa paixão, a recalcada. Mas Deus também
pode ser objeto de um paciente recalque. Mais de
um não consegue expulsá-lo para muito longe; um
raio brilha ainda sob a porta e queima a página
em que se consome a Negação e a sua obra inteira
·
permanece, contra a sua vontade, tôda matizada.
Você relega Cristo ao nível dos muitos. Há
anos que consagro meus momentos perdidos a um
poema: As lágrimas de Atys - inerte pastor com
que meu espírito brinca. Como êle é dócil ! Êle

73
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

reveste qualquer significação que eu lhe imponha.


Qual é êsse outro "mito" que se opõe, que resiste,
que diz "não", que se afasta, . que volta, extge
e sofre ?
"Só podemos amar aquilo que criamos". Pala­
vra engenhosa de Valéry: aqui está o tom que choca;
uma certa construção que faz com que o leitor adira
sem exame (se não fôr daqueles que reviram a tal
frase num grito de alegria: "Só podemos amar
Aquêle que nos criou" - "Só somos amados por
Aquêle que nos criou . . " Quia fecisti nos ad te et
.

inquietum est cor nostrum donec requiescat in te) .


O que criamos é, ao contrário, aquilo que re­
jeitamos, o que está morto. Outros, depois de nós,
apanham às vêzes êsses cadáveres e os reanimam.
Pouco importa, é sôbre o inerte que trabalham.
Êsse "mito" em que penso é o contrário de inerte.
As imagens para pintá-lo, e que foram usadas desde
que êle apareceu, grão de mostarda, fermento, ex­
primem o que êle não cessou de ser desde o comê­
ço: um princípio ativo que trabalha a massa hu­
mana.

74
ALEGRIA DO CRISTÃO

Um mito ? Mas, criado ontem. Que o mundo


dure ainda vinte mil anos, e seremos os primeiros
cristãos : "No ano quinze do principado de Tibério
César, sendo Pôncio Pilatos governador da Judéia,
Herodes, tetrarca da Galiléia, Filipe, seu irmão,
tetrarca da Ituréia e do país de Traconide, e Li­
sanias, tetrarca de Abilene . . . "

Aparecendo diminutamente nesse preciso inter­


valo da duraço e do espaço, êsse Homem não mais
deixou o mundo, mas o mundo não pôde fazer
dêle o que quis : desde o comêço êle se opõe, re­
siste, divide. Não, não se pode caçoar dêle, não
se pode brincar com êle. Tudo lá está desde o
comêço. Tudo está contido nas palavras que êle
quis que o mundo conhecesse, e nos gestos que quis
que o mundo retivesse.
Salvo nas épocas ditas de fé, todo o esfôrço
da inteligência humana concentrou-se, não na am­
plificação dessa história, dessa mensagem, mas em
sua redução, em sua diminuição. Aqui não se trata
de uma lenda que os poetas, de geração em gera­
ção, enriquecem e sobrecarregam; é uma breve

75
DOR E ALEGIUA DO CRISTÃO

palavra, uma curta história que, desde o comêço,


defendeu-se sozinha contra os floreios, e que eli­
minou o maravilhoso dos apócrifos. E ficou a pé­
rola de grande preço, a dura p edra, a pedra de
toque contra a qual se encarniça o mundo. Çada
palavra, cada fragmento de palavra é analisado,
verificada, presa das conjecturas dos especialistas.
E enquanto êstes discutem, essas palavras, essas
"interpolações", continuam a manifestar um poder
igual a si mesmo, há vinte séculos. Que poder ?
A ressurreição de cada alma humana em particular,
o renascimento para o amor dêsse condenado à
morte, dêsse executado. :Esse texto é vivo ":Esse
docwnento que respira", dizia Claudel. :Ele sus­
cita "mais que amor, virtudes que frutificam no
amor . . . " Como vai longe essa palavra de Lacor­
daire ! Outros fizeram prosélitos, mas nada, ne­
nhuma fôrça humana impedirá êsse de que falo,
de fazer ressuscitados e renascidos.

Estávamos todos destinados a que se dissesse


um dia de nós: "É um homem acabado". O cris-

76
ALEGRIA DO CRISTÃO

tão, desde que é penetrado pela graça é um ho­


mem que começa, e que acredita nunca mais acabar.

Qualquer que seja sua idade, descobre sempre


essa alegria de renascer. É um recém-nascido cons­
ciente de sua vinda ao mundo.

No pecado, mesmo no plano humano, cada um


pode considerar-se acabado. Uma vez tocado o
fundo do abismo, de todo abismo particular, só
resta feri-lo até o último gemido : desejo - sacie­
dade - vergonha; e mais uma vez, desejo - sa­
ciedade - nojo. Mais nada a atingir, senão a
desaparição do nojo; depois a indiferença ao mal,
e enfim, sua glorificação. Depois do que, tudo
está dito. As quedas dos dias passados juncam teu
caminho futuro. Não progrides, não te ultrapassas
a não ser pela acumulação do mesmo crime. Me­
des o crescimento de tu afôrça pelo número das
almas que assassinas. Tua vida acabou.

Monotonia do pecado: trevas sem alvorada,


noite sem fim. Finda a j uventude, param um ins­
tante e, trêmulos, farejam o odor do matadouro.

77
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

A alegria do nascimento para a Graç� alegria


de uma criança que conheceria ao mesmo tempo
que é pura, é amada, que ama, e que, para sactar
êsse amor, lhe será dada a vida eterna.

Quem dis nascimento, diz crescimento. Não


ficas um segundo imóvel; mas, desde o primeiro
passo, já possuis na alegria êste amor para que
tendes e do qual nunca acabarás de te aproximar
neste mundo.

Via purgativa, via iluminativa, via unitiva, esta


ascensão só é completada por um pequeno núme­
ro, mas é dado a todos tentá-la : "Ã medida que se
avança na fé, - está escrito na Regra de São Bento
- o coração se dilata, e corremos no caminho dos
Mandamentos de Deus com uma inefável doçura
de amor".

Tocaste o fundo do outro abismo. Nenhum


outro recurso, após a lama, senão o de cavar aind�
para descobrir outra lama escondida. Mas eis o
abismo infinito: não mais aquêle em que desces,
- e sim aquêle que subirás.

78
ALEGRIA DO CRISTÃO

Como o tempo é curto ! Outrora êste homem


só pensava em matar o tempo. Mas, breves pare­
cem os dias ao cristão perdoado que teme chegar
de mãos vazias. Não há limites para a pureza ou
para a perfeição, e êle nem começou ainda ! Nada
fêz senão consentir em não dizer não.

Foi absolvido . . . Mas, à sua volta, e até em


suas mãos, o sangue de Abel corre ainda.

A propósito destas páginas sôbre a felicidade


do cristão, alguém te assegurava um dia : "Vai ser
bem desenxavido". E pensavas nesses contentamen­
tos que Santa Teresa diz que "fazem correr lágri­
mas de dor, que es diriam nascidas de alguma
paixão".

Sem dúvida, deve-se suspeitar dêsses transes,


dessas mudanças da sensibilidade, mas não se cris­
par. O desespêro de tudo o que se chama "efusão"
esconde muitas vêzes a recusa orgulhosa das humi­
lhações do amor. Ninguém acreditou muito tempo
sem amar. Enquanto a inteligência ainda hesita, e
precisa sofrer para acostumar-se com a Luz, nunca

79
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

deixes de apertar a mão que não vês e segurar for­


temente a orla do manto.

Do fundo da nave em Solesmes, percebes, na


entrada do côro, os irmãos conversos, cada um dos
quais se assemelhando a uma das Bem-aventuran­
ças, - depois os monges, iguais àqueles de que
São João conta que levam o nome do Cordeiro
escrito sôbre a fronte; - e, ao fundo, enfim, sus­
penso entre o céu e a terra, em uma pomba de ouro,
o Cordeiro de Deus. Mas, enquanto te aterroriza
a distância dêsses homens que tudo deram a ti
que nada deste, vê êste milagre: entre o Cordeiro
de Deus e tua miséria, não existe abismo que a
Misericórdia não transponha.

Não é ser covarde, refugiar-se no Fogo. É


nossa fôrça o ter medido nossa fraqueza. Mas,
como o conhecimento dessa franqueza exige fôrça!
Uma atitude de empáfia nada resolve. Não me es­
conda a chaga_ que, no mais secreto íntimo, supura.

O pecado que mata a alma, reconstrói o corpo


à sua horrenda semelhança.

80
ALEGRIA DO CRISTÃO

Aquêles que escolheram fazer o mal, nada mais


têm a nos ensinar.

Não peças mais consôlo aos homens, mas o


seu segrêdo para avançar para Deus.

"No meio de vós está Alguém que não conhe­


ceis . . . " Esta palavra de João Batista aos fariseus,
é repetida pelos cristãos de hoje a seus irmãos, com
uma alegria às vêzes indiscreta. Deve-se perdoar
muita coisa aos convertidos, é preciso compreender
o seu estupor pelo fato de quase ninguém ao seu
redor não suspeitar a existência do tesouro que
descobriram.

"No meio de vós está Alguém que não conhe­


ceis . . . " Palavra hoje tão atual, como quando João
batizava, pois, à medida que o mundo volta ao pa­
ganismo, o cristianismo também volta à sua fonte.

Neste século em que acabou de morrer o pu­


dor, filho de Cristo - em que os corpos desnu­
dos adoram o sol e se procuram nas praias, em
que Virgílio não cora mais e canta aBertamente os
amôres que outrora eram ditos vergonhosos, - o

81
DOR E ALEGRIA DO CRJSTÃO

pequeno rebanho daqueles que perseveram na fé,


que são assíduos em tomar parte na fração do pão,
estreita-se em tôrno da mesa e da lâmpada.

A maré do Espírito, ao se retirar, deixa a des­


coberto sistemas não sobrenaturalizados, em que as
inteligências se movem no vazio.

O pequeno rebanho dos que perseveraram, volta


a encontrar a alegria dos discípulos primeiros : a
alegria ansiosa de reter um segrêdo.

:Este resto de luminosidade, ainda difusa nos


costumes, nas instituições, empalidece e se extin­
gue. E no entanto, nada prevaleceu contra a fonte
da luz. 6 fôrça intata ! Expulsa de tôdas as par­
tes, concentra-se nas almas, investe sôbre elas e as
violenta. O mundo está cheio dêsses grandes acon­
tecimentos desconhecidos. Não há imprensa para
os acontecimentos de ordem espiritual. A verda­
deira história nunca é contada.

O que não impede que o cristão de hoje seja


cioso de sua solidão. Mesmo nas épocas de fé, há
lágrimas de santos porque o Amor não é amado.

82
ALEGRIA DO CRISTÃO

Tantos tabernáculos abandonados em todos os


cantos do mundo. O inimaginável abandono de
Deus.
Ê preciso, pois, falar, custe o que custar, ven­
cer a timidez, a vergonha. Ê preciso devolver aos
homens o gôsto da Felicidade. O grito monstruoso
de Wilde: "A felicidade, não ! O prazer !" brota
das entranhas da mais triste humanidade. Ê verda­
deiramente "o grito repetido por mil sentinelas" .
Nós o escutamos elevar-se no meio d a noite, bem
próximo de nós. Mas, o verdadeiro nome da fe­
licidade é a Paz, que exige silêncio. Um homem,
após ter revelado o segrêdo de sua alegria, foi
invadido pela angústia. Era terça-feira de Páscoa.
O ofício quotidiano nesse dia contém uma adver­
tência adequada para cada fiel em particular. As­
sim, nessa terça-feira, o homem leu essa palavra,
que se dirigia só para êle: "Dicant nunc qui re
dempti sunt a Domino". "Que o digam agora,
aquêles que foram redimidos pelo Senhor".
O homem mais indiferente, desde que viva se­
gundo Cristo, não deixa de pensar nos outros, de

83
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

estar obcecado pelos outros. Lembro-me da carta


de uma leitora de Dor do cristão, escandalizada
pela palavra que atribuo, aliás, inexatamente, a
Santa Teresa : "Sabei conceber as coisas, como se
não houvesse senão Deus e vossa alma no mundo".
Ela não compreendeu que, pela comunhão dos san­
tos, pela unidade do corpo místico de Cristo, a
solidão com Deus não destrói a união profunda
com as almas. Especialmente para essa leitora, des­
taquei algumas linhas do admirável livro da Aba­
dêssa de Sainte Cécile de Solesmes, A vida espi­
ritual e a Oroção :
" Em seu ardente desejo de atrair a si as al­
mas, plenamente e até a união, o Senhor emprega
ainda um outro estratagema : sugere sempre àque­
las que chegaram à união divina, solicitar para ou­
tras o mesmo favor. Mais as almas estão perto
de Deus, mais são para as outras uma fôrça de
atração, e mais também mostram-se ansiosas em
fazer violência ao céu. :Ê por isto que se deixa
adivinhar um mundo invisível, que mais tarde se
mostrará a nossos olhos maravilhados, e em CUJO

84
ALEGRIA DO CRISTÃO

seio contemplaremos o fato misterioso de uma fi­


liação sobrenatural, não apenas no sentido em que
se pode dizer que os santos nascem dos santos, se­
gundo uma inefável geração ex Deo".
:f: esta caridade espiritual que importa acen­
tuar. A obcecação da salvação dos outros, pode até
tornar-se um obstáculo aos progressos do fiel que,
após a comunhão preocupa-se em falar a Deus da­
queles que ama, em vez de permanecer no silêncio
da adoração.
O homem de nôvo nascido na Graça não pode
se resignar a não digirir sua alegria. De quanto
tempo precisa para perceber que, se pode muito
pelos outros, é em uma medida que permanece des­
conhecida para êle. Ninguém força a escolha de
Deus : "Non vos me eligistis, sed ego elegi vos".
Resta fazer-lhe violência, talvez . . . Mas os santos
nos ensinam o que é fazer violência a Deus, e o
preço que pagam : o mais humilde vigário de su­
búrbio também dá vida por suas ovelhas, pelos
pecadores. Penetremo-nos pois, do sentimento de
nossa perfeita miséria.

85
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

Um homem se levanta, assiste à missa, comunga.


Tôdas as horas que se seguem são impregnadas de
Deus. Quer trabalhe, medite ou fale a um amigo,
a Graça sacramental embebe êsse dia até o ponto
de que, se alguma vez êsse homem sentiu--se incli­
nado ao tédio, ao horror da solidão, ei-lo curado
para sempre. Estar só, e, no entanto, não estar só,
é uma exigência que fica absurdamente contentada.

Quem de nós ousaria negar que é atormentado


pelo horror do mundo e pela impotência de ficar
sozinho em um quarto? Ê preciso sair custe o que
custar, escapar a êsses quatro muros, a essa mesa,
a essa fôlha, a essa face enrugada que se reflete
no vidro da janela. Mas, eis-nos de repente entre
os homens. Tornamo-nos um dêles, mais irônico,
mais amargo, mais duro que nenhum daqueles que
fazemos rir. Então nos lembramos da célula abav·
donada, das quatro paredes, dos livros, do silêncio.
Para aí encontrar a felicidade bastaria, pensamos,
uma única alma; bastaria que uma única alma bem
amada estivesse lá, perto de nós: mas, os �reves
intervalos de tempo que ela pode nos dar, o que

86
ALEGRIA DO CRJST ÃO

são êles, perdidos nessa duração incessante que, para


o coração amante, não é senão uma interminável
ausência ? Ela entra e já sabemos que vai sair; ela
pousa um segundo com as asas j� levantadas, e
pensa no que vai fazer dali a uma hora, à noite,
com desconhecidos. Sua vida cruza-se com a nossa
nesse ponto inperceptível que não é a felicidade,
mas, apenas uma interrupção de sofrimento.

No amor humano existem permissões de feli­


cidade, isenções breves; e cada um se lembra de
algumas horas de calma felicidade, de um dia, de
uma rápida viagem, pequena ilha onde retoma a
respiração um instante, o amor extenuado, - como
quando, exaustos, os pássaros migradores, em pleno
oceano, abatem-se sôbre um navio. Mas quantos
amantes pretendem arranjar suas vidas em vista
dessa união inefável, e seu amor se corrompe por
essa mesma união: é o suplício do casal, que os
romancistas dêste século estudam com tanta pre­
dileção.
De tôda a nossa literatura se depreende esta
afirmação de que o amor humano se altera, se cor-

87
DOR E ALEGRI A DO CRISTÃO

rompe e morre, desde que os amantes pretendam


renunciar ao martírio de estarem separados.
Entre os horrores da ausência e esta perpétua
presença a que nenhum amor resiste, o que es­
colher?
Ora, eis o mesmo homem: nunca o quarto co­
nheceu tal silêncio. Nenhuma visita é esperada.
Ninguém hoje passará por esta porta. Que feli­
cidade! Estará êle acaso convertido à solidão?
Sim, a uma solidão povoada, a uma solidão plena.
Como a luz, desde a madrugada, devora o deserto,
a pequena hóstia da manhã levanta-se, vai subindo,
irradia, toma posse de sua criatura, com um tran­
qüilo poder.
Está só e· não está só. "Forma-se na alma e
se declara nela um efeito da graça - diz um santo
religioso - pelo qual esta pessoa sente em si uma
elevação de confiança e de paz própria aos bons e
fiéis amigos de Deus; e o Espírito Santo que, se­
gundo o que nos ensina a fé, reside em nós, faz
uma operação de sua graça que é como uma ma­
nifestação de sua presença. E isto se faz de uma

88
ALEGRIA DO CRISTÃ0

maneira tão livre e tão alta, que o coração fiel


fica persuadido, não apenas pela idéia geral que
dá a fé, mas, por um sentimento tão filial e tão
'doce que, sem apreensão de ilusão, a alma, por
uma grande probabilidade sabe e conhece que é
de Deus . . . Uma probabilidade que faz nascer
uma excelente paz e confiança, que deixa o ho­
mem em perfeito repouso".

Para saborear êste repouso em sua perfeição,


ninguém duvida que seja preciso estar muito adian­
tado no caminho. Mas, os recém-nascidos da Graça
experimentam às vêzes um ligeiro antegôsto, mas
que já os cumula. Felicidade indizível e frágil.
Pequena chama que ambas as mãos protegem e que
vacila ao menor sôpro. Então, a alma sente terror
do mundo, pois a cada descida que efetua, arrisca
seu tesouro, a pérola preciosa. Em vão o homem
põe uma sentinela em seus lábios, em seus ouvi­
dos; ao seu redor; pois as almas em pecado, por
mais silenciosas que sejam, espalham um odor de
morte, uma virulência. Sua simples aproximação é
um perigo para aquêle que nem sempre foi puro,

89
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

- principalmente se êle o é há pouco tempo. Bas­


taria um nada para reabrir a chaga que ainda está
fechada. E a corrupção vai primeiro a ela. ".:Esse
amor taciturno e sempre ameaçado" de que fala
Vigny, poderia ser também, o amor de Deus em
uma alma recém-nascida para a Graça.
Sem dúvida, nada há sôbre a terra que não
altere essa pequena parte do céu, furtada e sabo­
reada nas trevas. "Vigiai e orai". Basta um jor­
nal, um apêlo, uma carta. Principalmente, basta­
nos a nós mesmos, tudo aquilo que fermenta em nós,
em nossos atos eternos.
Misteriosa economia da graça, cujas leis esca­
pam a qualquer exame, imprevisíveis correspon­
dências, secretas compensações, fulgurantes libera­
lidades !
Uma hora de enternecimento e já, no lugar da
paixão desenraizada, aparecem alguns brotos. Al­
guns dêsses rebentos trazem em si um incalculável
poder de crescimento, de malefício e de sombra.
Uma alma lúcida e que odeia mentir a si mesma,
sempre acaba triunfando, com a ajuda da Graça.

90
ALEGRIA DO CRJSTÃO

Mas devemos temer tudo para o homem inclinado


a se lisoojear com falsas razões, a colorir os acon­
tecimentos segundo seus secretos humores. Como
é necessária a nitidez do olhar interior, ao ressus­
citado que começa apenas a romper as ataduras e
a mexer seus braços entorpecidos!

E no entanto, como êle desconfia do excesso


de desconfiança ! Como o amputado sofre em seus
membros um perpétuo mal-estar, êle também tem
a ilusão que, embora jugulado, o vício arde ainda.
Hoje, que já não sente vontade, explodem tentações
retardadas. Tão grande é seu terror da tentação
que êle a suscita.

Se estás possuído por êsse sutil demônio, pára,


fecha os olhos e usa de tua loucura para te lan­
çares loucamente no abismo da Misericórdia. Sim,
loucamente, segundo nos aconselha Jacques Mari­
tain: "Pois que todo cristão deve manifestar de
algum modo a loucura da cruz, que esta confiança
total e sem reserva se torne nossa própria loucura"
(Da vida de oração) .

91
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

Sem dúvida, a atmosfera do mundo nos pene­


tra; nenhuma porta fechada nos defende contra ela,
contra esta imensa recusa de nossa época: nasce­
mos em plena negação !
Péguy gaba-se de que nossa fidelidade no meio
de tão grande abandono nos vale alguns méritos.
E no entanto, a felicidade do cristão não encontra
nela uma de suas fontes ? Pobre fidelidade den­
tro da universal infidelidade, ela nos ajuda a re­
cuperar as fôrças :
"E todos os homens contra nós entavam, e eu
não respondia nada à ciência, à razão.
Só a fé estava em mim e eu vos olhava em
silêncio, como um homem que prefere seu amigo" .
Resta ao m ais miserável de nós que as criadas
e os soldados dirão de si, durante a noite da ago­
nia e do julgamento: "Também aquêle era dos que
seguiam êste homem".
Na realidade, não o seguimos sozinhos: (não
pensava senão nos de nossa espécie, "a elite pen­
sante" !) . E no entanto, os santos e santas, mais
do que nunca, o cercam, o empurram. Ninguém

92
ALEGRIA DO CRJST..40

os vê. O velho carro prêto, o miserável cavalo das


Irmãzinhas dos Pobres diante da porta de um res­
taurante, não chamam a atenção de ninguém, nem
a irmã de caridade que passa com sua touca. Nós
escrevemos romances; é nossa profissão conhecer as
mulheres ("Ah, como o senhor conhece bem as mu­
lheres !") . Sabemos que as carmelitas, as visitandi­
nas, as clarissas, e essas religiosas da Ordem Ter­
ceira regular que se encerram com os leprosos, per­
tencem à mesma espécie que nossas belas amigas.
Mas, é preciso que um milagre não dure. Um mi­
lagre que dura, não vale. A pequena hóstia quo­
tidiana impele milhares e milhares dessas filhas de
Eva (para só falar delas) , a uma vida de pureza
e renúncia total; elas reduzem seu terno corpo e
seu coração, à escravidão, e se fazem criadas dos
derradeiros resíduos humanos. Ainda uma vez, êsse
milagre interminável nada prova. Não queremos
aqui voltar, por um atalho, a Dor do cristão.
A verdadeira dor do cristão não consiste, como
eu insinuava, em não poder seguir em paz sua con­
cupiscência. Para êle só existe uma dor. Segundo

93
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

a palavra de Léon Bloy: é a de não ser sanro. O


conhecimento das vidas santas despertam no cris­
tão uma vergonha e uma tristeza que não desem­
bocam no desespêro, mas no amor.
Procura na igreja, peno da porta, o lugar do
publicano e olha, pendida na cruz essa pureza des­
pedaçada, esta carne sôbre que jogaste Dor do
cristão, como um manto de irrisão.
Que esta distância entre ambos não te deses­
pere: êle faz todo o caminho. Mas, isto não basta
para sua Graça, para suas inspirações. me mesmo
penetra nesses farrapos de carne e de sangue, sen­
ta-se à mesa ainda suja.
. . . Êsse pobre que, em minha infância, vinha
tôda tarde pr�curar os restos . . .

94
AINDA A ALEGRIA
AIND A A ALEGRIA

T ERIA EU, aos vinte anos, podido permanecer só,


como o consigo hoje, nesta casa, no meio destas
parreiras doentes que o sulfato mancha de branco ?
Em plena batalha contra a solidão, de repente, de­
ponho as armas. A inimiga ronda à minha volta,
toca-me de leve, e fecho os olhos . . . Não, ainda
não fui devorado, e talvez possa enternecer o mons­
tro. Como é doce não mais lutar, e consentir ! �
uma certa qualidade do silêncio que me faz conhe ·

cer minha derrota. Esta casa está bem morta; ro­


dos os quartos, salvo o meu, estão fechados; e os
próprios móveis da sala em que reteP.ho a resp�­
ração, parecem fora do tempo. Possuem já êstt:
aspecto de eternidade daquilo que os olhos huma­
nos não mais refletem. Agrupam-se como se eu
não estivesse no meio dêles. Tudo ;>quilo que se

97
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

amontoa entre quatro p aredes rachadas, sente-se


forte contra uma única presença humana.
Esta noite poderia ter sido uma noite de ve­
rão, como as que tanto amei outrora. Em minha
juventude não acreditava que houvesse em outro
lugar além dêste terraço, um céu tão sombrio e tão
vivo, e esta respiração da noite. Onde visse escrita
a palavra luar, esta jorrava em meu pensamento
sôbre o terraço de Malagar . . .
Mas esta noite de dois de agôsto é uma noite
chuvosa de outono, e o vento geme no meio do
vinhedo, como se já fôsse a época da colheita.
Espanto-me que o lagar próximo não ecoe com
vozes e risos; não sinto o odor das uvas; é apenas
uma noite fria <:fe verão em que estou só. Deser­
tei do grosso do exército do mundo. E não me
vanglorio : onde está meu mérito ? Nem mesmo
tive que me render: o inimigo há muito estava
dentro de mim. Eu lutava ainda e me agarrava a
fantasmas de sentimentos. Eu clamava e fingia
acreditar que outras vozes respondiam. Pobre ilu­
são entretida, alimentada pelo coração insaciável.

98
AINDA A ALEGRIA

Desde muito tudo estava decidido, a roleta já tinha


parado, e eu havia perdido. Eu havia perdido . . .
E estava salvo.

Não acreditei logo que estivesse salvo. É pre­


ciso muito tempo para nos assegurarmos de que a
solidão não nos matará. O que ela tem de mais
temível não é o fato de assemelhar-se à imagem
que dela criamos : ela pulula de presenças, atrai e
suscita um mundo fervilhante. As alamêdas são,
diante desta tela pintada que é a planície, um ce­
nário que nunca espera por muito tempo os seus
inúmeros protagonistas : essas legiões contra as
quais me debato, débil Jacó, sem outra testemu­
nha que não seja o Deus vivo (e êsse rapaz de L.
que um dia me confessou que muitas vêzes subia
até a curva da estrada,- de onde podia me ver er­
rando com a cabeça baixa) .
Os mortos : como ainda estão quentes em mim,
depois de tantos anos ! Ainda flexíveis. Parece
que dormem ou que fingem dormir. Ignoro o es­
quecimento. Nada me lembra com mais intensi­
dade seu calor que a pedra do terraço ao crepús-

99
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

culo. A mão de minha mãe sôbre minha testa, seus


dedos em meu pescoço : "Você está quente; des­
canse um pouco antes de ir para a mesa. E não
beba água". Nos últimos quatro anos, em que es­
perava a morte a cada instante, algumas vêzes se
esquecia e ficava preocupada com a vinha. Mas
logo lembrava-se que havia largado a mão de Deus,
e retomava seu têrço. Nós nos irritávamos porque
ela não era mais como de costume. Os melhores
filhos acham que sua mãe moribunda é cansativa
para viver. "Não digo tudo o que penso, nem tudo
o que sofro . . . " Nós desarrumávamos as casas em
que ela havia habitado, e destruíamos os cenários
de sua pobre vida. Tôda a paisagem pára à volta
dessa pesada sombra que se apoia em uma ben­
gala, e que evita por um atalho as alamêdas, cujo
declive, apenas perceptível a faria perder a res­
piração.

Como o vento vem do nordeste, não ouço os


rumores da planície. O trem, ao longo do via­
duto, desliza sôbre trilhos de sombra com rodas de
fumaça. "Mesmo depois da geada se você só fa-

100
AINDA A ALEGRIA

bricasse vinte tonéis, daria para pagar as despezas.


Se o vinho continuar baixando, não conseguiremos
vender o tonel por mais de três mil francos. E
mesmo a êsse preço, quando as novas parreiras pro­
duzirem, poderemos ter algum lucro . . . " Para nós,
prática, material, interessada. Para nós, nenhuma
resignação possível, nenhum desapêgo. Ela nunca
me disse que meus livros a tivessem entristecido.
Mas, simplesmente, após haver lido Bordeaux; "Eu
não sabia que você tinha sido uma criança tão tris­
te . . . " Para uma mãe como devia ser dura a pro­
vação de ter pôsto no mundo êsse saqueador de
destroços, que interpreta as histórias, ressuscita os
mortos que não conheceu, faz de muitos cadáveres
um único ser vivo, empresta a um bisavô as ma­
nias de uma tia-avó, ronda em tôrno dos segredos
enterrados; - que reedifica as moradas de anta­
nho, povoa de monstros a velha casa honesta entre
suas alamêdas e seus prados. Nenhuma queixa,
nenhuma censura. Nenhuma outra preocupação
além da referente à vida eterna. Cada mãe cristã
ressuscita Santa Mônica. Guardadas as proporções,

1 01
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

é sempre um filho e sua mãe, à janela ou debru­


çada sôbre o parapeito de um terraço; e sôbre o
humilde Malagar, é o mesmo céu que resplandecia
sôbre ústia. Ela não podia morrer sem que eu
estivesse entre as mãos de Deus. Ao voltar da
missa, na sala de jantar, quanta alegria em nos ser­
vir, com sua pobre mão deformada, que inclinava
ainda a cafeteira.

Os santos iam para o deserto, mas, teriam êles


ousado permanecer sós ante esta planície extensa e
viva, ante esta terra carnal, no limiar dêste imenso
corpo que não pode pecar? Houve tempo em que
eu não recebia dela outra lição além da passivi­
dade do rio, do abandono da árvore curvada, re­
erguida, esbura.cada na espessura de suas fôlhas,
obedecendo a todos os ventos. V ou me perturbar
ainda ? Que será êste langor? Mas não, vejo agora
o que o meu ôlho interior se recusava então a
descobrir : as igrejas j uncam as margens do rio in­
visível, a planície não é mais do que um sulco
imenso, onde não é o grão que morre, nem mes­
mo o trigo que amadurece, mas onde um Pão es-

1 02
AINDA A ALEGRIA

condido, enterrado, vivo, se multiplica. E basta


que Êle aí se encontre para santificar essa Cibele
entorpecida, e já embriagada antes da colheita. Se
o vento curva os galhos, é diante das aldeias reu­
nidas em tômo do tabernáculo. Cibele é purifi­
cada por Aquêle que eu não vejo, ela se fecha
sôbre êle, ela O esconde sob suas pedras, em suas
fôlhas. Ela O contém, e o ostensório possui raios
de vinhas e de florestas.
Êsse murmúrio da chuva que eu espiava na
aridez do último verão, com um coração cheio de
desejo; esta noite o ouço com angústia, pois, desta
vez, "é a doença que aparece", como diria mamãe,
e a colheita morrerá por não haver visto a face de
seu deus ardente. As criaturas que invento e de
que muitas viveram suas vidas imaginárias sob es­
tas alamêdas, trazem-me fielmente o dinheiro que
a terra me recusa, pois êsses filhos e filhas que pus
no mundo nasceram dela: que os filhos alimentem
a velha mãe abandonada pelo sol e que tem frio.
O vento, durante todo o dia de hoje, reinou
com tal fôrça, que parecia realmente alguém; êle

103
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

afastava poderosamente as nuvens enormes, rasga­


va-as e jogava os seus pedaços pelos quatro cantos
do céu. Mas eu tive rnêdo pelos meus jovens
choupos.
Esta manhã, começou a luzir pela primeira vez
depois que estou aqui, wn dia puro e brilhante
como aquêles que, nesta casa fechada, exaltavam
até a loucura minha jovem tristeza. Atravessei êsses
dias sem embaraços. Na imensa planície, as páli­
das extensões de vinhedos sulfatados dormiam,
como que vigiadas pelas árvores eretas e raras e
sombrias. Eu podia olhar tudo aquilo s.em ne­
nhum desejo de chorar, em um estado de indisível
segurança. Nada mais pode acontecer que não
esteja na medida de minha fôrça.
Êste belo dia não era verdadeiro. A urna hora,
o céu escurecido, após o almôço, a solidão voltou
a opnmu-me. Eu estava de pé no meio da sala
que se encontra no centro da casa, no meio da pro­
priedade, no meio de minha vida. Eu via o que
tinha escolhido e o que tinha deixado. Mas, o
que deixamos não nos deixa. Teremos que ser se-

104
AINDA A ALEGRIA

guidos até a morte por êsse mendigo esfomeado.


Sua própria fome e sua sêde o tomam temível, em
vez de enfraquecê-lo. Em face dêsse mendigo, a
alma santificada deve temer a saciedade, a satisfa­
ção, a própria profundeza da paz que lhe vem de
Deus. Porque acreditamos amar a paz, enquanto
ainda estamos todos ensangüentados p ela paixão,
extenuados e sem fôrças. Mas, desde que a graça
nos curou, o orgulho da vida nos impele a auferir
benefícios do poder reconquistado para fugir dêsse
Deus que nô-lo concedeu.

Quem conheceu a solidão ao lado de sêres


amados, suporta-a fàcilmente no meio do mundo
insensível. Como parece fáciL viver só no meio da
multidão vegetal, deitados sôbre esta terra, da qual
não esperamos nada ! Não era dessas alamêdas nem
dêsses declives adormecidos que provinha minha
tristeza adolescente, mas dos sêres que evocava e
de que via nêles, então, obstinadamente, o cenário
do amor feliz. Agora essas árvores são apenas
árvores, e não atraem mais fantasmas. Nem vejo
mais êsses vinhedos refletidos em olhos de alguém.

1 05
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

D a porta de minha casa olho-os como os olhavam


meus antepassados, meu avô, meu pai, minha mãe,
- como um lugar de espera, uma últma escala, o
mais alto terraço de onde será preciso um dia des­
conhecido, e talvez bem p róximo, subir para o céu,
ou ser precipitado para o inferno.

Estar só, tarde da noite, em uma casa de . cam­


po, parar de escrever, e nessa ausência de qualquer
barulho, nessa interrupção de todo sinal humano,
sentir-se como um viajante no fim das terras, na
ponta extrema do mundo visível. Então, a oração
da noite sobe de nossos corações, como uma fuma­
ça, sem que nossos lábios se movam.

Os divertimentos não nos afastam apenas do


bem, mas também do mal. Os mil incidentes da
vida em Paris distraem nossa atenção dêsse animal
em nós que não acabamos de matar. Assim fazem
no circo os homens que agitam diante do touro a
band�ira vermelha. Mas, na solidão, o homem e
sua fera familiar permanecem face a face, não ape­
nas uma hora, mas dias e noites. Ê então que o
fiel que acreditara ter percorrido um longo ca-

1 06
AINDA A ALEGRIA

minha, verifica com terror que está no ponto de


partida. Uma bondade infinita o agarrara como a
uma prêsa inerte e o arrancara das garras do ani­
mal. �ste amigo onipotente o impede ainda de ce­
der à fascinação dos mornos olhos fixados nêle,
de fora que tem fome, mas, porque ainda tem
tempo, espreita-o, acocorada a pouca distância. Ã
volta do homem, o campo dorme, abandona-se, en­
trega-se ao vento sul, à chuva tempestuosa, ao sol,
à sombra, e não pensa em nenhuma resistência. E
já o corpo vivo imita sua passivididade, até sentir
um hálito sôbre seu rosto: a fera levantou-se, já
está perto dêle, e êle só tem o tempo de balbuciar as
palavras de salvação: Domine, ad adjuvantum me
festina.
Hoje, o vento leste desfiava as fumaças dos
tetos e das ervas queimadas. Após haver lido re­
cones de jornais e piedosas lengalengas, olhei mi­
nha velha casa, toquei-a, e as rosas estavam ainda
tépidas sôbre o muro da adega. E como me senti
forte contra todos aquêles que não transporão êste
limiar, que nunca conhecerei, e cujo comércio nunca

107
DOR E ALEGRIA DO CRJSTÃO

precisarei suportar! . . O escritor solitário deve ao


.

argus, êsse inconfessável prazer de imaginar todos


os contatos que teria podido sofrer e que lhe fo­
ram poupados. E além disso, a despeito de uma
tal dureza de coração, sempre o consôlo ao lado
da ofensa; sempre a carta de um desconhecido, pa­
dre ou estudante; sempre esta alma designada para
me tranqüilizar.
Se todo livro é uma chaga, haverá sempre ao
seu redor um círculo imóvel de môscas.
"A verdadeira vida é ausente". Claudel me cita
esta frase de Rumbaud para vedar ao romancista a
pintura da verdadeira vida. E é justo: nós somos
os pintores da vida que não é a Vida.
Os que alardeiam que crêem na queda original
e na corrupção da natureza, não suportam as obras
que as testemunham.
O romancista vive de sua lucidez; êle a desen­
volve monstruosamente até o dia em que percebe
que está alimentando um inimigo devorador. Os
outros homens envelhecem sem muitas dificuldades
porque se tornam cada dia mais cegos e mais sur·

108
AINDA A ALEGRIA

dos. Mas nós, precisamos morrer como certos sêres


dormem : com os olhos abertos.
Que coração resiste ao poder de minha aten­
ção? Não há quase ninguém que o romancista
estime cada vez menos, mesmo se o ama cada
vez mais.
Perder a fé nas criaturas, tão irremediàvel­
mente como outros perdem a fé em Deus, ets o
perigo.
A esta atenção corrosiva, as as criaturas que o
romancista inventa não resistem mais do que os
sêres vivos. Se é falsa a afirmação de que só se
pode fazer boa literatura com maus sentimentos, é
verdade que um certo grau de análise não deixa
mais subsistir em nossas personagens, nenhum bom
sentimento em estado puro.
"Basta purificar a fonte", dizia eu, acreditando
pela primeira vez, pôr de acôrdo em minha vida,
o romancista e o crtstao. Mas era esquecer que,
embora purificada, a fonte guarda ainda em seu
fundo a lama original, em que mergulham as se­
cretas raízes de minha obra. Mesmo em estado de

109
DOR E ALEGRIA DO CRISTAO

graça, as criaturas nascem do mais turvo d� mim


mesmo. Elas se formam daquilo que subsiste em
mim contra minha vontade.

Se, em casa de quem estou jantando, me diz:


"Com os católicos sempre somos francos, dizemos
tudo, mas êles pensam que seu dever é apresentar
as coisas sob um certo ângulo, êles arrumam, re­
tocam . . .
"

Êassim que sempre nos aparece o adversário.


O humanista - estou certo por minha parte - me
esconde os desmentidos que a cada instante a vida
lhe faz de suas teorias.
O cristão navega contra a corrente: êle sobe
os rios de fogo:. concupiscência da carne, orgulho
da vida. O humanista esgota-se em não descê-los
muito depressa, em interromper o deslizar. :Ele pro­
cura provar-se a si mesmo que permanece o senhor
de seus abandonos. Mas, o cristão acredita que
não está só no leme. A tenacidade com que se
esforça é penetrada por uma fôrça que vem de
outro! E mesmo quando se sente sozinho, alguém

110
AINDA A ALEGRIA

está adormecido na pôpa, e basta um só grito para


acordá-lo.

No ócio e no cansaço de uma gripe, retomo a


Viagem ao Congo De Gide, que antes me h avia
aborrecido como tôdas as narrativas de viagens, e
de que só tinha lido os fragmentos. E de súbito,
fico invadido, não pela África, mas por êsse Gide
tão diferente do que os jornalistas escreveram dêle,
tão humano, tão perto da terra, ao mesmo tempo
como Rousseau e Grethe: seu pasmo diante das pe­
dras, dos insetos, das plantas, nada que eu admire
tanto e de que me sinta tão afastado. :esse Gide
que, em viagem, nunca tem uma reação baixa (mui­
tas vêzes sentimos que é a inteligência que o pre­
serva delas) . Nos sofrimentos reais da expedição,
o papel que confere aos melhores livros, e o refú­
gio que encontra nêles. Nenhum pedantismo; suas
leituras se confundem com a vida. A cultura nêle
não é à parte, como uma pesada bagagem que se
precisa carregar com os braços estendidos, para es­
pantar os outros. A que ponto o caráter de Gide
modelou seu destino : essa constante felicidade, essa

111
DOR E ALEGRIA DO CRJSTÃO

aparente felicidade. A Graça ao seu redor, quei­


_
ma seus amigos, êle está cercado pelo fogo. Nem
Robert me fere, nem Edipo (embora me entriste­
çam). O essencial é que não confundamos o Mes­
tre com os pobres homens que o seguem de longe.
Não esperemos que sua inconseqüência possa nos
servir de desculpa eternamente.
O desafeto de Z. que volta de Moscou : "O
admirável por lá, é que não existe mais família . . .
"

Porque reunir essas páginas (Dor e alegria do


cristão) escritas já há bem três anos? Além de
tôdas as razões para fazer sucesso, vós discernis, ó
meu Deus, aquela que eu não tinha a coragem de
confessar: wna medíocre necessidade, uma oportu­
nidade muito baixa. Seria meu silêncio que teria
dado testemunho de Vós, mas o silêncio é wn luxo
perdido. Nada mais daquilo que nasce de mim
me pertence - nem mesmo êsses gritos lançados
para Vós e para alguns corações. Lágrimas de ver­
gonha ou de alegria, tudo, de ora em diante, é
"para o prazer". Que me seja dado saborear bem
esta baixeza. Que ao menos reste ao homem de

112
AINDA A ALEGRIA

letras o sentir-se um elemento no mais espêsso do


lixo que vieste recolher aqui em baixo.
Ficamos orgulhosos em ordenar nossas pobres
vidas : sacrifícios leves, miúdas vitórias sôbre nossas
vidas: sacrifícios leves, miúdas vitórias sôbre nos­
sos humores. Nada há que não figure na irrisória
narrativa que oferecemos aos que passam. Inspi­
rai-me o horror de tôda complacência. Nessa imi­
tação de Vós não é senão um triste arremêdo, desde
que não se oriente para estender-se sôbre o ma­
deiro em que sangrastes, desde que não nos sujeite
ao serviço de vossos pobres. Eu me coço, e cato
os piolhos dos meus escrúpulos, cujo excesso me
lisonsegeeis, mas tenho o coração cheio de ídolos
que não vejo.

Como uma criança faz com a moeda que o pai


lhe deu, no mesmo dia eu também, gasto o que
me destes, e novamente olho para vossas mãos. Se
tardais um só instante, com a cabeça voltada, res­
piro no vento o odor da fossa em que vieste me
buscar. Meus pensamentos errantes voltam ao mes­
mo lugar dos crimes antigos, e preciso lutar para

113
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

que êles não se trans formem em desejos, em sauda­


des e em tristezas,_.. até que �e concedeis vossa
graça, e que eu a dissipe ainda, sem nunca ver o
fim de vossas misericórdias. ó paciência, imobili­
dade do amor !
A que renunciei daquilo que se pode possuir
sem crime ? Possuo como se não possuísse. O pouco
desapêgo que obtivestes dêste coração, Vós o con­
seguistes, senão completamente contra a sua vonta­
de, ao menos quase sem que êle o soubesse, de
mêdo que viesse a gritar. Vosso sôpro o arrastou
insensivelmente para longe da margem; êle des­
perta, descobre sua solidão e sente mêdo : onde
estão os outros ?
Vós não mais lhe permitiu o gôsto de agra­
dar-lhe. A brincadeira de fazer-se amar, que diver­
tia nossa adolescência, torna-se, com a idade, uma
luta em que qualquer vitória parece duvidosa .

Mas, agora não é mais questão de vitória ou de


derrota; vosso amor nos transp orta, mesmo contra
nossa vontade, para fora dêsse brinquedo. Quem
rondaria à volta dos que pusestes à parte? Êles

114
AINDA A ALEGRIA

estão marcados com um sinal; o mundo não os


disputa mais : será êle que os deixa ou êles que
o abandonam ?

Conhecemos a exata fronteira do reino inimi­


go, e o perigo de morte que nos ameaça mesmo
quando ainda estamos em plena inocência. Se não
depende mais de nós resistir ao adversário, é por­
que consentimos em nos estabelecer no terreno da
inevitável derrota. Corremos livremente até o lu­
gar em que estamos certos de sermos vencidos.
Meu Deus, livrai-me dessa inocência, já prenhe do
pecado futuro, - êsse pecado que, algumas vêzes
nos mata sem que nos mexamos, sem que façamos
um gesto : êsse pensamento, êsses desejos acolhidos,
retidos. E nada aparece no exterior: estamos sen­
tados, folheando um livro, fumando, e nossa alma,
sem que ninguém suspeite, cai fulminada, morta.
Para X: É preciso aprender a desviar a aten­
ção de cada pensamento, de cada olhar, não mais
extenuar-se em discernir nêles o embrião do desejo,
a impureza em potência. O homem prêsa dessa
mania pode fazer conter todos os crimes do mundo

1 15
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

em uma única emição reprimida. A graça de Deus


não poderia ser perdida tão fàdlmente. Seu amor
não está à mercê de uma imagem que macula o
espírito durante um segundo. Mas pode acontecer
que anos de abandono sem freio a todos os movi­
mentos da carne, sejam pagos por essa reação doen­
tia, por essa perpétua freiagem da imaginação. Eu
devê-lo-ia ter assinalado melhor do que fiz no meu
Pascal. Seu grito "Que eu nunca mais me separe
(da graça) " sua desmesurada desconfiança, seu hor­
ror da menor carícia e das palavras inocentes, corno
"Essa mulher é bonita . . . ", tudo isso testemunha
urna vida durante muito tempo impura.
Por haver percorrido outrora todos os cami­
nhos da impureza, um convenido logo as reconhece
na hora da partida, no lugar em que, para outros,
nada ainda traiu o seu horrível fim.
Para compreender essa desconfiança, é preciso
lembrar-se que uma ligeira perturbação pode causar
wn imenso recuo, como basta urna pequena pedra

que cede sob nossos pés para que comecemos a


escorregar perigosamente.

1 16
AINDA A ALEGRIA

" O fatigante trabalho de se reconquistar do


mal e do êrro, em que se gastam tantas almas hu­
manas . . . " (E. Gilson) . :Esse cansaço, essa usura,
podem suscitar uma poderosa tentação : deixar tudo
isso, não mais atribuir tanta importância a uma tão
inacessível e inumana perfeição, esquecer-se de si
mesmo e dessa pobre carne, empenhar-se em lutas
menos estéreis, sociais, políticas ou outras. Mas
nós sabemos que, na ordem da ação tudo será cor­
rompido se o cor�ção não estiver antes purificado.
As máculas de seu coração explicam a baixeza dos
profissionais da democracia. Não estão à venda
porque têm paixões para saciar (É isso, diria um
cético, os que os torna inofensivos) .

Como o paganismo está misturado com nosso


sangue ! Basta, após três dias de brumas, que abra­
mos a janela para o sol, para que sejamos tentados
em sorrir-lhe e em estender-lhe vagamente os bra­
ços. Dez minutos antes de morrer, lembro-me do
olhar de minha mãe sôbre um dia de junho; ela
apontava uma árvore folhuda, cheia de passarinhos,
dizendo: "É isso que eu lamento . . . " Quanto a

117
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

nós, ela tinha esperança de nos reencontrar um dia,


mas não acreditava que pudesse· existir uma luz ao
lado da qual o belo dia de sua morte não fôsse
senão treva, - essa luz que contemplavam os olhos
cegos de Tobias.

A censura que me perturba mais : caluniar e


macular o amor carnal. Eu me interrogo e procuro
além de minha própria experiência, lembrar de tudo
o que vi, de tudo o que surpreendi. Sempre o
amado aproveita do seu escravo e procura, na ado­
ração que suscita, o sentimento acrescido de sua
própria existência; e às vêzes se cansa, se irrita, e
observa até onde vai seu poder, ou então, reanima
uma paixão que já fenecia, retorna quando o outro
começava a acostumar-se com sua ausência, vai-se
embora de nôvo quando está certo que sua vítima
tem necessidade de sua presença para não sucumbir
à dor . . . Mas, essa vítima é ainda mais feroz que
seu carrasco : respira êsse ser que lhe é tão neces­
sário como o ar, absorve-o, êle lhe pertence, é seu
alimento, assedia-o, retem-no, dispõe, para aviltá-lo
de vários meios, dos quais o dinheiro não é o mais

118
AINDA A ALEGRIA

baixo. E é tanto mais temível quanto se finge de


desinteressado, mas é sempre para certificar-se de
seus direitos, para se tornar necessário, para unir
estreitamente seu destino ao do ser que ama.

Mas, não haverá encontros bem-aventurados,


onde o amor dos amantes se equilibra ? lembro-me
bem : entre êsses dois egoísmos de igual poder, o
combate muito tempo permaneceu indeciso, como
quando dois lutadores que se seguram não podem
mais mexer-se, cada um procurando, para se tran­
qüilizar, fazer sofrer o outro; cada um procurando
ver o sangue do outro para certificar-se de sua vi­
tória.

Os amantes fazem um ato de fé nessa espeete


de amor, e fecham os olhos para não ver o que
êle é. Quando, ao morrer, o Antonio de Shakes­
peare professa que o hei jo é a única nobreza, já
conhece o engano de Cleópatra que havia jurado
matar-se e que encontra viva.

Mas, apesar de tudo, finalmente, ela acaba se


matando e lhe dando razão.

119
DOR E ALEGRIA DO CRJSTÃO

Pobre juventude ! Em certas horas, como o


fardo do próximo parece pesado de carregar !
Essas confidências, as palavras de confôrto, os apê­
los ao heroísmo, que é preciso achar custe o que
custar, tudo aquilo que sabemos ser verdade, mas
que, precisamente neste minuto, o coração não sen­
te . . . Era preciso poder não dizer nada, e lhes
fazer sinal para se porem de joelhos.
O interêsse, a curiosidade, a distração suscita­
dos por sua história, em vez de piedade e do horror.
Uma criatura se afoga e grita por socorro.
Enquanto te esforças em vir ajudá-la, ela dissimula
um surdo desejo de te cortar a respiração, de te
sufocar, de te atrair ao seu abismo.
A felicida<Je está em nós algumas vêzes sem
objeto: hera que não se sabe onde agarrar, e que
se agarraria em qualquer lugar. Nada que se pa­
reça menos com a Paz de Cristo. Ela é, mesmo,
sua inimiga, porque o pior poder-lhe-ia servir de
suporte. Mas a Graça vigia, e cria o vazio à volta
dessa hera, que enlanguesse por não poder agar­
rar-se a ninguém.

120
AINDA A ALEGRIA

Não fingirei acreditar que esta felicidade vem


de Vós. Reconheço sua face triunfante. Ela não
me deixava nos instantes de minha vida em que
eu vos crucificava. Eu a vi, mesmo, rir, aos pés
da Cruz.
As crianças e aquêles que não perderam a
graça da infância têm o direito de Vos amar na
alegria de sua carne intata. Mas, nos outros, a
fonte da alegria físico ficou corrompida para
sempre.
O maior sacrifício é o de nunca poder estar
abandonado, disponível às circunstâncias. Um cris­
tão é um rei sempre cercado por guardas.
Nunca estar abandonado, e, no entanto, perder
esta espontaneidade que atrai os corações. Perma­
necer ao mesmo tempo vigiado e livre. Evitar o
inconsciente ardil que nos faz recobrir o que te­
mos vontade de dizer, com um disfarce edificante.
Alguns cristãos conseguem um equilíbrio admirá·
vel entre a caridade e a liberdade. A caridade os
penetra de uma tal maneira, que nada têm a temer
do transbordamento do coração.

1 21
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

Nada de mais raro na vida: um minuto em


outro lugar; uma terra quente desposa teu corpo;
um vento fresco torna delicioso o ardor do sol.
Não desejo outra coisa, mas é porque a alma está
ausente dessa alegria : êste bem-estar nasce de sua
ausência. �sse repouso me separa de qualquer amor
humano ou celeste. Sem dúvida, estou muito pró­
ximo dêsse cão estendido ao sol, com as patas rígi­
das, e o focinho enfiado na terra. Se eu morresse
em um minuto dêsses, não seria a eternidade per­
dida ?
X. . . escreveu suas memórias, esquecendo-se de
desconfiar. me se situa a si mesmo entre Voltaire
e Napoleão. Êle escolheu ingenuamente seu lugar
para a eternidade e acredita que o vão deixar lá ·
·
entre os gênios. Êle faz "pose" e assim perma­
nece, imaginando que todos estamos despeitados.
De nada lhe serviu ver os verdadeiros mestres nos
arrastar para seus abismos, e obrigar-nos a descer,
após êles, até o segrêdo da vida.
Aquêles que procuram o que são, e os que se
inquietam com o que parecem ser; uns são os mes-

122
AINDA A ALEGRIA

tres, e os outros, macacos mais ou menos dotados


e engraçados.
A raça daqueles para quem a beleza vtva, ape­
nas e1urevista é uma dor . . . Nessa loucura have­
ria matéria para suscitar a fé na beleza eterna,
imóvel, imutável. E eis porque eu não me fiaria,
para crer em Vós, no desejo que tenho de Vós.
Não acreditaria haver-nos encontrado, por vos ha­
ver procurado. Creio em vós porque viestes em
um mometno da história. Deus, e no entanto ho­
mem entre os homens, corpo que pôde ser despido,
flagelado, coberto de escarros, peito que suportou
o pêso de uma cabeça, face que os lábios de Judas
tocaram. Nenhuma sêde pôde jamais criar a fonte.
Nenhuma sêde fêz jorrar a água da areia. Se não
tivésseis vindo, eu vos teria procurado, mas não
vos teria encontrado. Se, mesmo tendo vindo, ti­
vésseis saído do mundo, eu não conheceria esta paz
nem êste silêncio que distinguem entre todos, os
dias em que me visitais. Se não tivesseis feito em
mim vossa morada, eu faria o mal que amo.

1 23
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

-
- ''Infixus-sum- in- limo- profundi -et -non est
substantid', "Estou enterrado em uma lama pro­
funda, onde não há consistência". É a essa incon­
sistência que se reduz a liberdade da criatura de­
caída. O que quer que pretendem, vocês não são
livres de não se atolar. A própria natureza do
lugar em que vocês se estabeleceram, os obriga a
isto. Não há consistência na devassidão. A fadiga,
a saciedade, as circunstâncias, mas não a vontade de
vocês, é que podem interromper o atolamento. A
liberdade na lama não existe.
Triste Quinta-Feira Santa nas montanhas : as
trevas cobrem tôda a terra e o céu parece velado
de lama. As torrentes não são mais que uma es-·
puma esbranquiÇada, uma triste saliva. Era um ver­
dadeiro rebanho, . hoje de manhã, que se apinhava
na igreja. Todos os meninos, separados no côro,
como ovelhas dentro das sebes, brigavam e se ma­
chucavam sem que ninguém lhes dissesse nada. O
vigário vociferava sôbre um mundo desconhecido
a epístola e o Evangelho. Mas, o ridículo da ceri-

124
AINDA A ALEGRIA

mônia mal preparada, tanta feiura e tanta mtsena,


davam mais valor à ternura dêsse povo, quando o
Santíssimo Sacramento foi depositado no túmulo.
A despeito daquilo que poderia fazer rir, a pre­
sença real de Cristo nos foi atestada com um poder
desconhecido. Não é mais aqui a voz dos bene­
ditinos que precipita as batidas de nosso coração;
aqui não há mais que Vós e o amor dessas ovelhas
que se empurram, e que a inocência dessas crianças
que riem e ficam irriquietas diante de Vossa Face.
Cristo não só venceu a morte, mas também a
solidão humana. Em vão acusar-se-á a cruz de
haver entenebrado a vida, pois a Igreja responde
com uma voz embargada de lágrimas, na sexta-feira
Santa: nEcce enim propter lignum venit gaudium
zn universo mundo . . .
"

Nesta tarde de sexta-feira Santa, na montanha,


as nuvens se desfizeram, descobrindo o azul. O
Caminho da Cruz nos enternecera e caminhávamos
para os pinheiros encantados. Os animais pres­
sentiam, em tôrno das mudas cabanas, o mistério

125
DOR E ALEGRIA DO CRISTÃO

da santa noite. Esmaecidos pela distância, vinham


do bosque longínquo, os cantos dos pássaros, como
de um outro mundo. Os farrapos de neve sôbre
a terra eram a mortalha despedaçada do Senhor.
Cibele sentia seu corpo penetrado pelas raízes de
uma Árvore desconhecida, e cobena de sangue.

126
IND I CE

Prefácio 7

Dor do Cristão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Alegria do Cristão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

Ainda a Alegria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
NIHIL OBSTAT
SÃO PAULO, 12 DE ABRI L DE 1 9 6 1
MONSENHOR ] O S I! LAFAYETTE ALVARES

IMPRIMATUR
SÃO PAULO, 14 DE ABRI L DE 1 96 1

t PAULO ROL I M LOU REI R O , BISPO


A U X I LIAR E V I G á R I O G E R A L

ACABOU-SE DE IMPRIMffi NO M.llS DE MARÇO


DE 1962, NAS OFICINAS DA GRAFICA SARAIVA
S. A., RUA SAMPSON, 265, SAO PAULO, BRASIL

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