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POPULARES E VILLA-LOBOS
Ermelinda Paz (2004) e Hermínio Bello de Carvalho (1988), autores dos dois
únicos trabalhos dedicados especificamente à conjunção entre Villa-Lobos e a música
popular, retratam um compositor saudavelmente nacionalista e sem preconceitos 1,
“ajoelhado no altar da música e dos músicos do seu povo, rezando suas Bachianas,
Choros e Sinfonias” (CARVALHO, Idem: 94)2. É também por essa linha que segue a
maior parte das biografias de Villa-Lobos – a começar pela primeira e mais influente
entre elas, escrita por Vasco Mariz ([1949] 1983) sob os conselhos atentos do
biografado3 – e os manuais de história da música brasileira produzidos entre as
décadas de 1950 e 1980 4. Em todos esses trabalhos procura-se ressaltar o contato e a
1
“Uma visão sem preconceitos” é subtítulo do trabalho de Paz (Idem).
2
Os Choros e as Bachianas Brasileiras são as duas séries de obras mais conhecidas de Villa-Lobos.
3
Cf. Lima (2017).
4
Em minha dissertação (LIMA, 2017: 56-88), analisei em maior detalhe as tangências desses trabalhos no
que diz respeito a Villa-Lobos.
amizade de Villa-Lobos com músicos populares, a admiração que ele teria nutrido
desde sempre por eles e pelas criações musicais “do seu povo” de modo geral e a
expressão de tal convivência e de tal admiração nas obras do compositor – um
fenômeno, ressalte-se, único na (e para a) sociogênese de uma “legítima” música
brasileira. Um apologia que se faz com base, principalmente, em depoimentos orais,
memórias e opiniões do próprio Villa-Lobos e de seus contemporâneos 5, dentre eles
alguns dos nomes mais conhecidos da “tradição” da música popular brasileira, como
os Batutas Pixinguinha e Donga.
5
Todos preservados no Rio de Janeiro: no Museu da Imagem e do Som (que a partir de agora será
identificado pela sigla MIS), no Instituto Moreira Salles (daqui em diante IMS) e Museu Villa-Lobos.
6
É o caso de Cherñavsky (2003), Lisboa (2005), Damasceno (2014), entre outros.
7
Entre eles, o magistral ensaio de Wisnik (2004) e o trabalho de fôlego, dos mais importantes estudos sobre
música erudita desse período, de Arnaldo Contier (1988).
8
Que se acham também no Rio de Janeiro: no CPDOC e no Museu Villa-Lobos.
Lobos, que mesmo os estudos mais recentes de sua trajetória (GUÉRIOS, 2009;
ARCANJO JR., 2013) não chegam a contestar, não por descuido, mas porque seus
autores tinham outras questões em mente. Resulta disso um notável silêncio em torno
de uma aparente “bipolaridade” das performances sociais de um sujeito capaz de
proclamar o fim da arte – se a música popular, que nem era “verdadeiramente música”,
confirmasse seu monopólio sobre a atenção do público, no que o Brasil estaria muito
adiantado, posto que “até as elites” contribuíam para isso (VILLA-LOBOS, 1951) – e
de, mais ou menos na mesma época, dizer que os sambistas “têm raciocínio, têm muito
mais imaginação que você [...] têm um sentido irônico, eles sabem observar os
problemas populares, ridicularizá-los”9. Mais grave do que passar ao largo desse
constrangimento analítico é observar o envolvimento de Villa-Lobos com os músicos
populares sempre de cima para baixo, como se estes últimos não tivessem opiniões
próprias, formas próprias de autoinscrição e de agência no mundo socioartístico para
se contraporem e mesmo provocarem desvios na oblíqua visão de intelectuais
tradicionais como ele. Ora, Villa-Lobos não foi nem só músico nacional nem só o
compositor oficial da Era Vargas, assim como os músicos populares não são uma
massa homogênea de indivíduos sujeitados pelos que supostamente detêm o
“monopólio da palavra legítima” em matéria de arte.
É verdade que Carvalho (1988) e Paz (2004) dão a ver as palavras dos próprios
músicos populares, o que já constitui um avanço importante no sentido de colocar em
evidência o lado menos prestigiado dessa história. Mas eles não localizam
historicamente esses depoimentos, não os contrapõem ou os analisam em detalhe. A
ocasião e o roteiro das entrevistas que lhes dão origem não são, na maioria das vezes,
sequer mencionados. Uma das etapas da operação historiográfica não chega a se
efetivar – as memórias, inquestionadas, não chegam a tornar-se fontes (CERTEAU,
1982: p. 80-84), e os livros tornam-se uma junção de narrativas cuja discordância, por
vezes clara como o dia, não enseja a menor observação. É assim, por exemplo, que o
fato de Donga dizer que Villa-Lobos foi um “grande chorão”, que acompanhava e
solava muito bem (apud CARVALHO, p. 30), e de Pixinguinha depor contra essa
9
Trecho do documentário Heitor Villa-Lobos: o índio da casaca (1987). Direção Roberto Feith, Manchete
Vídeo (120 min).
habilidade chorística [“talvez ele não acompanhasse bem, para nós”] (Idem, p. 75),
pode passar como se não indicasse nenhum desentendimento estético-social.
10
Cf. Depoimentos de Pixinguinha ao MIS, Acervo Depoimentos para Posteridade, CDs 123.1/3 (1966) e
124.1/2 (1968),
Também não me parece suficiente estudar as ideias do músico-nacional-Villa-
Lobos conversando com seus pares do modernismo ou do Ministério da Educação –
como fizeram Contier (1988), Arcanjo Jr. (2007; 2013), eu mesmo (LIMA, 2017) e
especialmente os analistas da colaboração Villa-Vargas – para dar conta dessas
questões. Não estou negando o mérito de nenhum desses trabalhos. A maioria deles é
bastante densa, relevante e convincente. A questão é que, como já disse, esses autores
tinham outros objetivos que aqueles que almejo e, de fato, outro ângulo de observação
da música na sociedade brasileira que aquele que gostaria de seguir em minha própria
pesquisa. Atrelada a essas opções teórico-metodológicas, está a escolha de um
determinado tipo de fonte (e aqui, incluo o grupo de trabalhos encabeçados por
Hermínio e Paz): aquelas que revelam a burocracia, os grandes intelectuais, a
oficialidade, e aquelas que revelam perspectivas individuais e a construção de redes
de sociabilidade – mesmo que, neste último caso, as fontes (as memórias) não tenham
jamais passado por uma crítica cuidadosa. É justamente o cruzamento, ainda por fazer,
dessas fontes que pode proporcionar uma visão mais condizente com a complexidade
desse tema. A isso eu começo me dedicar nesse momento, garimpando informações
nos depoimentos gravados pelo MIS e por Ermelinda Paz (doados ao IMS), nos
recortes de jornais e demais acervos do Museu Villa-Lobos, na Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional e, como complemento, também em outros arquivos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ABREU, Martha Campos. Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas
Américas, 1870-1930. Campinas: Unicamp.
BARBOSA, Orestes. Samba: suas histórias, seus poetas, seus músicos, seus cantores.
Rio de Janeiro: Livraria Educadora,1933.