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05/07/2018 » Para rexistir!

Frente povo por vir

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CLIMACOM CULTURA CIENTÍFICA ‑ PESQUISA, JORNALISMO E ARTE | ANO


02 ‑ VOLUME 02

Para irmão/ Saudava que

rexistir!
essa pregação//
Lembra que a

Frente morte/Te espera meu

povo por
irmão/E o sol da má
sorte/Rei da

vir tribusana/
sussarana/
Poupou
Carcará
ladrão/Isso o sol
Levanto meus olhos/
poupou!//Mas não há
Pela terra seca/ Só
de ser nada/ Na
vejo a tristeza/ Que
função das bestas/
desolação/ Uma
Prurriba da festa/
ossada branca/
Perigrina a fé/ Sei que
Fulorando o chão//E o
ainda resta/ Cururu‑
passo‑Rei, rei do
tetê// Na minha casa
manjar/ Deu bença à
há um silenço/ A tuia
Morte pra avisar/Pra
pura e o surrão
os urubus de outros
penso/ O meu
lugá/ Que vissem logo
cachorro amigo
pro jantar/Do Rei do
imenso/ Deitou no
Fogo e do luar// Do
chão ficou em
luar sisudo/ Do Rio
silêncio/ E nunca mais
Gavião/ Mais o sol
se alevantou/ Inté os
malvado/ Quemô os
olhos d’água/ Chorou
imbuzêro/ Os bode e
que secou/ E o sol
os carneros/ Toda a
dessas mágua/
criação/ Tudo o sol
Quemou os imbuzeiro/
queimou// É que tão
Os bode e os carnêro/
as era/ Já muito
Toda a criação/ Tudo
alcançada/ A palavra
o sol queimou/ No Rio
veia/Reza que
Gavião/Tudo o sol
haverá/De chegar um
quemou/ Toda a
tempo/Só de
criação
perdedera// Que só
haverá de escapar/  
Burro criolo e criação/
Que pra cumê levanta Elomar Figueira Melo.
as mão/E que um Incelença pra terra
irmão pra outro que o Sol matou
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[0] o nosso modo de existir em relação


com o ambiente. Nossa tarefa é
Uma aliança “terrana” rexiste com
urgente, somos convocados a
os despossuídos e os desapegados.
refletir sobre as nossas ontologias
As mudanças climáticas inserem a
(para que outras possam continuar
humanidade em tempos urgentes.
existindo). É o “staying with the
O mundo ocidental, tomado por
trouble” da Donna Haraway,
sua própria e soberba cegueira, ora
traduzido para o português do
nega a existência de uma “guerra
“papo reto” por Juliana Fausto
ontológica” e, consequentemente,
como: “durmam com esse
nem mesmo reconhece a violência
barulho”. E é ensurdecedor e nada
nesse modo de existência que
alarmista dizer que uma diária da
aniquila outros mundos, ora afirma
sociedade dos “modernos” está nos
na aceleração a saída para a
custando um aumento da
sobrevivência do antropos (caindo
temperatura do mar, num nível e
na mesma armadilha que “nos” rapidez que possivelmente não
colocou nessa situação). Contudo, poderemos suportar. À medida que
recordemos, esse cenário produz adiamos as decisões sobre as
uma injustiça territorial e tem no transformações em nosso modelo
racismo ambiental o elemento de consumo e descarte de coisas,
fundante da devastação da terra. A do lixo e da compostagem de
rexistência indígena, cabocla, alimentos, dos limites da terra em
sertaneja, negra e dos coletivos e seu uso e desuso, da filosofia dos
comunidades, que chamo aqui de animais e de suas autonomias, dos
despossuídos e desapegados, é direitos dos povos originários, do
estratégica na luta pelo ontológico equilíbrio no uso da água e,
direito de pensar. Nesse sentido, principalmente, no trato das
somos todos terranos e vamos energias, nos tornamos cúmplices
compor a Frente do “povo por vir”. do nosso próprio fracasso.

   
[1]
[2]
Em tempos de Golpe Sobre os modernos, estes não são
(#ForaTemer!), cito diretamente lá muito honestos em seus relatos.
um dos grandes pesquisadores Temo ainda não ter compreendido
sobre as ciências do clima, o se se trata de uma perversidade
professor Alexandre Araújo Costa: ético‑política ou de uma
“o golpe mesmo é o ingenuidade deliberadamente
Antropoceno!”. De maneira ambígua. Ainda assim, são
nenhuma o momento político do contextos distintos. Por enquanto,
país perde seu status permanente sinto ser possível apenas falar do
de ausência do Estado democrático contexto perverso, este que (na
de direito e de suspensão das leis e guerra descrita por Latour em War
direitos sociais já conquistados. of the worlds: what about peace?)
Contudo, a humanidade como uma torna os modernos operadores de
força geológica capaz de alterar uma engrenagem que chamaremos
ciclos inteiros de outras vidas na de geoengenharia aceleracionista.
terra (humanas e não humanas), Digo isso, mas me falta a
aciona uma urgência de (re)pensar
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linguagem para tal crueldade e ***


violência, porque este processo se
realiza na tolerância para com o Quando se afirmou, há
modo de existência dos “povos cem anos, que bastava
recalcitrantes” – os teimosos do de explicar o mundo
Antropoceno – e não na pois o necessário era
possibilidade de diferir em relação transformá‑lo, é
ao seu modo próprio de ocupar a porque o hálito das
terra. Ainda, para os modernos, é massas
sempre uma questão em relação ao industrializadas
modelo dominante, portanto, os falava. Elas achavam
Outros podem viver, desde que se enfim a sua própria
adaptando aos acordos vigentes do mitologia. Uma
nosso mundo. mitologia brotada das
forças do mundo
  explorado e
conhecido. Note que
[3]
as massas sempre
O humanismo é a marca do período tenderam ao
individualista. O social faz o mitológico no seu
período coletivista (ANDRADE, desenvolvimento
1944). Os modernos estão inscritos espiritual. Talvez hoje
por esse humanismo: seja uma porta
autorreferencial, dominador, mística a que se
colonizador, verticalizante e escancara para elas,
patriarcal – em conformidade com na História, mas na
um estado de “cosmopolícia”. direção inflexível das
Diante do cenário desenhado pelos realizações terrenas.
cientistas do clima e dos avisos dos Desta terra, nesta
terra, para esta terra.
profetas da chuva, xamãs e do
papa Francisco, as negociações da E já é tempo.
conferência do clima em Paris
Nada mais disse nem
(COP‑21) mostraram‑se tímidas e
lhe foi perguntado.
não dialogam com “princípios da
justiça climática, social e  
geracional.” Os responsáveis
(chefes de Estado, os executivos e Oswald de Andrade,
lobistas do progresso energético) Meu Testamento
dispõe‑se ao mínimo possível em
 
nome do crescimento. O
capitalismo, em sua fase atual, não [4]
admite o conflito e muito menos a
violência implicada na Não vê que pertence à terra?
acumulação: não há um horizonte Somos o povo de baixo. Da razão
de redução acelerada das emissões para o corpo. Dos escravos urbanos
de gases de efeito estufa e de das fábricas têxteis da grande São
desaceleração energética. Paulo aos escravos do campo nas
fazendas dos políticos de
  colarinho. Em breve, os direitos
trabalhistas podem ser suspensos
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no Brasil para responder à experiências possíveis de


necessidade do capital em compromisso com a terra do que a
acumular mais, gastando mais ser guarda de fronteiras
energia. O capitalismo para as (territoriais ou culturais). Pois,
terras de baixo, em tempo, impõe como aponta Viveiros de Castro
o trabalho colonizado e (2006), “não há culturas
assujeitado. Junto dos imigrantes e inautênticas, pois não há culturas
refugiados climáticos, seremos autênticas. Não há, aliás, índios
trabalhadores cansados e autênticos. Índios, brancos,
domesticados diante das exigências afrodescendentes, ou quem quer
do desenvolvimento e do que seja – pois ‘autêntico’ não é
progresso. O corpo em conexão uma coisa que os humanos sejam”.
com o território vive um processo Corremos alguns riscos ao dar os
de adoecimento mediado pela primeiros passos (mesmo que as
desmedida e inflexível imposição histórias das lutas estejam aí há
do projeto da maioria. O jogo tempos), falamos em cultura dos
imobiliário dos capas da outros com a hesitação das
empreiteiras e construtoras e as crianças que aprendem a caminhar
favelas, a territorialidade usurpada – ou talvez até seja isso mesmo, já
para a implantação do projeto que, ainda modernos, não sabemos
maravilha. A falta da água nas andar com os pés sobre o chão.
chancelas do Estado é um Mas a prudência e o cuidado não
problema pontual, tratado com o podem nos estagnar, quando na
descuido daqueles que só veem e realidade podem ser o que de
escutam o som das bolsas de necessário dessa transmissão
valores. transforme o agir nesse nosso
tempo.
 
 
[5]
[6]
Contudo, rexistimos – os Outros – e
somos teimosos. Seja na Aldeia Além disso, somos coletividades
Maracanã, seja nas ocupações em busca de um baixo consumo de
secundaristas, com os black blocs energia: temos preguiça, somos
do Não vai Ter Copa, com os índios manifestadamente ociosos e nos
Krenak que enfrentaram a Vale assumimos desaceleradores. Isso
S.A., seja nas comunidades da não significa deixar de se
beira do Rio Doce, com os índios e movimentar, aliás, essa é uma
ribeirinhos que resistiram convocação ao intenso
bravamente diante de Belo Monte, deslocamento. Despossuir‑se e
com os Guarani Kaiowa no Mato desapegar‑se não tem nada a ver
Grosso do Sul, os moradores da Vila com um conhecimento de si
Autódromo, as paradas LGBT, as mesmo, mas, sim, com a
mulheres contra a cultura do convivência na máxima
estupro, até mesmo com todos diferenciação. Entender o
aqueles que tentam apagar a tocha território em nosso modo de
olímpica. Nesse sentido, somos existência ampliado e, portanto,
todos “involuntários da pátria” – responsáveis por ele. A nossa
muito mais dispostos a devorar rexistência é tendenciosamente

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alegre e não opera na vigilância, “produção‑descoberta”


nas lutas e movimentações ao (STENGERS, 2015, p. 152) que
redor. Pode ser até que alianças encontramos a alegria.
temporárias sejam necessárias e
 
que as nossas lutas coexistam para
um fim específico (dentre tantas,
[8]
continuar barrando a PEC 215 e
endurecer leis fiscalizadoras das Captamos então breves alegrias na
barragens, pressionar pela luta por terra e água. A resistência
homologação de terras indígenas e indígena, o povo afirmando o
unidades de conservação). direito à diversidade
cotidianamente, os acampamentos
 
no campo e ocupações urbanas, o
canto do sertão “sertanezo”, a
[7]
festa do Caboclo Bernardo em
Como em uma das músicas de Regência (ES) com vistas para o Rio
Elomar, ainda há poesia: “Toda a Doce com a lama turva, a oração
criação/ Tudo o sol queimou/ No da benzedeira dos bairros, a festa
Rio Gavião/ Tudo o sol queimou/ no terreiro, entre as tantas igrejas
Toda a criação”. A incelença do evangélicas, e nas subjetividades
cancioneiro chora essa terra que coletivas urbanas, rompendo com a
não volta mais. No Brasil, o frieza da indiferença. Percebemos
encontro do sertão profundo com o que na guerra de mundos
litoral produz um imaginário que assumimos o conflito como
não se limita às fronteiras iminente para o território terrano.
(SCHOUTEN, 2005). E talvez seja Como proposto por Mauro Almeida
necessário chorar à cabeceira (2014), formamos uma guerrilha
dessa terra – celebrar o Golpe em anti‑entrópica para “evitar a
seu sentido extensivo como um morte, a desordem e o
acontecimento, uma vez que o sofrimento”, e isso é o que nos
arquétipo entrópico e antrópico do une. O coletivismo se ancora em
Golpe situa‑se no Antropoceno uma composição local capaz de
como um acontecimento, na atacar o cimento – um “Verde
medida em que acentua a Ataque”. Uma rede de alianças
catástrofe climática e ambiental, com olhos para a terra: a
pois ignora as consequências em composteira. Táticas localizadas
médio e longo prazo relacionadas de vivência e experiência próxima
às políticas socioambientais – para de habitar o território: um campo
recuperar esse território que nos de possíveis e o nosso círculo de
foi tomado. Assim, em diálogo com vizinhança.
Stengers (2015), percebemos ser
 
necessário (e urgente!) compor
com as testemunhas narrativas e
[9]
celebrações para alimentar a
confiança onde a impotência Os aspectos coletivistas não são
ameaça. No rastro desses mundos ingênuos e nem românticos, são
que perdemos de vista estão as apenas fabulativos. Ativam um
pistas para outros agires e fazeres estado de invenção permanente:
experimentais. E é nessa fabular com outros viventes a

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escuta, outras linguagens, outras Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz.


políticas de existência, outros São Paulo: Ed. 34, 2013.
povoamentos. Decretar o fim do
FAUSTO, J. Terranos e Poetas: o
ciclo individualista com iniciativas
“povo de Gaia” como “povo que
autônomas contra a dominação da
falta”. Landa, v. 2, n. 1, p. 167‑
natureza pelo homem. Nesse
181, 2013.
sentido, a dicotomia entre sujeito
e objeto, natureza e cultura,
FIGUEIRA MELO, E. Incelença pra
perde todo sentido quando
terra que o Sol matou. ConSertão,
estamos à escuta do “povo que
1982.
falta” e da retomada do território.
Não aceitar a suposta paz, nas HARAWAY, D. Anthropocene,
palavras da poeta Angélica Freitas: Capitalocene, Chthulucene:
“Eles, dinossauros. Nós, meteoro.” Staying with the Trouble. Open
Transcripts, 2015. Disponível em:
  <http://opentranscripts.org/transcript/anthropocene‑
capitalocene‑chthulucene/>.
Referências
Acesso em: 15 jul. 2016.
ALMEIDA, M. W. B. Metafísicas do
fim do mundo e encontros MATOS, M. de A. Cosmopolemos:
notícias de uma guerra de mundos.
pragmáticos com a entropia ou É
possível enfrentar a entropia In: COLÓQUIO MIL NOMES DE GAIA,
Rio de Janeiro. Anais…. Rio de
capitalista com demônios
informacionais? (Do turing Janeiro: PUC‑RJ, 2014.
machines dream of cybernetic
______. Antropofagia: “a única
Gaia?). In: COLÓQUIO MIL NOMES
filosofia original brasileira”.
DE GAIA, Rio de Janeiro. PUC‑RJ,
Comunicação Filosófica na
2014.
Universidade Federal do Acre,
2014.
_____. Caipora e outros conflitos
ontológicos. R@u, v. 5, n. 1, p. 7‑
SCHOUTEN, A.‑K. de M. Peregrinos
28, jan./jun. 2013. Disponível em: do sertão profundo: uma
<https://issuu.com/raufscar/docs/rau.
etnografia da música de Elomar
Acesso em: 15 jul. 2015. Figueira Mello. São Paulo:
Annablume, Fapesp, 2010.
ANDRADE, J. O. de S. Meu
Testamento. In: ANTUNES, B. A
STENGERS, I. No tempo das
Utopia Antropofágica: Obras
catástrofes: resistir à barbárie que
Completas. 4. ed. São Paulo:
se aproxima. São Paulo: Cosac
Globo, 2011.
Naify, 2015.
DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE
VIVEIROS DE CASTRO, E. No Brasil,
CASTRO, E. (org.). Há mundo por
todo mundo é índio, exceto quem
vir? Ensaio sobre os medos e os
não é. In: RICARDO, B.; RICARDO,
fins. Desterro [Florianópolis]:
F. (ed.). Povos indígenas no
Cultura e Barbárie; Instituto
Brasil: 2001‑2005. São Paulo:
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Instituto Socioambiental, 2006.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que ________. Os involuntários da


é a filosofia?. Tradução de Bento
pátria. Aula Pública, Cinelândia,

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Rio de Janeiro, 20/04/2016. publica‑durante‑o‑ato‑abril‑


Disponível em: indigena‑cinelandia‑rj‑20042016/>.
<https://acasadevidro.com/2016/04/2 Acesso em: 15 jul. 2015.
involuntarios‑da‑patria‑por‑
eduardo‑viveiros‑de‑castro‑aula‑  

http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=5534&fs=imprimir 7/7

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