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TRANSTORNOS DEPRESSIVOS
E CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
Elton Corbanezi*
O objetivo do artigo é mostrar como a evolução da nosologia psiquiátrica da depressão pode se relacionar com
determinadas demandas do capitalismo contemporâneo. Primeiro, investigamos as concepções de transtornos de-
pressivos desde a terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), que instaurou
o paradigma psiquiátrico vigente até nossos dias, enfocando, especialmente, as duas últimas versões (DSM-IV-TR
e DSM-5). Ao lado da Classificação Internacional de Doenças da OMS, as edições recentes do Manual constituem
os principais sistemas classificatórios de psiquiatria, orientando a prática clínica e embasando conceitualmente a
ideia atual de epidemia depressiva. Em seguida, fazemos ver como a teoria econômica do capital humano, elabora-
da por economistas neoliberais da Escola de Chicago, se converte em valor social que, aceito e disseminado ampla-
mente, orienta a conduta de vida dos indivíduos tanto em sociedades liberais avançadas quanto nas terceiro-mun-
distas. Pretendemos sustentar, assim, que a sistemática ramificação e a flexibilização dos transtornos depressivos,
as quais estabelecem como patológicas formas tênues de sofrimento, correspondem à lógica de intensificação do
desempenho de determinadas capacidades individuais imprescindíveis ao capitalismo contemporâneo.
Palavras-chave: Transtornos depressivos. Capitalismo contemporâneo. Capital humano. Conduta de vida.
Epidemia depressiva.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792018000200011 335
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351). Como se sabe, o DSM-5 eliminou esse 2013), travando uma batalha insistente contra
único critério de exclusão diagnóstica em a exclusão do critério relativo ao luto no DSM-
contextos de perda, reduzindo, assim, a nor- 5, que permaneceu aberto para escrutínio pú-
malidade dos sintomas presentes no luto para blico durante sua preparação. De acordo com
apenas duas semanas, que é a duração limite o psiquiatra que presidiu a Força-Tarefa do DS-
para que sintomas depressivos ainda não con- M-IV, nem mesmo os melhores clínicos treina-
figurem um transtorno psiquiátrico. Todavia, dos seriam capazes, fazendo uso do bom senso
em vez de uma simples exclusão, como o fato diagnóstico, de distinguir sintomas normais de
se disseminou através de diferentes meios de luto de depressão amena, como defendem os
comunicação, o DSM-5 apresenta duas passa- responsáveis pelo DSM-5 (Frances, 2013). Mo-
gens que sugerem cautela clínica na avaliação bilizando críticos como Wakefield, Cacciatore
dos sintomas, de modo a não confundi-los com e Friedman, o psiquiatra estadunidense chama
reação de tristeza intensa normal. A primeira a atenção para a ausência de evidências cientí-
observação, que figura no corpo do texto, men- ficas que sustentem validamente a redução da
ciona os contextos de perda (loss) para além da duração do luto normal, ao mesmo tempo em
morte da seguinte maneira: que denuncia o interesse da indústria farma-
cêutica, pronta a “educar” clínicos e pacientes
Respostas a perdas [loss] significativas (e.g., mortes
[bereavement], ruína financeira, perdas [losses] ad-
potenciais a propósito de que a duração aci-
vindas de um desastre natural, uma deficiência ou ma de quatorze dias de sintomas comuns de
doença médica grave) podem incluir os sentimentos luto constitua, confiavelmente, um episódio
de tristeza intensa, ruminação sobre a perda, insô- depressivo maior.5
nia, falta de apetite e perda de peso observados no Sob o risco de reduzir a credibilidade
Critério A e que podem se parecer com um episódio
científica e médica do Manual, uma decisão
depressivo. Embora tais sintomas possam ser com-
preendidos ou considerados apropriados à perda, a
como essa fortalece, no entanto, o prognóstico
presença de um episódio depressivo maior, em adi- sombrio da OMS, dado o aumento expressivo
ção à resposta normal a uma perda significativa, da quantidade de diagnósticos falsos positivos
deve ser também considerada cuidadosamente. Essa que o novo conceito de depressão deve ocasio-
inevitável decisão requer o exercício de julgamen- nar.6 Porém a fabricação da ideia de epidemia
to clínico baseado na história do indivíduo e nas
depressiva pode resultar não apenas do exces-
normas culturais para a expressão do sofrimento no
so de diagnósticos potencialmente incorretos
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alarmante é também apresentada e divulgada B).10 Além disso, é necessário que, durante os
por meio de pesquisas epidemiológicas, cujos dois anos, os sintomas não tenham remitido
questionários são comumente aplicados por em mais do que dois meses, nem satisfaçam os
leigos, treinados para desconsiderar o contexto critérios diagnósticos de transtorno depressi-
dos sintomas, que serão depois contabilizados vo maior, que seria especificado, então, como
impessoalmente e de forma computadorizada, “crônico” (Critérios C e D). Da mesma forma
como mostram Horwitz e Wakefield (2010, p. que os critérios para transtorno depressivo
147-169), para os quais o boom da depressão, maior, não deve haver sintomas de episódio
a partir dos anos 1970 e 1980, se deve, sobre- misto, maníaco, hipomaníaco ou de outros
tudo, ao modo como a síndrome passou a ser transtornos, tampouco devem ser eles atri-
concebida e diagnosticada para além do con- buídos a efeito fisiológico direto de qualquer
texto hospitalar. Ora, do ponto de vista lógico, substância ou devidos a uma condição médica
não há dúvida de que a mudança nas determi- geral (Critérios E, F e G). Por último, o DSM-
nações do conceito de depressão modifica sua -IV adverte igualmente que os sintomas devem
extensão;8 ainda que haja uma nota advertindo causar sofrimento clinicamente significativo
cautela médica e bom senso no julgamento clí- ou prejuízo no funcionamento em alguma área
nico, a dignidade humana do luto normal se importante da vida do indivíduo.
torna, então, refém de diferentes Simões Baca- No DSM-5, a distimia é acoplada ao
martes que podem interpretá-la segundo seus transtorno depressivo maior crônico, adqui-
próprios interesses e perspectivas.9 rindo ambas as terminologias uma mesma de-
Outra categoria diagnóstica que integra signação classificatória, a saber, transtorno de-
os transtornos depressivos é a distimia. Apre- pressivo persistente (APA, 2013, p. 168-171).
sentada inicialmente no DSM-III, essa pertur- Em virtude dessa unificação, uma das exigên-
bação se caracteriza pela cronicidade e menor cias da nova categoria diagnóstica é apresentar
intensidade e quantidade de sintomas depres- os critérios para transtorno depressivo maior
sivos. Para satisfazer os critérios diagnósticos por dois anos, continuamente. Desse modo,
da distimia segundo o DSM-IV, o indivíduo a categoria encerra duas formas de depressão
deve apresentar humor deprimido persistente- crônica, tanto com maior quanto com menor
mente, durante dois anos no mínimo, e mais quantidade de sintomas.
pelo menos dois sintomas de uma lista que Valendo-se da distimia como exemplo
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terminologia permite ao clínico o diagnóstico desse transtorno não esteja definida, ela “pode
de qualquer experiência que não satisfaça os ser relativamente comum” (APA, [2000] 2002,
critérios de outros transtornos depressivos, as- p. 725). Conquanto a existência do transtorno
sim como envolve, de forma mais específica, depressivo menor esteja igualmente determi-
diferentes categorias para as quais o Manual nada por sofrimento ou prejuízo, o documento
solicita estudos adicionais. Entre elas, destaca- adverte que, “em alguns indivíduos, pode ha-
mos o transtorno depressivo menor, o transtor- ver um funcionamento quase normal”, ainda
no depressivo breve recorrente e o transtorno que à custa de esforço adicional significativo.
disfórico pré-menstrual. Já figurando efetivamente na CID-10
A característica essencial do transtorno (OMS, 1993, p. 129), o transtorno depressivo
depressivo menor é a apresentação reduzida breve recorrente é proposto no DSM-IV como
de sintomas e de prejuízo funcional em rela- uma variável do transtorno depressivo maior
ção ao transtorno depressivo maior. Embora em termos de duração. Para a ocorrência do
solicite a mesma duração de sintomas idênti- transtorno, é preciso que a mesma quantidade
cos aos da lista que constitui um dos critérios de sintomas depressivos da categoria principal
diagnósticos da depressão maior, o transtorno se manifeste pelo menos dois dias, uma vez
proposto exige apenas dois sintomas depres- por mês, no decurso de um ano. De forma aná-
sivos, entre os quais deve constar, pelo me- loga ao que é indicado em transtorno depres-
nos, um nuclear, a saber, humor deprimido e sivo menor, o Manual adverte que o indivíduo
(ou) anedonia. Diferenciando-se da categoria pode apresentar, nesse caso, “funcionamento
principal de depressão em termos de quan- próximo ao normal”, apesar do esforço acen-
tidade e intensidade dos sintomas, o próprio tuado que lhe pode ser igualmente solicitado.
DSM-IV-TR reconhece que “[os] sintomas que De acordo com o DSM-IV-TR (APA,
satisfazem esses critérios para pesquisas para [2000] 2002, p. 721-724), o transtorno disfó-
transtorno depressivo menor podem ser difí- rico pré-menstrual se caracteriza por humor
ceis de diferenciar de períodos de tristeza que acentuadamente deprimido e ansiedade, insta-
fazem parte da vida cotidiana ” (APA, [2000] bilidade afetiva e desinteresse marcantes. Em-
2002, p. 726, grifo no original).16 É que, como bora distintos, os sintomas são comparáveis
já observamos, a lista apresenta sintomas co- aos do transtorno depressivo maior, variando
muns, como insônia, fadiga, dificuldade para em termos de duração e não de gravidade,
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drato de fluoxetina, uma molécula produzida dio depressivo de curta duração e episódio de-
inicialmente para depressões brandas e mo- pressivo com sintomas insuficientes.
deradas (Rose, 2013, p. 293-294). Entretanto, Embora não tenha se deslocado para a
independentemente da decisão veiculada na classificação oficial do DSM-5, como ocorreu
versão mais recente do manual, todas as cate- com o transtorno disfórico pré-menstrual, a
gorias propostas no DSM-IV, assim como ou- depressão breve recorrente é um exemplo de
tras condutas que não satisfaçam plenamente como o “Apêndice B: Conjunto de critérios e ei-
os critérios de qualquer transtorno depressivo, xos propostos para estudos adicionais” do DS-
podem ser diagnosticadas como “sem outra es- M-IV funciona efetivamente na prática clínica,
pecificação”, visto que uma das finalidades do a despeito do objetivo primeiro do Manual de
DSM é, antes de tudo, orientar o clínico – que destinar os transtornos que ali figuram tão so-
goza de absoluta liberdade graças à sua com- mente à pesquisa. Inédito, o episódio depressi-
petência técnica – a partir de um paradigma vo de curta duração constitui, por sua vez, uma
relativamente consensual, porém hegemônico forma alternativa de diagnosticar o indivíduo
no campo da saúde mental e, em especial, da que apresenta sintomas de depressão maior
psiquiatria. com duração insuficiente para tal classificação
Como se vê, a categoria que anula a e de forma episódica, o que exclui a necessi-
necessidade de especificação serve para cap- dade da recorrência que o primeiro exemplo
turar o que está entre transtornos definidos abrange. Já o episódio depressivo com sinto-
categoricamente. Já na introdução do DSM-I- mas insuficientes solicita do indivíduo ape-
V-TR, assegura-se: “As categorias ‘Sem Outra nas um sintoma associado ao afeto deprimido
Especificação’ servem para cobrir os não raros durante duas semanas. Uma observação: tanto
quadros que se encontram nos limites das de- para esse caso como para episódio depressivo
finições específicas de cada categoria” (APA, de curta duração, o DSM-5 emprega o termo
[2000] 2002, p. 25). Daí o motivo pelo qual o “afeto deprimido” (depressed affect), diferen-
DSM-5 introduz parcialmente a abordagem temente de “humor deprimido” (depressed
dimensional, assim como substitui a categoria mood), utilizado para depressão breve recor-
“sem outra especificação” por outras duas que rente e todas as outras categorias diagnósti-
exercem, no entanto, a mesma função: “com cas que constam da classe de transtornos de-
outra especificação” e (ou) “sem especifica- pressivos do documento. Como as sucessivas
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ção”. É que, segundo o DSM-5, a abordagem versões do Manual definem, “humor” designa
categorial seria menos capaz de “capturar” a clima emocional abrangente e constante, ao
gama completa de transtornos, a qual é “virtu- contrário de afeto, que é mais flutuante (APA,
almente ilimitada” (APA, 2013, p. 19); apenas [1987] 1989, p. 411, 420; APA, [2000] 2002, p.
por isso o DSM-IV incitava a aplicação irres- 765, 770; APA, 2013, p. 817, 824). Nesse sen-
trita do diagnóstico “sem outra especificação”, tido, talvez seja possível interpretar “depressed
constata o mais recente Manual. Os exemplos affect” como uma forma atenuada do sintoma
oferecidos pelo DSM-5 para a aplicação das nuclear “depressed mood”, o que sinaliza uma
duas novas denominações sugerem fortemen- tendência a capturar e patologizar estados mais
te a permanência da função, bem como evi- tênues, efêmeros e localizados de sofrimen-
denciam de que forma categorias que não se to. Por fim, o mais recente Manual orienta a
deslocaram para a nosologia oficial do docu- aplicação da categoria “transtorno depressivo
mento podem ser diagnosticadas na prática não especificado” quando o clínico “escolhe”
clínica. Entre outras especificações de que o (chooses) não especificar o diagnóstico (ou há
clínico pode se valer, constam os seguintes informações insuficientes para tanto) diante do
exemplos: depressão breve recorrente, episó- paciente que apresenta o critério absoluto para
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da economia política clássica – tais como terra, mano, os teóricos enfrentam dificuldade tanto
capital e tempo de trabalho – não permitiam para quantificar o seu acúmulo real como tam-
explicar a opulência do período, economistas bém para calcular o retorno efetivo de inves-
como Schultz propõem que o desenvolvimen- timentos que a sociedade, as instituições, as
to e o aprimoramento de qualidades e capaci- corporações, a família e os próprios indivíduos
dades humanas inatas ou adquiridas exercem realizam no decurso da vida. De todo modo,
um papel econômico fundamental. Mais tarde, valendo-se dos termos acurados de Foucault
o investimento em capital humano mediante (2008, p. 308-316), pode-se dizer que é o acú-
níveis educacionais formais e informais se tor- mulo de capacidades que possivelmente torna
nará o modelo explicativo da disparidade exis- o indivíduo uma “competência-máquina”, que
tente entre sociedades liberais avançadas e so- produzirá, assim, mais “fluxos de renda”, uma
ciedades terceiro-mundistas (Foucault, 2008, vez que, para os economistas neoliberais da
p. 318-319; López-Ruiz, 2007, p. 62, 199, 220). Escola de Chicago, o salário consiste no ren-
Além de explicação econômica, a teoria do ca- dimento de um capital específico, o humano.
pital humano exerce ainda uma função políti- Tratando esquematicamente a constru-
ca indispensável no contexto da Guerra Fria: ção teórica dos neoliberais norte-americanos,
trata-se de mostrar ao outro lado da cortina de insistamos na ideia central atinente à transfor-
ferro como certa forma de investir em educa- mação de categorias clássicas como “trabalho”
ção, ciência, tecnologia e saúde constituía a e “trabalhador”. Para a lógica inerente à teoria
supremacia do capitalismo como modelo so- do capital humano, o trabalho se converte em
cioeconômico (López-Ruiz, 2007, p. 61-62). capital e o trabalhador, em capitalista. É Har-
Reintroduzindo o trabalho no campo da ry G. Johnson quem explicita que o trabalha-
análise econômica, os teóricos do capital hu- dor, em uma economia industrial avançada,
mano realizam uma transfiguração da catego- é tipicamente um capitalista, dado que seus
ria de trabalhador que afeta, de modo direto e próprios meios de produção, heterogêneos e
extensivo, a maneira como os homens devem intangíveis, são sistematicamente produzidos
conduzir suas próprias vidas. Em vez de traba- por formas permanentes de investimentos. Daí
lhadores assalariados que vendem aos donos a ideia do economista da Escola de Chicago
dos meios de produção sua força de trabalho de que o trabalhador é “um meio de produção
quantificada homogeneamente por meio do produzido” e “um item de equipamento do ca-
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tempo empregado na atividade, todos os indi- pital” (López-Ruiz, 2007, p. 61, 193, 220-221).
víduos devem se conceber e se conduzir indis- Não é difícil perceber, assim, como a teoria
tintamente como proprietários de determina- do capital humano promove todos, indistin-
das qualidades que lhe são próprias, hetero- tamente, à categoria de capitalistas de si mes-
gêneas, intangíveis e até mesmo inalienáveis, mos: afinal, a administração do próprio capital
tais como a inteligência, a criatividade, a moti- humano implica saber quando, onde e como
vação, a iniciativa individual, a persistência, a investir, tal como procedem os investidores de
flexibilidade relacional, a comunicação, entre capital financeiro.
outras características louvadas em nossa atu- A partir do que designa “deslocamento
alidade. Associadas a competências técnicas conceitual valorativo”, López-Ruiz (2007) – em
que podem ser igualmente adquiridas median- pesquisa que mostra a gradual disseminação
te investimentos sistemáticos, é o conjunto da teoria do capital humano em diferentes so-
dessas capacidades que determina o desempe- ciedades capitalistas, incluindo aí o modo de
nho dos indivíduos, conforme a quantidade de vida de executivos de corporações transnacio-
capital humano acumulada. Ressalte-se que, nais no Brasil – faz notar como a teoria do ca-
em função da heterogeneidade do capital hu- pital humano converte ainda diferentes formas
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e a formação permanente como os meios que o pria carreira, tornando ambas indiscerníveis
modulam adequadamente para o mercado, não tanto em países desenvolvidos quanto em
se esquecendo, porém, que é o próprio merca- desenvolvimento (López-Ruiz, 2007; Stroud,
do que determina o valor de tais meios. Não é 2014).25 Tal atributo parece ser o efeito de uma
à toa que termos como “formação permanente” teoria econômica incorporada gradativamen-
e “modulação” são empregados precisamente te por doutrinas da administração no decurso
por Deleuze (1992, p. 219-226), em seu célebre dos anos 1990 e difundida por todo o tecido
texto prognóstico, no qual relaciona a noção social como uma forma moralmente correta e
de “sociedades de controle” ao espraiamento economicamente conveniente de conduzir a
social da forma empresa, que substitui a fun- vida. Para nosso propósito, um aspecto rele-
ção da família e da escola, instalando-se no vante desse percurso demonstrado por López-
coração do humano. É que, diferentemente de -Ruiz (2007) a respeito da teoria do capital hu-
procedimentos disciplinares que “moldavam” mano reside na função política adquirida por
os indivíduos em instituições, a noção – “ter- uma verdade científica. Se, em um primeiro
rível”, no entender de Deleuze (1992, p. 216) – momento, a teoria pretendia apenas explicar
de “formação permanente” os “modula” para o cientificamente a riqueza da sociedade norte-
mercado, essa entidade abstrata e universal do -americana no pós-guerra, ela logo se converte
capitalismo, que produz, fantástica e concre- em um conjunto de princípios, valores e cren-
tamente, riqueza e miséria. Daí a necessidade ças que orienta a conduta dos homens.26 Coe-
política de se questionar para que os jovens so- rente, a tese do sociólogo se apresenta inequi-
licitam, insistentemente, motivação, estágios e vocamente: a partir de uma teoria econômica
formação permanente.24 Portanto, ao contrário e científica, constitui-se uma ética social que
da suposta liberdade humanista, que a forma caracteriza o atual espírito do capitalismo. É
mais sofisticada e avançada do capitalismo por isso que a teoria do capital humano não
pretende promover, assiste-se a uma nova ser- interessa em si mesma, mas apenas na medida
vidão voluntária: ainda que os investimentos em que embasa a maneira como o indivíduo
se dobrem sobre os próprios indivíduos, é em racionaliza sua relação com o mundo, com os
função do mercado que o acúmulo de capital outros e consigo.27
humano deve ser programado, executado e No centro da concepção empresarial
mobilizado. É dessa maneira que a racionali-
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molecular, em nossos dias, não consiste espe- de condenar ingenuamente o uso pragmático
cialmente em normalizar e restituir a saúde; e utilitário circunscrito à ideia de psicofarma-
trata-se, antes, de superar barreiras biológicas, cologia cosmética, é preciso perceber sua coe-
intervir em condições pré-sintomáticas e aper- rência absoluta no contexto da biopolítica da
feiçoar capacidades como força, resistência, saúde mental, que inculca, nos indivíduos, a
longevidade, atenção, inteligência: é o que se necessidade tanto de realização permanente
observa desde o uso variado da genética até o quanto de bem-estar como fórmula para o su-
consumo plástico de psicofármacos. cesso social.
Com efeito, entre outras formas de inves- Como se vê, o argumento de Kramer
tir em capital humano – tais como escolariza- não destoa do imaginário da cultura ocidental
ção, cursos idiomáticos e profissionalizantes, contemporânea, para o qual “sentir-se bem”
treinamento on-the-job, atenção médica, in- implica realizar-se como profissional, pai,
gestão de vitaminas, aquisição de informação cônjuge e cidadão capaz de contribuir efetiva
sobre o sistema econômico –, pode-se incluir e resignadamente com a sociedade tal como
o consumo de psicofármacos. Sem pretender nos é apresentada. Acentuada, essa lógica su-
discutir a polêmica se o medicamento seria ca- gere que a saúde não equivale mais apenas à
paz de produzir um novo self – o que parece vida no silêncio dos órgãos, como postulava o
pouco provável –, o fato incontestável é que fisiologista René Leriche (Canguilhem, 2002,
seu uso pode estimular capacidades, se não p. 67-76); para além dessa definição, a saúde
inexistentes, ao menos latentes. Nesse sentido, consiste, hoje, numa configuração ativa a ser
o uso cosmético de antidepressivos, segundo a percebida e solicitada insistentemente. Com
fórmula popularizada pelo psiquiatra estadu- esse raciocínio, St-Hilaire (2009) mostra, de
nidense Peter Kramer, constituiria um direito forma convincente, como o uso cosmético e
dos indivíduos em sociedades democráticas plástico de antidepressivos – outrora designa-
liberais, em que todos supostamente gozam dos “energizantes psíquicos” – permite ajustar
de liberdade para produzir bem-estar e para os indivíduos às demandas sociais contempo-
otimizar suas capacidades, tornando-se better râneas, ao mesmo tempo em que as evidencia.
than well. Autor de Listening to Prozac: a psy- Mais do que conspiração de uns sobre os ou-
chiatrist explores antidepressants drugs and the tros, trata-se do atual processo de constituição
remaking of the self, Kramer (1993) sustenta da subjetividade em sociedade.34 Nesse sen-
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que o uso de antidepressivos serve tanto para tido, o discurso da saúde, segundo o sociólo-
aliviar os sintomas do transtorno quanto para go, constitui “o lugar pelo qual se ordenam as
criar condições para que as pessoas realizem exigências sociais”. E o que assistimos hoje é
com sucesso suas atividades, produzindo e oti- ao “... aprimoramento de nossas capacidades,
mizando, por conseguinte, o bem-estar. É por um melhor ajustamento às exigências da vida
isso que, para Ehrenberg (1998, p. 203), segun- à qual aspiramos ...” (St-Hilaire, 2009).
do o qual a depressão é uma doença da insufi- A centralidade da noção de desempenho
ciência da capacidade de ação e de iniciativa, a permite perceber que, para além do sofrimen-
pílula promovida pelo best-seller do psiquiatra to indescritível da depressão severa, tal como
estadunidense pretende mais estimular a ação testemunha o escritor Willian Styron (1991),
do que produzir a felicidade, como as tradu- a “epidemia” do transtorno é instaurada por
ções francesa e brasileira do título da obra dão 34
Nesse sentido, St-Hilaire (2009), pesquisador da ação
social dos medicamentos, assegura que o encontro da bio-
a entender equivocadamente.33 Ora, em vez medicina com as tecnociências produz tecnologias efica-
zes para transformar a subjetividade mediante soluções
33
A saber: Prozac: le bonheur sur ordonnance?, Paris: First, moleculares. É o que se passa com antidepressivos, que
1994, e Ouvindo o Prozac: uma abordagem profunda e es- agem especificamente no cérebro, em vez de abranger o
clarecedora sobre a “Pílula da Felicidade”, Rio de Janeiro: indivíduo em sua totalidade, como era até pouco tempo
Record, 1994. sob o paradigma da psicologia expresso no DSM I e II.
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suas condições de possibilidade no contexto minada teoria do capital humano, por outro, a
da biopolítica da saúde mental, exercendo, ela definição do transtorno se dá mediante a inca-
própria, função política equivalente. É que, pacidade de fazê-lo.
alertando os indivíduos para a necessidade de Anunciada desde os anos 1970, a ideia
cuidado diante de um futuro sombrio, otimi- de epidemia depressiva parece tomar forma
zam-se, natural e consequentemente, suas po- na medida em que a racionalidade científica
tencialidades.41 Assim, uma sinergia política se e classificatória da psiquiatria se desenvolve,
constitui a partir de duas verdades científicas capturando cada vez mais condutas levemen-
díspares: a concepção psiquiátrica dos trans- te incapacitadas, tristes e menos produtivas.
tornos depressivos e a teoria econômica do Em outras palavras, a progressiva ramificação
capital humano. Não obstante a tendência da e a flexibilização dos critérios diagnósticos
natureza humana a desenvolver-se e aperfeiço- da depressão permitem que se territorializem
ar-se, em tempos de capitalismo cognitivo, de condutas heterogêneas e singulares – com
economia imaterial, de sociedades de controle combinações diversas de sintomas relativa-
ou de biopolítica, é fundamental perguntar por mente banais e cotidianos – no lugar comum
que verdades e técnicas científicas e pretensa- da classificação formal. Não se trata, com tal
mente neutras toleram, cada vez menos, sinto- afirmação, de recusar, de forma inconsequen-
mas tênues de sofrimentos cotidianos. te, a dimensão real da depressão como patolo-
A análise minuciosa de como são descri- gia que causa sofrimento, tampouco de negli-
tos e apresentados os transtornos depressivos genciar os aspectos biológicos e psíquicos que
em manuais psiquiátricos contemporâneos dá a envolvem. Queremos chamar a atenção para
a ver que a altíssima incidência da depressão o fato de que a produção e o estabelecimento
pode relacionar-se também à laxidão de crité- de diversos subtipos de depressão se relacio-
rios diagnósticos e sua consequente patologi- nam diretamente ao déficit de atributos e de
zação de sofrimentos mais brandos. Como vi- disposições que o atual espírito do capitalismo
mos, os transtornos depressivos menos graves valoriza e solicita dos indivíduos.
– ou seja, aqueles que gravitam em torno da Não há dúvida de que, em relação à bio-
condição nuclear, que é o transtorno depressi- política da saúde mental – que incita os indiví-
vo maior – sempre tangenciam a normalidade, duos à realização constante de suas potencia-
restringindo-a, assim, a parâmetros mais rígi- lidades intelectuais, emocionais e laborais –, a
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devem indistintamente produzir uma saúde CAPONI, S. O diagnóstico de depressão, a “petite biologie”
e os modos de subjetivação. In: _____ et al. (Orgs.)
otimizada, cuja consequência inevitável é a Medicalização da vida: ética, saúde pública e indústria
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realização de potencialidades, capacidades e
CASTEL, P. L’esprit malade: cerveaux, folies, individus.
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Elton Corbanezi
This article aims to show how the evolution of Cet article a pour but de montrer comment
psychiatric nosology of depression may to relate to l’évolution de la nosologie psychiatrique de
certain requirements of contemporary capitalism. la dépression peut se rapporter à certaines
First, we investigate the conceptions of depressive exigences du capitalisme contemporain. D’abord,
disorders from the third edition of Diagnostic and nous étudions les conceptions de troubles
Statistical Manuals of Mental Disorders (DSM), dépressifs depuis la troisième édition du Manuel
which established the current psychiatric paradigm, Diagnostique et Statistique des Troubles Mentaux
focusing especially on the last two versions (DSM-IV (DSM), qui a établi le paradigme psychiatrique
and DSM-5). Along with International Classification actuel, en nous concentrant surtout sur les deux
of Diseases by WHO, the recent editions of manual dernières versions (DSM-IV et DSM-5). À côté de
are the main classification systems of psychiatry, la Classification Internationale des Maladies de
guiding clinical practice and conceptually basing l’OMS, les éditions les plus récentes du manuel
the current idea of depressive epidemic. Then we sont les principaux systèmes de classification de
show how the economic theory of human capital, la psychiatrie, en orientant la pratique clinique
developed by neoliberal economists of the Chicago et en fondant conceptuellement l’idée actuelle de
School, becomes a social value that, widely l’épidémie dépressive. Ensuite, nous faisons voir
accepted and disseminated, guides the conduct comment la théorie économique du capital humain,
of life of individuals in advanced liberal societies développée par des économistes néolibéraux de
and in Third World societies. Therefore, we affirm l’École de Chicago, devient une valeur sociale, qui,
that the systematic ramification and flexibility acceptée et diffusée largement, guide la conduite
of depressive disorders, which establish as de vie des individus dans les sociétés libérales
pathological subtle forms of suffering, correspond avancées et dans les sociétés tiers-mundistes.
to logic of intensification of performance of Nous soutenons, ainsi, que la ramification et
certain individual capacities indispensable to l’assouplissement systématiques des troubles
contemporary capitalism. dépressifs, qui établissent comme pathologique
des formes subtiles de souffrance, correspondent à
la logique d’intensification de la performance des
certaines capacités individuelles indispensables au
capitalisme contemporain.
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