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Elton Corbanezi

TRANSTORNOS DEPRESSIVOS
E CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

Elton Corbanezi*

O objetivo do artigo é mostrar como a evolução da nosologia psiquiátrica da depressão pode se relacionar com
determinadas demandas do capitalismo contemporâneo. Primeiro, investigamos as concepções de transtornos de-
pressivos desde a terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), que instaurou
o paradigma psiquiátrico vigente até nossos dias, enfocando, especialmente, as duas últimas versões (DSM-IV-TR
e DSM-5). Ao lado da Classificação Internacional de Doenças da OMS, as edições recentes do Manual constituem
os principais sistemas classificatórios de psiquiatria, orientando a prática clínica e embasando conceitualmente a
ideia atual de epidemia depressiva. Em seguida, fazemos ver como a teoria econômica do capital humano, elabora-
da por economistas neoliberais da Escola de Chicago, se converte em valor social que, aceito e disseminado ampla-
mente, orienta a conduta de vida dos indivíduos tanto em sociedades liberais avançadas quanto nas terceiro-mun-
distas. Pretendemos sustentar, assim, que a sistemática ramificação e a flexibilização dos transtornos depressivos,
as quais estabelecem como patológicas formas tênues de sofrimento, correspondem à lógica de intensificação do
desempenho de determinadas capacidades individuais imprescindíveis ao capitalismo contemporâneo.
Palavras-chave: Transtornos depressivos. Capitalismo contemporâneo. Capital humano. Conduta de vida.
Epidemia depressiva.

INTRODUÇÃO Como se sabe, a causalidade biológica


da depressão ainda não é manifesta, dado que
Diferentemente das duas versões ante- a síndrome prescinde, até nossos dias, de mar-
riores, a terceira edição do Manual Diagnóstico cadores biológicos efetivos. Ou seja, apesar da
e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III), existência de indicadores biológicos não es-
da Associação Psiquiátrica Americana (APA), pecíficos – tais como anormalidades do sono
apresenta um novo paradigma psiquiátrico encontradas por meio de polissonografia, des-
que altera radicalmente o modo como a psi- regulação de sistemas de neurotransmissores,
quiatria ocidental compreende os transtornos alterações de neuropeptídios, de hormônios e
depressivos. Se antes, sob a influência psicodi- de fluxo sanguíneo cerebral –, as versões mais

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nâmica, a depressão era considerada de acordo recentes do DSM asseguram que semelhantes
com a etiologia e o contexto dos sintomas e se evidências são insuficientes para constituir a
baseava na dicotomia neurose e psicose e (ou) fisiopatologia específica da depressão (APA,
reativa e endógena, a abordagem inaugurada [2000] 2002, p. 351-352; APA, 2013, p. 165). A
pelo DSM-III em 1980 pretende descontextu- despeito da assertiva e da pretensa eliminação
alizar os sintomas e desconsiderar a etiologia, de pressupostos etiológicos que constituem a
de forma a padronizar a prática diagnóstica e inovação clínica e metodológica fundamental
a produzir dados cientificamente confiáveis. estabelecida pelo DSM-III, a predominante
Para a nova clínica sindrômica e descritiva, ação terapêutica e neuroquímica de antide-
não importa mais – ao menos em tese – se os pressivos visa, especialmente, a recobrir o défi-
transtornos depressivos são endógenos, exóge- cit de neurotransmissores, que operam, então,
nos ou psicogênicos. como causalidade latente, independentemente
*
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Instituto
das circunstâncias desencadeadoras do trans-
de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de Sociolo- torno, as quais os DSM-I e II julgavam necessá-
gia e Ciência Política.
Av. Fernando Correa da Costa, 2367, Boa Esperança. Cep: rio compreender. Depreende-se dessa prática,
78060-900. Cuiabá – Mato Grosso – Brasil.
eltonrcorbanezi@gmail.com portanto, a prevalência da concepção atual de

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792018000200011 335
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depressão como desequilíbrio neuroquímico, ta versão do manual da APA que fundamenta


proveniente do que se convencionou designar conceitualmente a afirmação oficial da OMS
“prova terapêutica”, que consiste em aferir a (2001, p. 53-58) de que a depressão constitui,
causalidade da patologia a partir do efeito de em nossos dias, a principal carga de incapaci-
antidepressivos como os Inibidores Seletivos dade e se tornará, até 2020, a segunda maior
de Recaptação de Serotonina (ISRS), os Tricí- carga patológica mundial, atrás apenas das
clicos e os Inibidores de Monoamina Oxidase doenças isquêmicas cardíacas.2 Não obstante
(IMAO). Isto é, se a eficácia do mecanismo de a observação, examinamos igualmente as mu-
ação de antidepressivos reside no aumento de danças significativas em relação aos transtor-
disponibilidade de serotonina, noradrenalina nos depressivos na última versão do manual,
e dopamina para receptores pós-sinápticos, é o DSM-5, que funciona como vetor de desen-
o déficit de tais neurotransmissores – especial- volvimento da classificação psiquiátrica con-
mente da serotonina – que constitui, por decor- temporânea. Procedendo assim, pretendemos
rência, a causalidade da síndrome; daí a ideia mostrar, por fim, de que maneira a evolução
corrente de que são os antidepressivos que de- da nosologia psiquiátrica da depressão – ou
finem a depressão.1 Associada ao desenvolvi- seja, o estabelecimento de diversos subtipos
mento da psicofarmacologia, a psiquiatria con- do transtorno – pode se relacionar com as de-
temporânea – pretensamente ateórica e descri- mandas do capitalismo contemporâneo, para
tiva – apresenta, pois, o seguinte paradoxo: ao o qual, a despeito de sua variedade de formas
mesmo tempo em que registra a ausência de em diferentes contextos de desenvolvimento,
marcadores biológicos em diversos transtornos a depressão parece constituir-se efetivamente
mentais, como se lê na versão mais recente do como um problema de ordem epidêmica.
manual, o DSM-5 (APA, 2013, p. 21), sua práti-
ca clínica crê na existência deles. Diante disso,
deve-se notar, de partida, como a “abordagem AS CONCEPÇÕES PSIQUIÁTRICAS
ateórica” da depressão preconizada desde o DE TRANSTORNOS DEPRESSIVOS
DSM-III implica uma prática clínica e terapêu-
tica que indica a parcialidade da concepção: No DSM-III, os transtornos depressivos
em vez de problema existencial, a depressão se constituem três categorias diagnósticas agrupa-
reduz a uma disfunção neuroquímica. das na classe “Transtornos afetivos” (Affective
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Expostos os fundamentos básicos a par- disorders), a saber: “depressão maior”, “trans-


tir dos quais a psiquiatria apreende a depres- torno distímico”, ou – como ao lado desta ex-
são e considerando a relativa continuidade pressão figura entre parênteses – “neurose de-
de sua racionalidade nas sucessivas versões pressiva”, e “depressão atípica”, que se torna,
do Manual, analisamos, em seguida, como os a partir do DSM-III-R, “transtorno depressivo
transtornos depressivos são apresentados e sem outra especificação” (S.O.E.). Na versão re-
descritos desde o DSM-III, destacando, espe- visada de 1987, o DSM-III-R, a classe que reúne
cialmente, as duas últimas versões do Manual os transtornos depressivos recebe a designação
(DSM-IV-TR e DSM-5), que orientam a prática “mais descritiva” (APA, [1987] 1989, p. 441) de
clínica e embasam os dados epidemiológicos “Transtornos de humor” (Mood disorders), a qual
atuais. No entanto, é preciso assinalar que, ao agrupa ainda os transtornos bipolares e perma-
lado da vigência da Classificação Internacional 2
Uma pesquisa epidemiológica transnacional, realizada
em conjunto com a OMS e publicada em 2011, corrobora
de Doenças, a CID-10 (OMS, 1993), é a quar- a informação de que a depressão, segundo a concepção do
DSM-IV, é uma das principais causas de incapacidade em
1
A esse respeito, ver o conceito de “petite biologie”, a partir todo o mundo, como revelam os dados relativos a países
do qual Pignarre (2003) indica a função epistemológica do de alta, média e baixa renda (Bromet et al., 2011). Atual-
psicofármaco diante da ausência de marcadores biológicos mente, a OMS estima que 350 milhões de pessoas sofram
da depressão. de depressão no mundo (Marcus et al., 2012).

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nece até o DSM-IV-TR, publicado em 2000. No em relação ao DSM-III-R.3 O primeiro (critério


tocante aos transtornos depressivos, tal classe C) é que os sintomas devem causar “sofrimen-
apresenta as mencionadas categorias diagnósti- to clinicamente significativo ou prejuízo no
cas: “depressão maior”, “distimia” e “transtorno funcionamento social ou ocupacional ou em
depressivo S.O.E.”. É apenas no DSM-5 que os outras áreas importantes do indivíduo” (APA,
transtornos depressivos e os transtornos bipola- [2000] 2002, p. 355). Como se vê, tal critério es-
res são separados, tornando-se classes distintas tabelece absoluta conformidade com a função
com suas respectivas nomeações e com catego- operacional do conceito de transtorno mental,
rias diagnósticas próprias. cuja definição é o sofrimento e a disfunção ou
No DSM-IV-TR, que é a quarta edição prejuízo na capacidade de desempenho nas
revisada do Manual, a classe “Transtornos do relações ocupacionais, sociais, interpessoais
humor” envolve as seguintes perturbações: e familiares. De acordo com Horwitz e Wake-
transtornos depressivos, transtornos bipolares field (2010), esse critério de transtorno é es-
e dois transtornos baseados na etiologia, sen- pecialmente problemático no caso da depres-
do um devido a uma condição médica geral (e. são, uma vez que tanto o sofrimento quanto o
g.: depressão decorrente de hipotireoidismo) e prejuízo funcional, social ou ocupacional po-
outro induzido por substância (e. g.: droga de dem decorrer de situações críticas de perdas às
abuso, medicamento, toxina). A fim de mos- quais o indivíduo reage com tristeza intensa,
trar como o Manual territorializa diferentes ex- fadiga, insônia, entre outros sintomas depres-
periências no conceito extenso de depressão, sivos que, contextualizados, não poderiam ser
analisemos as seguintes classificações: “trans- considerados patológicos. Outra adição signi-
torno depressivo maior”, “distimia” e “trans- ficativa em relação ao DSM-III-R é o critério E
torno depressivo sem outra especificação”, no que inviabiliza o diagnóstico, caso os sintomas
qual se incluem as categorias indicadas para sejam provenientes de luto no período de dois
estudos adicionais, tais como “transtorno dis- meses. Embora o DSM-III-R já ressaltasse que
fórico pré-menstrual”, “transtorno depressivo “... a perturbação não é uma reação normal à
menor” e “transtorno depressivo breve recor- morte de uma pessoa amada...” (APA, [1987]
rente”. 1989, p. 238), essa versão não especificava a
A categoria principal é o transtorno de- duração do luto normal, como estabelece a edi-
pressivo maior, cujas características são hu- ção subsequente.

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mor deprimido e (ou) anedonia, somados a A polêmica em torno da exclusão do cri-
uma lista de sintomas como alterações no ape- tério relativo ao luto no DSM-5 é digna de nota.
tite ou peso, insônia ou hipersonia, agitação ou Não obstante a premissa do atual paradigma
retardo psicomotor, fadiga ou diminuição da psiquiátrico de desconsiderar, em parte signi-
energia, sentimentos de inutilidade ou culpa, ficativa dos casos, a etiologia e o contexto dos
dificuldades para pensar, concentrar-se ou to- sintomas, a quarta versão do manual orienta
mar decisões, pensamentos recorrentes sobre o clínico a julgar como normais os sintomas
morte ou ideação suicida, planos ou tentativas decorrentes de luto, “... a menos que estejam
de suicídio. Para a consumação diagnóstica, associados com acentuado prejuízo funcional
é preciso que o paciente apresente, no míni- ou incluam preocupação mórbida com des-
mo, um dos dois sintomas nucleares – humor valia, ideação suicida, sintomas psicóticos ou
deprimido e (ou) anedonia) – mais quatro sin- retardo psicomotor ...” (APA, [2000] 2002, p.
tomas adicionais durante pelo menos duas
semanas (critério A). O DSM-IV-TR apresenta
3
Os outros dois critérios (B e D) postulam o seguinte, res-
pectivamente: os sintomas não satisfazem os critérios para
ainda outros quatro critérios diagnósticos, en- um episódio misto, que configura um tipo de transtorno
bipolar, e os sintomas não decorrem de efeitos fisiológicos
tre os quais destacamos dois que são inéditos diretos de substâncias ou de uma condição médica geral.

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351). Como se sabe, o DSM-5 eliminou esse 2013), travando uma batalha insistente contra
único critério de exclusão diagnóstica em a exclusão do critério relativo ao luto no DSM-
contextos de perda, reduzindo, assim, a nor- 5, que permaneceu aberto para escrutínio pú-
malidade dos sintomas presentes no luto para blico durante sua preparação. De acordo com
apenas duas semanas, que é a duração limite o psiquiatra que presidiu a Força-Tarefa do DS-
para que sintomas depressivos ainda não con- M-IV, nem mesmo os melhores clínicos treina-
figurem um transtorno psiquiátrico. Todavia, dos seriam capazes, fazendo uso do bom senso
em vez de uma simples exclusão, como o fato diagnóstico, de distinguir sintomas normais de
se disseminou através de diferentes meios de luto de depressão amena, como defendem os
comunicação, o DSM-5 apresenta duas passa- responsáveis pelo DSM-5 (Frances, 2013). Mo-
gens que sugerem cautela clínica na avaliação bilizando críticos como Wakefield, Cacciatore
dos sintomas, de modo a não confundi-los com e Friedman, o psiquiatra estadunidense chama
reação de tristeza intensa normal. A primeira a atenção para a ausência de evidências cientí-
observação, que figura no corpo do texto, men- ficas que sustentem validamente a redução da
ciona os contextos de perda (loss) para além da duração do luto normal, ao mesmo tempo em
morte da seguinte maneira: que denuncia o interesse da indústria farma-
cêutica, pronta a “educar” clínicos e pacientes
Respostas a perdas [loss] significativas (e.g., mortes
[bereavement], ruína financeira, perdas [losses] ad-
potenciais a propósito de que a duração aci-
vindas de um desastre natural, uma deficiência ou ma de quatorze dias de sintomas comuns de
doença médica grave) podem incluir os sentimentos luto constitua, confiavelmente, um episódio
de tristeza intensa, ruminação sobre a perda, insô- depressivo maior.5
nia, falta de apetite e perda de peso observados no Sob o risco de reduzir a credibilidade
Critério A e que podem se parecer com um episódio
científica e médica do Manual, uma decisão
depressivo. Embora tais sintomas possam ser com-
preendidos ou considerados apropriados à perda, a
como essa fortalece, no entanto, o prognóstico
presença de um episódio depressivo maior, em adi- sombrio da OMS, dado o aumento expressivo
ção à resposta normal a uma perda significativa, da quantidade de diagnósticos falsos positivos
deve ser também considerada cuidadosamente. Essa que o novo conceito de depressão deve ocasio-
inevitável decisão requer o exercício de julgamen- nar.6 Porém a fabricação da ideia de epidemia
to clínico baseado na história do indivíduo e nas
depressiva pode resultar não apenas do exces-
normas culturais para a expressão do sofrimento no
so de diagnósticos potencialmente incorretos
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contexto de perdas (APA, 2013, p. 161, grifo nosso).4


que provêm, no contexto clínico, do afrou-
Na sequência, uma nota de rodapé ex- xamento dos já muito soltos critérios diag-
tensa prossegue o raciocínio, advertindo es- nósticos que definem a depressão.7 Tal ideia
pecificamente para a diferenciação clássica 5 Nossos grifos pretendem chamar a atenção para a deba-
estabelecida desde Freud (2011) entre luto tida polêmica a respeito da primazia, estabelecida desde
o DSM-III, para a confiabilidade diagnóstica – isto é, sua
normal (grief) e sintomas patológicos. Ape- padronização cientificamente necessária –, em detrimento
da validade diagnóstica, que consiste em compreender a
sar da distinção rigorosa que a nota de pé de realidade clínica e a natureza da estrutura e da realida-
página apresenta, é preciso considerar que a de patológica subjacentes (cf. Angell, 2011; Dunker, 2013;
Ehrenberg, 1998; Gori, 2011; Horwitz; Wakefield, 2010;
rapidez com que clínicos gerais diagnosticam, Insel, 2013; Pereira, 2013; Serpa Júnior, 1997).
no contexto de cuidados primários em saúde, 6 De acordo com Horwitz e Wakefield (2010, p. 45-48), o
luto constitui o único caso de reação à perda em que o
em que se enquadram a maioria dos casos mais DSM-IV considera corretamente o contexto dos sintomas
brandos de depressão, pode torná-la inútil e depressivos. Com base em estudos estatísticos diversos, os
autores mostram como a inexistência de tal cláusula, que
até mesmo imperceptível. É o que, de alguma desaparece efetivamente no DSM-5, implicaria, de modo
incontornável, uma altíssima incidência de depressão.
forma, já alertara Frances (2010, 2012a, 2012b, 7
Não sem ironia, afirma Frances (2013): “Em sua tentati-
va zelosa de nunca perder nenhum paciente possível, o
4
As traduções para o português são de minha responsa- DSM-5 endossa ainda mais o afrouxamento do que já são
bilidade. os critérios muito soltos para depressão – portanto, etique-

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alarmante é também apresentada e divulgada B).10 Além disso, é necessário que, durante os
por meio de pesquisas epidemiológicas, cujos dois anos, os sintomas não tenham remitido
questionários são comumente aplicados por em mais do que dois meses, nem satisfaçam os
leigos, treinados para desconsiderar o contexto critérios diagnósticos de transtorno depressi-
dos sintomas, que serão depois contabilizados vo maior, que seria especificado, então, como
impessoalmente e de forma computadorizada, “crônico” (Critérios C e D). Da mesma forma
como mostram Horwitz e Wakefield (2010, p. que os critérios para transtorno depressivo
147-169), para os quais o boom da depressão, maior, não deve haver sintomas de episódio
a partir dos anos 1970 e 1980, se deve, sobre- misto, maníaco, hipomaníaco ou de outros
tudo, ao modo como a síndrome passou a ser transtornos, tampouco devem ser eles atri-
concebida e diagnosticada para além do con- buídos a efeito fisiológico direto de qualquer
texto hospitalar. Ora, do ponto de vista lógico, substância ou devidos a uma condição médica
não há dúvida de que a mudança nas determi- geral (Critérios E, F e G). Por último, o DSM-
nações do conceito de depressão modifica sua -IV adverte igualmente que os sintomas devem
extensão;8 ainda que haja uma nota advertindo causar sofrimento clinicamente significativo
cautela médica e bom senso no julgamento clí- ou prejuízo no funcionamento em alguma área
nico, a dignidade humana do luto normal se importante da vida do indivíduo.
torna, então, refém de diferentes Simões Baca- No DSM-5, a distimia é acoplada ao
martes que podem interpretá-la segundo seus transtorno depressivo maior crônico, adqui-
próprios interesses e perspectivas.9 rindo ambas as terminologias uma mesma de-
Outra categoria diagnóstica que integra signação classificatória, a saber, transtorno de-
os transtornos depressivos é a distimia. Apre- pressivo persistente (APA, 2013, p. 168-171).
sentada inicialmente no DSM-III, essa pertur- Em virtude dessa unificação, uma das exigên-
bação se caracteriza pela cronicidade e menor cias da nova categoria diagnóstica é apresentar
intensidade e quantidade de sintomas depres- os critérios para transtorno depressivo maior
sivos. Para satisfazer os critérios diagnósticos por dois anos, continuamente. Desse modo,
da distimia segundo o DSM-IV, o indivíduo a categoria encerra duas formas de depressão
deve apresentar humor deprimido persistente- crônica, tanto com maior quanto com menor
mente, durante dois anos no mínimo, e mais quantidade de sintomas.
pelo menos dois sintomas de uma lista que Valendo-se da distimia como exemplo

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contém alterações no apetite, no sono, fadiga privilegiado para evidenciar a extensão da
ou baixa de energia, baixa autoestima, baixa ação da psiquiatria biológica no tecido social,
concentração, dificuldade para tomar decisões Henning (2000) chama a atenção para um as-
e sentimentos de desesperança (Critérios A e pecto controverso da categoria: sua proximida-
de com os transtornos da personalidade, que
constituem o eixo II da avaliação multiaxial
tando erroneamente o luto e ferindo potencialmente mui-
tos milhões de enlutados”. Em vez de cuidar de centenas vigente no DSM-IV.11 É que, insidiosa, a dis-
de milhões de enlutados, insta o psiquiatra, o campo da
saúde mental deveria voltar sua atenção àqueles que, de
10
Registre-se que, no DSM-III (APA, 1980, p. 220-223), a
fato, necessitam de cuidados médicos psiquiátricos. distimia se caracterizava pela presença de humor depri-
mido e (ou) anedonia e mais três sintomas de uma lista
8
Questionando o estatuto de doença atribuído à depres- de treze. A redução para apenas dois sintomas adicionais,
são, Fédida (2002, p. 179-180) sustenta que o conceito se estabelecida pelo DSM-III-R e mantida no DSM-IV, pode
apresenta como uma “quase noção”, sem consistência no- indicar a tendência gradativa de o Manual capturar ex-
sográfica, vagamente descritivo e possivelmente em vias periências cada vez mais tênues de sofrimento, patologi-
de extinção. Para o psicanalista francês, a ideia de “quase zando-as.
noção” se deve à grande extensão prática do conceito de
depressão e seu inevitável efeito de banalização, que pro-
11
A categoria “transtorno da personalidade depressiva”
duz, assim, a epidemia depressiva. consta no apêndice em que o DSM-IV indica categorias
que solicitam estudos adicionais para a incorporação na
9
Como se sabe, Simão Bacamarte é o médico psiquiatra nosologia oficial. Em diagnóstico diferencial da categoria,
protagonista de O Alienista, irônico conto de Machado de afirma-se a utilidade controversa da distinção entre trans-
Assis (2006). torno da personalidade depressiva e distimia (cf. APA,

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timia apresenta normalmente início precoce, zando a “importância” de se conceber a disti-


curso crônico e intensidade menor, fazendo-se mia como um transtorno do eixo I, como insis-
confundir, assim, com o modo de existência do tem os autores do livro, subscrevendo a racio-
indivíduo, que, muitas vezes, não se reconhe- nalidade do DSM, a pesquisadora nos auxilia
ce doente.12 É o que o próprio manual da APA a perceber como, por trás da patologização,
afirma diante de um possível caso de distimia: reside uma estratégia de produção da eficiên-
“Quando o Transtorno Distímico tem uma du- cia. Com efeito, talvez não seja despropositado
ração de muitos anos, fica difícil distinguir a afirmar que, ao mesmo tempo em que insta o
perturbação do humor do funcionamento ‘ha- indivíduo a realizar-se constantemente em di-
bitual’ da pessoa” (APA, [2000] 2002, p. 375). ferentes domínios da vida social, o imaginário
Desde o DSM-III, porém, o transtorno da cultura ocidental – apreendido por nós me-
distímico integra o eixo I, que é constituí- diante a nosologia psiquiátrica da depressão
do por síndromes clínicas que os indivíduos – tende a reduzir sua tolerância em relação à
possuem, embora elas não os classifiquem.13 experiência tênue com certos sintomas que, a
Ressaltando essa ambiguidade intrínseca ao partir de um determinado limite estabelecido
transtorno, Henning (2000, p. 127-129) mostra quantitativamente, são avaliados como patoló-
como a distimia constitui um caso patente do gicos e desvalorizados socialmente. Parafrase-
que Pignarre (2003) evidencia igualmente em ando um aforismo lapidar de Sahlins (2004, p.
sua tese: tal perturbação corrobora a ideia de 23), diríamos que o efeito esperado, para uma
que os psicofármacos determinam não apenas sociedade que concebe a vida exclusivamente
a invenção de algumas categorias diagnósticas como busca de felicidade e de autorrealização,
como também o lugar que elas devem ocupar só pode ser a infelicidade e o fracasso crôni-
na nosologia psiquiátrica oficial. É que a dis- cos.15 Não é difícil perceber, desde já, como
timia, mostra a pesquisadora a partir de uma a depressão, mesmo em sua forma branda e
análise crítica do livro Distimia: do mau hu- quase inofensiva, apresenta-se como problema
mor ao mal do humor (Moreno et al., 2010), epidêmico e grave para o imaginário sociocul-
tornou-se uma síndrome clínica pertencente tural do capitalismo contemporâneo.
ao eixo I, sobretudo em função da experiência Mas são ainda outras categorias diag-
bem sucedida com antidepressivos.14 Relativi- nósticas que podem fundamentar nossa as-
sertiva, mostrando a função de captura que o
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[2000] 2002, p. 737). É provável que a semelhança entre as


duas categorias justifique o desaparecimento da primeira DSM é capaz de exercer em relação a experi-
no DSM-5, como se a nova nomenclatura “transtorno de-
pressivo persistente” a englobasse. ências depressivas mais cotidianas. Tais cate-
12
Sabe-se que uma característica fundamental para dis- gorias se encerram na denominação “transtor-
tinguir o normal e o patológico em psiquiatria, quando a
razão do indivíduo não está comprometida, é o autodiag- no depressivo sem outra especificação”, cuja
nóstico, já que o indivíduo experimenta por conta própria correspondência, na CID-10, se dá mediante a
o que define o conceito de transtorno mental, a saber, o
sofrimento e a disfunção. indicação para aplicar o termo “não especifi-
13
Na introdução da terceira e da quarta edição, o DSM cado” em diferentes categorias como “episódio
adverte que se destina a classificar os transtornos que as
pessoas apresentam, e não o que elas são (APA, 1980, p. 6; depressivo”, “transtorno depressivo recorren-
APA, 1989, p. XXIII; APA, [1994] 2000, p. 21; APA[2000] te” e “transtorno persistente do humor (afe-
2002, p. 28). Por essa razão, o Manual utiliza expressões
perifrásticas como “um indivíduo com esquizofrenia”, em tivo)” (OMS, 1993, p. 122, 126, 128). Ampla,
substituição a “um esquizofrênico”, por exemplo, a fim
de fortalecer o processo de desestigmatização das pessoas incerta e delegada à arbitrariedade médica, a
que sofrem com transtornos mentais.
(1998, p. 214-215) discorre sobre o sucesso dos inibidores
14
Eis o que os psiquiatras Nardi e Cordás (apud Henning, seletivos de recaptura de serotonina (ISRS) na administra-
2000, p. 129) escrevem na versão de 1997 do livro em ção dos sintomas duradouros da distimia.
questão: “A melhor definição fenomenológica, genética e
a resposta terapêutica aos antidepressivos e estabilizado- 15
É com as seguintes palavras que o antropólogo estadu-
res do humor foram decisivos para a mudança taxonômi- nidense enuncia sua sentença: “[um] povo que concebe a
ca desses quadros dos transtornos de personalidade para vida exclusivamente como busca da felicidade só pode ser
os transtornos de humor”. Da mesma forma, Ehrenberg cronicamente infeliz” (Sahlins, 2004, p. 23).

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terminologia permite ao clínico o diagnóstico desse transtorno não esteja definida, ela “pode
de qualquer experiência que não satisfaça os ser relativamente comum” (APA, [2000] 2002,
critérios de outros transtornos depressivos, as- p. 725). Conquanto a existência do transtorno
sim como envolve, de forma mais específica, depressivo menor esteja igualmente determi-
diferentes categorias para as quais o Manual nada por sofrimento ou prejuízo, o documento
solicita estudos adicionais. Entre elas, destaca- adverte que, “em alguns indivíduos, pode ha-
mos o transtorno depressivo menor, o transtor- ver um funcionamento quase normal”, ainda
no depressivo breve recorrente e o transtorno que à custa de esforço adicional significativo.
disfórico pré-menstrual. Já figurando efetivamente na CID-10
A característica essencial do transtorno (OMS, 1993, p. 129), o transtorno depressivo
depressivo menor é a apresentação reduzida breve recorrente é proposto no DSM-IV como
de sintomas e de prejuízo funcional em rela- uma variável do transtorno depressivo maior
ção ao transtorno depressivo maior. Embora em termos de duração. Para a ocorrência do
solicite a mesma duração de sintomas idênti- transtorno, é preciso que a mesma quantidade
cos aos da lista que constitui um dos critérios de sintomas depressivos da categoria principal
diagnósticos da depressão maior, o transtorno se manifeste pelo menos dois dias, uma vez
proposto exige apenas dois sintomas depres- por mês, no decurso de um ano. De forma aná-
sivos, entre os quais deve constar, pelo me- loga ao que é indicado em transtorno depres-
nos, um nuclear, a saber, humor deprimido e sivo menor, o Manual adverte que o indivíduo
(ou) anedonia. Diferenciando-se da categoria pode apresentar, nesse caso, “funcionamento
principal de depressão em termos de quan- próximo ao normal”, apesar do esforço acen-
tidade e intensidade dos sintomas, o próprio tuado que lhe pode ser igualmente solicitado.
DSM-IV-TR reconhece que “[os] sintomas que De acordo com o DSM-IV-TR (APA,
satisfazem esses critérios para pesquisas para [2000] 2002, p. 721-724), o transtorno disfó-
transtorno depressivo menor podem ser difí- rico pré-menstrual se caracteriza por humor
ceis de diferenciar de períodos de tristeza que acentuadamente deprimido e ansiedade, insta-
fazem parte da vida cotidiana ” (APA, [2000] bilidade afetiva e desinteresse marcantes. Em-
2002, p. 726, grifo no original).16 É que, como bora distintos, os sintomas são comparáveis
já observamos, a lista apresenta sintomas co- aos do transtorno depressivo maior, variando
muns, como insônia, fadiga, dificuldade para em termos de duração e não de gravidade,

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tomar decisões, entre outros que também se já que pode ocorrer apenas no período pré-
destacam por sua complexidade e gravidade, -menstrual. Ainda que diferencie a categoria
como retardo psicomotor e ideação suicida. De proposta da “síndrome pré-menstrual”, “bem
todo modo, a existência de apenas um sinto- mais comum”, o manual reconhece o aspecto
ma comum associado a humor deprimido ou relativamente ordinário do transtorno entre as
a perda de interesse ou prazer em atividades mulheres, que encerram, de maneira geral, a
cotidianas seria suficiente para o diagnóstico maior prevalência dos transtornos depressi-
de transtorno depressivo menor. Daí afirmar vos. Entre as categorias propostas para estu-
o próprio Manual que, embora a prevalência dos adicionais que destacamos, o transtorno
disfórico pré-menstrual é o único que se des-
16
Conforme as orientações estabelecidas em “diagnóstico locou explicitamente para a nosologia oficial
diferencial” – em que se nota sempre a pletora de cruza-
mentos entre diversos transtornos mentais e a consequen- do DSM-5. Note-se que, assim como a disti-
te dificuldade de diferenciá-los –, o clínico deve conside-
rar normais os “períodos de tristeza”. O Manual ressalva, mia, o transtorno disfórico pré-menstrual se
porém, que, mesmo quando os sintomas decorrentes de oficializou como categoria diagnóstica apenas
tais períodos não satisfaçam os critérios diagnósticos, o
clínico usufrui de liberdade para diagnosticar “transtorno após experiências bem-sucedidas com antide-
depressivo sem outra especificação” (cf. APA, [2000] 2002,
p. 354). pressivos, especificamente com o hidroclori-

341
TRANSTORNOS DEPRESSIVOS E CAPITALISMO ...

drato de fluoxetina, uma molécula produzida dio depressivo de curta duração e episódio de-
inicialmente para depressões brandas e mo- pressivo com sintomas insuficientes.
deradas (Rose, 2013, p. 293-294). Entretanto, Embora não tenha se deslocado para a
independentemente da decisão veiculada na classificação oficial do DSM-5, como ocorreu
versão mais recente do manual, todas as cate- com o transtorno disfórico pré-menstrual, a
gorias propostas no DSM-IV, assim como ou- depressão breve recorrente é um exemplo de
tras condutas que não satisfaçam plenamente como o “Apêndice B: Conjunto de critérios e ei-
os critérios de qualquer transtorno depressivo, xos propostos para estudos adicionais” do DS-
podem ser diagnosticadas como “sem outra es- M-IV funciona efetivamente na prática clínica,
pecificação”, visto que uma das finalidades do a despeito do objetivo primeiro do Manual de
DSM é, antes de tudo, orientar o clínico – que destinar os transtornos que ali figuram tão so-
goza de absoluta liberdade graças à sua com- mente à pesquisa. Inédito, o episódio depressi-
petência técnica – a partir de um paradigma vo de curta duração constitui, por sua vez, uma
relativamente consensual, porém hegemônico forma alternativa de diagnosticar o indivíduo
no campo da saúde mental e, em especial, da que apresenta sintomas de depressão maior
psiquiatria. com duração insuficiente para tal classificação
Como se vê, a categoria que anula a e de forma episódica, o que exclui a necessi-
necessidade de especificação serve para cap- dade da recorrência que o primeiro exemplo
turar o que está entre transtornos definidos abrange. Já o episódio depressivo com sinto-
categoricamente. Já na introdução do DSM-I- mas insuficientes solicita do indivíduo ape-
V-TR, assegura-se: “As categorias ‘Sem Outra nas um sintoma associado ao afeto deprimido
Especificação’ servem para cobrir os não raros durante duas semanas. Uma observação: tanto
quadros que se encontram nos limites das de- para esse caso como para episódio depressivo
finições específicas de cada categoria” (APA, de curta duração, o DSM-5 emprega o termo
[2000] 2002, p. 25). Daí o motivo pelo qual o “afeto deprimido” (depressed affect), diferen-
DSM-5 introduz parcialmente a abordagem temente de “humor deprimido” (depressed
dimensional, assim como substitui a categoria mood), utilizado para depressão breve recor-
“sem outra especificação” por outras duas que rente e todas as outras categorias diagnósti-
exercem, no entanto, a mesma função: “com cas que constam da classe de transtornos de-
outra especificação” e (ou) “sem especifica- pressivos do documento. Como as sucessivas
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ção”. É que, segundo o DSM-5, a abordagem versões do Manual definem, “humor” designa
categorial seria menos capaz de “capturar” a clima emocional abrangente e constante, ao
gama completa de transtornos, a qual é “virtu- contrário de afeto, que é mais flutuante (APA,
almente ilimitada” (APA, 2013, p. 19); apenas [1987] 1989, p. 411, 420; APA, [2000] 2002, p.
por isso o DSM-IV incitava a aplicação irres- 765, 770; APA, 2013, p. 817, 824). Nesse sen-
trita do diagnóstico “sem outra especificação”, tido, talvez seja possível interpretar “depressed
constata o mais recente Manual. Os exemplos affect” como uma forma atenuada do sintoma
oferecidos pelo DSM-5 para a aplicação das nuclear “depressed mood”, o que sinaliza uma
duas novas denominações sugerem fortemen- tendência a capturar e patologizar estados mais
te a permanência da função, bem como evi- tênues, efêmeros e localizados de sofrimen-
denciam de que forma categorias que não se to. Por fim, o mais recente Manual orienta a
deslocaram para a nosologia oficial do docu- aplicação da categoria “transtorno depressivo
mento podem ser diagnosticadas na prática não especificado” quando o clínico “escolhe”
clínica. Entre outras especificações de que o (chooses) não especificar o diagnóstico (ou há
clínico pode se valer, constam os seguintes informações insuficientes para tanto) diante do
exemplos: depressão breve recorrente, episó- paciente que apresenta o critério absoluto para

342
Elton Corbanezi

a existência de transtornos mentais: sofrimento compreender a ideia corrente de epidemia de-


clinicamente significativo ou prejuízo funcio- pressiva no capitalismo contemporâneo.17
nal em alguma área importante da vida social,
familiar e produtiva (APA, 2013, p. 183-184).
Cartografada a concepção de transtornos CAPITAL HUMANO E TRANSTOR-
depressivos nos manuais psiquiátricos vigen- NOS DEPRESSIVOS
tes, pode-se afirmar que um dos critérios fun-
damentais estabelecidos para verificar a exis- Sabe-se que a teoria do capital humano
tência de semelhantes transtornos se associa provém de economistas neoliberais da Escola
a uma essência do ethos contemporâneo. Em de Chicago, entre os quais se destacam The-
transtorno disfórico pré-menstrual, por exem- odore Schultz, Jacob Mincer e Gary Becker.18
plo, lê-se uma indicação que se repete cons- Uma característica elementar de tal teoria con-
tantemente no Manual: o transtorno “... deve siste na extensão do conceito tradicional de
ser considerado apenas quando os sintomas capital ao humano, que adquire, assim, valor
interferem acentuadamente no trabalho ou na de mercado: daí a necessidade de o indivíduo
escola ou em atividades sociais costumeiras e conceber determinadas capacidades e habili-
relacionamento (por exemplo, evitar ativida- dades como propriedades que devem ser não
des sociais, redução da produtividade e efici- apenas mantidas como incrementadas perma-
ência no trabalho ou na escola)” (APA, [2000] nentemente em vista de rendimentos futuros.
2002, p. 723). Em outras palavras, diante da Elaborada nos anos 1960, a teoria do ca-
ausência persistente de achados laboratoriais pital humano serve, em um primeiro momento,
que comprovem a efetividade de determinados como modelo explicativo para a riqueza eco-
transtornos mentais, como no caso da depres- nômica da sociedade norte-americana no pós-
são, é a incapacidade social e produtiva que -guerra.19 Constatando que categorias centrais
os caracteriza e os define segundo diferentes
17
Apesar de divulgada oficialmente pela OMS em 2001,
ordens e combinações de duração, frequência com projeção efetiva para 2020, como já assinalamos,
e intensidade dos sintomas. Tal critério não se- a epidemia de depressão é uma ideia que emerge nos
anos 1970 e se torna significativamente mais recorrente
ria problemático em si, se não vivêssemos em a partir da década de 80 (cf. Angell, 2001; Caponi, 2010;
Ehrenberg, 1998, p. 119; Ehrenberg, 2004, p. 34; Hernáez,
uma lógica social na qual o constante aprimo- 2010, p. 117; Horwitz; Wakefield, 2008; Horwitz; Wake-
field, 2010, p. 169; Kehl, 2009, p. 49; Pereira, 2011, p. 67;
ramento da eficiência, da produtividade, da

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Pignarre, 2003, p. 19).
autorrealização e do desempenho atua como 18
Não se pretende, aqui, realizar uma análise detida e
princípio normativo, restringindo, assim, cada exaustiva sobre o neoliberalismo, cuja definição provém
de uma diversidade de posições. Entre as mais proeminen-
vez, mais o que define a normalidade. Para tes, destacam-se a Escola Austríaca de Economia (F. Hayek,
L. Von Mises), o Ordoliberalismo alemão (W. Eucken, F.
nós, não é sem razão que a ramificação siste- Böhm) e a Escola de Chicago, fortemente influenciada por
mática dos transtornos depressivos – que se M. Friedman. A despeito da variedade, a doutrina neolibe-
ral compartilha pressupostos básicos, tais como a eficiên-
multiplicam e variam em torno da “condição cia da economia de mercado e da lógica concorrencial, a
constituição de um Estado frugal, a subordinação da po-
clássica” (APA, 2013, p. 155) – produz catego- lítica à economia, a austeridade fiscal e a privatização de
empresas e serviços públicos estatais. Voltamo-nos essen-
rias que tangenciam sempre a normalidade. cialmente ao neoliberalismo norte-americano, dado que a
Para compreender a existência do ethos que se laureada teoria do capital humano da Escola de Chicago
tornou-se progressivamente um princípio de valores capa-
dissemina paralelamente a essa flexibilização zes de orientar a conduta dos homens nas sociedades ca-
pitalistas ocidentais (cf. López-Ruiz, 2007; Foucault 2008).
classificatória da depressão, analisemos uma 19
Como mostra López-Ruiz (2007, p. 56), porém, a noção
teoria central que se difundiu – tal qual o DSM do humano como capital é anterior aos economistas teóri-
cos da Escola de Chicago, como se observa em textos do
– do neoliberalismo norte-americano para o século XVII e XIX. De todo modo, é apenas na segunda
mundo ocidental capitalista: o capital huma- metade do século XX que o conceito será destituído de
toda valoração negativa, que considerava impróprio con-
no. Tal teoria, colocada progressivamente em ceber o homem como fonte de riqueza, para se tornar uma
teoria econômica cuja aceitação ampla permite convertê-la
prática desde os anos 1960, pode nos auxiliar a em valor social.

343
TRANSTORNOS DEPRESSIVOS E CAPITALISMO ...

da economia política clássica – tais como terra, mano, os teóricos enfrentam dificuldade tanto
capital e tempo de trabalho – não permitiam para quantificar o seu acúmulo real como tam-
explicar a opulência do período, economistas bém para calcular o retorno efetivo de inves-
como Schultz propõem que o desenvolvimen- timentos que a sociedade, as instituições, as
to e o aprimoramento de qualidades e capaci- corporações, a família e os próprios indivíduos
dades humanas inatas ou adquiridas exercem realizam no decurso da vida. De todo modo,
um papel econômico fundamental. Mais tarde, valendo-se dos termos acurados de Foucault
o investimento em capital humano mediante (2008, p. 308-316), pode-se dizer que é o acú-
níveis educacionais formais e informais se tor- mulo de capacidades que possivelmente torna
nará o modelo explicativo da disparidade exis- o indivíduo uma “competência-máquina”, que
tente entre sociedades liberais avançadas e so- produzirá, assim, mais “fluxos de renda”, uma
ciedades terceiro-mundistas (Foucault, 2008, vez que, para os economistas neoliberais da
p. 318-319; López-Ruiz, 2007, p. 62, 199, 220). Escola de Chicago, o salário consiste no ren-
Além de explicação econômica, a teoria do ca- dimento de um capital específico, o humano.
pital humano exerce ainda uma função políti- Tratando esquematicamente a constru-
ca indispensável no contexto da Guerra Fria: ção teórica dos neoliberais norte-americanos,
trata-se de mostrar ao outro lado da cortina de insistamos na ideia central atinente à transfor-
ferro como certa forma de investir em educa- mação de categorias clássicas como “trabalho”
ção, ciência, tecnologia e saúde constituía a e “trabalhador”. Para a lógica inerente à teoria
supremacia do capitalismo como modelo so- do capital humano, o trabalho se converte em
cioeconômico (López-Ruiz, 2007, p. 61-62). capital e o trabalhador, em capitalista. É Har-
Reintroduzindo o trabalho no campo da ry G. Johnson quem explicita que o trabalha-
análise econômica, os teóricos do capital hu- dor, em uma economia industrial avançada,
mano realizam uma transfiguração da catego- é tipicamente um capitalista, dado que seus
ria de trabalhador que afeta, de modo direto e próprios meios de produção, heterogêneos e
extensivo, a maneira como os homens devem intangíveis, são sistematicamente produzidos
conduzir suas próprias vidas. Em vez de traba- por formas permanentes de investimentos. Daí
lhadores assalariados que vendem aos donos a ideia do economista da Escola de Chicago
dos meios de produção sua força de trabalho de que o trabalhador é “um meio de produção
quantificada homogeneamente por meio do produzido” e “um item de equipamento do ca-
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tempo empregado na atividade, todos os indi- pital” (López-Ruiz, 2007, p. 61, 193, 220-221).
víduos devem se conceber e se conduzir indis- Não é difícil perceber, assim, como a teoria
tintamente como proprietários de determina- do capital humano promove todos, indistin-
das qualidades que lhe são próprias, hetero- tamente, à categoria de capitalistas de si mes-
gêneas, intangíveis e até mesmo inalienáveis, mos: afinal, a administração do próprio capital
tais como a inteligência, a criatividade, a moti- humano implica saber quando, onde e como
vação, a iniciativa individual, a persistência, a investir, tal como procedem os investidores de
flexibilidade relacional, a comunicação, entre capital financeiro.
outras características louvadas em nossa atu- A partir do que designa “deslocamento
alidade. Associadas a competências técnicas conceitual valorativo”, López-Ruiz (2007) – em
que podem ser igualmente adquiridas median- pesquisa que mostra a gradual disseminação
te investimentos sistemáticos, é o conjunto da teoria do capital humano em diferentes so-
dessas capacidades que determina o desempe- ciedades capitalistas, incluindo aí o modo de
nho dos indivíduos, conforme a quantidade de vida de executivos de corporações transnacio-
capital humano acumulada. Ressalte-se que, nais no Brasil – faz notar como a teoria do ca-
em função da heterogeneidade do capital hu- pital humano converte ainda diferentes formas

344
Elton Corbanezi

de consumo em investimento. É que os indiví- nova ética do homo oeconomicus contemporâ-


duos, para se manterem socialmente valoriza- neo. Ao contrário do modelo clássico, que se
dos e economicamente produtivos e rentáveis, caracterizava principalmente por relações de
segundo a lógica concorrencial determinada troca em uma sociedade mercantil, o homo oe-
pelo mercado, precisam perseguir incansavel- conomicus contemporâneo não apenas aplica
mente o imperativo “investimento-crescimen- a racionalidade econômica a todas as relações
to”. Não são apenas os investimentos em edu- como assume a forma empresa como um modo
cação formal – tais como escolarização, cursos de existência que orienta sua relação com o
profissionais e idiomáticos, especializações e trabalho, com a propriedade privada, com o
programas de treinamento no trabalho – aten- casamento, com a família, com seu grupo, com
dem tal demanda; as relações de amizade, o o tempo, com o futuro e, sobretudo, consigo
tempo de lazer, o tempo de afeto dedicado aos próprio. Para Foucault (2008, p. 203, 331-332),
filhos, a possível constituição do equipamento se o homo oeconomicus retorna dessa maneira,
genético deles mediante a escolha do parceiro é porque a multiplicação da forma empresa no
conjugal adequado, até, evidentemente, o cui- tecido social inteiro constitui o escopo da polí-
dado com a própria saúde constituem formas tica neoliberal. Nos termos do filósofo, em vez
de investimento cujo efeito esperado é a ren- de uma “sociedade supermercado”, regulada
tabilidade futura. Daí a insistência de Foucault pela troca mercantil, o neoliberalismo funda
(2008), nas aulas dedicadas ao neoliberalismo uma “sociedade empresarial”, que torna a di-
norte-americano, de que a ideia fundamental nâmica concorrencial de mercado o impulso
da teoria do capital humano reside na exten- vital das instituições e corporações tanto quan-
são e na aplicação da racionalidade econômica to dos indivíduos propriamente ditos.
e de mercado a todo um conjunto de fenôme- Tal ética empresarial, que caracteriza
nos sociais e de comportamentos individuais a economia social de mercado própria do or-
concebidos até então como não econômicos doliberalismo alemão, é radicalizada pelos
(e.g.: criminalidade, casamento, educação de neoliberais norte-americanos. Por isso, tanto
filhos, tempo de afeto). Através dessa “econo- para Foucault (2008, p. 301-302) quanto para
mização” de todo o tecido social,20 a economia López-Ruiz (2007), o neoliberalismo norte-a-
se torna “programação estratégica da atividade mericano constitui toda uma forma de ser, de
dos indivíduos” (Foucault, 2008, p. 307). Desse pensar e de agir;22 ou seja, por meio da teoria

Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 83, p. 335-353, Maio/Ago. 2018


modo, é o mercado, como regulador geral da do capital humano, essa vertente do neolibe-
sociedade, que define o consumo como inves- ralismo institui o ethos característico do homo
timento ou não.21 oeconomicus atual, que é tornar-se empreen-
Progressivamente, constitui-se, assim, a dedor de si mesmo, o que está igualmente no
cerne da nova cultura psicológica abordada
20
Como se sabe, para a doutrina neoliberal, tal “econo- pelo sociólogo francês Robert Castel (2011).23
mização” não se restringe apenas ao corpo social, mas se
estende ainda ao corpo político, à arte de governar, dado Na qualidade de empresa múltipla e contínua,
que a economia de mercado deve restringir a ação gover-
namental, reduzindo o Estado a um mínimo necessário. A o indivíduo deve perseguir o autoinvestimento
despeito das diferenças, desde o liberalismo clássico de
Adam Smith até o neoliberalismo alemão e norte-america-
no, postula-se a subordinação da racionalidade política à 22
Nesse sentido, Foucault (2008, p. 301-302, 423) sustenta
racionalidade econômica. que, em vez de uma técnica de governantes sobre gover-
nados, o neoliberalismo é uma relação entre eles: donde a
21
López-Ruiz (2007, p. 224) mostra como a ordem nor- definição de que a governamentalidade neoliberal consiste
mativa e valorativa imposta pelo mercado determina qual na arte de governar a partir da racionalidade dos próprios
consumo será concebido como investimento: por exem- governados.
plo, segundo a perspectiva do mundo corporativo, cursos
de inglês ou de espanhol podem ser considerados inves- 23
Ver especialmente o prefácio à reedição de La gestion
timentos, ao passo que o aprendizado de línguas como o des risques, escrito por Castel (2011) trinta anos depois da
tupi e o francês não apenas não constituem uma forma de publicação de seu livro, cujo objetivo consistia em captu-
investimento como ainda manifestam uma problemática rar tendências do capitalismo contemporâneo em relação
dispersão de interesses. à cultura psicológica emergente.

345
TRANSTORNOS DEPRESSIVOS E CAPITALISMO ...

e a formação permanente como os meios que o pria carreira, tornando ambas indiscerníveis
modulam adequadamente para o mercado, não tanto em países desenvolvidos quanto em
se esquecendo, porém, que é o próprio merca- desenvolvimento (López-Ruiz, 2007; Stroud,
do que determina o valor de tais meios. Não é 2014).25 Tal atributo parece ser o efeito de uma
à toa que termos como “formação permanente” teoria econômica incorporada gradativamen-
e “modulação” são empregados precisamente te por doutrinas da administração no decurso
por Deleuze (1992, p. 219-226), em seu célebre dos anos 1990 e difundida por todo o tecido
texto prognóstico, no qual relaciona a noção social como uma forma moralmente correta e
de “sociedades de controle” ao espraiamento economicamente conveniente de conduzir a
social da forma empresa, que substitui a fun- vida. Para nosso propósito, um aspecto rele-
ção da família e da escola, instalando-se no vante desse percurso demonstrado por López-
coração do humano. É que, diferentemente de -Ruiz (2007) a respeito da teoria do capital hu-
procedimentos disciplinares que “moldavam” mano reside na função política adquirida por
os indivíduos em instituições, a noção – “ter- uma verdade científica. Se, em um primeiro
rível”, no entender de Deleuze (1992, p. 216) – momento, a teoria pretendia apenas explicar
de “formação permanente” os “modula” para o cientificamente a riqueza da sociedade norte-
mercado, essa entidade abstrata e universal do -americana no pós-guerra, ela logo se converte
capitalismo, que produz, fantástica e concre- em um conjunto de princípios, valores e cren-
tamente, riqueza e miséria. Daí a necessidade ças que orienta a conduta dos homens.26 Coe-
política de se questionar para que os jovens so- rente, a tese do sociólogo se apresenta inequi-
licitam, insistentemente, motivação, estágios e vocamente: a partir de uma teoria econômica
formação permanente.24 Portanto, ao contrário e científica, constitui-se uma ética social que
da suposta liberdade humanista, que a forma caracteriza o atual espírito do capitalismo. É
mais sofisticada e avançada do capitalismo por isso que a teoria do capital humano não
pretende promover, assiste-se a uma nova ser- interessa em si mesma, mas apenas na medida
vidão voluntária: ainda que os investimentos em que embasa a maneira como o indivíduo
se dobrem sobre os próprios indivíduos, é em racionaliza sua relação com o mundo, com os
função do mercado que o acúmulo de capital outros e consigo.27
humano deve ser programado, executado e No centro da concepção empresarial
mobilizado. É dessa maneira que a racionali-
Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 83, p. 335-353, Maio/Ago. 2018

dade governamental do neoliberalismo reduz e 25


Evidenciada por pesquisas acadêmicas, tal ideia é am-
plamente disseminada por veículos de comunicação de
une todas as dimensões da vida dos indivíduos massa. No Brasil, por exemplo, ela se expressa, de modo
preciso e inequívoco, na revista Você S/A, título de vasta
e seus diferentes modos de existência à esfera circulação nacional, que se volta para o mundo dos ne-
gócios e manifesta, explícita e compactamente, a ideia de
econômica do mercado. Para Boccara (2013), que o indivíduo é sua própria empresa. Sobre a revista e o
antropólogo pesquisador do multiculturalismo empreendedorismo disseminado amplamente como valor
social, ver López-Ruiz (2007, p. 250-262).
neoliberal, essa é a base do neoliberalismo “di- 26
Sublinhe-se que o modo de vida de executivos de cor-
ferencialista”, em suas variadas formas e con- porações transnacionais constitui o objeto da pesquisa so-
ciológica de López-Ruiz (2007) na medida em que o ethos
textos. dessas personagens representa, de forma emblemática, o
Entende-se, assim, o diagnóstico atual paradigma da vida social contemporânea.

de que a vida se torna business, isto é, a ideia


27
Com ponderação, López-Ruiz (2007, p. 306) ressalva que
a teoria do capital humano constitui apenas um elemen-
de que a vida se reduz, em nossos dias, à pró- to do capitalismo contemporâneo, cujas formas concretas
são, evidentemente, particulares no conjunto das socieda-
24
É com as seguintes palavras que Deleuze (1992, p. 226) des ocidentais. A centralidade da teoria do capital huma-
conclui seu texto de 1990: “Muitos jovens pedem estra- no reside, contudo, no fato de que tal formulação teórica
nhamente para serem ‘motivados’, e solicitam novos está- implica um conjunto prescritivo de valores que orientam
gios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que sobremaneira o modo como os indivíduos tendem a con-
estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores duzir suas vidas. Nos termos de Foucault (2008), a teoria
descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os do capital humano atua como princípio de governamenta-
anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os lidade, cuja função, nesse caso, consiste em programar a
buracos de uma toupeira”. vida dos indivíduos conforme as exigências do mercado.

346
Elton Corbanezi

da vida, encontra-se a noção de desempenho. déficit de neurotransmissores até a extenua-


Passível de determinação mediante a quanti- ção energética em todos os níveis, a depressão
dade de capital humano acumulado, o desem- representa, em seus variados graus, a impos-
penho funciona atualmente como medida do sibilidade de realização da saúde otimizada
sucesso e do fracasso dos indivíduos em uma que se depreende de discursos institucionais
sociedade que se compõe, pois, de “vencedo- e médicos. Invertendo os sinais, não soa estra-
res” e de “perdedores”.28 Tanto é assim que, no nho observar que o “episódio hipomaníaco”,
campo específico da nosologia psiquiátrica da embora solicite atenção psiquiátrica, seja apre-
depressão, a ausência ou a disfunção na capa- sentado tacitamente no DSM-IV-TR como um
cidade de desempenho se apresenta como um estado quase socialmente desejado, uma vez
critério fundamental para verificar a existência que “[a] alteração no funcionamento em al-
de transtornos depressivos, cuja sintomatolo- guns indivíduos pode assumir a forma de um
gia envolve efetivamente a fadiga, a lentidão aumento acentuado na eficiência, realizações
psicomotora, a dificuldade comunicacional, a ou criatividade” (APA, [2000] 2002, p. 362). O
ausência de energia, de motivação, de prazer, problema é que essa acentuação patológica da
de expectativa e de projetos futuros, entre ou- eficácia e das capacidades também pode cau-
tros déficits. É nesse sentido que a epidemia sar algum prejuízo social ou ocupacional, bem
depressiva pode ser a expressão mais acabada como indicar o desenvolvimento da euforia
de uma legião de “fracassados” que não supor- descontrolada e possivelmente psicótica, típi-
tam a responsabilidade inscrita na ideia de au- ca do episódio maníaco propriamente dito.31
torrealização constante, que está no cerne da Dada a relevância da noção de desempe-
biopolítica da saúde mental.29 Se o excesso é nho, tecnologias médicas contemporâneas se
constitutivo da dinâmica neoliberal – como convertem em tecnologias de otimização, cujo
Santos (2007, p. 11-13, 21) mostra a partir da objetivo primordial não é mais apenas curar
atualização da ópera Don Giovanni por Micha- doenças, mas aperfeiçoar as capacidades dos
el Haneke –, a depressão, como déficit, insufi- indivíduos. Ainda que restritas às democracias
ciência e desvalorização da vida, se apresenta liberais avançadas – isto é, ao “ocidente rico”32
logicamente como um problema que inviabili- –, tais tecnologias constituem atualmente o
za a manutenção, a aquisição e o exercício do que Rose (2013) designa como “a política da
capital humano. Ou seja, para a lógica neoli- própria vida” (the politics of life itself). Para o

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beral predominante nas sociedades capitalis- sociólogo inglês, o problema da biomedicina
tas ocidentais contemporâneas, a depressão é
lucro privado e para o crescimento econômico nacional.
puro desinvestimento individual e coletivo, Considerando, porém, o argumento dos economistas da
Escola de Chicago de que o capital humano constitui o
ainda que outros mercados se beneficiem com elemento principal do desenvolvimento econômico dos
ela, nomeadamente a indústria farmacêutica países, não se pode recusar que a depressão, como desin-
vestimento individual do ponto de vista da produtividade
e as técnicas terapêuticas diversas.30 Desde o pragmática de mercado, representa um obstáculo lógico
para preceitos neoliberais.
28
Insistamos na ideia de que o fracasso no mundo corpo-
rativo equivale ao fracasso pessoal absoluto. A partir de O
31
Nesse sentido, problematizando a depressão como sin-
Relatório Lugano, de Susan George, Santos (2003, p. 25-27) toma social do mal-estar contemporâneo, Kehl (2009, p.
destaca o fato de que o neoliberalismo destrói o ambiente 31,50) argumenta que a epidemia atual do transtorno en-
e produz perdedores em escalas inauditas. Mais terrifican- contra suas condições de possibilidade em uma sociedade
tes são os critérios seletivos que constituem o grupo dos simultaneamente antidepressiva e maníaca, que “... aposta
perdedores, que precisam reconhecer-se como responsá- na euforia como valor agregado”.
veis pela incompetência, inaptidão, pobreza, ignorância,
preguiça, criminalidade etc. que lhe são próprias, segundo
32
Rose (2013, p. 353) observa que, em vez do desenvolvi-
os preceitos neoliberais. mento de tecnologias médicas sofisticadas – tais como me-
dicina genômica e neurogenética –, políticas primordiais
29
Sobre a biopolítica da saúde mental, ver Corbanezi como de saneamento básico seriam suficientes para salvar
(2015, p. 83-104). muitas vidas em países terceiro-mundistas. Não obstante
a relevância vital da afirmação, o próprio sociólogo inglês
30
Mostrando o aumento do consumo de psicotrópicos, mostra, em suas pesquisas, a necessidade de se investi-
Rose (2013, p. 290) indica que os transtornos mentais po- garem as tendências de países desenvolvidos, de modo a
dem ser uma oportunidade fundamental para a criação de detectar em que direção o capitalismo avança.

347
TRANSTORNOS DEPRESSIVOS E CAPITALISMO ...

molecular, em nossos dias, não consiste espe- de condenar ingenuamente o uso pragmático
cialmente em normalizar e restituir a saúde; e utilitário circunscrito à ideia de psicofarma-
trata-se, antes, de superar barreiras biológicas, cologia cosmética, é preciso perceber sua coe-
intervir em condições pré-sintomáticas e aper- rência absoluta no contexto da biopolítica da
feiçoar capacidades como força, resistência, saúde mental, que inculca, nos indivíduos, a
longevidade, atenção, inteligência: é o que se necessidade tanto de realização permanente
observa desde o uso variado da genética até o quanto de bem-estar como fórmula para o su-
consumo plástico de psicofármacos. cesso social.
Com efeito, entre outras formas de inves- Como se vê, o argumento de Kramer
tir em capital humano – tais como escolariza- não destoa do imaginário da cultura ocidental
ção, cursos idiomáticos e profissionalizantes, contemporânea, para o qual “sentir-se bem”
treinamento on-the-job, atenção médica, in- implica realizar-se como profissional, pai,
gestão de vitaminas, aquisição de informação cônjuge e cidadão capaz de contribuir efetiva
sobre o sistema econômico –, pode-se incluir e resignadamente com a sociedade tal como
o consumo de psicofármacos. Sem pretender nos é apresentada. Acentuada, essa lógica su-
discutir a polêmica se o medicamento seria ca- gere que a saúde não equivale mais apenas à
paz de produzir um novo self – o que parece vida no silêncio dos órgãos, como postulava o
pouco provável –, o fato incontestável é que fisiologista René Leriche (Canguilhem, 2002,
seu uso pode estimular capacidades, se não p. 67-76); para além dessa definição, a saúde
inexistentes, ao menos latentes. Nesse sentido, consiste, hoje, numa configuração ativa a ser
o uso cosmético de antidepressivos, segundo a percebida e solicitada insistentemente. Com
fórmula popularizada pelo psiquiatra estadu- esse raciocínio, St-Hilaire (2009) mostra, de
nidense Peter Kramer, constituiria um direito forma convincente, como o uso cosmético e
dos indivíduos em sociedades democráticas plástico de antidepressivos – outrora designa-
liberais, em que todos supostamente gozam dos “energizantes psíquicos” – permite ajustar
de liberdade para produzir bem-estar e para os indivíduos às demandas sociais contempo-
otimizar suas capacidades, tornando-se better râneas, ao mesmo tempo em que as evidencia.
than well. Autor de Listening to Prozac: a psy- Mais do que conspiração de uns sobre os ou-
chiatrist explores antidepressants drugs and the tros, trata-se do atual processo de constituição
remaking of the self, Kramer (1993) sustenta da subjetividade em sociedade.34 Nesse sen-
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que o uso de antidepressivos serve tanto para tido, o discurso da saúde, segundo o sociólo-
aliviar os sintomas do transtorno quanto para go, constitui “o lugar pelo qual se ordenam as
criar condições para que as pessoas realizem exigências sociais”. E o que assistimos hoje é
com sucesso suas atividades, produzindo e oti- ao “... aprimoramento de nossas capacidades,
mizando, por conseguinte, o bem-estar. É por um melhor ajustamento às exigências da vida
isso que, para Ehrenberg (1998, p. 203), segun- à qual aspiramos ...” (St-Hilaire, 2009).
do o qual a depressão é uma doença da insufi- A centralidade da noção de desempenho
ciência da capacidade de ação e de iniciativa, a permite perceber que, para além do sofrimen-
pílula promovida pelo best-seller do psiquiatra to indescritível da depressão severa, tal como
estadunidense pretende mais estimular a ação testemunha o escritor Willian Styron (1991),
do que produzir a felicidade, como as tradu- a “epidemia” do transtorno é instaurada por
ções francesa e brasileira do título da obra dão 34
Nesse sentido, St-Hilaire (2009), pesquisador da ação
social dos medicamentos, assegura que o encontro da bio-
a entender equivocadamente.33 Ora, em vez medicina com as tecnociências produz tecnologias efica-
zes para transformar a subjetividade mediante soluções
33
A saber: Prozac: le bonheur sur ordonnance?, Paris: First, moleculares. É o que se passa com antidepressivos, que
1994, e Ouvindo o Prozac: uma abordagem profunda e es- agem especificamente no cérebro, em vez de abranger o
clarecedora sobre a “Pílula da Felicidade”, Rio de Janeiro: indivíduo em sua totalidade, como era até pouco tempo
Record, 1994. sob o paradigma da psicologia expresso no DSM I e II.

348
Elton Corbanezi

outro temor: o da crise de incapacidade35 – pecto controverso da associação do indivíduo


sabe-se, afinal, que a monstruosidade para o contemporâneo ao além-do-homem nietzsche-
capitalismo consiste na improdutividade. Pró- ano, é preciso reter a ideia fundamental do so-
ximo ao aspecto sociológico da tese de Kehl ciólogo francês de que o transtorno depressivo
(2009),36 Ehrenberg (1998) já sustentara que o deve ser percebido especialmente em termos
aumento dos casos de depressão resultava da de incapacidade de ação, ou seja, a depressão é
conquista de autonomia dos indivíduos após menos paixão triste do que ação insuficiente.39
os movimentos contestatórios do final dos
anos 1960. Para o sociólogo francês, em vez do
modelo disciplinar – no qual a permissão ou CONSIDERAÇÕES FINAIS
a interdição estabelecidas pela lei constituem
o fundamento do conflito psíquico próprio da Sublinhada a dimensão capital de parâ-
concepção freudiana das neuroses –, os indiví- metros normativos como desempenho, autor-
duos experimentam, desde então, a autonomia realização, ação e performance, pode-se afir-
como norma social inédita que lhes solicita, mar que a ideia de epidemia depressiva não
sem limites, a capacidade de ação, a iniciativa resulta da alta incidência efetiva de casos seve-
individual, a escolha pelo modo de vida e a ros. De fato, como Horwitz e Wakefield (2010,
responsabilidade. É por isso que, para o autor p. 248-249) mostram, o discurso institucional
de La fatigue d’être soi, a depressão consiste, da OMS contribui para a fabricação da epide-
antes de tudo, numa patologia da insuficiên- mia depressiva, aplicando o nível de gravidade
cia, típica de uma sociedade que atribui ao in- de depressão a todos os casos indistintamente;
divíduo, exclusivamente, a responsabilidade desse modo, cumpre-se o objetivo de advertir
pelo sucesso social.37 Daí a ideia de Ehrenberg a relevância do transtorno psiquiátrico como
(1998, p. 129, 236) de que tudo se passa atu- problema de saúde pública. Procedendo as-
almente como se assistíssemos à ascensão do sim, asseguram ainda os pesquisadores norte-
indivíduo soberano de Nietzsche: porém, em -americanos, a OMS exerce o significativo pa-
vez de um modo de vida selecionado e des- pel de divulgar para todo o mundo, e de modo
tinado a alguns “fortes”, segundo a tipologia inquestionável, a concepção hegemônica da
nietzscheana, tal indivíduo sobrevém demo- Associação Psiquiátrica Americana.40
craticamente massificado.38 Em que pese o as- Dado o lugar central que a saúde – e,

Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 83, p. 335-353, Maio/Ago. 2018


especialmente, a saúde mental – ocupa no re-
35
Cabe observar, nesse sentido, que o termo incapacidade
não resulta de um dado natural absoluto, mas pode ser, gime ético contemporâneo, pode-se afirmar
ele também, socialmente construído, como sustenta a
perspectiva do construcionismo social (cf. Conrad; Barker, que a ideia de epidemia depressiva encontra
2011, p. 194).
divíduo soberano de Nietzsche. Como observa Han (2017,
36
Subtraindo a discussão psicanalítica que foge ao nos- p. 94-95), ao contrário do sujeito contemporâneo perfor-
so escopo, deve-se destacar que o aspecto sociológico da mático e hiperativo, o além-do-homem nietzscheano é um
tese de Maria Rita Kehl (2009) é que a depressão recusa espírito-livre, forjado como contramodelo de crítica cul-
e questiona valores essenciais das sociedades capitalistas tural desse sujeito esgotado, que dissemina uma singular
contemporâneas, entre os quais sobressaem a velocidade ausência de espírito (Corbanezi, 2018, no prelo).
e o gozo, isto é, a aceleração do tempo e o imperativo da
felicidade, do prazer e da satisfação “prêt-à-porter”.
39
É igualmente como “patologia da ação” que os psica-
nalistas franceses Pierre Fédida (1999, p. 15-35) e Pierre-
37
Lançando mão da tese de Ehrenberg, Safatle (2012) sus- -Henri Castel (2009, p. 137-173) abordam a depressão.
tenta que o aumento do sofrimento psíquico característi-
co da depressão resulta da atual mudança do paradigma
40
Com efeito, no Relatório sobre a saúde no Mundo 2001
produtivo, que solicita dos indivíduos atributos antes res- (OMS, 2001, p. 48), dedicado à saúde mental, lê-se um
tritos ao paradigma de produção estética e os quais cons- elogio à padronização e à confiabilidade diagnóstica, am-
tituíam, paradoxalmente, a crítica ao taylorismo, a saber: bas estabelecidas pela racionalidade psiquiátrica desde o
criatividade, capacidade para enfrentar riscos, flexibilida- DSM-III. Desse modo, torna-se possível realizar o objetivo
de, mobilidade, afetividade, conjugados, evidentemente, da psiquiatria transcultural de universalizar a concepção
com iniciativa individual e responsabilidade. ocidental de depressão. Para Pignarre (2003, p. 38-39), o
etnocentrismo psiquiátrico, que institui diagnósticos pa-
38
Em Sociedade do cansaço, o sul-coreano Byung-Chul dronizados, mas não necessariamente válidos, constitui
Han (2017) critica — com razão, a nosso ver — a ideia do elemento fundamental para a transformação da depressão
sociólogo francês de que assistimos hoje à ascensão do in- em epidemia mundial.

349
TRANSTORNOS DEPRESSIVOS E CAPITALISMO ...

suas condições de possibilidade no contexto minada teoria do capital humano, por outro, a
da biopolítica da saúde mental, exercendo, ela definição do transtorno se dá mediante a inca-
própria, função política equivalente. É que, pacidade de fazê-lo.
alertando os indivíduos para a necessidade de Anunciada desde os anos 1970, a ideia
cuidado diante de um futuro sombrio, otimi- de epidemia depressiva parece tomar forma
zam-se, natural e consequentemente, suas po- na medida em que a racionalidade científica
tencialidades.41 Assim, uma sinergia política se e classificatória da psiquiatria se desenvolve,
constitui a partir de duas verdades científicas capturando cada vez mais condutas levemen-
díspares: a concepção psiquiátrica dos trans- te incapacitadas, tristes e menos produtivas.
tornos depressivos e a teoria econômica do Em outras palavras, a progressiva ramificação
capital humano. Não obstante a tendência da e a flexibilização dos critérios diagnósticos
natureza humana a desenvolver-se e aperfeiço- da depressão permitem que se territorializem
ar-se, em tempos de capitalismo cognitivo, de condutas heterogêneas e singulares – com
economia imaterial, de sociedades de controle combinações diversas de sintomas relativa-
ou de biopolítica, é fundamental perguntar por mente banais e cotidianos – no lugar comum
que verdades e técnicas científicas e pretensa- da classificação formal. Não se trata, com tal
mente neutras toleram, cada vez menos, sinto- afirmação, de recusar, de forma inconsequen-
mas tênues de sofrimentos cotidianos. te, a dimensão real da depressão como patolo-
A análise minuciosa de como são descri- gia que causa sofrimento, tampouco de negli-
tos e apresentados os transtornos depressivos genciar os aspectos biológicos e psíquicos que
em manuais psiquiátricos contemporâneos dá a envolvem. Queremos chamar a atenção para
a ver que a altíssima incidência da depressão o fato de que a produção e o estabelecimento
pode relacionar-se também à laxidão de crité- de diversos subtipos de depressão se relacio-
rios diagnósticos e sua consequente patologi- nam diretamente ao déficit de atributos e de
zação de sofrimentos mais brandos. Como vi- disposições que o atual espírito do capitalismo
mos, os transtornos depressivos menos graves valoriza e solicita dos indivíduos.
– ou seja, aqueles que gravitam em torno da Não há dúvida de que, em relação à bio-
condição nuclear, que é o transtorno depressi- política da saúde mental – que incita os indiví-
vo maior – sempre tangenciam a normalidade, duos à realização constante de suas potencia-
restringindo-a, assim, a parâmetros mais rígi- lidades intelectuais, emocionais e laborais –, a
Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 83, p. 335-353, Maio/Ago. 2018

dos e normativos de desempenho, o qual, su- depressão é fundamentalmente antinormativa:


blinhemos uma vez mais, funciona igualmente ao mesmo tempo em que é expressão do corpo
como critério diagnóstico ante a ausência de indisciplinado (incapacitado, desenergizado,
dados laboratoriais definitivos. Uma relação lento), desregula a homeostase populacional
inequívoca se depreende dessa afirmação: um (improdutividade, custos, suicídio) e recusa,
dos critérios fundamentais para constatar a assim, palavras-chave de nossa época (moti-
efetividade de transtornos depressivos é preci- vação, comunicação, mobilidade, criatividade,
samente o mesmo que o capitalismo, em suas velocidade, eficiência). É quando relacionada
formas neoliberais predominantes, exige insis- ao ethos contemporâneo predominante que
tentemente dos indivíduos. Se, por um lado, é a depressão parece tornar-se um problema
preciso investir em si, como apregoa a disse- gravíssimo: talvez não seja apenas o suposto
41
A relevância da saúde no regime ético contemporâneo déficit de neurotransmissores que cause o so-
transforma o paciente – passivo por definição – em sujeito
ativo, constituindo indivíduos que são verdadeiros econo- frimento, mas a impossibilidade de realizar
mistas de sua própria saúde, segundo a expressão de Rose valores e princípios que orientam o modo de
(2013, p. 140). Considerada a exigência ética atual de que
se pode sempre adquirir mais saúde, o fato de não pos- vida dos indivíduos nas sociedades capitalis-
suí-la intensifica o sofrimento do indivíduo, supostamente
responsável por sua condição patológica. tas contemporâneas. Associada sinergicamen-

350
Elton Corbanezi

te ao modo de vida preconizado e disseminado e empregabilidade futuras. É fato que, em todo


pela teoria econômica do capital humano, a espectro da vida social, assistimos à produção
flexibilização classificatória da depressão não de um modo de vida assentado na realização
apenas contribui para a fabricação da epide- individual. No entanto, diferentemente de um
mia depressiva como restringe a normalidade “cuidado de si”, que se dobra sobre o sujeito
a padrões mais rígidos de desempenho, corres- como autodeterminação e relação consigo, que
pondendo, assim, à estratégia biopolítica da resiste a códigos e poderes específicos, o cui-
saúde mental, cuja função atual consiste – não dado exacerbado de nossos dias – um a mais
de forma exclusiva – em otimizar as capacida- de saúde – parece circunscrever-se majorita-
des dos indivíduos. riamente às demandas do mercado.
Embora seja difícil recusar que a racio-
nalidade psiquiátrica se desenvolva pari passu
Recebido para publicação em 30 de junho de 2016
com as tendências neoliberais das sociedades Aceito em 11 de junho de 2018
capitalistas ocidentais, seria precipitado pre-
tender estabelecer uma relação de causalida-
de direta e absoluta, como se a racionalidade REFERÊNCIAS
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denunciar pura e simplesmente o aspecto ca-

Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 83, p. 335-353, Maio/Ago. 2018


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Elton Corbanezi

DEPRESSIVE DISORDERS AND TROUBLES DÉPRESSIFS ET CAPITALISME


CONTEMPORARY CAPITALISM CONTEMPORAIN

Elton Corbanezi Elton Corbanezi

This article aims to show how the evolution of Cet article a pour but de montrer comment
psychiatric nosology of depression may to relate to l’évolution de la nosologie psychiatrique de
certain requirements of contemporary capitalism. la dépression peut se rapporter à certaines
First, we investigate the conceptions of depressive exigences du capitalisme contemporain. D’abord,
disorders from the third edition of Diagnostic and nous étudions les conceptions de troubles
Statistical Manuals of Mental Disorders (DSM), dépressifs depuis la troisième édition du Manuel
which established the current psychiatric paradigm, Diagnostique et Statistique des Troubles Mentaux
focusing especially on the last two versions (DSM-IV (DSM), qui a établi le paradigme psychiatrique
and DSM-5). Along with International Classification actuel, en nous concentrant surtout sur les deux
of Diseases by WHO, the recent editions of manual dernières versions (DSM-IV et DSM-5). À côté de
are the main classification systems of psychiatry, la Classification Internationale des Maladies de
guiding clinical practice and conceptually basing l’OMS, les éditions les plus récentes du manuel
the current idea of depressive epidemic. Then we sont les principaux systèmes de classification de
show how the economic theory of human capital, la psychiatrie, en orientant la pratique clinique
developed by neoliberal economists of the Chicago et en fondant conceptuellement l’idée actuelle de
School, becomes a social value that, widely l’épidémie dépressive. Ensuite, nous faisons voir
accepted and disseminated, guides the conduct comment la théorie économique du capital humain,
of life of individuals in advanced liberal societies développée par des économistes néolibéraux de
and in Third World societies. Therefore, we affirm l’École de Chicago, devient une valeur sociale, qui,
that the systematic ramification and flexibility acceptée et diffusée largement, guide la conduite
of depressive disorders, which establish as de vie des individus dans les sociétés libérales
pathological subtle forms of suffering, correspond avancées et dans les sociétés tiers-mundistes.
to logic of intensification of performance of Nous soutenons, ainsi, que la ramification et
certain individual capacities indispensable to l’assouplissement systématiques des troubles
contemporary capitalism. dépressifs, qui établissent comme pathologique
des formes subtiles de souffrance, correspondent à
la logique d’intensification de la performance des
certaines capacités individuelles indispensables au
capitalisme contemporain.

Keywords: Depressive disorders. Contemporary Mots-clés: Troubles dépressifs. Capitalisme


capitalism. Human capital. Conduct of life. contemporain. Capital humain. Conduite de vie.
Depressive epidemic. Epidémie dépressive.

Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 83, p. 335-353, Maio/Ago. 2018

Elton Corbanezi – Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política


e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Mato Grosso. Atualmente
exerce o cargo de Chefe de Departamento. Integra, como pesquisador, o grupo de pesquisa Conhecimento,
Tecnologia e Mercado (CTeMe - IFCH/Unicamp), desenvolvendo pesquisas na área de sociologia em
relação aos seguintes temas: ciência, cultura, psiquiatria, saúde mental, depressão, subjetividade e
biopolítica. Suas mais recentes publicações são: Sociedade do cansaço: uma constatação irrefutável.
Tempo Social, USP, São Paulo [no prelo]; O terror do positivo: o alienista e o positivismo comteano.
Plural, USP, São Paulo, v. 22, p. 209-232, 2015; Geoffroy de Lagasnerie: uma polêmica leitura neoliberal
de Foucault. Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), v. 29, p. 195

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