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A

Elnôra Gondim*,Osvaldino Marra Rodrigues**∗∗

Revista de Filosofia
John Rawls entre Kant e Hegel

RESUMO

John Rawls enfoca a justiça como tema principal das suas obras tendo influências de Kant e Hegel,
propondo uma interpretação do seu pensamento a partir da ênfase no político restrito à estrutura
básica da sociedade e aos bens primários. Rawls propõe uma Constituição baseada no procedi-
mentalismo puro, restrita às questões políticas.

Palavras-chave: Kant; Hegel; Rawls; Equilíbrio reflexivo.

ABSTRACT

John Rawls focuses justice as main subject of its workmanships having influences of Kant and Hegel,
considering an interpretation of its thought from the emphasis in the restricted politician to the basic
structure of the society and to the primary goods. Rawls considers a Constitution based on the pure
procedimentalism, restricted to the questions politics.

Key words: Kant; Hegel; Rawls; Reflective equilibrium.

∗ Doutoranda em Filosofia pela PUCRS e Professora do Departamento de Filosofia/UFPI.


∗∗ Mestrando em Filosofia pela UFPI/CAPES.

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Sob a Influência de Kant: as o valor da autonomia completa se efetiva numa
sociedade bem ordenada.
Reformulações Teóricas de Rawls No O Liberalismo Político (LP, 2000) as
reformulações são aprofundadas, embora o
Muitas críticas, tais como as de Michael
conceito de justiça permaneça, tal como em TJ,
Sandel e Charles Taylor, apareceram em virtude
como um problema de imparcialidade. Entre-
da analogia da teoria de Rawls com a concepção
tanto, Rawls admite que: (a) é pouco realista a
kantiana relativa ao sujeito moral. Para rebater
concepção de uma sociedade bem ordenada e
as críticas dirigidas à Uma Teoria da Justiça (TJ),
(b) as sociedades modernas são compostas por
Rawls reavaliou seus conceitos iniciais.
doutrinas abrangentes, muitas vezes, incompa-
No artigo “O Construtivismo Kantiano”
tíveis entre si. Portanto, apesar das mudanças
(CK, 1998, p. 43), Rawls inicia um processo de
em LP, a obra reflete a influência kantiana. Por
aprofundamento e revisão dos conceitos origi-
conta desta influência, Rawls entendeu muito
nários apresentados em TJ, tais como:
bem as críticas de Hegel dirigidas ao filósofo
(I) uma teoria da escolha racional subordi-
de Kögnisberg. Hegel, ao criticar Kant, tem em
nada ao conceito de razoabilidade. Esta,
foco os problemas advindos da atomicidade do
não mais a racionalidade com pretensões
universalizantes, constitui o núcleo duro
imperativo categórico.
da teoria rawlsiana de justiça;
Críticas de Hegel a Kant
(II) os bens primários não são mais consi-
derados sob a perspectiva da satisfação Para Hegel o imperativo categórico kantia-
das necessidades vitais, como em TJ,
no é insuficiente, formalmente vazio e, por esse
mas elementos indispensáveis à realiza-
motivo, tem como função, apenas, justificar o
ção da personalidade moral, no sentido
kantiano.
que já existe na vida prática, nada acrescendo
de novo. Ou seja, o imperativo categórico não
Apesar das reformulações em CK, é nítida permite julgar se um ato é moral ou não, porque
a influência kantiana quanto ao conceito de jus- não determina nenhum conteúdo moral e, nem
tiça. Como exemplo, pode-se destacar a autono- mesmo, a sua definição pode ser aceita, dado
mia moral dos cidadãos em uma sociedade bem que não se tem como afirmar se há ou não con-
ordenada, pautada pelo conceito da natureza tradição entre a lei e as máximas:
da pessoa, esboçada em TJ, comparando, na
posição original, o desinteresse que lá ocorre; e Uma contradição só pode dar-se com
o véu de ignorância, ao imperativo categórico. alguma coisa, quer dizer, com um conte-
údo antecipadamente estabelecido como
Também podem ser observadas algumas impre-
princípio rigoroso. Só para com este prin-
cisões oriundas da TJ, tais como as crenças mo-
cípio a ação está em concordância ou em
rais, defendendo que as concepções de pessoa contradição. (HEGEL, 2000, p. 120).
e sociedade são construídas. Dessa imprecisão
decorre a necessidade de Rawls explicar a sua Por conseguinte, como não há nada de
teoria como política e não metafísica. material no imperativo categórico kantiano, não
No artigo “A Teoria da Justiça como Eqüi- pode haver contradição, se admitida a hipótese
dade: uma teoria política e não metafísica” (TJE, de que todos os seus conteúdos estão em uma
2003, p. 199), Rawls procurou reformular tanto o indeterminação abstrata. Sob outro prisma: o
conceito de racionalidade quanto a perspectiva imperativo categórico é apenas uma concor-
universalista contidas em TJ, esforçando-se para dância formal entre a máxima e a lei universal,
excluir a referência à verdade, delimitando o decorrendo disso um critério insuficiente para
campo de aplicação da teoria da justiça às so- se constituir uma moralidade. Portanto, o im-
ciedades democráticas bem ordenadas. Nestas, perativo categórico serviria para justificar tanto
o objetivo prático está alicerçado numa razão um ato justo quanto um injusto, pois onde não
pública. Ancorado no conceito de justiça como há determinação não pode haver critério efeti-
eqüidade, Rawls procura demonstrar uma con- vo. Decorre, pois, que o imperativo categórico
cepção enraizada nas idéias intuitivas básicas não pode ser instituído como o critério que
da cultura pública de uma democracia, onde determine e discrimine uma decisão moral.

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Desta forma, Hegel insiste na imbricação entre dialética que constitui o Espírito Objetivo. Neste
o universal e o particular, pois o universal que sentido, a moralidade hegeliana corresponde
não foi gerado pela particularidade reduz-se àquela kantiana.
ao nada, enquanto a particularidade que não Entretanto, Kant, diferentemente de He-
tem o percurso do que é natural cai na contin- gel, não alcança o campo da eticidade, pois
gência de um querer arbitrário. (ROSENFIELD, fundamenta a liberdade no âmbito do subjetivo.
1995, p. 122). Em Hegel, pelo contrário, a liberdade está no
Neste sentido, a definição de vontade é âmbito do objetivo e o imperativo categórico
um ponto crucial a diferenciar o pensamento é válido, embora a aplicação deste deve levar
hegeliano do kantiano. Caberia, pois, a per- em conta as circunstâncias da situação con-
gunta: como, em Hegel, a vontade se manifesta? creta. A insuficiência da razão pratica kantiana
Ela se manifesta através da ação que, por sua assenta-se na a-historicidade: universalidade
vez, é a exteriorização da vontade subjetiva ou vazia de conteúdo efetivo. Kant considerou os
moral. Assim, a vontade subjetiva só é livre se aspectos relacionados às intenções, mas não
as suas determinações são pressupostas pelo concedeu importância aos aspectos objetivos,
saber e o querer. Então, ter um ato livre signi- como as conseqüências e os outros resultados
fica ser responsabilizado por ele no âmbito da dos atos morais, ou seja, a filosofia prática de
eticidade. Definida como a identidade do bem Kant centralizou os seus objetivos somente tendo
e da vontade subjetiva, a eticidade é o campo como meta buscar e fixar o princípio supremo
da moralidade social: o indivíduo se libera de da razão prática. Por conseguinte, a tese de
si para realizar-se plenamente na comunidade. Kant do dever pelo dever é insuficiente, pois
É o âmbito dos deveres éticos, que são determi- não contempla as conseqüências dos atos mo-
nações objetivas do dever para com as outras rais. Nesse sentido, Hegel amplia o imperativo
pessoas. A noção hegeliana do conceito de categórico kantiano lançando-o para o mundo
subjetividade universal pode ser compreendida e dando-lhe um caráter social e histórico ba­
como aquilo que ocorre através do reconheci- seado na tríade: Direito, Moralidade e Eticidade.
mento da subjetividade dos outros, isto é, da Com isto, a razão prática pura cede espaço
subjetividade externa – fato este que garanti- para a dimensão histórica, onde as instituições
ria a universalidade da mesma. No centro do e culturas substituem a abstração do imperativo
campo da eticidade encontra-se o conceito de categórico kantiano.
liberdade que, do plano da vontade subjetiva,
passa para o plano da objetividade na forma de Rawls entre Kant e Hegel
comunidade e de instituições sociais. É na esfera
da moralidade que Hegel trata das condições A teoria de Rawls, seguindo o pensamento
da responsabilidade subjetiva, enfatizando hegeliano, tem como base o construtivismo polí­
que esta constitui a parte formal da vontade. tico. O caráter político da teoria de rawlsiana
A moralidade é racional quando há o mútuo induz a uma concepção mínima de objetividade
reconhecimento inter pares, por este motivo há que, por sua parte, favorece o consenso sobre-
uma conservação da subjetividade e, também, posto. Rawls reivindica a possibilidade de con-
uma superação da mesma enquanto ela é sub- cepções morais, objetivas. Sendo assim, o cons-
jetividade imediata, ou seja, individual. Sendo trutivismo político satisfaz a algumas condições
assim, o reconhecimento do querer e do saber, mínimas de objetividade que podem favorecer o
que é a vontade dos outros, é a subjetividade consenso sobreposto entre doutrinas compreensi-
exterior mediada pelo Espírito. Isto é reconhecer vas devido à razoabilidade. Deve-se ressaltar que
a liberdade como princípio universal. esta não está relacionada a nenhuma doutrina
A eticidade, nesta perspectiva, inclui a razoável compreensiva, nem é uma característica
vontade subjetiva com o conceito da vontade; intrínseca da mesma. Sob esse aspecto, Rawls
a vontade particular com o dever-ser da von- pondera que o razoável não pode ser derivado
tade. Este dever-ser, por sua vez, é efetivado do racional, pois este teria a função de idéias
na eticidade. Esta é o desdobramento objetivo complementares, porquanto agentes meramente
das vontades. Por conseguinte, o direito, a racionais não teriam a capacidade de reconhecer
moral e a eticidade formam a síntese da tríade a validez independente das exigências alheias.

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Por este motivo, o véu da ignorância tem por obje- liberalismo rawlsiano é social, enquanto o kantia-
tivo favorecer esta disposição razoável e a posição no é moral. É nesse sentido que Rawls procura
original não constitui uma simples derivação da complementar a teoria de Kant.
teoria da eleição racional de uma exigência de Quanto à contribuição de Hegel para a
imparcialidade. teoria da justiça rawlsiana é a distinção entre
A idéia do público encontra-se imbricada a moralidade e eticidade. É neste contexto te-
ao conceito de razoabilidade. Aquela é vincula- órico que a teoria rawlsiana exige que os seus
da ao caráter intersubjetivo das instituições e ao resultados sejam compartilhados, que estejam
problema do significado da razão dos cidadãos de acordo com a compreensão cotidiana moral
livres e iguais; que é a razão do público, onde e, também, tenham uma exigência quanto à
seu conteúdo e sua natureza são expressos em sua coerência interna, isto é, a unidade entre a
um julgamento intersubjetivo. Somente, desta teoria, as instituições e as metas. Desta forma, o
forma, o predicado razoável substitui o predica- equilíbrio reflexivo é utilizado para estabelecer
do verdadeiro. Assim sendo, o liberalismo polí- a consistência e coerência de uma série de
tico rawlsiano não deriva de nenhuma doutrina juízos; método adequado que supõe começar
abrangente, pois não objetiva ser verdadeiro, por sujeitos em uma relação intersubjetiva, for-
mas assentado numa base razoável de razão mulando princípios gerais e revisando tanto os
pública. Com isto, para Rawls é suficiente que princípios quanto as crenças até alcançar um
as doutrinas abrangentes tenham condições de equilíbrio. Sob a influência hegeliana, Rawls visa
cooperação sob condições de reciprocidade e a mostrar como a sua concepção política pode
aceitação para provar as suas próprias argu- ser estável em face do pluralismo razoável, ou
mentações. Neste sentido, a política é entendida seja, como diferentes doutrinas compreensivas
como um procedimento que produz instituições seriam capazes de aceitar uma concepção
à luz de certas concepções advindas de um de justiça e de que maneira isto poderia ser
consenso sobreposto, e a justiça é reconhecida justificado de acordo com as razões afirmadas
enquanto concepção pública quando as pes- no interior de cada visão abrangente. Neste
soas aceitam e sabem que as outras aceitam os sentido, o consenso sobreposto responderia ao
mesmos princípios de justiça. Logo, as pessoas pluralismo razoável, onde a razão passaria a
cumprem tais princípios e têm a certeza que as ser aquela do público. Para que isto ocorra, isto
instituições os cumprirão. É sob essa perspec- é, a junção da subjetividade e objetivamente à
tiva que a idéia do equilíbrio reflexivo enfatiza maneira de Hegel, a teoria de Rawls considera
a busca de princípios de justiça que melhor se as pessoas enquanto seres racionais e razoá-
coadunam com os juízos morais considerados. veis. Isto significa dizer que elas têm interesses
Por conseguinte, a teoria de rawlsiana próprios, conforme a concepção de bem que
é análoga à kantiana no sentido de que as formulam para as suas vidas. Ou seja, elas orien-
duas possuem uma justificação racional para tam suas vidas em função do sentido da justiça
o Estado; os princípios de justiça rawlsiano são que possuem e ponderam com as outras pessoas
imperativos categóricos, contudo Rawls faz uma sobre quais os termos justos de cooperação que
versão intersubjetiva da autonomia kantiana. devem nortear o convívio social e a distribuição
No entanto, embora tenham semelhanças, de bens. Somente assim, as pessoas chegariam
há um refletido distanciamento nas posições de a um acordo sobre os princípios de justiça que
Rawls, pois o construtivismo deste é político, e o serão escolhidos.
de Kant, moral. Assim sendo, a filosofia prática Neste sentido, contrariamente a Hegel,
kantiana encontra-se no âmbito subjetivo e, por Rawls não busca uma verdade absoluta. Confor-
sua vez, Rawls coloca-se, também, no campo me a teoria rawlsiana, em função da pluralidade
objetivo propondo dois princípios de justiça, numa sociedade democrática, uma concepção
procurando superar, assim, o formalismo do de justiça como eqüidade só pode ocorrer se é
imperativo kantiano através das influências da renunciada toda pretensão de verdade. Falando
filosofia hegeliana. Na filosofia de Kant é a razão de outro modo, a concepção de razoabilidade
pura que impõe os princípios morais, já em Rawls, na teoria rawlsiana, diferentemente de Kant,
os princípios da justiça são alcançados através de tem como objetivo separar toda a pretensão de
objetivos consensuais dialógicos. Sendo assim, o uma razão pura prática, no sentido de que só

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se pode falar com argumentos razoáveis, co- categórico, entende as críticas de Hegel feitas
erentes e publicamente defensáveis. Cumpre a Kant, preservando do pensamento hegeliano
salientar que na teoria rawlsiana as mais anta- a idéia de que os mandamentos morais não
gônicas doutrinas compreensivas podem coe- podem partir de uma razão prática pura. Logo,
xistir. Neste sentido, Rawls se propõe trabalhar Rawls tem influência de Hegel no sentido de
com o político, mas não com o ético nem com que a sua teoria é uma ênfase ao político, em-
o metafísico. Assim, no consenso sobreposto a bora, a partir deste, ela é, apenas, justificada e
crença é justificada a partir de todas as crenças não considerada como uma verdade absoluta.
razoáveis contempladas dentro de um mesmo Isto pode ser constatado, porquanto Rawls não
sistema. A razoabilidade exige coerência, no incorre em um subjetivismo moral a partir de
sentido de que toda norma que aspire a uma crenças determinadas pela razão pura através
validade universal deve se submeter à prova da do imperativo categórico como, também, por
intersubjetividade. Sua força vinculante deve ser outra parte, afirma que sua teoria não tem pre-
fundamentada sobre a pluralidade de razões. tensões nem epistemológicas nem metafísicas,
É nesse sentido que a justificação é extraída da porquanto não leva em consideração à ver­dade,
razão pública. Isto ocorre porque Rawls trabalha apenas, a razoabilidade. Assim, Rawls ao reba-
com o aspecto político em contraposição ao ter as críticas de Hegel a Kant, o faz através do
moral abrangente. O termo político, aqui, tem construtivismo político. De acordo com Haber-
uma relação direta com a idéia de consenso e mas (2004, p. 122),
a razoabilidade, pois em uma sociedade plu-
Rawls preserva um discernimento que
ralista razoável a justificação ocorre de forma a
Hegel outrora fez prevalecer contra
que todos reconheçam determinadas crenças Kant: mandamentos morais não podem
com a finalidade de estabelecer as questões ser impingidos à história de vida de uma
fundamentais da justiça política, isto é, o con- pessoa nem mesmo quando apelam a
senso sobreposto. Este é o critério de validade uma razão comum a todos nós ou a um
de uma teoria da justiça. Assim, quando se sentido universal para a justiça.
alcança o consenso sobreposto, a teoria pode
ser justificada. Então, Rawls, diferentemente de Assim, a teoria rawlsiana tenta superar
Hegel, não relaciona à questão da unidade da os dualismos kantianos e leva em consideração
subjetividade e da objetividade com a verdade um mundo político e social de liberdade efetiva,
e, diferentemente de Kant, não compartilha com distinguindo a moralidade da eticidade como,
a idéia de uma razão prática pura. também, utilizando a aplicabilidade do impe-
rativo categórico com um instrumento procedi-
Considerações Finais mental sem deixar de levar em consideração o
mundo social, procurando garantir a liberdade
Na teoria de Rawls pode ser detectada a dos cidadãos através das instituições políticas
articulação com a filosofia kantiana e a filosofia e sociais. É neste sentido que Rawls, embora
hegeliana. Embora, se possa constatar, também, kantiano, acata as críticas de Hegel a Kant.
diferenças da filosofia rawlsiana tanto em rela- Neste sentido, o construtivismo rawlsiano tem
ção a uma quanto a outra. Neste sentido, Rawls como objetivo atingir a princípios primeiros que
responde as críticas de Hegel a Kant pelo fato ofereçam diretrizes razoáveis para as questões
de que a sua teoria leva em consideração que de justiça social, através da estrutura básica
existem idéias implícitas nas culturas políticas da sociedade, onde a constituição política faz
baseadas na democracia constitucional, onde parte dela. Rawls define a Constituição como
prevalece um pluralismo razoável, sendo este justiça política. Ela é o mais elevado sistema de
aplicado às pessoas e à sociedade. Desta for- normas sociais que visa a estabelecer outras
ma, Rawls acredita refutar a idéia de uma razão normas: é o fundamento da estrutura social e
pura prática e, tal qual Hegel, não admite que deve estabelecer direitos eqüitativos de parti-
a subjetividade venha a impor mandamentos cipação nos assuntos públicos. O conceito de
morais aos cidadãos. Neste sentido, Rawls, Constituição retoma o lugar da posição inicial e
embora continue um kantiano quando se utiliza tem como característica uma situação inicial de
da representação procedimental do imperativo igualdade: os princípios comuns têm que trazer

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vantagens para todos, onde cada pessoa deverá procedimento é a justiça de seus prováveis re-
ser representada eqüitativamente. sultados.” (1997, p. 252). Assim sendo, se todos
Para Rawls, uma democracia constitucio- os setores da sociedade têm confiança entre si
nal deve satisfazer ao princípio da participação, e, além disto, compartilham uma concepção
onde os elementos de tal regime não podem de justiça, o resultado que a maioria alcança é
prescindir de uma assembléia legislativa com exitoso. Porém, se estas características faltam, o
poderes para fazer as leis, embora esta não princípio da participação da maioria não poderá
possa se deixar imiscuir por interesses parti- ser justificado: “Talvez a desigualdade política
culares. Sendo assim, na medida do possível, mais óbvia seja a de violação do preceito uma-
deve-se honrar o preceito um-eleitor-um-voto. pessoa-um-voto.” (RAWLS, 1997, p. 253). Por­
Este preceito implica que cada voto tem o mes- tanto, os direitos políticos eqüitativos aumentam
mo peso, aproximadamente, na determinação a auto-estima e o senso de participação políti-
do resultado de eleições. E se um membro re- ca, contribuindo para o desenvolvimento das
presentar determinada região eleitoral, deve, opiniões políticas. Para que os procedimentos
enquanto membro do legislativo, tendo direito a sejam estabelecidos de maneira equânime, as
um voto, representar o total de eleitores da sua liberdades de expressão e de assembléia, as
região. Neste sentido, as divisões dos estados liberdades de consciência e de pensamento
devem levar em conta certos padrões gerais, devem ser asseguradas. Segundo Rawls:
especificados e aplicados pela Constituição por Historicamente, um dos principais defei-
meio de um procedimento impessoal. Tal demar- tos do governo constitucional tem sido a
cação deve ser adotada a partir da convenção sua incapacidade de assegurar o valor
constituinte, onde os critérios, para isto, devem eqüitativo da liberdade política. (1997,
ser publicamente arbitrários. Esta preocupação p. 247).
se deve ao fato do peso do voto não ser afe­
Assim sendo, uma solução, para tanto,
tado por aspectos injustos, pois, se caso houver
seria o princípio de participação, obrigando
distritos de tamanhos desproporcionais, esta
aqueles que estão no poder a serem sensíveis
característica poderia interferir na quantidade
aos interesses do eleitorado. No entanto, os
de representantes e isto faria com que alguns
representantes não seriam meros agentes dos
distritos fossem, quantitativamente, mais repre-
representados, porquanto eles têm discerni-
sentados que outros, comprometendo, assim, a
mento quanto aos julgamentos, embora, devam
participação e a liberdade política.
representar as pessoas no sentido substantivo,
O princípio da participação assevera
isto é, devem promover, de forma justa, interes-
que todos os cidadãos devem ter direito igual
ses que, por sua vez, também, são justos.
ao acesso aos cargos públicos, levando-se em
consideração as restrições que possa haver
(como por ex. quanto à idade, residência etc.) Referências Bibliográficas
e do interesse comum, sem discriminação de
qualquer grupo. BOBBIO, N. Direito e estado no pensamento de
A liberdade política é estabelecida por Emanuel Kant. Brasília: UNB, 1992.
uma Constituição que usa o procedimento da
HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de
maioria simples. No entanto, se as decisões polí-
teoria política. São Paulo: Loyola, 2004.
ticas têm alguma restrição constitucional (como
por ex. a exigência de uma maioria qualificada HEGEL, G. W. F . Princípios da filosofia do di-
para certas medidas), isto deve ser mantido e a reito. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo:
Constituição, desta forma, limita a abrangência Martins Fontes, 2000.
da maioria. As restrições quanto ao princípio KANT, I. Fundamentação da metafísica dos cos-
da participação deve afetar a todos, porquanto tumes. São Paulo: abril cultural, 1974.
quando se viola o preceito um-homem-um-voto,
tem-se uma liberdade desigual. A Constituição _____. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação
que fere tal princípio é um caso de justiça Calouste Gulbenkian, 1989.
procedimental imperfeita, sobre o qual Rawls _____. Crítica da razão prática. Lisboa: Edições
afirma: “O critério básico para julgar qualquer 70, 1986.

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