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MARTINS, Edson e CÂMARA, Uipirangi Franklin da Silva. Direito e Religião no Brasil.

In: ANIMA: Revista


Eletrônica do Curso de Direito das Faculdades OPET. Curitiba-PR. Ano X, n. 17, jul/dez-2017. ISSN 2175-
7119.

DIREITO E RELIGIÃO NO BRASIL1

Edson Martins2
Uipirangi Franklin da Silva Câmara3

RESUMO

O presente artigo é fruto das pesquisas realizadas no Núcleo de Iniciação Científica do curso de
Direito do Centro Universitário OPET no ano de 2017, na linha de pesquisa Direito, Religião e
Gênero. Os pesquisadores procuraram estudar a presença de elementos religiosos na legislação
brasileira, entendendo ser a religião um fenômeno social e universal, presente na história do Brasil
desde o inicio da sua colonização. Desde a Constituição do Império, passando pelas constituições
republicanas, a religião está bem presente nelas. A maioria traz elementos religiosos em seu
preâmbulo, denotando a religiosidade de seus formuladores. Embora em todas as constituições
do período republicano preveja a separação entre Igreja e Estado, na prática muita coisa ainda
não foi separada. Dois exemplos da interferência da religião é o uso de símbolos cristão em
prédios públicos e os argumentos religiosos usados para barrar a descriminalização do aborto.

Palavras-Chave: Religião; Direito; Aborto; Ética

ABSTRACT

This article is the result of the research carried out at the Nucleus of Scientific Initiation of the Law
course of the University Center OPET in the year 2017, in the research line Law, Religion and
Gender. The researchers sought to study the presence of religious elements in Brazilian
legislation, understanding that religion is a social and universal phenomenon, present in the history
of Brazil since the beginning of its colonization. From the Constitution of the Empire, through the
republican constitutions, religion is very present in them. Most have religious elements in their
preamble, denoting the religiosity of their formulators. Although in all the constitutions of the
republican period it foresees the separation between Church and State, in practice much has not
yet been separated. Two examples of religious interference are the use of Christian symbols in
public buildings and the religious arguments used to stop the decriminalization of abortion.

Keywords: Religion; Right; Abortion; ethic

1 Este artigo é fruto das pesquisas do Núcleo de Iniciação Científica, linha: Direito, Religião e Gênero, do curso
de Direito do Centro Universitário OPET – UNIOPET, no ano de 2017.
2 Licenciado em Pedagogia pela UFPR, bacharel em Teologia pela Faculdade Batista de São Paulo, especialista
em Educação a Distância pelo Centro Universitário SENAC-RJ, mestre em Teologia pelo Seminário Teológico Batista
do Rio de Janeiro, mestre em Educação pela UFPR e doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de
São Paulo. Professor nos cursos de Direito e Pedagogia do Centro Universitário OPET - UNIOPET. Email:
edsonmartins9@gmail.com

3 Doutor e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Especialista em Filosofia
e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Tecnologias Educacionais
pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Project Management in Executive Education Program pela George
Washington University. MBA Internacional em Gestão de Pessoas pela FGV e George Washington University.
Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná, Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista
do Paraná. CEO da Educriare Planejamento e Consultoria Educacional. Professor de Sociologia Jurídica, Filosofia
Geral e Filosofia do Direito do Centro Universitário OPET - UNIOPET. E-mail: ucamara@gmail.com
MARTINS, Edson e CÂMARA, Uipirangi Franklin da Silva. Direito e Religião no Brasil. In: ANIMA: Revista
Eletrônica do Curso de Direito das Faculdades OPET. Curitiba-PR. Ano X, n. 17, jul/dez-2017. ISSN 2175-
7119.

INTRODUÇÃO

A religião sempre esteve presente na sociedade e, consequentemente, refletida,


em maior ou menor grau, nas leis de cada país. O Brasil, desde a sua colonização contou
com a presença forte da Igreja Católica, que foi a religião oficial do país durante a maior
parte de sua história. E esta forte presença é sentida na cultura, nos costumes e nos
valores da sociedade brasileira.
A maioria das constituições faz referência “proteção de Deus”, demonstração clara
da visão religiosa dos seus formuladores. Mesmo a primeira constituição republicana, de
viés positivista, embora deixasse clara a separação entre igreja e Estado, não foi capaz
de efetivar a laicidade do Estado de forma total. E nem o conseguiu as outras
constituições que a sucederam.
O objetivo deste artigo foi o de analisar o quanto de aspectos religiosos estão
presentes na legislação brasileira e as consequências disto no cotidiano da sociedade,
como as incoerências de algumas leis e as controvérsias causadas por alguns temas,
principalmente aqueles que envolvem aspectos morais ou doutrinários, essenciais para os
grupos cristãos.
Embora tenha havido uma nova configuração religiosa no Brasil com o crescimento
das igrejas evangélicas, principalmente as de orientação neopentecostal, quando o tema
afeta interesses religiosos (principalmente os cristãos), tem havido uma união pontual
entre católicos e evangélicos na defesa de bandeiras comuns (MONTERO; SALES;
TEIXEIRA, 2017, p. 434).
O texto está dividido em três partes distintas. Na primeira há uma discussão do que
seria a religião, definido como um fenômeno social, seus componentes e sua função na
visão de diferentes pensadores, como Peter Berger, Karl Marx, Jean Jacques Rousseau e
Max Weber.
Na segunda parte há uma apresentação sucinta das constituições brasileiras e
como foi abrigada a religião nos textos constitucionais: as novidades, os avanços e os
retrocessos.
Na terceira e última parte é colocada a discussão dos conflitos que muitas vezes
surgem na sociedade brasileira em decorrência dos valores religiosos de grande parte da
sociedade, confrontando a laicidade do Estado em alguns casos, como o do uso de
símbolos religiosos em prédios públicos e a descriminalização do aborto.
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1. A RELIGIÃO COMO FENÔMENO SOCIAL

A religião é um fenômeno universal, presente na vida da maioria das pessoas ao


redor do mundo, existindo desde os primórdios da civilização. Dificilmente se encontrará
um grupamento social que não possua alguma forma de religiosidade a reger seus
costumes, seu cotidiano, suas vidas (ASSIS; KUMPEL, 2011, p. 69)
Esta é uma realidade constatada na antiguidade e registrada nas palavras do
filósofo:
Podereis encontrar uma cidade sem muralhas, sem edifícios, sem ginásios, sem
leis, sem uso de moedas como dinheiro, sem cultura das letras. Mas um povo sem
Deus, sem oração, sem juramentos, sem ritos religiosos, sem sacrifícios, tal nunca
se viu. (PLUTARCO apud WILGES, 2001, P. 9).

É evidente que a religião exerce um papel importante na estruturação da vida


social, confirmadas nas palavras de Giddens (2005, p. 426):

Os registros das primeiras sociedades, cujas evidências encontramos somente em


ruínas arqueológicas, deixam vestígios claros de símbolos e cerimônias religiosas.
No decorrer da história, a religião continuou a desempenhar papel central na
experiência humana, influenciando nossa forma de perceber os ambientes deste
mundo em que vivemos e de reagir a eles.

Mas, como se define a religião? Não é uma tarefa fácil, havendo muitos fatores a
se levar em conta. Do ponto de vista etimológico, a palavra religião está ligada ao termo
latino religare, que indica um profundo relacionamento entre o ser humano e a divindade.
Mas como a etimologia não consegue traduzir todo o significado que muitas palavras
possuem, uma boa definição é a que é oferecida por Birnbaum (1987, p. 1058): “Religiões
são sistemas de crença, prática e organização que transformam uma ética que se
manifesta no comportamento de seus seguidores.“
É difícil estabelecer um consenso a respeito do tema. Geralmente, as definições
encontradas remetem ao Cristianismo, religião majoritária nos países ocidentais e que
não retratam as outras tantas religiões de outras partes do mundo.
Mas se não é possível fazer uma definição precisa da religião, é possível apontar
alguns elementos constitutivos de uma. Segundo Giddens (2005, p. 427) um traço comum
a todas as religiões é a existência de rituais ou cerimônias. Estas ações são distintas das
ações praticadas no cotidiano e só fazem sentido dentro do contexto religioso. As
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cerimônias possuem diversas funções, desde a chamada da divindade, nas religiões afro,
até a iniciação e a aceitação no grupo, no caso do batismo.
Para um melhor entendimento do que é um rito e seu significado, é importante
saber que,

O rito mostra em seu conjunto de elementos formadores, as concepções de


formação do grupo: a origem, os mitos a eles relacionados. O rito propicia manter
vivos os elementos que explicam a origem divina dos seres, re- atualizando a sua
crença. No momento do ritual o indivíduo se torna parte do todo, aqui entendido
como elementos participante e atuante na construção do rito, pelos poderes
conferidos por uma autoridade constituída, o juiz ou o professor, como instituições
por exemplo. Portanto os ritos expressam a vida religiosa e o aprendizado à
medida que se inspiram na relação de alteridade (LEAL, 2012, p. 116).

Um dos rituais religiosos mais comuns é o culto, definido por Marconi e Presotto
(2001, p. 165) como sendo,

uma série de atos contidos na veneração ou comunicação com seres


sobrenaturais. Consiste no conjunto de crenças, rituais e divindades, associados a
objetos, lugares específicos, oficiantes e crentes. Varia na estrutura, organização
e realização, no tempo e no espaço.

Os ritos cerimoniais podem ser coletivos, como os citados acima ou praticados


individualmente, como o jejum ou a meditação. Podem ocorrer em locai pré-
determinados como os templos, ou isoladamente pelos indivíduos em suas residências.
Eles possuem a função de manter viva a lembrança de elementos vitais para a existência
do grupo religioso, relembrando ao fiel seus compromissos e a importância de cumpri-los
com regularidade (FONSECA, 2015, p. 32).
Por serem tantos, é quase impossível catalogar todos os tipos de ritos e cerimônias
religiosas existentes.
Outro ponto em comum a todas as religiões instituídas é o fato de possuírem
doutrinas, normas e ensinamentos. Todas as religiões do mundo possuem ensinos
considerados sagrados, sejam orais, passados de geração a geração ou escritos. Aliás, a
maioria dos textos sagrados escritos circulou de forma oral por algum tempo, até que o
grupo religioso sentisse necessidade de preservá-los, escrevendo-os (MARTINS, 2015, p.
9).
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Mas por conter a religião tantas nuances, subdivisões e interpretações, uma única
definição dificilmente daria conta de esgotar o seu sentido. Assim, muitos preferem
discorrer sobre os mais variados aspectos da religião e suas consequências.
Um destes aspectos é a discussão acerca do sentido da religião, de qual seria a
sua função no mundo social. Muitos estudiosos escreveram sobre o papel e a função da
religião, dentre eles, Peter Berger, Karl Marx, Jean Jacques Rousseau e Max Weber.
Para Berger (1985) a sociedade com todas as suas instituições, cultura, normas e
aparato legal é uma construção humana, aí incluídas as religiões. Assim, chega-se à
conclusão de que a sociedade é produto do ser humano e este é quem produz a
sociedade, em um movimento dialético. Para ele, a principal função da religião é ajudar na
construção de um mundo social, de um mundo que faça sentido para as pessoas.
Berger (1985) afirma que o maior temor dos seres humanos é a anomia social, que
ele define como caos ou falta de sentido. Ao sacralizar aspectos complexos da vida
humana, como as crises, o sofrimento, as enfermidades e a morte, o ser humano cria um
cosmos sagrado, em que mesmo as coisas mais difíceis de explicar acabam possuindo
um ou mais sentidos, trazendo segurança ao que crê e tornando o mundo mais
significativo.
Já para Karl Marx a religião é um elemento importante de convencimento social,
fazendo parte do que ele denominava de “superestruturas”, que são as instituições de
modo geral, agrupando a política, o judiciário, o sistema educacional e artístico e tudo o
que envolve a sociedade. Estas estruturas sociais serviriam para combater mudanças
sociais radicais e manter as estruturas de privilégios das classes dominantes
(PONZILACQUA, 2016).
No meio religioso em geral, Marx ficou com a fama de inimigo da religião
principalmente pela frase de que ela é “o ópio do povo”, uma metáfora para os efeitos
nocivos que a religião causa na mente dos trabalhadores, que devido às doutrinas
religiosas, que justificam teologicamente as desigualdades sociais, não permitem que
estes trabalhadores sejam conscientizados da exploração a que estão sendo submetidos.
Ou seja, para Marx, a religião impede que os trabalhadores se tornem revolucionários
(PONZILACQUA, 2016).
Isto é bem exemplificado nas palavras de Giddens (2005, p. 431), ao escrever que
segundo Marx,
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A religião adia a alegria e as recompensas para a vida após a morte, ensinando a


aceitar resignadamente as condições da existência nesta vida. Dessa forma,
desvia-se a atenção das desigualdades e das injustiças encontradas neste mundo
em razão da promessa do que virá no próximo.

Em Karl Marx há um claro exemplo de alguém que acreditava no poder da religião


em ajudar a construir e principalmente em manter as estruturas sociais.
Nem tão pessimista a respeito da religião foi o filósofo Jean Jacques Rousseau.
Segundo ele, a religião tem uma função de auxiliar dos governos, atuando como auxiliar
na ajuda do cumprimento das leis, através dos costumes, servindo como “freios morais”
da sociedade. Mas nem tudo na religião seria positivo, pois,

Se por um lado as religiões são importantes meios de afirmação da liberdade


individual, e por isso devem ser permitidas pelo Estado, elas ao mesmo tempo
tornam-se focos permanentes de conflitos dentro da sociedade, e por isso devem
ser reguladas pelo Direito (PONZILACQUA, 2016, p. 10).

Assim, para Rousseau, a religião é um elemento importante de controle social, mas


que necessita de controle também.
Dos grandes pensadores que estudaram e escreveram sobre a religião, talvez o
que possua uma visão mais positiva acerca dela seja o alemão Max Weber. Em seus
escritos, ele defende que a religião, que na maioria das vezes é acusada de ser
conservadora, pode também ser inovadora, agente de mudanças sociais. Para defender
sua tese ele escreveu o livro A ética protestante e o espírito do capitalismo. Ali ele
descreve como as doutrinas protestantes, principalmente a doutrina da predestinação,
aliadas ao estilo de vida protestante permitiram o crescimento e a expansão do
capitalismo no mundo (WEBER, 2007)
Como foi visto até aqui, a religião é um fenômeno social, presente no mundo desde
sempre. E no Brasil, como foi que ela chegou e se instalou?

2. A RELIGIÃO NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

É um fato incontestável que a história do Brasil está intimamente ligada à religião,


especificamente a religião Católica Romana. Os descobridores do Brasil, os portugueses,
eram extremamente religiosos. Aliás, toda a estrutura social portuguesa era tutelada pelo
catolicismo mais conservador de toda a Europa.
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No período colonial brasileiro a relação entre o Estado e a religião católica era a


mais íntima possível. Quase todas as esferas da vida social brasileira estavam ligadas de
uma forma ou de outra, à religião. Esta relação só vai começar a mudar com a
promulgação da primeira Constituição Brasileira.

2.1 A RELIGIÃO NA CONSTITUIÇÃO IMPERIAL DE 1824

Logo depois da independência do Brasil, foi promulgada uma nova Constituição,


que continuou estabelecendo o Catolicismo como a religião oficial do país. É certo que
pequenas mudanças foram introduzidas, como a tolerância para com as outras religiões
que aqui se instalassem, desde que não fizessem proselitismo e nem possuíssem
templos. O texto é bastante claro a esse respeito:
Art. 5o - A Religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do
Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou
particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo.

A Constituição previa que ninguém seria perseguido por motivos religiosos, desde
que não desrespeitasse o Estado e nem ofendesse a moral pública. Embora o texto legal
abrigasse proteção para as religiões não católicas, na prática, era muito difícil uma
religião diferente prosperar naquele tempo, visto que todas as instâncias sociais estavam
dominadas pelo espírito do Catolicismo.
Isto se dava, porque:

a Constituição de 1824, se não excluiu totalmente a liberdade religiosa na teoria,


na prática invalidava a sua eficácia [...]. A liberdade de culto estava proibida, e a
organização do Estado, por sua vez, interferia imediata e profundamente na
realidade dos cidadãos, na medida em que o caráter público e privado do direito
era todo orientado por um Estado religioso. São exemplos dessa orientação certas
normas constitucionais que demonstravam o quanto era ilusória qualquer garantia
formal à liberdade religiosa de crença, já que o a de culto era efetivamente
proibida (RIBEIRO, 2002, p. 63).

O que se conclui na leitura da Constituição de 1824 é que ainda que o texto legal
abrisse brechas para a existência da pluralidade religiosa, na prática tal não acontecia,
pois, o súdito que não professasse a fé católica seria privado de vários direitos essenciais.

2.2 A RELIGIÃO NA PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO REPUBLICANA


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Com o fim do regime monárquico e a instalação da República no Brasil, em 1891 foi


promulgada a nova constituição republicana. Nela, os legisladores estabeleceram a
radical separação entre a igreja e o Estado. Assim, quase 400 anos de supremacia legal
católica foi interrompida.
Muitas mudanças começaram a ser implementadas a partir do texto constitucional. O
casamento legal passou a ser o civil, o primeiro documento oficial de um cidadão passou
a ser a Certidão de Nascimento, lavrada nos cartórios, os cemitérios foram secularizados,
o ensino público seria laico e todas as religiões passaram a ter os mesmos direitos.
Um aspecto que chama a atenção nesta primeira Constituição foi o fato de ela vetar
a participação de religiosos de vida consagrada em determinadas eleições, como se pode
ver no artigo 70, parágrafo primeiro, item 4º, que diz não poderem votar para as eleições
federais ou para as dos Estados os religiosos de ordens monásticas, companhias,
congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência,
regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual.
Outro fato interessante é que esta Constituição brasileira não traz referência a Deus
em seu preâmbulo. Isto se explica pelo forte espírito positivista que permeou os principais
líderes republicanos, que não viam com bons olhos a presença da religião nas instituições
públicas.

2.3 A RELIGIÃO NAS DEMAIS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Depois da primeira Constituição republicana, o Brasil teve a de 1934, que procurou


manter a separação entre igreja e Estado, mas introduzindo uma pequena abertura ao
prever a cooperação entre elas. Apresentou algumas novidades, como o ensino religioso
com frequência facultativa nas escolas públicas e a possibilidade de o casamento
religioso ter os mesmos efeitos do casamento civil, atendidos os requisitos legais.
A Constituição de 1937, produzida no governo de Getúlio Vargas manteve a
separação entre igreja e Estado e a garantia de liberdade de culto a todas as religiões.
Chama a atenção o fato de que esta Carta Magna não fazer menção a Deus em seu texto
inicial. Uma das explicações para o fato, de acordo com Fonseca (2015, p. 63), é a
inspiração fascista que a permeou, visto que o documento foi produzido em um período
de ditadura.
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Considerada uma Constituição democrática, a de 1946 surgiu de uma assembleia


constituinte, expressando a vontade popular. Nesta Carta não houve mudanças
substanciais no tocante à religião. Foi mantida a separação entre ela e o Estado e as
garantias de liberdade de crença e de culto. Uma inovação contida no texto constitucional
de 1946 foi a previsão de imunidade tributária para os templos religiosos.
A Constituição de 1967, redigida pela ditadura militar não trouxe modificações nas
relações entre igreja e Estado, mantendo quase todas as previsões das cartas anteriores.
A atual Constituição do Brasil, promulgada em 1988, contou com a participação ativa
de um grande número de parlamentares ligados às confissões religiosas,
majoritariamente evangélicos e católicos. Além de manter todas as garantias à existências
das religiões e a liberdade de crença e culto, o documento traz o seguinte preâmbulo:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar,
o desenvolvimento, a igualdade e a justiça com valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da
República Federativa do Brasil

Muito embora o preâmbulo da Constituição não possua valor normativo, ele possui
um valor simbólico. Evidencia a força da religião cristã (tanto na vertente católica, quanto
nas crescentes igrejas evangélicas) no Estado brasileiro. Esta visão religiosa irá refletir de
forma clara alguns dilemas enfrentados pela sociedade brasileira, em que valores
seculares colidem com valores religiosos, gerando tensão, na maioria das vezes.

3 A RELIGIÃO, O DIREITO E ALGUMAS QUESTÕES ÉTICAS

Como já foi visto até aqui, a religião católica chegou com os primeiros colonizadores
e sempre esteve presente no cotidiano do povo brasileiro e embora desde a primeira
Constituição republicana haja a norma explícita de separação entre religião e Estado, a
presença do Cristianismo nas mais diversas esferas seculares se faz presente. É como se
o Estado, em muitos casos, fosse cristão, o que acaba gerando alguma tensão, conflitos
éticos e situações bastante complexas. Ver-se-á nas páginas seguintes, como exemplo,
duas destas situações.

3.1 A LAICIDADE DO ESTADO BRASILEIRO E OS SÍMBOLOS RELIGIOSOS


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A primeira Constituição republicana deixou clara a posição laica do Estado,


estabelecendo uma radical separação entre este e a religião, de qualquer matiz. Os
constituintes de 1988 também foram no mesmo caminho ao aprovar o artigo 19 que
preconiza:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvenciona-los, embaraçar-lhes o
funcionamento ou manter com eles ou seus representantes, relações de
dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse
público.

Mesmo sendo o texto constitucional muito claro, é muito comum encontrar pelo
Brasil afora símbolos cristãos, como crucifixos (influência católica) e bíblias (influência
evangélica) em prédios públicos. Tal prática tem provocado algumas reações, pois de
acordo com Fonseca (2015), a laicidade estatal pressupõe distanciamento de
preferências religiosas, pois mesmo que o Cristianismo possua o maior número de
seguidores no Brasil, existem muitas outras religiões e estas possuem os mesmos
direitos.
Em defesa da existência de símbolos cristãos em órgãos públicos, evoca-se o
número expressivo de fiéis que professam o Cristianismo, sendo inegavelmente a religião
da maioria dos brasileiros. Rebatendo tal argumento, Almeida (2008, p. 104) afirma:

Interpretar a liberdade religiosa à luz dos valores religiosos da maioria é


simplesmente deixar de reconhecer o vínculo entre esse princípio e todos os
outros direitos que lhe são conexos, como o direito à igualdade, à liberdade de
expressão e à separação entre Igreja e Estado

Algumas ações de inconstitucionalidade foram propostas visando retirar os


símbolos religiosos dos prédios públicos. Um deles foi movido pelo Ministério Público do
Estado de São Paulo. Não logrou êxito, pois os juízes decidiram pela improcedência da
ação, argumentando que há no Brasil um histórico de aproximação do Estado para com
os valores religiosos, principalmente os cristãos, devido inclusive, à herança que o
Cristianismo legou ao país, desde a sua colonização (FONSECA, 2015).
Assim, fica o paradoxo: a mesma constituição que prevê separação entre igreja e
Estado, evoca a figura de Deus em seu preâmbulo e os órgãos que devem zelar pelo seu
cumprimento ostentam símbolos de uma só religião.

3.2 O ABORTO NO BRASIL E A VISÃO RELIGIOSA


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A legislação brasileira prevê a prática legal do aborto em três situações bem


específicas: quando há risco para a mãe, quando a gravidez é proveniente de estupro e
quando o feto for anencefálico.
Enquanto há grupos que lutam para a descriminalização total do aborto no Brasil e
apontam vários argumentos, sejam de cunho filosófico ou mesmo prático, há uma pressão
enorme por parte de entidades religiosas para a sua total criminalização. É um assunto
em que o consenso é quase impossível de se alcançar.
A organização religiosa que mais usa sua força para tentar mudar as leis a favor do
aborto á a Igreja Católica, que alega defender a vida desde a sua concepção, ou seja,
desde a união do óvulo e do espermatozoide. O entendimento é que desde a fecundação
já existe vida e interromper, seja em que estágio for, é um crime, pois o embrião já pode
ser considerado uma pessoa humana (MONTERO; SALES; TEIXEIRA, 2017, p. 440).
Nesta sua cruzada contra o aborto no Brasil a Igreja Católica tem contado com a
ajuda dos parlamentares evangélicos, em uma união não usual, em que os interesses
convergem, neste caso. Nas comissões que analisam as propostas que tramitam no
Congresso Nacional, tanto a Confederação dos Bispos do Brasil – CNBB, quanto estes
parlamentares, tentam barrar propostas mais liberais quanto ao aborto ou apresentam
propostas no sentido de restringir a sua prática ainda mais.
O debate que o assunto provoca, muitas vezes brutal, faz parte de uma democracia
e pode ser salutar. Sobre isto Montero, Sales e Teixeira (2017, p. 441), se posicionaram
ao afirmar que,

A análise desse processo permite-nos perceber que sob o aparente caos das
mobilizações coletivas e da virulência dos debates e disputas emerge uma
configuração relativamente padronizada que associa, articula atores,
acontecimentos. A análise também nos permite compreender como atores e
instituições estabelecem alianças e produzem justificativas na defesa de suas
posições no jogo de uma controvérsia. As controvérsias são situações dinâmicas
de confronto, mas também são momentos de construção ou de reconstrução de
determinado ordenamento social.

A questão do aborto é um claro exemplo de como convicções religiosas interferem


na elaboração de leis no Brasil. Os que defendem que o corpo da mulher a ela pertence e
somente ela é capaz de decidir o que fazer com ele, estão evocando princípios da
liberdade individual, área em que, segundo eles, a religião não deveria se imiscuir.
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Já os que defendem que o Estado tem a obrigação de proteger o embrião desde os


seus primeiros momentos, trazem para o debate questões religiosas e morais, como a
defesa da vida.
À primeira vista, não parece haver consenso quanto à esta questão entre os
envolvidos e é quase certo que novos embates sobre o tema aborto serão travados
brevemente no Brasil e a luta será travada na arena política, com a presença ostensiva da
religião, que influenciará as decisões jurídicas, de uma forma ou de outra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final deste artigo, seus autores puderam concluir que a religião, de uma forma
ou outra, está presente em todas as sociedades, em todas as épocas e lugares. É um
fenômeno social e universal. No Brasil, a história do descobrimento e da colonização está
intimamente ligada à presença marcante e vigorosa da Igreja Católica, que ocupava (e
ainda ocupa) grandes espaços sociais.
Foi possível, ainda, analisar a dificuldade em se conceituar a religião, conhecer
seus principais componentes e o seu significado na visão de grandes pensadores, como
Peter Berger, Karl Marx, Jean Jacques Rousseau e Max Weber.
Viu-se que para Berger, a religião tem a função de dar sentido ao mundo,
afastando a ideia de caos, de anomia. Para Marx, a religião é alienante, instrumento de
dominação que as elites usam para se perpetuarem no poder. Rousseau via a religião
como um freio social, quando se alia ao Estado na manutenção da ordem, mas que
deveria ser vista com cautela, pois ela mesma pode subverter a ordem social. Já Weber
via a religião de uma forma mais positiva, imputando a ela o poder de trazer inovações
sociais.
O artigo permitiu apresentar um breve panorama das constituições brasileiras e a
presença da religião em cada um dos textos constitucionais. Observou-se que em todas
elas havia a preocupação do legislador em manter a separação entre a igreja e o Estado,
mas que na prática isto não ocorreu de forma efetiva.
Por fim, os pesquisadores selecionaram dois exemplos de como a religião acaba
pautando algumas discussões no Brasil. O primeiro é o uso de símbolos religiosos em
prédios públicos, inclusive os da justiça, que deveriam zelar pela laicidade do Estado, mas
não o fazem. O segundo exemplo é a polêmica acerca do aborto no Brasil, previsto na
legislação em três distintos casos: risco de morte para a mãe, gravidez mediante estupro
MARTINS, Edson e CÂMARA, Uipirangi Franklin da Silva. Direito e Religião no Brasil. In: ANIMA: Revista
Eletrônica do Curso de Direito das Faculdades OPET. Curitiba-PR. Ano X, n. 17, jul/dez-2017. ISSN 2175-
7119.

e feto comprovadamente anencéfalo. Apesar dos esforços para a total descriminalização


do aborto por parte de várias entidades e partidos políticos, o lobby religioso tem
mostrado muita força neste embate.

REFERÊNCIAS

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Democracia. A questão do ensino religioso nas Escolas Públicas. Belo Horizonte:
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Eletrônica do Curso de Direito das Faculdades OPET. Curitiba-PR. Ano X, n. 17, jul/dez-2017. ISSN 2175-
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