Professional Documents
Culture Documents
Introdução
Este trabalho compreende-se como um breve estudo de revisão bibliográfica cuja temática
foi desenvolvida em 05 capítulos. No primeiro é apresentada a concepção ontogênica do
cotidiano a partir de alguns primórdios do estudo da atividade humana, que representará
alicerce para conceber mais amplamente a importância dos processos de fazer como forma de
constituição pessoal, social, cultural, histórica. No capítulo seguinte é iniciada a discussão
sobre o alcance do uso da atividade humana através da óptica da clínica, que se dá pela
evolução das técnicas de atividades - forma primitiva de tratar em Terapia Ocupacional;
outrossim, há correlação do 2º com o 4º capítulo, que se presta a identificar a perspectiva da
10
Almejo que esta escrita seja um veículo de necessidade e entrelace entre os terapeutas
ocupacionais: profissionais que ousamos fazer e ter de refazer processos de viver todos os
dias, em nossos ofícios práxicos de cuidado, orientados pelo convívio cotidiano.
11
recreação ou mesmo de ocupação para distração de alienados. Em termos de clínica, este uso
da ocupação como meio psicoterápico e também fisioterápico, portanto recurso terapêutico, foi
no sentido de prover tratamento, por ora empírico e dogmático, para fins morais e espirituais
de acordo com a máxima “corpo são, mente sã”.
Marcos históricos da Terapia Ocupacional, no que tange à clínica através do fazer humano,
estão relacionados a dois contextos distintos. O primeiro referente às experiências lúdicas das
culturas greco-romanas, nas quais as atividades contemplativas e hedonistas de artes, tais a
música, a leitura, a poesia, os jogos serviam como pilares da organização social e de valores
ético-estéticos naquelas sociedades. Mais tarde, o segundo momento que ainda repercute
considerável influência para a compreensão atual de clínica e cuidado em Saúde Mental,
temos a égide da Psiquiatria incorporando a atividade humana com o uso da ocupação
terapêutica para efeitos ora disciplinadores, educativos, de técnica de “psicagogia” – termo de
Hermann Simon (ARRUDA, 1962) e ora de ressocialização como no caso do Tratamento
Moral de Phillipe Pinel (ARRUDA, 1962). Herança esta, última, que representa o imaginário
do que venha a ser o papel a Terapia Ocupacional e sua contribuição metodológica às
instituições psiquiátricas / de Saúde Mental / de Atenção Psicossocial, portanto, concebido de
forma reducionista ao ocupar por ocupar.
A vida em si é (toda) atividade, é fazer para realizar-se, e o ser cria à medida que se
depara com necessidades de mudar e superar a substancialidade do que vive, enfim. Segundo
Arruda (1962, p. 17) viver é atividade pelo seu “princípio psicofísico da existência humana
oposto à inatividade absoluta que é a morte”. Para Friedrich Niestzche (ARRUDA, 1962) este
princípio era denominado Leistungstherapie: a atividade criadora, princípio finalista do
psiquismo humano, ou seja, atividade que cria e que desenvolve a condição psíquica do
sujeito.
13
Em 1030 a.C. Saul, rei de Israel, foi tratado de depressão pelas músicas da harpa de Davi
– primeira cura utilizando a atividade como recurso terapêutico ou mesmo uma técnica de
musicoterapia pioneira. Platão, em “A República” considera a saúde espiritual e corporal
passíveis de serem obtidas e mantidas através da música, do relaxamento e da atividade
contemplativa com o uso da música; Aristóteles, por sua vez, relacionou efeito benéfico da
música a uma catarse emocional, encontrando aí a primeira explicação para o uso de uma
atividade humana de acordo com fim que se destinaria a ela. O valor terapêutico reconhecido à
música foi concebido, originalmente, a partir das considerações de Conidorus e Pitágoras.
Tais são os precursores do uso de atividades com fins curativos, terapêuticos, paliativos.
No entanto, a concepção que se tem hoje de clínica em Terapia Ocupacional ultrapassa o
limite de prescrições de atividades como recursos isolados em si mesmos para fins
terapêuticos. Vale ressalvar que o termo clínica, na acepção do termo klinus “inclinar-se sobre
o leito” ou ainda klinikós “ leito ou cama, estar ao leito” conforme observações de Paulo
Amarante em seu texto “A (clínica) e a Reforma Psiquiátrica”, remete-nos a um processo
dinâmico, ao qual o ofício do terapeuta ocupacional também evoluiu ao longo dos séculos até
a contemporaneidade.
O Tratamento Moral Pineliano, de Philippe Pinel, em sua origem moderna do século XVIII,
aplicado inicialmente em 1791, no Asilo de Bicêtre com a proposta de “quebra dos grilhões que
mantinham presos os insanos do espírito” Arruda (1962, p. 25), influenciou o principal método
15
de aplicação num contexto clínico da Terapia Ocupacional. Por se basear numa crença
pedagógica e moralizadora de que o trabalho deveria ser utilizado como elemento
normatizador do funcionamento comportamental e social do portador de transtornos mentais
na instituição asilar psiquiátrica:
Pode-se apontar que o Tratamento Moral foi implicar numa herança pedagogizante para a
consolidação da Terapia Ocupacional, naquele contexto histórico, uma vez que “imprimia a
marca de seus ensinamentos critérios pelo aprendizado da ordem, do trabalho, da realidade e
da sociabilidade”; Oliveira (2004, p. 4) as atividades eram prescritas conforme uma
necessidade de educar, disciplinar, efetivar coerção e norma à loucura no manicômio –
instrumento de correção pedagógica, de acordo com “a prescrição médica habilidosa” Teixeira
(1997, p. 313), para os alienados mentais, os desvalidos da razão, os contraditórios.
a) Organicismo:
Cria seu método de tratamento mais ativo ou tratamento hiper-ativo. Preconizando o uso de
capacidades, como um método educativo, a dita psicagogia, contrária ao laissez faire ou o
“dolce far niente” – sinonímias de ociosidade, portanto inércia. Neste momento, encontra-se a
eliminação do comportamento do louco, uma tentativa de afastamento transitório do que
provoca distúrbios mentais, buscando equipar tal finalidade através da hospedagem do
portador de sofrimento psíquico no hospital psiquiátrico, onde ali as ocupações seriam
escolhidas de forma individualizadas de acordo com os sintomas do paciente, uma espécie de
projeto terapêutico primevo;
b) Pensamento Jacksoniano:
c) Neo-Jacksonianos:
d) Psicanálise:
e) Psicologia Analítica:
- Carl Gustav Jung, apesar de não usar as terminologias vigentes de ocupação terapêutica
ou mesmo terapêutica ocupacional, estabelece psicoterapia intimamente impregnada de
atividade, onde há segundo Silveira (1996) maior aprofundamento teórico para a sua
terapêutica ocupacional. Atividades ocupacionais escolhidas intencionalmente para solicitar o
emprego de quatro funções: pensamento, sensação, sentimento, intuição. O indivíduo procura
traduzir suas emoções em imagens no caminho de sua cura que é dar forma objetiva às
experiências internas. Considerando nisso os elementos culturais e artísticos como
fenomenologia humana que possam ser estimulados na condução terapêutica.
Tais concepções psiquiátricas para o uso da atividade como elemento terapêutico, passível
de aplicação clínica, estruturaram assim um primitivo desenho do paradigma científico da
18
A Terapia Ocupacional compreende a saúde “dentro do contexto da vida diária, com seu
equilíbrio de trabalho, repouso, lazer” Oliveira (2004, p. 5), sendo a partir disso, definida como
“a própria Terapia Ocupacional é um processo de mudança através do fazer” Hagedorn (1999,
p.127-149), o que confere caráter inovador e holístico à clínica na concepção da Terapia
Ocupacional. Tal holismo será desenhado através das amplas necessidades humanas,
sensíveis a partir do cotidiano de vidas daqueles aos quais a profissão comprometer-se-á a
cuidar Oliveira (2004, p. 5-6).
“A promoção da saúde tem a ver com o dia-a-dia saudável, de tal modo que o
indivíduo possa usufruir o melhor que a vida tem a oferecer, seja da forma como ele
se alimenta ou como ele lida com o stress. É exatamente aí que a Terapia
Ocupacional tem a responsabilidade da intervenção em promover a saúde do
indivíduo, podendo-se usar as atividades da vida diária (AVD) e atividades da vida
prática (AVP) com qualidade, como sinônimo de estilo de vida saudável” Hahn apud
Oliveira (2004, p. 6).
Tendo como finalidade uma ação cuidadora, num contexto clínico, portanto terapêutica:
“para o terapeuta ocupacional, que tem, entre seus princípios, que o fazer / trabalho
é um organizador do comportamento humano e que, usado terapeuticamente,
produz uma organização do comportamento cotidiano” Oliveira (2004, p. 12).
O que irá construir a clínica para e pelo cotidiano, esse seu pilar diante o objeto maior de
estudo que é a ocupação humana “uma viagem de autoconhecimento na reconstrução de sua
biografia” Oliveira (2004, p. 13).
Numa perspectiva filosófica temos que o cotidiano seja todo o modo de fazer, a vivência do
ser, uma característica ontológica inerente ao ser social na sua dimensão cotidiana, intrínseca
às objetivações genéricas das formas de pensamento e ação, pelos quais, o indivíduo se
relaciona imediatamente com o mundo à sua volta (HELLER, 1989, 1994). O cotidiano é a
estrutura de referência de promoção e continuidade da vivência de qualquer pessoa. Em
Terapia Ocupacional há a retomada desta instância para a promoção da clínica que se
compromete com a edificação da autonomia do sujeito. Assim, identificar o cotidiano do cliente
e dali propor intervenções que resgatem bem-estar, que promovam habilidades para o ser se
fazer, que identifiquem limites a serem ampliados se torna o desafio criador da Terapia
Ocupacional, são ações que corroboram para a visibilidade de sua especificidade científica.
Nos dizeres do terapeuta ocupacional Luiz Gonzaga Pereira Leal:
“itinerário que conduz a esse ‘centro’ está permeado de obstáculos e que tão bem
se encontram desenhados nas circunvoluções, muitas vezes complicadas e
confusas, que o paciente exerce para nele ancorar-se. Podendo, a exemplo do
‘labirinto’, adentrá-lo e dele regressar, tendo o ‘centro’ do mesmo como ‘marco e
guia’” Leal (2005, p. 27).
“Nas situações dos grupos de Terapia Ocupacional, a interação com o outro é tanto
marcada pelas narrativas das histórias dos fazeres cotidianos como pela
reconstrução destes fazeres, uma vez que isto traz a possibilidade de uma
ressignificação da realidade com muito mais premência do que outras situações”
Oliveira (2004, p. 14).
Tendo no cotidiano seu eixo de saber e atuação - desta forma, tecnologia, que é a
aplicação deste saber, nos serviços e demais dispositivos de ajuda onde é convocada a
contribuir, a Terapia Ocupacional se constrói de forma complexa ao se debruçar no fazer
humano como objeto de estudo (BARTALOTTI e DE CARLO, 2001) e o cotidiano, finalmente,
faz-se a matéria-prima de toda a substancialidade de sua clínica, numa dinâmica desafiadora
que
O termo oficina que tem etimologia no Latim: officina, palavra relativa ao universo do
trabalho, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio - Século XXI, [Do lat. officina.] significa:
- “S. f.
1. Lugar onde se exerce um ofício.
2. Lugar onde se fazem consertos em veículos automóveis.
3. Dependência de igreja, convento, etc., destinada a refeitório, despensa ou
cozinha.
4. Fig. Lugar onde se verificam grandes transformações
* Drª. Nise da Silveira foi um dos maiores expoentes da história da Psiquiatria brasileira, exercendo
grande influência para a concepção da Terapia Ocupacional em sua atuação em Saúde Mental.
Psiquiatra alagoana de uma personalidade única, que ao propor práticas humanitárias contrárias
àquelas vigentes da Psiquiatria - limitadas ao uso indiscriminado de psicotrópicos e métodos de
contenção físico-química, inaugurou um panorama de pesquisa científica sobre a Psique. Alcançou,
assim, tamanha repercussão ao propor e conduzir o tratamento das doenças mentais pelo uso de
atividades criativas associado aos processos de lidar, através das emoções e a subjetividade dos
pacientes internos das instituições manicomiais. Definitivamente uma dita ousadia jamais concebida até
então no país. Sua indispensável biografia pode ser apreciada em artigos como: -“A Biografia de uma
Pioneira”, pelo poeta Ferreira Gullar, para o Jornal Folha de S. Paulo, em 1963; - “Nise da Silveira -
Homenagem a uma Guerreira da Luz”, pela psicoterapeuta Teresa Vignoli, além de sua própria
publicação, que inclui, dentre vários, os títulos: “Jung, Vida e Obra”, “Terapêutica Ocupacional - Teoria e
Prática”, “A Emoção de Lidar”, “Imagens do Inconsciente” e o “Mundo das Imagens”. Indica-se,
oportunamente, outro profícuo registro de sua historicidade e obra no sítio eletrônico:
www.museuimagensdoinconsciente.org.br/
26
Já na década de 80, o Brasil assiste a elaboração de: “POR UMA SOCIEDADE SEM
MANICÔMIOS” – incisiva temática do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, proferida
em um Encontro Nacional de Saúde Mental. Tal temática iria se consolidar como a
configuração de todo o ideário brasileiro reformista na área psiquiátrica, em especial na criação
da Atenção Psicossocial e na influência da formação profissional dos diversos atores
envolvidos com a produção da Reforma. Assistiu-se em São Paulo a inovação de serviços
pioneiros de Atenção Psicossocial em São Paulo, Santos, mais tardiamente em Belo
Horizonte, a partir de 1982, 1989 a 1996, São criados os Centros de Atenção Psicossocial -
CAPS, os Núcleos de Atenção Psicossocial - NAPS, as unidades básicas de saúde UBS’s
(“centros de saúde”) estruturam-se com as primeiras equipes de Saúde Mental, são também
estruturadas as Unidades de Emergências Psiquiátricas, as Enfermarias de Saúde Mental e a
Saúde Mental Hospitalar, os Hospitais-Dia em Saúde Mental, os Centros de Convivência e as
Cooperativas solidárias do trabalho e geração de renda em Saúde Mental. Enfim, o cenário
para o movimento reformista brasileiro foi sendo equipado de forma intensa com a abertura
política brasileira e a formulação do Sistema Único de Saúde – SUS.
“do lado dos chamados novos dispositivos assistenciais (...) um CERSAM, um centro
de convivência e uma moradia protegida não são, nem se propõem a ser, espaços
que refletem ou reproduzem as conquistas científicas de nosso tempo; são
inovações da cultura que inscrevem num outro registro” Lobosque (2003, p. 153).
“aos serviços substitutivos, cabe romper com esta antipática posição de razão diante
da loucura; serão novos se, e apenas se, buscarem para o sofrimento psíquico um
lugar de cidadania” Lobosque (2003, p. 154),
logo, o presente estudo irá identificar quais os elementos da Reforma Psiquiátrica, em especial
da construção da Atenção Psicossocial, mais se articulam com a proximidade deste “lugar de
cidadania”, buscando apontar respostas que a Terapia Ocupacional encontrou em si a partir do
eixo no cotidiano como produção de clínica e a clínica militante como almejo da categoria de
seus profissionais.
“tornar cada vez mais fluidas, mais transitáveis, mais flexíveis, as fronteiras entre as
instituições destinadas a eles [portadores de sofrimentos mentais] e a sociedade
onde se desenrola a vida e o destino de todos nós, loucos ou não” Lobosque (2003,
p. 17).
28
Enuncia-se, então, que “as oficinas foram estruturando-se de forma expandida na Saúde
Mental encontrando no viés terapêutico sua característica mais visível” Rocha (1997, p. 29)
apud Galletti (2004, p. 33). Observa-se assim a supremacia da terapia (nota nossa: aqui não
se refere à especificidade da Terapia Ocupacional, e sim ao genérico do termo; quando o
dispositivo de oficina começou a se relacionar ao estatuto terapêutico) em relação aos outros
campos de saber, utilização de diversificados ditos recursos terapêuticos como modalidades
para a promoção da Clínica em Saúde Mental, como as redes de suporte social e a
participação dos familiares.
As oficinas terapêuticas vão contribuir aí para a diferenciação entre clínica entendida pelo
conceito de instituição de assistência à Atenção Psicossocial e situando a terapia como seu
instrumento privilegiado. Uma vez que a relação de trabalho e artes nas oficinas produz
inserção no coletivo não só para pacientes portadores de sofrimento psíquico como qualquer
ser humano: produção de arte e da vida material, sendo assim interessou-se ampliar o método
terapêutico ocupacional como produtor de ações para toda a Saúde Mental, assistiu-se aí uma
descaracterização das oficinas como um domínio de saber e aplicação tecnológica exclusivos
do terapeuta ocupacional.
Estes dispositivos vão formatar uma diversidade de possibilidades de ações sempre com
espaços clínicos que valorizaram o hibridismo, a mobilidade, a instabilidade (mutabilidade de
estruturas e ofertas), sem identidade única, com experimentação múltiplas e incessantes,
interseção com vários campos e saberes, espaço agora pouco restrito quanto à especializada
profissional, dando possibilidade de problematização e descontinuidade das produções
31
A Terapia Ocupacional, por sua vez, vai se apropriar, como veremos adiante no presente
estudo monográfico, das oficinas como espaço para a produção de vida cotidiana, da vida
diária humana. As oficinas produtivas, ou ainda oficinas de trabalho, são aquelas que o
terapeuta ocupacional media processos de fazer em que as relações com o trabalho, as
funções produtivas, os ofícios, portanto, são (res)significados numa dimensão emancipatória
do fazer humano.
Deste modo,
“de propor uma técnica terapêutica para resolver os problemas das demais técnicas,
e sim problematizar, promover estratégias particulares, singulares, que digam
respeito aos problemas também circulares que a clínica nos propõe” Neves et al
(1996, p. 183) apud Galletti (2004, p. 85).
E a Terapia Ocupacional vai se comprometer com sua clínica dita pelos profissionais da área
como militante, transdisciplinar (idem) e holística, uma vez que é erguida para e pelo cotidiano
dos indivíduos.
essas experiências foram efetivadas na área comprometidas com o viés aglutinador das
oficinas.
Tais oficinas, neste contexto, foram traçadas com o caráter de organização entre o social e
o indivíduo para intermediar totalidades, em que se reconhece o holismo da visão de homem e
saúde em Terapia Ocupacional. Foi no ELT que as identidades sociais tornaram ampliadas
pelo lugar de os ditos “normais’ e “loucos” conviverem, se dando aos encontros entre
terapeutas e pacientes como cidadãos. A Terapia Ocupacional ali desenhada como o lugar de
trabalhar e a sua oficina é um laboratório de produção de vida e da vivência (sócio-cultural,
grupal). A instituição é transformada em um renovado dispositivo social, criação de uma função
articuladora, tem sua proposta ampliada para toda a rede de atenção à Saúde Mental na
capital paulista.
“A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes, ela é como um pôr do sol,
triste e nostálgico”
Rubem Alves
“a atividade humana seja entendida como espaço para criar, recriar, produzir um
mundo humano. Que esta seja repleta de simbolismo, isto é, que a ação não seja
meramente um ato biológico, mas um ato cheio de intenções, vontades, desejos e
necessidades (...); não basta fazer, fazer e fazer, acreditando que o simples curso
das coisas com isso se modifique. O fazer deve acontecer através do processo de
identificação das necessidades, problematização e superação do conflito [nota
nossa: no cotidiano mais significativo do indivíduo] (...) é necessário um profissional
preparado, cuja tarefa é a de se dispor, também, como instrumento terapêutico ou
recurso terapêutico, com o propósito de incomodar, de ativar e revelar o conflito para
a sua proposição” Francisco (2005. p.17).
Não há mudança do objeto de estudo em Terapia Ocupacional, que continua a ser o fazer
humano. No entanto ao eleger o cotidiano como o eixo da clínica, neste presente estudo
monográfico, ouve a ousadia de ressignificar o objeto de estudo da Terapia Ocupacional –
35
De tal forma, depreende-se uma concepção ampliada da clínica que poderia ser
displicentemente dimensionada a partir dos processos daqueles clientes que mantém um fazer
ativo, sem dar devida discussão àquele cotidiano de que não empreende um processo de
mudança, de transformação de si ou do universo relacional ao seu redor, e ainda assim
sobrevive. Este não-fazer cotidiano é motivo de discussão, algo objeto de intervenção, que
gera processos de saúde-doença que interpolam à Terapia Ocupacional objetivar ações e
contextos de cuidados.
em função da natureza práxica do ser humano: “o homem é um ser que em suas relações
necessita estar sempre encontrando novas soluções para as situações de vida que se
apresentam” Francisco (2005. p. 47) e assim ressignificar seu cotidiano e existência.
“Assim, lidar com o cotidiano é sempre intervenção que exige um lidar com a
concretude do homem, esse movimento de múltiplas relações. O cotidiano não é
rotina, não é a simples repetição mecânica de ações que levam a um fazer por fazer
[nota nossa: fazer alienado ou mecanicista]. O cotidiano é o lugar onde buscamos
exercer nossa atividade prática transformadora, é o social; é o contexto em que
vivemos” Francisco (2005. p.76).
37
“uma ciência que tem, como sujeito e objeto de seu conhecimento, o homem. Um
homem que não é o homem natural, mas o homem que transforma a natureza em
humanidade e que, também e principalmente, é um homem que faz, que ao fazer
simboliza e se objetiva e, com isso, se torna ser de sua existência” Carvalho (2005,
p.26).
Daí, ressignificar a produção de suas vidas emana nos indivíduos uma necessidade vital de
existir, de inscreverem-se singulares e potencializados no cotidiano mais idiossincrático, pelo
convívio salutar de inserção no grupo, ao qual se pode pertencer, fortalecer-se, emancipar-se
ou ainda remover-se, declinar-se, transitar, reconhecer. Nos dizeres do filósofo Félix Guattari
“os indivíduos devem se tornar a um só tempo solidários e cada vez mais diferentes”. E lograr
o cotidiano como estatuto do fazer em uma fonte de ressignificação, tal qual atribuição de
outros símbolos para apropriar-se de si mesmo numa dinâmica incessante de transformação
do que se é ou se está sendo, por vir-a-ser enfim.
38
Considerações Finais
A eleição do cotidiano, como um eixo para a clínica terapêutica ocupacional, aqui objeto do
estudo, refletiu o compromisso em repensar a vida de cada indivíduo que se atravessa pelos
caminhos e descaminhos do fazer de si mesmos, dia após dia, mantendo-se num processo
inadiável entre saúde-doença, conquista e ruptura de fazeres para o ser. Marcando essa
singularidade para a contribuição da Terapia Ocupacional em Saúde Mental.
Referências
FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio Eletrônico - Século XXI. Versão 3.0. Nova Fronteira e
Lexikon Informática, 1999.