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ESCOLA DO

PARLAMENTO

CADERNOS DA
ESCOLA DO PARLAMENTO

IV - Igualdade de Gênero I
O Curso Igualdade de Gênero foi organizado em parceria com a União de
Mulheres de São Paulo, com crucial colaboração de Marília Kayano Morais, Maria
Amélia de Almeida Teles e Raydália Bittencourt em todo o seu processo de
estruturação. O curso, estruturado em 10 palestras, ocorreu entre os meses de agosto e
setembro de 2012. Apresentou como objetivo geral abordar conceitos, retomar fatos
históricos e discutir políticas públicas relacionadas à temática da igualdade de gênero,
tendo como foco principal a condição da mulher.
Este Caderno conta com oito artigos baseados nesse curso, os quais perpassam
temas como: a luta pelo sufrágio feminino, os direitos das mulheres, a violência contra
as mulheres, Lei Maria da Penha, participação política das mulheres, e políticas públicas
voltadas às mulheres e à igualdade de gênero.
1  
 
A História pelo Direito do Voto Feminino1
Maria Amélia de Almeida Teles - União de Mulheres de São Paulo

“O pensamento feminista, que nos traz a compreensão sobre direitos


conquistados como valor da nossa condição de cidadã, torna as
mulheres mais fortes diante da adversidade.” - Maria Betânia Ávila.

Introdução
O movimento sufragista de mulheres, como ficou conhecido, se caracteriza
como feminista, pois se trata de uma luta específica de representantes da população
feminina. As mulheres foram excluídas do direito de votar simplesmente porque eram
mulheres. Elas então passaram a se organizar para protestar e lutar pelos direitos
negados. A luta pelo direito do voto feminino foi um movimento universal que
mobilizou milhões de mulheres, em diversos países tantos no continente europeu como
nos americanos.
O feminismo é um movimento social de defesa dos direitos das mulheres que
tem seu início, no mundo Ocidental, no século XVIII, com a Revolução Francesa
(burguesa) e com a Revolução Industrial. Dada a sua amplitude, o feminismo apresenta
uma complexidade, uma vez que todas as mulheres - independentemente de classe
social, raça/etnia, cor, geração e orientação sexual - são alvo de discriminação histórica,
o que as leva a serem excluídas da cidadania e a sofrerem violência.
O feminismo varia conforme a cultura de cada sociedade e o contexto histórico.
Para efeitos didáticos, usa-se chamar as suas diversas fases históricas de “ondas” ou
etapas. Há diversas classificações. No presente texto, adota-se a que divide a história em
duas etapas (ou “ondas”). A primeira onda se inicia no século XVIII e vai até meados
do século XX: trata-se do movimento sufragista feminista. A segunda onda retoma o
feminismo a partir da segunda metade do século XX e se estende até o século XXI.
Nesta segunda onda, as mulheres lutaram por autonomia social e econômica, direito a
decidir sobre seu próprio corpo e direito à escolha, reivindicaram que o pessoal é
político e exigiram o direito pleno a todos os direitos, inclusive o de viver uma vida sem
violência.

                                                                                                                       
1
 Texto baseado na segunda aula do curso Igualdade de Gênero, promovido pela Escola do Parlamento e
coorganizado pela União de Mulheres de São Paulo. A aula, ministrada pela autora, ocorreu no dia 08 de
agosto de 2013, nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo.  
2  
 
A revolução não mudou o paradigma masculino

“Nenhuma revolução rompeu com a desigualdade entre os sexos...”2

Com a vitória da Revolução Francesa em 1789, as mulheres que participaram


ativamente do processo revolucionário foram excluídas totalmente do acesso aos
direitos conquistados. Após a conquista do poder revolucionário burguês, as mulheres
foram alijadas e tiveram negado o direito de votar e de serem votadas. Essa negação
mostrou-se contraditória ao que apregoava a Revolução Francesa, que mobilizou amplas
camadas da população sob as consignas da liberdade, fraternidade e igualdade.
A “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão”, escrita pelos líderes
masculinos, designava direitos exclusivamente ao homem e ao cidadão. Trazia no seu
conteúdo a negação dos direitos femininos. Os teóricos da Revolução Francesa
defendiam que as mulheres deviam cuidar da família e não dos assuntos da política.
Uma francesa, Olímpia de Gouges, que integrou os movimentos revolucionários,
conclamou suas companheiras para escrever um documento que declarasse os direitos
das mulheres. Escreveu a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, com o
seguinte preâmbulo:
“As mães, as filhas, as irmãs, representantes da Nação, requerem a
sua inclusão na Assembleia Nacional. Considerando que a
ignorância, o esquecimento ou o desprezo pelos direitos da mulher
são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos
governos, resolvem expor numa solene declaração, os direitos
naturais, inalienáveis e sagrados da mulher...
Mulher, desperta-te, o arrebatamento da razão se deixa ouvir em todo
o universo. Reconheça teus direitos...”3

A Declaração anunciava a igualdade de direitos entre homens e mulheres, o


direito à liberdade, à propriedade, aos cargos públicos e ao voto. Mas não foi aceita pelo
poder constituído e sua autora foi condenada à morte, sendo guilhotinada em sete de
novembro de 1793. Os termos da sentença judicial que a condenou a acusavam de “se
imiscuir nos assuntos da República e se esquecer das virtudes de seu sexo”.
Mais uma mulher foi guilhotinada, Sra. Roland, e muitas outras foram
encarceradas. Os clubes republicanos femininos, espaço importante na organização e
mobilização de mulheres, foram sumariamente fechados. Proibiram as mulheres de

                                                                                                                       
2
Teles (1993).
3
Escapa Garrachón e Martínez Ten (2002, p. 66).
3  
 
assistir assembleias políticas e mais do que cinco mulheres nas ruas não poderiam estar
reunidas. Foram criadas leis que definem que o lar deveria ser o destino de atuação das
mulheres e que estas deveriam se submeter aos maridos e aos homens. Um dos
principais líderes teóricos da Revolução Francesa, Rousseau, afirmou que a hierarquia
entre os sexos era natural e necessária para fortalecer a família. Segundo ele, o político
seria aquilo que deriva do pacto social. A desigualdade entre os sexos não teria origem
na sociedade, pelo contrário, seria natural. Rousseau, formulador do princípio da
igualdade, entendeu que este deveria estar restrito ao grupo de homens de uma
determinada comunidade política. Mary Wollstonecraft4 foi uma das mulheres
feministas que o criticou severamente ao chamá-lo de contraditório por defender a
democracia apenas para o grupo masculino.

O sufragismo feminista nos Estados Unidos

“O capitalismo naturalizou as desigualdades entre os sexos...” 5

É importante destacar igualmente o movimento sufragista norte-americano de


mulheres que escreveu a “Declaração de Sêneca Falls”. Este movimento se vinculou
desde seu início à luta contra a escravidão negra. Ao perceberem o quanto os escravos
negros estavam subjugados, aquelas mulheres se deram conta de que a sua própria
situação era bastante similar, pois se encontravam confinadas na esfera doméstica.
As mulheres norte-americanas tiveram a força necessária para começar o
movimento justamente em 1840, no “Congresso Antiescravista Mundial”, realizado em
Londres. Elas foram àquele evento, mas proibiram a sua entrada. Injustiçadas,
decidiram deflagrar o movimento pelos direitos e lançaram, em 1848, o documento
“Declaração de Sêneca Falls”, com a exigência de direitos, inclusive o de votar e de ser
votada.
Em 1870, o governo norte-americano concedeu o voto para os homens, mas o
negou explicitamente para as mulheres. Em alguns estados, as mulheres foram
conquistando o direito de voto, porém estas só irão votar para a presidência da
República em 1920. Daquelas que assinaram a “Declaração de Sêneca Falls”, havia

                                                                                                                       
4
Intelectual que escreveu um dos primeiros livros feministas: “Direitos das Mulheres: injustiça dos
homens”, publicado em 1792. Ela nasceu na Inglaterra em 1759 e morreu no parto de sua filha. Sua filha,
Mary Shelley, é autora do “Frankenstein”. (Vide Showalter, 2002).
5
Teles (1993).
4  
 
somente uma sobrevivente, Charlotte Woodward, que então votou nas eleições
presidenciais daquele ano.

Inglaterra: a repressão policial contra as sufragistas

“Prevaleceram o preconceito, a discriminação e a violência contra as


mulheres...” 6

Na Inglaterra, a luta sufragista das mulheres surgiu no ano de 1851, num ato
público no qual as sufragistas reivindicavam o direito de voto. As sufragistas inglesas
tiveram o apoio de um intelectual famoso, John Stuart Mill, que escreveu, em 1869, um
ensaio favorável à luta das mulheres: “A sujeição da mulher”.
As sufragistas inglesas sofreram violência policial, foram encarceradas e
obrigadas a pagarem multas por entrarem nas reuniões políticas dos homens. Em junho
de 1913, uma das sufragistas, num gesto de desespero, se atirou em frente ao cavalo do
rei, vindo a morrer. Tal fato deflagrou uma série de lutas sufragistas de rua naquele país,
as quais foram violentamente reprimidas.
As inglesas só conquistarão o direito de voto em 1918, após a Primeira Guerra
Mundial. No entanto, a idade mínima para que elas pudessem votar era de trinta anos.
Somente em 1928, as inglesas vão conquistar o direito de votar aos vinte e um anos de
idade.

Na América Latina, o menosprezo pelos direitos das mulheres

“Que sejam as próprias mulheres a tomarem em suas mãos a luta por


sua libertação...” 7

A luta pelo voto feminino na América Latina foi bastante inovadora. Por
exemplo, as chilenas, em 1876, aproveitaram-se de uma lacuna na Constituição de seu
país, que não explicitava de forma precisa a proibição do voto feminino, para, então, se
inscreverem nas listas eleitorais. Apesar das negativas de algumas autoridades, algumas
mulheres conseguiram obter o título de eleitora. Esse movimento é considerado um dos
pioneiros na América Latina no sentido de se conquistar a igualdade de direitos. Mas o

                                                                                                                       
6
Teles (1993).
7
Idem.
5  
 
governo chileno, em 1884, criou nova lei proibindo taxativamente as mulheres de
votarem e de serem votadas.
No México, as mulheres participaram ativamente da revolução social com a
esperança de que lhes fosse outorgado o direito ao voto. Mas só foram obter esse direito
em 1958.
No entanto, na maioria dos países latino-americanos tal era o menosprezo às
mulheres, consideradas seres inferiores, que as Constituições latino-americanas do
século XIX e do início do século XX sequer proibiam o voto feminino, pois o título de
cidadão era somente concedido aos homens.

No Brasil, a luta sufragista aliou-se à luta abolicionista

“O capitalismo se desenvolveu de modo diferente em cada país, mas


em todos eles legitimou o mesmo regime patriarcal e racista de
dominação.” 8

No Brasil, o surgimento da imprensa feminista, considerada a mais expressiva da


América Latina, com diversos jornais que estimularam e disseminaram as novas ideias a
respeito das mulheres e dos seus direitos, desempenhou importante papel na luta
sufragista. O mais avançado desses jornais, “O Sexo Feminino”, dirigido por Francisca
Senhorinha da Motta Diniz, teve seu primeiro número publicado, em sete de setembro
de 1873, em Campanha da Princesa, junto ao Município de São João Del Rei, Minas
Gerais. Ela dirigiu o jornal diretamente às mulheres, o que era algo pioneiro. As outras
feministas dirigiam suas palavras aos homens a fim de os convencerem a deixar suas
mulheres exercerem os seus direitos.
Francisca trazia sua palavra escrita voltada para conquistar as mulheres em prol
da defesa de seus direitos. Defendia a ideia de que as mulheres deveriam ter
independência econômica para não precisarem se submeter aos homens. Para isso
pregava o direito à educação para as mulheres de maneira que pudessem elevar seu
status. Defendia com ardor o direito ao voto feminino e a abolição da escravatura negra.
Mais tarde, ela transferiu-se para o Rio de Janeiro onde chegou a vender quatro mil
exemplares do jornal. Após a proclamação da República, em 1889, seu jornal ganhou

                                                                                                                       
8
Idem.
6  
 
um nome novo, “O Quinze de Novembro do Sexo Feminino”, que passou a tratar numa
coluna específica a questão do voto e da participação política das mulheres.
Uma das sufragistas, Josefina Alvares de Azevedo, dedicou sua capacidade
profissional literária à mobilização da opinião pública em torno do direito de voto para
as mulheres. Ela foi responsável pela criação do jornal “A Família” na cidade de São
Paulo, que posteriormente foi transferido para o Rio de Janeiro. Em 1890, o Ministro
dos Correios, Benjamin Constant, proibiu o acesso das mulheres às escolas de nível
superior. Josefina protestou contra ele com veemência. Seu jornal era feminista e
propunha que as mulheres tivessem o direito à educação, ao voto e ao divórcio. Josefina
queria que as mulheres pudessem escolher seus maridos e também tivessem “o direito
de intervir nas eleições, de eleger e ser eleitas, como os homens, em condições de
igualdade.” Mas ela não se limitava a travar essa luta apenas pela imprensa. Ela levou
para o teatro a campanha pelo voto feminino, o que ampliou o debate. Encenou, pelo
menos por uma vez, a comédia “O voto feminino”, que se passava no ambiente
doméstico, com um casal que vivia sob a expectativa de que o governo concedesse o
direito de voto para as mulheres. De forma bem-humorada, ela mostrou a dificuldade
dos homens em aceitarem a possibilidade do voto feminino.
Outro veículo que tinha como principal objetivo enfatizar a importância do voto
feminino era a revista “A Mensageira” (1897 a 1900), publicada em São Paulo e
dirigida pela poetisa Prisciliana Duarte de Almeida.
No início do século XX, ocorreram lutas e greves operárias, lideradas por
mulheres, para a redução da jornada de trabalho e pela regulamentação do trabalho
feminino. As operárias reivindicavam a abolição do trabalho noturno para as mulheres e
para as crianças, além de lutarem pela igualdade salarial.
Ao mesmo tempo, uma parcela expressiva de mulheres, pertencentes à classe
média e às classes dominantes, abraçavam uma causa comum a mulheres de diversos
países, que era a luta pelo sufrágio feminino. Em 1910, Deolinda Dalho, professora,
fundou o Partido Feminino Republicano, que defendia o direito de voto e o direito das
mulheres ocuparem cargos públicos. Em 1917, ela promoveu uma passeata de mulheres
no Rio de Janeiro pelo voto feminino.
Em 1920, Bertha Lutz e Maria Lacerda de Moura fundaram no Rio de Janeiro a
Liga para Emancipação Internacional da Mulher, cuja preocupação principal era a luta
pela igualdade política das mulheres. Posteriormente, em 1922, Bertha Lutz criou a
7  
 
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, a qual irá dar um grande impulso à luta
pelo sufrágio feminino. Adicionalmente à conquista pelo voto para as mulheres, a
Federação se propunha a lutar pela educação e pela elevação do nível de instrução
feminina, pela proteção das mães e ad infância e pela obtenção de garantias legislativas
e práticas para o trabalho feminino.
Alguns homens políticos passaram a apoiar a campanha sufragista. No Rio
Grande do Norte, o presidente da Província (cargo equivalente ao governador do estado
atualmente), Juvenal Lamartine, fez aprovar uma lei que permitia o direito feminino.
Em 1927, registraram-se as primeiras eleitoras. E, em abril de 1928, quinze mulheres
votaram naquele estado. Porém, o governo federal não reconheceu esses votos. Somente
em 1932, o direito de voto será uma realidade para as brasileiras, tornando-se direito
constitucional na Constituição de 1934, elaborada com a primeira deputada federal
constituinte, eleita pelo voto popular, Carlota Pereira Queiroz.
O voto feminino não garantiu a implementação de um plano de equidade política
entre mulheres e homens. Ainda, no Brasil, as mulheres estão sub-representadas na
política. Hoje, com os resultados eleitorais de 2012, as mulheres são apenas 9% na
Câmara de Deputados, 10% no Senado e, nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, as
vereadoras são 15% e 10% respectivamente.
No Brasil ainda prevalece uma mentalidade de que política “é coisa de homem”.
Segundo o Relatório da Inter-Parliamentary Union, organização que reúne os
parlamentos de 162 países, o Brasil ocupa, no ranking de 190 países, o 119º posto em
relação à participação das mulheres na política. O Brasil possui partidos políticos
sexistas que não oferecem condições mínimas para a participação das mulheres, embora
hoje tenhamos uma mulher de esquerda, militante na luta de resistência à ditadura, na
Presidência da República, Dilma Roussef.

Referências Bibliográficas

TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil. Editora


Brasiliense, São Paulo, 1993.
SHOWALTER, Elaine. Mujeres rebeldes - una reivindicación de la herencia
intelectual feminista. Ed. Espasa, Madrid, 2002.
8  
 
ESCAPA GARRACHÓN, Rosa; MARTÍNEZ TEN, Luz. “Yo política: guia para la
formación y capacitación política para mujeres. Manual de la formadora”. San José,
C.R., FUNPADEM, 2006.
1  
 

A Constituição Federal de 1988 e a Conquista Formal Dos Direitos Das Mulheres1

Bruna Angotti – União de Mulheres de São Paulo

Introdução
No início da década de 1980 o Brasil vivenciou um momento histórico ímpar de
abertura democrática e edificação de um Estado Democrático de Direito. A necessidade
de criação de normas fundamentais, ou seja, de regras basilares capazes não só de
garantir direitos individuais e coletivos, mas também de limitar o arbítrio estatal, estava
na ordem do dia. O fim da ditadura militar, que durou 20 anos, descortinava a
possibilidade de participação política popular e possibilitava mudanças, não sem lutas,
na forma de representação e estruturação política. Os movimentos sociais (mais ou
menos articulados) – em especial o movimento sindical, feminista, indígena, por
moradia, por saúde e campesino – foram fundamentais para assegurar a presença
popular no processo de democratização, garantindo que as regras não fossem pautadas
de cima para baixo. O exercício da cidadania, como reflexo do respeito pleno aos
direitos individuais, em especial os civis e políticos, é condição sine qua non para a
existência de uma sociedade democrática. Sendo assim, a reivindicação dos movimentos
sociais para a participação nos trabalhos constituintes reflete a ânsia dos grupos em
tecer a democracia que se construía, garantindo que seus interesses fossem atendidos no
novo texto.
Assim, a participação de movimentos sociais no processo de construção da
Constituição Federal de 1988 (CF) foi fundamental para a garantia da
constitucionalização de bandeiras sociais. Em especial, a presença do movimento de
mulheres e sua articulação com a bancada feminina da Constituinte merece destaque. O
presente artigo abordará brevemente o contexto histórico da elaboração da CF, a
composição e a organização da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), focando,
especificamente, na função da bancada feminina e do movimento de mulheres para
assegurar que suas demandas fossem constitucionalizadas. Por fim, serão analisadas as

                                                                                                                       
1
 Texto baseado na terceira aula do curso Igualdade de Gênero, promovido pela Escola do Parlamento e
coorganizado pela União de Mulheres de São Paulo. A aula, ministrada pela autora, ocorreu no dia 13 de
agosto de 2013, nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo.  
 
2  
 

principais conquistas de direitos das mulheres nesse momento e os seus reflexos para a
efetivação desses mesmos direitos hoje.

O cenário da Constituinte
No ano de 1978, em plena ditadura militar brasileira, surgiu, e começou a dar
seus primeiros passos na sociedade civil, o movimento pela convocação de uma
Assembleia Nacional Constituinte “livre e soberana”2. Tal movimento se fortaleceu no
início da década de 1980, desembocando na campanha das Diretas Já. Após o pleito
presidencial de 1985, que elegeu, por vias indiretas, Tancredo Neves para presidente do
Brasil (substituído por seu vice, José Sarney, dada sua morte precoce), foi editada a
Emenda Constitucional nº 26 de 27 de novembro de 1985, que convocava uma
Assembleia Nacional Constituinte (ANC)3 com o objetivo de criar o novo texto
constitucional do país (BARROSO, 2006, pp. 3-8)4. De acordo com José Afonso da
Silva “a Nova República só teria legitimidade e durabilidade se se fundamentasse numa
constituição democrática, ou seja, que emanasse de uma Assembleia Constituinte
representativa da soberania popular” (SILVA, 2002, p. 108).
Ora, se a Constituição Federal é a lei fundante que serve como parâmetro para
todas as leis vigentes no país, se é ela que regulamenta a estrutura político-estatal, bem
como dita os direitos e deveres mais fundamentais dos indivíduos brasileiros e
residentes no país, se prevê mecanismos de exercício de direitos sociais e limita o
arbítrio estatal, nada mais coerente que, em uma democracia, ela “emane do povo”.
Evidente que há uma conotação metafórica que pressupõe que todos tenham sua
vontade representada através daqueles escolhidos para tal – daí o jargão “emana do
povo”.
No entanto, uma demanda do “povo” não foi atendida neste momento peculiar –
apesar da intensa mobilização do movimento social para que a ANC fosse composta por
membros eleitos única e exclusivamente para tal função, formando uma “constituinte
exclusiva” que se dissolveria ao final do processo, venceu a proposta de que os

                                                                                                                       
2
Outras tentativas anteriores de instauração de assembleias haviam surgido, mas, com o fim do
bipartidarismo em 1979 e uma lenta e gradual abertura política, o cenário foi mais propenso ao sucesso da
iniciativa.
3
A constituinte é a assembleia que tem autoridade para impor uma Constituição. A palavra pode também
indicar o membro que compõe uma assembleia constituinte (SILVA, 2001, p. 209).
4
Em manifesto denominado “Compromisso à Nação”, a Aliança Democrática, coligação de base de
Tancredo, explicitava o compromisso de, se eleita, convocar uma assembleia livre e soberana.
3  
 

membros que comporiam o Congresso Nacional a formariam5. Assim, a população não


pôde votar diretamente nos representantes da Constituinte, tendo que contentar-se com a
representação dos deputados e senadores que seriam eleitos para o parlamento nas
eleições de 1986. Dessa forma, a articulação para a constitucionalização de bandeiras
dos movimentos teve de ser feita com parlamentares que não necessariamente tinham
como suas aquelas demandas, ou que sequer eram sensibilizados por elas.6 A
Assembleia, como “cópia” do parlamento, foi composta majoritariamente por partidos
que compunham o “centrão”, tais como o PMDB, PFL, PDS e PTB, ainda que houvesse
pequena representação de partidos à esquerda, como o PT e o PDT.
Formada por 590 parlamentares (entre suplentes e titulares), sendo que destes
apenas 267 eram mulheres, e presidida por Ulysses Guimarães, a ANC iniciou seus
trabalhos em 1º de fevereiro de 1987, sendo organizada em oito Comissões – “da
soberania e dos direitos e garantias do homem e da mulher”, “da organização do
Estado”, “da organização dos poderes e sistemas de governo”, “organização eleitoral,
partidária e garantia das instituições”, “sistema tributário, orçamento e finanças”,
“ordem econômica”, “ordem social”, “da família, da educação, cultura e esportes, da
ciência e da tecnologia e da comunicação” – e, ligadas a estas, 24 subcomissões. Para a
presente análise a comissão que mais nos interessa é a “da soberania e dos direitos e
garantias do homem e da mulher” e sua subcomissão “dos direitos e garantias
individuais”. Isso porque foi principalmente no âmbito dessa subcomissão que mais se
discutiu os direitos das mulheres e a importância da igualdade entre os sexos.

Participação popular na ANC

                                                                                                                       
5
Nesse momento foi intensa a participação popular. Lucas Coelho Brandão, em sua dissertação de
mestrado, cita o Movimento Nacional pela Constituinte, do Rio de Janeiro, e o Plenário de São Paulo Pró-
Participação na Constituinte, como exemplos potentes de grupos pela formação da constituinte exclusiva.
Ver mais em (BRANDÃO, 2011, pp. 56-57).
6
Os principais grupos contrários à ANC eram ligados ao governo militar, representado por empresários,
banqueiros, latifundiários e militares.
7
São elas: Maria Abigail Freitas Feitosa – PSB/BA; Anna Maria Martins Scorzelli Rattes – PSDB/RJ;
Benedita Souza da Silva – PT/RJ; Elizabete Azize – PSDB/AM; Elizabete Mendes de Oliveira-
PMDB/SP; Maria Cristina de Lima Tavares Correia – PDT/RJ; Dirce Maria do Valle Quadros –
PSDB/SP; Eunice Michiles – PFL/AM; Irma Rossetto Passoni – PT/SP; Lídice da Mata e Souza –
PCdoB/BA; Antônia Lúcia Navarro Braga – PFL/PB; Lúcia Vânia Abrão Costa – PMDB/GO; Márcia
Kubitschek – PMDB/DF; Maria de Lourdes Abadia – PSDB/DF; Maria Lúcia Mello de Araújo –
PMDB/AC; Maria Marluce Moreira Pinto – PTB/RR; Moema Correia São Thiago – PSDB/CE; Myriam
Nogueira Portella Nunes – PSDB/PI; Raquel Cândido e Silva – PDT/RO; Raquel Capiberibe da Silva-
PSB/AP; Rita de Cássia Paste Camata – PMDB/ES; Rita Isabel Gomes Furtado – PFL/RO; Rose de
Freitas – PSDB/ES; Sadie Rodrigues Hauache – PFL/AM; Sandra Martins Cavalcanti – PFL/RJ; Wilma
Maria de Faria Maia – PDT/RN. Para saber mais sobre as parlamentares vide Saw (2010).
4  
 

Para garantir a participação popular, houve intensa mobilização pela criação de


mecanismos de participação na ANC. Lucas Coelho Brandão ressalta a importância da
mobilização pré-constituinte para estimular e garantir tal participação. Dentre elas cita a
iniciativa do Senado, que abriu espaço para receber propostas e sugestões da população
por meio de um formulário disponível nos correios; bem como a produção de um
documento intitulado Propostas do Povo para o Brasil, com o intuito de atrelar os então
candidatos a parlamentares na eleição de 1986 às propostas para a Constituição
(BRANDÃO, 2011, pp. 58-59). Ainda, para a garantia da participação popular no
processo, duas medidas formais foram tomadas: I) a previsão de realização de
audiências públicas e; II) a possibilidade de proposição de emenda popular.
A emenda popular é um instrumento de democracia direta que, de acordo com o
artigo 24 do Regimento Interno da Constituinte, poderia ser apresentada “desde que
subscrita por 30.000 ou mais eleitores brasileiros, em lista organizada por, no mínimo,
três entidades associativas, legalmente constituídas, que se responsabilizarão pela
idoneidade das assinaturas”. Ou seja, a população teria a opção de fazer propostas de
emendas que, cumpridas as exigências legais, seriam votadas em plenário como as
demais8. Já as Audiências Públicas foram organizadas pelas subcomissões constituintes
e, apesar do caráter mais institucional, também foram importantes espaços para oitiva da
população. De acordo com a publicação Audiências Públicas na Assembleia Nacional
Constituinte foram realizadas, ao todo, 200 reuniões, 9 tendo sido ouvidas mais de 900
pessoas (BACKES, AZEVEDO e ARAÚJO, 2009, p.15).
Nesse cenário, a participação das mulheres foi determinante para a
constitucionalização de demandas femininas. Tanto sua presença em audiências
públicas quanto propostas de emendas populares, e a constante pressão política foram
importantes para a garantia de direitos, como licença maternidade de 120 dias, licença
paternidade, creche, igualdade de direitos e igualdade na família.

Participação Feminina na Constituinte

                                                                                                                       
8
Brandão ressalta que, ao todo, 288 entidades apresentaram um total de 112 emendas populares,
totalizando 12.277.423 assinaturas (BRANDÃO, 2011, p. 79).
9
Dentre estas, vale mencionar a audiência realizada em 23/04/1987, cujo tema era “Cidadania Feminina e
Estado” que denunciou a “discriminação social e política feminina ao longo da história, e relatou a
criação do Conselho Nacional da Condição Feminina, com o objetivo de lutar contra todas as formas de
discriminação contra a mulher na sociedade brasileira”; bem como a audiência ocorrida em 28/04/1987
denominada “igualdade entre o homem e a mulher” (BARROS, 2009, p. 95 e 101-102).
5  
 

Em 1985 foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM)10,


vinculado ao Ministério da Justiça, com o objetivo de promover políticas voltadas à
eliminação da discriminação contra a mulher e assegurar sua participação nas atividades
políticas, econômicas e culturais do país11. Tal conselho foi importante na condução do
debate sobre direitos das mulheres na constituinte, em especial na intermediação entre a
sociedade civil e o Executivo. Por meio dos slogans Constituinte pra valer tem que ter
palavra de mulher e Constituinte para valer tem que ter direitos da mulher, o conselho
foi extremamente ativo na condução do “lobby” feminino tanto para garantir a
candidatura de mulheres nas eleições para o Congresso em 1986, bem como para
garantir a participação feminina na ANC.
O evento Os Direitos da Mulher para a Constituinte, promovido pelo CNDM
em Brasília antes do início dos trabalhos constituintes, foi um momento importante para
a articulação da luta feminina, onde foi redigida a Carta das Mulheres Brasileiras aos
Constituintes12, na qual constava um rol de reinvindicações das mulheres brasileiras.
Como princípios gerais, a Carta alegava ser fundamental para a efetivação do princípio
da igualdade que a Constituição estabelecesse preceitos revogando automaticamente
todas as disposições legais com classificações discriminatórias, considerasse qualquer
afronta ao princípio da igualdade crime inafiançável e acatasse, sem reservas,
convenções e tratados internacionais sobre eliminação de todas as formas de
discriminação. Tratava também de reivindicações específicas da família, de temas de
trabalho, saúde, educação e cultura13, todas focadas nos direitos das mulheres.
Com a ajuda do CNDM, duas frentes articuladas de participação feminina foram
importantes na ANC: a participação das mulheres da sociedade civil e a das deputadas
que formaram a “bancada feminina na Constituinte”. Do lado do movimento social, a
participação feminina foi intensa. Mulheres de todo o Brasil participaram de
mobilizações com o objetivo de serem ouvidas pela ANC. Por exemplo, de acordo com
Maria Amélia de Almeida Teles14, a União de Mulheres de São Paulo fez uma

                                                                                                                       
10
Lei 7353/85.
11
Informação disponível em: http://www.spm.gov.br/conselho, acesso em: 20/09/2013.
12
De acordo a ex-presidenta do Conselho, Jacqueline Pitanguy, à época da Constituinte: “o CNDM
visitou a todas as capitais onde, em parceria com os movimentos locais, conclamava as mulheres a
apresentarem propostas para a nova Constituição, participando deste momento crucial da vida política do
país”. Dessas visitas nasceu o conteúdo da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes. Disponível
em: http://www.cepia.org.br/images/nov089.pdf, acesso em 20/09/13.
13
De acordo com Jaqueline Pitanguy, entre 1986 até 1988, foram enviadas mais de 112 emendas
substitutivas, ou aditivas, para o Congresso Nacional.
14
Fundadora da União de Mulheres de São Paulo – em aula no curso Maria Maria em 13/05/2013.
6  
 

assembleia constituinte simbólica para simular o que seria a ANC, de onde saiu um
documento contendo o que as mulheres queriam, sendo inclusive proposto um capítulo
específico sobre direitos das mulheres que deveria compor a Constituição. Já as
parlamentares, por sua vez, oriundas de partidos distintos, com posicionamentos
políticos muitas vezes conflitantes, se uniram para garantir que as pautas femininas
fossem atendidas. Os relatos das parlamentares que participaram da constituinte
evidenciam que não foi uma missão simples – enfrentaram preconceitos e posições
machistas, como no dia em que se depararam com uma urna disposta para a votação da
“mais bela da constituinte”15.
Alguns temas eram consenso entre as mulheres, como a licença maternidade, o
direito à creche e a igualdade da mulher na família. Já outros, como o aborto, geravam
dissenso e, portanto, não tiveram a mesma força coletiva no debate. As principais
garantias conquistadas foram: a menção expressa à igualdade formal entre homens e
mulheres16, a ampliação da licença maternidade de três para quatro meses17, proteção do
mercado de trabalho para mulheres18, o direito de propriedade de terra para mulheres da
zona rural19, licença paternidade20 (uma bandeira feminina!), igualdade de direitos civis
e do status do homem e da mulher no casamento21 e o direito à creche22.
Vale ressaltar que as conquistas femininas na CF de 1988 geraram reflexos
importantes na legislação infraconstitucional que a sucedeu. Dentre as principais, vale
mencionar a lei 9.029/95 que proíbe que empregadores exijam de funcionárias ou de
candidatas a vagas de emprego atestados de esterilidade ou de gravidez; a lei 9.504/97
que determina que todos os partidos políticos deverão preencher suas vagas para
candidaturas à proporção de ao menos 30% e 70% para cada sexo, bem como a lei
11.340/06, conhecida como Maria da Penha, que cria mecanismos de proteção
específicos para mulheres vítimas de violência doméstica.

                                                                                                                       
15
Para visualizar os depoimentos ver: Anna Maria Rattes (PMDB-RJ): A Conquista dos direitos das
mulheres – disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/tv/materias/DIARIO-DA-
CONSTITUINTE/182768-ANNA-MARIA-RATTES-%28PMDB-RJ%29:--A-CONQUISTA-DOS-
DIREITOS-DA-MULHERES.html acesso em 20/09/2013; e Diário da Constituinte - edições especiais
sobre as mulheres – disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/a-constituinte-e-as-
mulheres acesso em 20/09/2013.
16
Art 5º CF, Caput e I.
17
Art. 7º CF, XVIII.
18
Art. 7º CF, XX.
19
Art. 183 CF, § 1º; e Art. 189 CF, parágrafo único.
20
Art. 7º CF, XIX.
21
Art. 206 CF, § 5º.
22
Art. 7º CF, XXV e Art. 208 CF.
7  
 

Conclusão
As conquistas legislativas femininas a partir de 1988 são louváveis,
possibilitando a instrumentalização da lei para a transformação da realidade social de
discriminação e desigualdade vivenciada ainda hoje pelas mulheres brasileiras. Porém,
apesar da igualdade formal entre homens e mulheres, ou seja, daquela prevista em lei, a
igualdade material ainda não foi alcançada. Por exemplo, a pesquisa de 2012 do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), denominada Mulher no mercado
de trabalho: perguntas e respostas, evidencia que o rendimento das mulheres continua
inferior ao dos homens, sendo que em 2011, elas recebiam, em média, 72,3% do salário
masculino23. Já relatório de 2010 do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero,
denominado Mulheres, Poder e Decisão, explicita que as mulheres, que são mais da
metade da população e do eleitorado, ocupam menos de 20% dos cargos de maior nível
hierárquico no Parlamento, nos governos municipais e estaduais, nas secretarias do
Poder Executivo, no Judiciário, nos sindicatos e nas reitorias24. Por fim, vale destacar
que os índices de violência doméstica no país são epidêmicos, sendo o Brasil o 7ª país
onde mais ocorre feminicídios, de acordo com ranking feito pela Organização Mundial
de Saúde (OMS)25.
Assim, apesar das conquistas legais, em especial aquelas conseguidas a duras
penas na ANC, ainda há um grande caminho a ser percorrido pelas mulheres para que
de fato a igualdade conquistada em lei seja real no cotidiano feminino. Estamos em
contínua construção!

Referências Bibliográficas
BACKES, Ana Luiza; AZEVEDO, Débora Bithiah de; ARAÚJO, José Cordeiro de.
Introdução. In: Audiências Públicas na Assembleia Constituinte – a sociedade na
tribuna. Brasília: Câmara dos Deputados, 2009, pp. 15-19.
BARROS, Eliane Cruxên. Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais. In:
Audiências Públicas na Assembleia Constituinte – a sociedade na tribuna. Brasília:
Câmara dos Deputados, 2009, pp. 93-114.
                                                                                                                       
23
Ver IBGE, 2012.
24
Ver BRASIL, 2010.
25
Ver Mapa da Violência 2012 (WAISELFISZ, 2013).
8  
 

BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar,


2006.
BRANDÃO, Lucas Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional
Constituinte de 1987-1988: entre a política institucional e a participação popular. São
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BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em
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Disponível em:
http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/761/legislacao_mulher_5ed.pdf?
sequence=21, acesso em: 20/09/2013.
BRASIL - SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES.
Relatório do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, denominado “Mulheres,
Poder e Decisão”, 2010. Disponível em:
http://www.brasil.gov.br/secoes/mulher/desigualdade-de-generos/mulheres-x-homens/print,
acesso em 20/09/13.
IBGE. Pesquisa “Mulher no mercado de trabalho: perguntas e respostas”, 2012.
Disponível em:
http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=2096,
acesso em: 20/09/2013.
PITANGUY, Jacqueline. As Mulheres e a Constituição de 1988. Disponível em:
http://www.cepia.org.br/images/nov089.pdf, acesso em: 20/09/2013.
SAW, Marilene Mendes. A participação feminina na Construção de um Parlamento
Democrático. In: E-Legis. Brasília, Biblioteca Digital Câmara dos Deputados, nº 5, pp.
79-94, 2º Semestre 2010. Disponível em:
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SILVA, Oscar de Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular – estudos sobre a
constituição. São Paulo: Malheiros, 2002.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Atualização: Homicídio de Mulheres no Brasil. In Mapa
da Violência no Brasil. Flacso/Cebela, 2012. Disponível em:
http://mapadaviolencia.org.br/mapa2012_mulheres.php, acesso em: 20/09/2013.
1  

Desafios no enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil1


Lenira Politano da Silveira

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do


Estado.
§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada
um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência
no âmbito de suas relações - Constituição Federal 1988

Art. 3. £ 1.º O poder público desenvolverá políticas que visem


garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações
domésticas e familiares, no sentido de resguardá-las de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão - Lei nº 11.340 de 2006

Introdução
O diferencial propositivo desses dois instrumentos legais supracitados aponta o
percurso no enfrentamento à violência contra as mulheres nas últimas décadas no Brasil.
Se a inclusão do artigo 226 da Constituição foi considerada uma importante conquista
das mulheres no processo constituinte2, o texto final da Carta Magna permanece
ocultando sob a expressão “família” o fato de que são mulheres, em todas as faixas
etárias, as principais vítimas da violência doméstica. O reconhecimento formal de que
essa violência é marcada pelas desigualdades de gênero, só ocorreria anos depois, com a
incorporação pela Lei Maria da Penha da definição de violência prevista na Convenção
de Belém do Pará. 3
Para além da questão conceitual, o período que separa estas duas legislações
evidenciou a incapacidade do Estado brasileiro em reconhecer e coibir a violência
sofrida pelas mulheres no espaço doméstico. Esta intervenção, considerada negligente e
omissa frente às vítimas, culmina na condenação pela Comissão Interamericana de
Direitos Humanos da OEA em 2001, no Caso Maria da Penha Fernandes.

                                                                                                                       
1
Texto baseado na quinta aula do curso Igualdade de Gênero, promovido pela Escola do Parlamento e
coorganizado pela União de Mulheres de São Paulo. A aula, ministrada pela autora, ocorreu no dia 20 de
agosto de 2013, nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo.
2
Em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher lança a Campanha Nacional –“Mulher e
Constituinte”, que ouviu mulheres de todo o Brasil e culminou com a apresentação em 1987 da “Carta das
Mulheres Brasileira aos Constituintes”, contendo reivindicações em diversas áreas.
3
“Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta
baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na
esfera pública como na esfera privada” – “Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a
violência contra a Mulher”, 1994.
2  

Ao longo do tempo, a atuação ineficiente e conservadora das instituições


públicas vem contribuindo para a perpetuação e legitimação da violência de gênero em
nosso país, já que a ausência e/ou precariedade dos serviços especializados, as
dificuldades de acesso, as experiências negativas nos serviços públicos, assim como o
sentimento generalizado de impunidade, já foram apontados como elementos inibidores
no processo de ruptura das relações violentas por SAGOT (2000).
Numa breve recuperação histórica, é possível identificar as repetidas tentativas
de implementação das políticas públicas de enfrentamento à violência, que vêm se
dando de forma limitada, cercadas de resistências institucionais e de repetidos
retrocessos.
Com a implantação dos SOS Mulher em diversas cidades brasileiras no início da
década de 1980, a problemática da violência contra a mulher começou a ganhar
visibilidade e a denunciar a ausência ou inadequação de respostas públicas para o seu
enfrentamento. Os sucessivos relatos de mulheres que recorriam ao serviço revelavam
o tratamento humilhante e culpabilizante oferecido pelas Delegacias de Polícia e pelo
Judiciário.4
A criação das Delegacias da Mulher em 1985 representou uma vitória exemplar
das reivindicações feministas junto ao poder público, criando um campo simbólico de
reconhecimento do fenômeno da violência contra a mulher e que se tornou referência
para outros países. Entretanto, ao longo do tempo, a atuação dessas delegacias foi
apresentando seus limites. Além de sofrer da falta de prestígio dentro da corporação
policial (por tratarem de “crimes menores”), as delegacias tiveram que lidar com a falta
de equipamentos, de viaturas e de recursos humanos qualificados para compreender e
abordar as desigualdades de gênero. Some-se ainda o despreparo das agentes policiais
para lidar com a complexidade das demandas das vítimas de violência doméstica
(questões emocionais e sociais). A impotência da instituição face a este universo
complexo, reiterava os sentimentos de impotência das vítimas diante da violência dos
seus parceiros.

                                                                                                                       
4
Cabe lembrar que esse era um momento onde ainda se assistia à absolvição dos assassinos de mulheres,
sob o argumento da “legítima defesa da honra”. No livro Quando a vítima é a mulher, de 1987, as autoras
Daniellle Ardaillon e Guita Grin Debert analisam o tratamento preconceituoso dado às vítimas nos
julgamentos de crimes de violência contra as mulheres.
 
3  

A ação dos agentes públicos revelava, por um lado, o despreparo no trato com o
problema, mas também o papel do Estado como mantenedor do status quo: a
“privatização” da violência doméstica, a reiteração do lugar da mulher na família
patriarcal e a minimização da violência intrafamiliar. Estas atuações ocorriam cercadas
de legitimidade, já que promovidas pelas instituições que deveriam oferecer proteção
e/ou atendimento especializado, como aponta SOARES (2002, p. 43):

“O mais grave é que não só os agentes de polícia operam sobre o


pano de fundo do preconceito. Como cidadãos, eles apenas expressam
na linguagem policial o espírito que atravessa toda a nossa
sociedade. Por isso, infelizmente, as mulheres em situação de
violência também são tratadas de forma inapropriada por juízes,
promotores, profissionais da saúde, por seus amigos e familiares e,
embora com menos frequência, até pelos profissionais que as atendem
nos abrigos e centros de atendimento especializados”.

Ainda que no período pós-constituinte tenha-se assistido a uma ampliação do


número de serviços, impulsionados pela criação de organismos de políticas para as
mulheres no âmbito dos municípios, mais uma vez estas iniciativas se mostraram frágeis
do ponto de vista institucional, estrutural e conceitual.
A atuação dos organismos de políticas para as mulheres, em todos os níveis de
governo, foi fundamental na manutenção, ampliação e qualificação dos serviços de
atendimento.5 Entretanto, esses organismos sofreram os efeitos da desqualificação dada
as questões de gênero na esfera governamental. Precária dotação orçamentária, poder
político restrito e instável, limitaram a implementação de políticas de atenção às vítimas
de violência.
A ausência de políticas públicas de Estado, de caráter integral e transversal, tem
demonstrado a dificuldade em reconhecer a extensão e a complexidade do fenômeno da
violência de gênero. Embora seja consenso a necessidade da estruturação de redes de
atenção para atendimento da violência contra a mulher, o que vemos é a implementação
de ações pontuais e desarticuladas entre as esferas de orientação/proteção e as esferas
policial/judicial, que contribuíram para baixa resolutividade, sem garantir a segurança e
os direitos das vítimas.

                                                                                                                       
5
Um exemplo foi a parceria do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher com o Ministério da Justiça,
na dotação de recursos voltados à construção e reforma de Casas-Abrigo a partir de 1997, bem como a
capacitação das Delegacias da Mulher.  
4  

Se as respostas nos serviços de orientação e apoio são limitadas, a resistência


percebida na instância judicial é ainda mais evidente. A falta de reconhecimento das
peculiaridades da violência de gênero pelo Judiciário mostrou sua face mais dramática a
partir da aplicação da Lei nº 9.099, de 1995 - que visava a celeridade processual nos
crimes de pequeno potencial ofensivo - e da implantação dos Juizados Especiais
Criminais (JECRIMS). Desconsiderando as desigualdades de poder dentro das relações
conjugais violentas, os juizados se valiam dos recursos de mediação de conflitos e
conciliação. A aplicação desta legislação teve resultados desastrosos, expondo algumas
mulheres a situações de risco de morte, gerando descrédito quanto à ação da justiça.
Com a notificação do Brasil pela OEA em 2001 e a Criação da Secretaria de
Políticas para as Mulheres em 2003 (com status de Ministério), abre-se nova
oportunidade de denunciar a precariedade dos serviços e demandar uma legislação
específica que pudesse impactar os indicadores de violência de gênero e feminicídio. A
realização da I Conferência de Políticas para as Mulheres em 2004 constituiu-se num
espaço de intenso diálogo entre instâncias governamentais e a sociedade civil,
permitindo identificar as dificuldades no enfrentamento à violência em todo o território
nacional. O Plano Nacional de Políticas para as mulheres publicado no ano seguinte
apontaria como principais objetivos para a área da violência: a garantia do atendimento
integral, humanizado e de qualidade; a redução dos índices de violência e a revisão da
legislação brasileira de enfrentamento à violência contra as mulheres. Naquele
momento, a Secretaria já havia estruturado um Grupo de Trabalho Interministerial para
a elaboração de um projeto de lei, que resultaria em 07 de agosto de 2006, na aprovação
da Lei nº 11.340 – a Lei Maria da Penha.
Cabe ressaltar que a elaboração da Lei Maria da Penha ocorreu dentro de um
amplo processo de consulta e discussão, com a realização de audiências públicas, que
contaram com a participação de organizações feministas, juristas, especialistas em
gênero e profissionais envolvidos no atendimento. Esse processo favoreceu a
incorporação pelo texto da lei, das reflexões e críticas em torno da aplicação da lei nº
9.099 de 1995, bem como da experiência acumulada nos serviços, contemplando deste
modo as especificidades da violência dentro das relações amorosas e/ou no espaço
doméstico. Entre outros aspectos, a lei inovou ao enfatizar o caráter protetivo para as
vítimas, ao reconhecer as diversas formas de violência doméstica (como a psicológica e
5  

patrimonial), ao incorporar as relações homoafetivas e ao apontar a responsabilidade do


Estado na implantação de políticas públicas de combate e prevenção.
Justamente por seu caráter inovador, a Lei Maria da Penha caminha na
contramão da tradição patriarcal e conservadora das instituições públicas, marcadas pela
burocracia e pela fragmentação, carregando desafios para sua efetiva implementação. A
primeira das resistências foi oferecida pelo Judiciário, na tentativa de argumentar sua
inconstitucionalidade, entendendo que a lei fere o princípio da igualdade entre homens e
mulheres. Menos explícitas – mas não menos danosas - são as resistências à aplicação
das medidas protetivas e à punição dos agressores, que vêm ocorrendo nas práticas
judiciais, permitindo que as vítimas permaneçam sob grave risco, além de promover
uma cultura de impunidade nos casos de violência doméstica.
Embora se constitua num instrumento poderoso no enfrentamento à violência
contra a mulher, o impacto da Lei Maria da Penha só será efetivo se ela for
implementada integralmente, com a garantia da ação articulada dos serviços, a pronta
aplicação das medidas protetivas, a incorporação de segmentos essenciais como saúde e
educação, que possam promover mudanças na cultura de violência. São necessários
investimentos para criação e manutenção de serviços de atendimento, capacitação de
recursos humanos, mas principalmente a mudança de paradigma de instituições públicas
notadamente conservadoras. Como visto, esses elementos têm se mostrado,
historicamente, os grandes desafios para a implantação das políticas de gênero.

Referências Bibliográficas
ARDAILLON, Daniellle e DEBERT, Guita Grin. Quando a vítima é a mulher.
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 1987.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado
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BRASIL. Lei nº 11.340 de 07 de agosto de 2006. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm - acessado
em 10 de setembro de 2013.
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES. Plano
Nacional de políticas para as mulheres. Brasília, 2004. Disponível em:
6  

http://spm.gov.br/pnpm/plano-nacional-politicas-mulheres.pdf - acessado em 07 de
setembro de 2013.
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES. Lei
Maria da Penha – Breve histórico. Disponível em:
http://www.spm.gov.br/subsecretaria-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-
mulheres/lei-maria-da-penha/breve-historico - acessado em 13 de setembro de 2013.
DA SILVEIRA, Lenira Politano. Serviços de atendimento a mulheres vítimas de
violência. Vinte e cinco anos de respostas brasileiras em violência contra as mulheres no
Brasil (1980-2005), 2006.
SAGOT, M. Ruta crítica de las mujeres afectadas por la violencia intrafamiliar en
América Latina: estudios de caso de diez países. Washington: PAHO, 2000. Disponível
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setembro de 2013.
SOARES, Bárbara Musumeci. A Antropologia no Executivo: limites e perspectivas.
Gênero e Cidadania. Campinas: Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero–Unicamp, p. 31-45,
2002.
1  

Lei Maria da Penha: contextualização, atualizações e considerações1


Branca Paperetti – Casa Eliane de Grammont

“O direito não é uma teoria pura, mas uma força viva”.


“Todos os direitos da Humanidade foram conseguidos na luta”
“O direito é um trabalho incessante, não só dos poderes públicos,
mas da nação inteira” (Hering).

Introdução
A luta pelos Direitos Humanos das mulheres é constituída historicamente por
processos incessantes na consolidação de espaços, igualdade de direitos e de
oportunidades.
Segundo Marilena Chauí, a conceituação de violência não se restringe à
ocorrência de um evento em si, mas depende da interpretação da sociedade num
determinado momento histórico. Ou seja, uma conduta só será considerada violenta,
quando o juízo de valor feito pelas normas legais e sociais vigentes numa sociedade a
reprovar.
A concepção contemporânea dos Direitos Humanos surgiu no pós-guerra, como
uma reação à barbárie vivida na Segunda Guerra Mundial, e influenciou a Humanização
do Direito Internacional Contemporâneo.
Em 1979, por pressão de movimentos feministas, o Comitê da ONU sobre a
Eliminação de todas as formas de discriminação contra a Mulher (Comitê CEDAW)
realçou que “a violência doméstica é uma das mais insidiosas formas de violência
contra a mulher e prevalece em todas as sociedades, e inclui o espancamento, o estupro
e abuso sexual, e violência psicológica”. Este foi o primeiro instrumento internacional
de direitos humanos especificamente voltado para a proteção das mulheres, e se
constituiu num marco histórico internacional.
A partir dos anos 80, os estudos sobre gênero e as relações de subordinação das
mulheres colaboraram para a compreensão do fenômeno da violência contra as
mulheres e passaram a refletir as mudanças no cenário jurídico-político nacional e
internacional e, no Brasil, novas leis passaram a formalizar os direitos das mulheres, a
partir da Constituição de 1988. A Constituição, em seu artigo 5º, consagrou a igualdade
                                                                                                                       
1
  Texto baseado na sexta aula do curso Igualdade de Gênero, promovido pela Escola do Parlamento e
coorganizado pela União de Mulheres de São Paulo. A aula, ministrada pela autora, ocorreu no dia 22 de
agosto de 2013, nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo.  
2  

de todos perante a lei e, principalmente, entre homens e mulheres na família. O Brasil


ratificou em novembro de 1995 a “Convenção de Belém do Pará,” que havia sido
adotada pela ONU em junho de 1994, que propunha prevenir, punir e erradicar a
violência contra a mulher,
O texto desta convenção veio a inspirar o texto da Lei Maria da Penha, ao
reconhecer que a violência a que a mulher é submetida em função das relações de
gênero socialmente construídas é uma forma de negação dos direitos humanos. Para
criar mecanismos para coibi-la e preveni-la, a Lei 11.340/06 realizou um recorte
específico de objeto, definindo sua aplicação às mulheres em situação de violência
doméstica.

Maria da Penha: a Mulher e a Lei


Professora universitária, aos 38 anos foi vítima pela segunda vez de tentativa de
homicídio por seu marido, e ficou paraplégica.
Após 15 anos de impunidade, seu caso foi levado à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos da OEA, que recomendou ao Estado Brasileiro que concluísse rápida
e efetivamente o processo penal - envolvendo o responsável pela agressão -, que
investigasse as irregularidades injustificadas do referido processo, que pagasse a vítima
uma reparação simbólica - sem prejuízo da ação - e que promovesse a capacitação dos
funcionários da justiça em direitos humanos.
Foi a primeira vez que um caso de violência doméstica levou à condenação de
um País no âmbito do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. O
movimento feminista já vinha trabalhando juntamente com um Consórcio de Ongs para
produzir uma lei que melhorasse o cuidado e tratamento dado à violência contra as
mulheres. Quando o Brasil foi condenado por negligência, omissão e tolerância em
relação à violência doméstica contra as mulheres brasileiras em 2001, resultou na
formulação da Lei 11.340/06, que recebeu o nome de Lei Maria da Penha, o que
propiciou grandes avanços na proteção dos direitos humanos das mulheres no Brasil.
Dentre as principais inovações importantes trazidas pela lei, devemos considerar
a sua proposta inter e multidisciplinar, e de medidas integradas de prevenção e ações da
União, Estados, Municípios, e que determina a integração do Poder Judiciário,
Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança Pública, Assistência Social, Saúde,
Educação, Trabalho e Habitação.
3  

Além disso, podem ser destacados outros aspetos inovadores da lei:


(i) Propõe a mudança de paradigma no enfrentamento da violência contra a
mulher, passando a conceber a violência doméstica como violação dos
direitos humanos, proibindo a aplicação da Lei 9.099/95, que tratava a
violência doméstica como crime de menor potencial ofensivo;
(ii) Tipifica as várias formas de violência, reconhecendo a violência
psicológica, moral e patrimonial;
(iii) Incorpora a perspectiva de gênero ao tratar a violência contra a mulher, prevendo
a criação de Juizados de violência doméstica e familiar, com competência cível e
criminal. Essa proposta de competência ampliada tem como objetivo final
proporcionar às mulheres que vivem em situação de violência doméstica e
familiar o acesso à justiça formal e a respostas céleres e integrais que colaborem
para seu fortalecimento e para o exercício de seus direitos, reduzindo assim os
obstáculos que as mulheres enfrentam no acesso à justiça, unificando no mesmo
espaço físico (juizado) e temporal (a audiência) o acesso às medidas de proteção,
de assistência e a garantia de seus direitos e de seus filhos. Além disso, esta
medida também contribui para a abordagem integral necessária ao enfrentamento
da violência doméstica e familiar contra a mulher, uma vez que permite que o
juiz e o representante do Ministério Público que cuidam da causa criminal
possam também ter conhecimento sobre os efeitos da violência e a extensão da
violação dos direitos das mulheres nos outros âmbitos de sua vida;
(iv) Incorpora a ótica preventiva, integrada e multidisciplinar para o
enfrentamento da violência contra a mulher. Realça a promoção de
campanhas educativas, a inserção nos currículos escolares de todos os
níveis de ensino, os conteúdos relativos a direitos humanos, equidade de
gênero, raça, etnia e sobre violência doméstica. Enfatiza a necessidade de
capacitação permanente dos agentes que trabalham diretamente no
atendimento à violência;
(v) Fortalece a ótica repressiva, proibindo a aplicação de penas pecuniárias;
(vi) Consolida um conceito ampliado de família, independentemente de
orientação sexual;
(vii) Prevê o atendimento ao agressor;
(viii) Propõe a criação de bancos de dados e estatísticos, para avaliação
periódica dos resultados das medidas adotadas.
4  

Considerações e atualizações
Ao completar sete anos da promulgação da lei Maria da Penha, além de
comemorar todos os avanços da mudança de paradigma proposto, é necessário refletir
sobre as dificuldades enfrentadas ainda hoje para sua completa implementação, sendo
que há muitos e importantes desafios a enfrentar. Dentre eles, a articulação dos serviços
da Rede de Atendimento, a necessária capacitação continuada dos operadores de direito
e da segurança pública, onde a cultura patriarcal e a reprodução da assimetria de gênero
ainda acontecem. O percurso da mulher em sua busca de justiça e proteção, e validação
de direitos já conquistados na forma da lei, ainda se revelam numa rota crítica de
incertezas e, às vezes, de re-vitimização e falta de confiança nas políticas públicas.
Em 17 julho de 2013, a Secretaria de Políticas para as Mulheres coordenou a
formalização da implementação do Programa Mulher, Viver sem Violência, visando à
integração dos serviços públicos de segurança, justiça, saúde e atendimento psicossocial
e orientação para o trabalho, emprego e renda, com o objetivo de fortalecer a ação de
tolerância zero a violência contra as mulheres.
Embora no Brasil a violência doméstica seja um fenômeno que atinja a vida de
milhões de mulheres, ainda existem poucas estatísticas oficiais e consistentes que
apontem para a magnitude desse fenômeno. Dentre as pesquisas mais recentes, algumas
nos permitem vislumbrar o quanto esse tipo de violência ainda está presente em nosso
cotidiano.
Segundo pesquisa do Data Senado de 2013, 99% das brasileiras conhecem a Lei
Maria da Penha, e 66% se sentem mais protegidas por ela. Em um ranking de 84 países,
o Brasil é o sétimo no registro do assassinato de suas mulheres. Na América do Sul, só
perde para a Colômbia e, na Europa, para a Rússia.
Segundo o estudo do sociólogo Júlio Jacobo Weisenfilz (Mapa da Violência
2012), altos índices de feminicídio frequentemente são acompanhados de elevados
níveis de tolerância da violência contra as mulheres e, em alguns casos, são resultado
dessa tolerância.
Com a análise dessas recentes pesquisas, ficou claro que as taxas de impunidade
não foram alteradas significativamente, e que não é a criminalização o principal desejo
das vítimas, mas sim sua segurança e possibilidade de retomar sua vida sem medo e
com tranquilidade.
5  

O referido estudo também revela que as maiores taxas de vitimização


concentram-se na faixa dos 15 aos 29 anos de idade, e a violência é perpetrada pelo
companheiro ou ex-companheiro. As meninas e adolescentes são vítimas de pais-
padrastos - ou de alguém com quem tem vínculos familiares; e as idosas, de seus filhos
e descendentes.
Em agosto de 2013, no aniversário de sete anos da Lei 11.340/06, o Instituto
Patrícia Galvão lançou o resultado de uma pesquisa com o objetivo de mensurar a
opinião da sociedade sobre a violência doméstica, revelando ter aumentado a
preocupação com o assunto. Como destaque dessa pesquisa, o momento do rompimento
com o agressor é apontado como o de maior risco, e 85% dos entrevistados acham que
as mulheres que denunciam seus parceiros correm mais riscos. Esse é um indicador de
que existe ainda uma fragilidade na articulação da rede de atendimento e enfrentamento
à violência, bem como nos mecanismos de proteção.
Em 2010, a Procuradoria Geral da República solicitou ao Supremo Tribunal
Federal (STF) que se pronunciasse sobre a Constitucionalidade da Lei 11.340/06, uma
vez que, não raro, surgiam controvérsias e discussões sobre sua suposta
inconstitucionalidade.
Finalmente em 2012, essas controvérsias foram superadas pela declaração de
constitucionalidade da lei pelo STF através do julgamento da ADI 4424 (Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4424). O Supremo decidiu que qualquer ação penal com base na
Lei Maria da Penha deveria ser processada pelo Ministério Público, mesmo sem
representação da ofendida, e que as questões relativas à violência doméstica não
deveriam mais ser julgadas por Juizados Especiais, como se fossem de menor potencial
ofensivo, como o eram na Lei 9.099/95, mesmo nos casos de lesão corporal leve.
O Supremo Tribunal Federal então declarou constitucional o artigo 41 da Lei
11.340/06 na ação direta de constitucionalidade nº19 e ação direta de
inconstitucionalidade nº 4424, onde confirmou o preceito legal que prevê a não
aplicação da Lei nº 9.099/1995 em casos de violência doméstica e familiar.
Em seu voto, o Ministro Luiz Fux declarou:

“... Longe de afrontar o princípio da igualdade entre homens e


mulheres (art.5 º, I da Constituição), a Lei nº 11.340/06 estabelece
mecanismos de equiparação entre os sexos, em legítima
discriminação positiva que busca, em última análise corrigir um
6  

grave problema social. Ao contrário do que se imagina, a mulher


ainda é subjugada pelas mais variadas formas no mundo ocidental...
Quando uso a expressão mulher aqui, falo de mulheres cis e trans,
não havendo justificativa para exclusões...”.

Nesse sentido, a Lei Maria da Penha criou um estatuto jurídico com base nos
direitos fundamentais previstos na Constituição, incluindo a necessária tutela penal da
violência de gênero, condição para o adequado desenvolvimento da dignidade humana.
Com ação propositiva no sentido de implementar fortemente a Lei Maria da
Penha, foi instituída em 2012 uma CPMI (Comissão Parlamentar Mista) da Violência
contra a Mulher. A finalidade dessa CPMI era de investigar a situação da violência
contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público
com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em
situação de violência.
Essa comissão trabalhou cerca de 16 meses no Brasil todo e elaborou um
relatório de aproximadamente 1.000 páginas com propostas de mudanças na legislação e
de recomendações ao Judiciário, ao Executivo, ao Ministério Público, aos Estados e aos
Municípios.
Dentre as conclusões alcançadas, o Ministério Público de São Paulo levantou as
principais dificuldades no enfrentamento à violência doméstica, que são: i) a
subnotificação; ii) o atendimento inapropriado nos serviços públicos, mal instruídos nas
questões de gênero; iii) retratação das vítimas durante o inquérito ou ação penal; iv)
medo do agressor levando à reiteração; v) preconceitos e reforço da assimetria de
gênero por parte dos operadores do Direito e agentes públicos que naturalizam a
violência praticada e sofrida.
Para solucionar essas questões, a CPMI propôs ajustes na lei. O primeiro deles
estabelece que o juiz deve se manifestar sobre as medidas protetivas mesmo depois da
sentença condenatória, pois, em alguns casos, é importante manter a medida
independentemente da condenação. Outra mudança é a determinação de que juiz e o
Ministério Público sejam comunicados em até 24 horas sobre encaminhamento da
mulher vítima de violência às casas de abrigo para que possam decidir de imediato
sobre a necessidade ou não de medidas protetivas contra o agressor.
Em quatro de julho de 2013, o relatório entregue pela Senadora Ana Rita tem
como principais sugestões para fortalecer a implementação da Lei Maria da Penha e
enfrentamento à violência doméstica alguns Projetos e Recomendações. Dentre eles,
7  

destacam-se a tipificação do feminicídio como crime de morte contra a mulher praticada


por alguém com quem teve relação íntima, com pena sugerida de 12 a 30 anos, com o
objetivo de mudar de uma vez por todas a cultura do “crime passional”. Propõe também
alterar a Lei 9.455/1997 para considerar tortura a submissão de alguém a situação de
violência doméstica e familiar, com aumento de pena para 4 a 10 anos nos casos de
lesão corporal grave ou gravíssima. Sugere ainda vedar a concessão de fiança pela
autoridade policial nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Além dos projetos a CPMI sugere uma série de providências ao Executivo, ao
Judiciário e ao Ministério Público. Uma delas é pedir ao Poder Judiciário e ao
Ministério Público que fiquem atentos à decisão do Supremo Tribunal Federal pela
inaplicabilidade da Lei 9.099/95, e que não seja permitida a aplicação da suspensão
condicional em processos de violência doméstica e familiar, respeitando assim a Lei
11.340/06.
A CPMI também recomenda que integrantes do Ministério Público não
perguntem à vítima se ela tem intenção de renunciar a denúncia, sem que ela tenha se
manifestado espontaneamente pedindo isso.
Toda essa articulação política contou com a colaboração da sociedade civil, dos
serviços que estão no atendimento direto às mulheres em situação de violência, dos
poderes Legislativo e Executivo. Isso parece ser um sinal claro de desejo e empenho na
transformação dos valores éticos que balizam nossa cultura e sociedade, o que pode ser
um prenúncio de um futuro melhor, com menos desigualdades e violências e com mais
êxitos nas garantias dos direitos das mulheres.

Referências Bibliográficas
BRASIL. COMISSÃO PARLAMENTAR MISTA DE INQUÉRITO. Relatório Final.
Relatora: Senadora Ana Rita Brasília, Junho, 2013.
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE POLITICAS PARA MULHERES. II Plano
Nacional de Políticas para Mulheres, Brasília, DF, 2008.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Atualização: Homicídio de Mulheres no Brasil. In Mapa
da Violência no Brasil. Flacso/Cebela, 2012.
1  

Mulheres na Política1
Jacira Vieira de Melo - Diretora Executiva do Instituto Patrícia Galvão

O Brasil na lanterna do ranking das mulheres no poder


Com uma das menores taxas de representação de mulheres na política
institucional no mundo, o Brasil é o penúltimo país da América Latina quando o tema é
a presença feminina no Legislativo Federal. No quesito “participação política” do
“Relatório Global de Desigualdade de Gênero 2010”, elaborado pelo Fórum Econômico
Mundial a partir de dados de 134 países pesquisados, o Brasil está em 112º lugar.
Embora sejam inegáveis a força e a importância das mulheres no cenário
socioeconômico e cultural brasileiro, o país ocupa uma posição vergonhosa, muito atrás
de nações como Costa Rica e Argentina, que estão em 11º e 12º lugares,
respectivamente. A lista revela ainda que países como o Iraque e o Afeganistão têm
mais mulheres no poder do que o Brasil.
Desde 1995, com a 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher promovida pelas
Nações Unidas em Pequim, na China, o tema da representação das mulheres nos
processos de tomada de decisão política passou a ser um indicador do estágio de
desenvolvimento democrático, econômico, social e cultural de um país em diferentes
estudos e diagnósticos internacionais, com larga aceitação pelo conjunto das nações
democráticas e com importante contribuição da mídia para a qualificação deste debate
na esfera pública.
Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nas eleições de 2010, as mulheres
obtiveram 14,8% dos assentos no Senado, 8,8% na Câmara Federal e 12,9% nas
Câmaras Estaduais. Assim, no Senado Federal, entre 81 vagas, apenas 13 são ocupadas
por mulheres, sendo que, atualmente, oito senadoras exercem ativamente essa função.
Apenas uma das 11 comissões da Casa é presidida por uma senadora. Na Câmara dos
Deputados, das 513 vagas, 44 são ocupadas por mulheres e apenas uma das 21
comissões permanentes é liderada por uma deputada. Vale lembrar que as comissões do
parlamento são espaços de poder e de projeção política no próprio Legislativo, nos
partidos e nos meios de comunicação.

                                                                                                                       
1
 Texto baseado na sétima aula do curso Igualdade de Gênero, promovido pela Escola do Parlamento e
coorganizado pela União de Mulheres de São Paulo. A aula, ministrada pela autora, ocorreu no dia 27 de
agosto de 2013, nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo.  
2  

Com relação ao poder municipal, as mulheres ocupam apenas 10% das


prefeituras e representam 12% dos membros das Câmaras Municipais. Segundo o
demógrafo José Eustáquio Diniz Alves (ENCE/IBGE), de 1992 a 2012, o avanço da
participação feminina no âmbito municipal foi, em média, de 1% no número total de
eleitas a cada pleito municipal. Neste ritmo, segundo José Eustáquio, a paridade entre os
sexos nos espaços municipais de representação só acontecerá daqui a 150 anos no
Brasil2.
As barreiras para a ampla participação das mulheres na política formal não
fazem jus às contribuições e conquistas femininas do Brasil contemporâneo. Ao mesmo
tempo, este quadro revela o estágio incompleto da democracia brasileira.

Mulheres são a maioria do eleitorado brasileiro


No Brasil, as mulheres conquistaram o direito a voto apenas em 1932. E, mesmo
depois dessa conquista, a restrição ao voto dos analfabetos limitou significativamente o
voto das mulheres que, em sua maioria, não tinham acesso ao estudo. A participação das
mulheres como eleitoras cresceu e ganhou importância somente após a década de 1970.
Hoje, as mulheres são mais da metade da população do país. Segundo o IBGE
(2011), para cada 100 mulheres, há 96 homens. As mulheres representam também a
maioria do eleitorado (51,82% do total), de acordo com o TSE (2010).
Segundo a socióloga Fátima Pacheco Jordão, há um mito arraigado, na mídia e
no imaginário popular, de que mulher não vota em mulher, “afinal a grande maioria dos
postos de poder são ocupados por homens, quando temos 52% de eleitoras e apenas 9%
de mulheres parlamentares no Congresso”3. Isso significa dizer que a maioria das
mulheres tem votado em candidatos masculinos para o parlamento. No entanto, é
importante lembrar que não faltam eleitoras que votem em mulheres, mas sim
candidaturas femininas com apoio efetivo em termos de recursos, estrutura partidária e
tempo no horário de propaganda eleitoral. Historicamente, os partidos políticos são
espaços de poder masculino.
Outro mito recorrente é de que as mulheres são mais indecisas na hora de votar,
ou que são influenciadas e seguem o voto dos companheiros. A esse respeito, a diretora

                                                                                                                       
2
Para mais informações, vide notícia “Participação da mulher na política brasileira cresce de forma
lenta”, maio/13.
3
Vide “O poder do voto feminino”, Fátima Pacheco Jordão, jun/10.
3  

do Ibope, Marcia Cavallari4, explica que, na verdade, as mulheres demoram mais a se


decidir porque são mais críticas na hora de votar.
Sobre o poder e o papel do voto das mulheres nas eleições brasileiras em geral e,
em particular, nas eleições presidenciais de 2010, Fátima Jordão argumenta que o
processo de amadurecimento da escolha eleitoral tem um corte de gênero e, em
diferentes graus, perpassa geografia, escolaridade e ciclos de vida. Ou seja, as mulheres
aguardam mais informações para definir seu voto, observam com maior rigor as
propostas e promessas de políticas públicas por serem as principais usuárias dos
serviços públicos, uma vez que ainda são as principais responsáveis pela família. Assim,
ao longo das campanhas, têm crescido o papel e importância das eleitoras no processo
de escolha de candidatos e candidatas.
A lenda urbana que diz que mulher não vota em mulher foi fortemente
questionada nas eleições de 2010. Do total de nove candidatos à Presidência da
República, no primeiro turno, as duas candidatas que disputavam as eleições, Dilma
Rousseff e Marina Silva, conquistaram 67% dos votos. E Dilma Rousseff, a primeira
mulher eleita para o cargo de presidência do País, obteve 56% dos votos válidos no
segundo turno.

A mulher tem menor interesse pela política partidária e eleitoral?


Em parte, essa percepção é verdadeira; ao mesmo tempo, isso acontece porque
as mulheres são chamadas pelos partidos para um jogo de cartas marcadas. Em geral, ao
aceitarem se candidatar, as mulheres não dispõem de efetivo apoio dos partidos e
acabam não competindo em igualdade de condições com os homens. Cabe ressaltar que
a exclusão das mulheres na política também é um reflexo da divisão sexual do trabalho.
Isto é, mesmo respondendo hoje por 44% da força de trabalho no país, as mulheres
continuam como principais responsáveis pelo trabalho doméstico e os cuidados com a
casa e a família.
A desigualdade entre homens e mulheres no ambiente familiar gera uma
sobrecarga sobre as mulheres que contribui pesadamente para que elas se mantenham
distante da prática política partidária.

                                                                                                                       
4
Para mais detalhes vide entrevista de Marcia Cavallari, “Mulheres na Política”, ago/10.
4  

Pesquisa5 indica que a maioria de brasileiros quer mais mulheres no poder


Pesquisa encomendada ao Ibope pelo Instituto Patrícia Galvão indica que – vide
quadro 1 -, para 74% dos entrevistados, só há democracia de fato com a presença de
mais mulheres nos espaços de poder e de tomada de decisão. E, para 71%, a reforma
política é importante ou muito importante para garantir 50% de mulheres e 50% de
homens nas listas de candidatos dos partidos.
Essa pesquisa foi realizada em abril de 2013, em todas as regiões do país, com
2.002 entrevistas com homens e mulheres com 16 anos ou mais.

QUADRO 1:

A maioria dos entrevistados (76%) – vide quadro 2 - também entende que a


ampliação do acesso das mulheres aos espaços d e poder deveria ter garantia legal, tanto
no que se refere a cargos nos legislativos das três esferas de poder da Federação, quanto
dentro dos partidos. Essa compreensão tem mais ênfase entre os entrevistados, homens

                                                                                                                       
5
Pesquisa “Mais mulheres na política”, IBOPE/Instituto Patrícia Galvão, 2013.
 
5  

e mulheres, de classes sociais C e D e de menor escolaridade, o que pode refletir um


aumento da percepção da importância da política na vida cotidiana para as camadas que
ingressaram recentemente no mercado de consumo e na chamada "nova classe média".
Em relação à reforma política e voto em lista de candidatos, 71% dos brasileiros
consideram muito importante alterar a legislação eleitoral do país para garantir metade
de mulheres nas listas de candidaturas apresentadas pelos partidos. Adicionalmente,
78% da população defende a obrigatoriedade de divisão meio a meio das listas
partidárias.
A pesquisa também revela que 80% dos brasileiros consideram que deveria ser
obrigatória a composição dos legislativos municipais, estaduais e nacional por metade
de mulheres.
A legislação brasileira atual reserva apenas 30% das candidaturas e 10% do
tempo de propaganda eleitoral para cotas de sexo. E o projeto de reforma que está em
debate na Câmara dos Deputados prevê a alternância de gênero somente a cada três
posições das listas de partidos.

QUADRO 2:
6  

Falta compromisso político dos partidos com uma maior representação das
mulheres
A Lei de Cotas criada há 18 anos ainda não mostrou todo o seu potencial porque
falta comprometimento dos partidos. Preencher a lista de candidatas deveria ser um
desafio de construção de líderes mulheres para os partidos. Mas, como não há interesse
em estimular a participação feminina, a maioria dos partidos acaba incluindo
candidaturas de fachada para atender à lei eleitoral - as chamadas candidaturas de
mulheres “laranjas”.
Para reverter esse quadro de exclusão das mulheres nos espaços de
representação, os debates sobre reforma política precisam incluir propostas de
mudanças substantivas para as agremiações partidárias. A maior participação das
mulheres na política e, em consequência, o maior índice de sucesso eleitoral, dependem
também de um profundo processo de democratização dos partidos. A perspectiva de
paridade e de diversidade de gênero faz parte de documentos e narrativas discursivas da
maioria dos partidos, mas não está refletida nos espaços de poder e decisão das
agremiações que, por exemplo, mantêm suas executivas como espaços quase exclusivos
de poder masculino.
Conforme demonstra o quadro 3, a pesquisa citada do Ibope e do Instituto
Patrícia Galvão também revela a crítica da população aos partidos e a expectativa de
que sejam penalizados por não contribuírem para a construção da paridade entre homens
e mulheres na política.

QUADRO 3:
7  

As análises, reflexões e debates sobre o déficit de representação das mulheres na


política institucional do País precisam ser aprofundados. O Instituto Patrícia Galvão
considera que as pesquisas de opinião são ferramentas de grande impacto junto à
opinião pública e, no presente debate, junto ao Legislativo e aos partidos, para exercer
pressão por respostas e mudanças.

Referências Bibliográficas
AGÊNCIA SENADO. “Participação da mulher na política brasileira cresce de forma
lenta”, notícia de maio/13. Disponível em:
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/index.php?option=com_content&view=article
&id=4821:21052013-participacao-da-mulher-na-politica-brasileira-cresce-de-forma-
lenta&catid=42:noticias.
CAVALLARI, Marcia. “Mulheres na Política”, entrevista de ago/10. Disponível em:
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/index.php?option=com_content&view=article
&id=653:mulheres-sao-mais-criticas-na-hora-de-votar-diz-diretora-do-
ibope&catid=66:videos.
8  

FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL. “Relatório Global de Desigualdade de Gênero”,


2010. Disponível em: http://www.weforum.org/reports/global-gender-gap-report-2010-
0.
IBOPE/INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO. Pesquisa “Mais Mulheres na Política”,
2013. Disponível em:
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/images/stories/PDF/pesquisas/mais_mulheres_
politica.pdf.
JORDÃO, Fátima Pacheco. “O poder do voto feminino”, jun/10. Disponível em:
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/images/stories/PDF/politica/podervotofeminin
o18062010_fatimapjordao.pdf.
1

Políticas Públicas de Gênero: alinhavando reflexões1


Maria Lucia da Silveira - Assessora de Ações Temáticas da
Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres de São Paulo

Introdução
A igualdade é uma meta política central dos regimes democráticos. O Estado
contemporâneo se propõe a assumir que a desigualdade de fato das mulheres frente à
igualdade ante a Lei tem raízes profundas nas diversas sociedades e repercute
fortemente no plano do Estado. Não basta incorporar as mulheres no espaço público
para conseguir a equidade entre mulheres e homens. Viu-se, a partir de meados dos anos
1970, que, para corrigir essa desigualdade, era necessária a participação dos poderes
públicos que deviam se tornar responsáveis por alcançar não só a igualdade legal, mas a
igualdade real. Para isso, exigiu-se que a desigualdade deveria ser combatida pelo
próprio Estado com políticas adequadas a esse fim. Na medida em que essa demanda
adquiriu legitimidade, em muitos países, inclusive no Brasil, se iniciou a implementação
de políticas públicas para corrigir a desigualdade e a discriminação visando a
construção da igualdade.
A socióloga espanhola Judith Astelarra publicou, em 2005, um livro intitulado
“Vinte anos de Políticas de Igualdade”, no qual realizou um balanço de políticas de
igualdade na Espanha e de cuja análise crítica das estratégias utilizadas podemos nos
beneficiar:

“[P]ode-se dizer que há três requisitos básicos para que as políticas


de igualdade tenham relativo êxito e possamos abordar as estratégias
de maior alcance. O primeiro é que haja uma massa crítica de
feministas (quantitativa e qualitativa) nas instituições do Estado, já
que são mulheres que estão ali porque se sentem comprometidas com
a construção da igualdade entre mulheres e homens [...] O segundo
requisito é que as políticas adquiram uma dinâmica própria que não
possa ser mudada. Isto é, trata-se de que não se possa voltar atrás em
uma determinada política. Isto não depende só do ativismo das
mulheres que estejam no Estado. Para consegui-lo há quatro
elementos muito importantes: pesquisa, implementação, avaliação e
revisão das políticas. Há que analisar como se podem fazer
progressos e como se pode mudar a realidade social que incide sobre
as mulheres.
Finalmente, o último requisito se refere à capacidade de assumir as
diferenças que possam existir entre as mulheres destinatárias das

1
Texto baseado na oitava aula do curso Igualdade de Gênero, promovido pela Escola do Parlamento e
coorganizado pela União de Mulheres de São Paulo. A aula, ministrada pela autora, ocorreu no dia 29 de
agosto de 2013, nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo.
2

políticas, o que se poderia denominar como as características das


beneficiárias das políticas. No momento de implementar políticas
determinadas aparecem as diferenças que existem entre os vários
grupos de mulheres. São seus problemas e necessidades específicas
que se devem resolver. Porém, ao mesmo tempo, não se deve esquecer
que as mulheres apesar de suas diferenças, são um coletivo já que
todas sofrem algum tipo de discriminação. Por isso é necessário
manter a dimensão de gênero como algo comum, para que exista um
grupo de pressão das mulheres que exija que haja políticas de
igualdade de gênero. Porém, as respostas concretas que se abordem a
partir de políticas de igualdade devem levar em conta as diferenças
entre os distintos setores sociais de mulheres”2 (Astelarra, 2005, pp.
90-92).

Utilizamos esse excerto para demarcar um campo de estudos, qual seja, as


políticas de igualdade tendo o conceito de igualdade como ideia prático-regulativa
oriunda do feminismo de tradição igualitária, conformando um projeto político coletivo,
tendo as mulheres como sujeito das políticas que transformem as desigualdades de
gênero inscritas na realidade social. Mas, simultaneamente, já indicando uma
responsabilidade do Estado para atuar de frente e alterar essa lógica desigual.
A autora aponta também para a articulação da igualdade e da diferença, o que
exige que enunciemos a articulação de políticas universais e políticas específicas ou de
ações afirmativas, além de termos como pressuposto que as relações de gênero não
devem ser tomadas de modo exclusivo, mas em conexão aos demais eixos de
desigualdades presentes na estrutura social, como classe e raça/etnia, o que torna as
próprias relações entre as mulheres não homogêneas.

Antecedentes históricos das formulações da igualdade


Os avanços da igualdade obtidos no marco político institucional não ocorreram
casualmente. Responderam ao empenho constante das mulheres por transformar uma
realidade que hisotricamente as discriminava. Tanto as políticas de igualdade como as
de equidade (a exemplo das ações afirmativas) são instrumentos de ação do Estado que
se desenham com o objetivo de ultrapassar as barreiras que impedem as mulheres do
exercício e da ampliação de seus direitos. Barreiras essas que têm persistido apesar da
consolidação da igualdade perante a lei. Até a criação das primeiras iniciativas de
políticas para mulheres, já no século XX, o sistema social e político se esquivou de
diversas formas das legítimas aspirações das mulheres por igualdade, desde a

2
Tradução livre da autora.
3

Revolução Francesa.
Com a chegada do Estado do Bem Estar, na Europa e EUA, pós-Segunda Guerra
Mundial, se introduzem um conjunto de medidas que, em princípio, mudam a relação
entre o público e o privado. Os direitos sociais que são a base do Estado do Bem Estar
Social se destinam basicamente às famílias, e não aos indivíduos, como ocorre com a
primeira geração dos direitos de cidadania. Esses direitos sociais se vinculam às pessoas
que tem um posto no mercado de trabalho, fazendo-as responsáveis pelos membros da
família, centrando, no entanto, na figura do homem provedor. Como o restante das
políticas, esse pressuposto gerou medidas que afetou as mulheres, reforçando a
discriminação em que se encontravam, pois acentuaram seu papel na família, ao não
eliminar os obstáculos que no âmbito público e privado as impedia de participar em
igualdade de condições.
Antes que o feminismo disseminasse a consigna de que o “privado é poĺítico”,
uma das marcas da segunda onda do feminismo, que emergiu nos anos 1960, a filósofa
francesa Simone de Beauvoir elaborou as bases dos seus desafios teórico-políticos na
obra clássica O Segundo Sexo, editada em 1949. Os primeiros requisitos, segundo
Beauvoir, para a emancipação das mulheres são a independência econômica e a luta
coletiva. E nesse sentido, o fundamental é a educação para autonomia, ou seja,
educarem-se para a autonomia. A noção de autonomia, na filosofia, advém de sua
origem etimológica grega; significa dar a si mesma a norma ou a regra. Ou seja, a
capacidade de nomeação de seu próprio horizonte de vida.
O marco conceitual da igualdade e da autonomia redefine a noção de cidadania e
a transforma em exercício permamente dos sujeitos em busca de sua expansão, não a
tomando como algo dado de uma vez por todas, mas como um processo que exige
transformações em todas as esferas da vida, questionado a dicotomia público-privado,
tendo o projeto político da igualdade no horizonte.
O sujeito mulher3, elaborado na perspectiva teórico-política do feminismo, ao
desconstruir a ideia clássica de cidadania, ou melhor, ao mostrar que a cidadania se
assentou sobre a exclusão das mulheres, exigiu respostas históricas e apresentou
dilemas teóricos simultâneos.
A noção de sujeito mulher remete, então, à ideia fundamental de que as mulheres
passaram a ser sujeito de direitos, a partir de um processo histórico em que aparecem

3
Ver, principalmente, o histórico desenvolvido por Ergas (1995).
4

coletivamente como um "nós", capazes de articular politicamente seus interesses.


Pressupõe, ainda, a ideia de autodeterminação como modo de enfrentar uma
representação histórica secular de heterodesignação. A constituição histórica desse
sujeito baseia-se, sobretudo, nas práticas coletivas que foram se constituindo. Descarta-
se aqui, desde logo, a ideia de uma essência comum a todas as mulheres, e recupera-se a
ideia de experiências comuns historicamente construídas. A construção da igualdade
como projeto de transformação da sociedade passa pela formação de sujeitos coletivos.
Em meio a diferentes conflitos sociais, mas que ocorrem entrelaçados às
dinâmicas sociais de exploração e dominação, os modos de operação do racismo e
sexismo também vão dando consistência às desigualdades e exclusões na sociedade:

“A classe consubstancia-se em gênero e raça, assim como gênero e


raça são filtrados por posições e relações de classe. A estrutura de
classe que produz e onde se reproduzem os pobres, não é uma
dimensão paralela e, sim, palco das relações de raça e de gênero”
(Castro, 1992, pp. 57-73).

Assim, as estruturas sociais, como problematiza também Saffioti (1992),


apontam para a articulação dos três eixos sociais de desigualdade, quais sejam, as
relações de classe, de gênero e raça/etnia que são configurados como um “novelo” em
que os fios se emaranham e aparecem entretecidos nos processos sociais. Saffioti
explicita que:

“Como gênero é relacional, quer enquanto categoria analítica, quer


enquanto processo social, o conceito de relações de gênero deve ser
capaz de captar a trama das relações sociais, bem como as
transformações historicamente por elas sofridas através dos mais
distintos processos sociais, trama essa na qual as relações de gênero
têm lugar” (Saffioti, 1992, p.187).

A propósito dessa discussão, Saffioti ressalta que "todas as relações humanas,


independente de terem como protagonista homens ou mulheres, são regidas pela
gramática gendrada”. E conclui que:

“A única razão para se privilegiarem as relações entre homens e


mulheres no que diz respeito ao gênero é a preexistência da
desigualdade entre estes dois sujeitos históricos, isto é, um dado da
realidade que antecede o início de qualquer relação concreta entre
eles” (Saffioti, 1992, p. 533).
5

A partir dos marcos referenciais anteriores, pode-se avançar na perspectiva


teórica das relações sociais de sexo (Kergoat, 1996) ou das relações sociais de gênero
(Scott, 1990) indicando que, de acordo com análise de Daniele Kergoat, é necessário
apreender as relações sociais na sua simultaneidade e mostrar, sobretudo, que as
relações de poder não estão confinadas aos espaços institucionais, pois não se observa:

“[a] homologia entre um tal lugar e uma tal relação social: a relação
entre os sexos não se esgota na relação conjugal, mas é ativa no lugar
de trabalho, enquanto a relação de classes não se esgota no lugar de
trabalho, mas é ativa, por exemplo, na relação com o corpo, ou na
relação com as crianças” (Kergoat, 1996, p.23).

No Brasil, a sistematização do conceito de relações de gênero feita por Joan


Scott4 se disseminou e foi uma das principais referências da releitura relacional e
histórica dos estudos sobre as mulheres. O conceito de relações sociais de sexo ocorreu
no Brasil mais vinculado às discussões sobre o mundo do trabalho, ou como situa
Godinho (2007, p. 48), “ou, mais corretamente, à noção de divisão sexual do trabalho
como conceito explicativo - e não apenas descritivo - das desigualdades entre mulheres
e homens”.
As relações sociais de sexo e/ou as relações de gênero apontam para as
construções socialmente e historicamente construídas em todos os âmbitos da vida
social e expressam relações de poder que asseguram a subordinação das mulheres, e
uma hierarquia social estruturante do conjunto das relações na qual o masculino obtém
privilégios, poder e acesso a recursos materiais e simbólicos, portanto, de maior valia
social, do que o feminino.
Godinho considera que a tematização das relações sociais de sexo ressalta que
tais relações são tomadas “como construções sociais que têm uma base material e que
se expressam, nos diversos âmbitos da vida social, um tratamento contraditório
segundo o sexo” (Kergoat, 1996), ao contrário de outras abordagens que tratam as
relações entre homens e mulheres apenas como assimétricas.
Já Scott (1990, p. 14-16) define as relações de gênero como “relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos” e explicita que o gênero é um
modo primordial de “dar significado às relações de poder”. Embora não seja o único

4
O artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, publicado na American Historical Review
(91/5), de dezembro de 1986, foi traduzido no Brasil em 1989 e passou a circular em revista acadêmica
no final de 1990.
6

campo onde o poder é articulado, é um meio persistente e recorrente da eficácia do


poder.
As abordagens téoricas são bastante diversificadas e a apropriação dos conceitos
pode ser feita articulando-se ou não as várias dimensões materiais e simbólicas das
práticas sociais. O denominador comum é que podem ser tomadas por relações
sistêmicas e não resquícios do passado, são recriadas ou repostas em todos os âmbitos,
inclusive no plano das instituições políticas, do mercado e, mais precisamente, do
Estado.
Mais especificamente, as citações visam a embasar a ideia de que a construção
de uma agenda pública de transformação das desigualdades de gênero que estão
inscritas nos diversos espaços sociais passam a ser legitimamente objeto da ação do
Estado, ou melhor, da disputa por políticas públicas a partir dos anos 1980.
Assim, o sujeito político mulheres e suas demandas foram adentrando a pauta
em disputa no Estado em seus diferentes níveis e começaram a fazer parte da construção
da agenda política dos governos com maior ou menor centralidade.

Políticas Públicas para mulheres na perspectiva da igualdade


No Brasil, a agenda de gênero (Farah, 2004) cresceu no período pós-ditadura,
avançando no período posterior à Constituição de 1988. No final da década de 1980,
implantaram-se os primeiros organismos visando articular políticas para mulheres em
governos locais em administrações democrático-populares (Farah, 2004; Godinho,
2007). Farah define a agenda da seguinte forma:

“Entende-se aqui por agenda de gênero a agenda síntese dos temas


priorizados por diversos atores (e atrizes), tendo como eixo as
relações de gênero, não se confundindo com a agenda de nenhum
grupo particular. Reúne, assim, temas e propostas levantados por
mulheres participantes de movimentos populares e temas propostos
pelo feminismo, em suas diferentes vertentes. A agenda de gênero é
um conjunto de temas que podem compor o que Kingdon (1995)
chama de agenda sistêmica ou agenda pública” (Farah, 2004, p.53).

Vale lembrar que nem toda agenda pública é assumida pelos governos. A
incorporação ou não da agenda depende também de compromissos dos governos eleitos,
ou seja, da vontade política de implementar políticas permanentes para as mulheres, das
possibilidades das dirigentes de organismos de políticas para mulheres serem insistentes
em alterar a lógica de fragmentação de políticas da máquina estatal e da disputa política
7

no interior dos governos (Guzmán, 2000; Godinho e Silveira , 2004; 2007).


A criação da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, em nível nacional,
organizou-se efetivamente no Governo Federal, a partir de 2002, ao criar uma estrutura
mínima para a execução de políticas com a nomeação de dirigente com status de
Ministra. Esse organismo demandado pelo movimento de mulheres deu maior impulso
às políticas públicas em diálogo com a sociedade civil, cuja massa crítica foi precedida
por experiências de governos subnacionais nas administrações geridas principalmente
pelo PT, especialmente em São Paulo, que inaugurou as Conferências de Políticas para
Mulheres, em 2002 com espaço público democrático de priorização de pautas
governamentais.
Segundo Farah (2004), não obstante as diretrizes de políticas e formulação em
nível federal, a esfera local, de descentralização das políticas de gênero como locus de
pressões concretas por políticas para mulheres, em diferentes áreas, impulsionou
concretamente a participação no espaço governamental. Uma visão crítica sobre esse
processo a partir dos compromissos dos governos e da auto-organização das mulheres
pode ser encontrada em Godinho (2007; 2008) e Godinho e Silveira (2004).
As tensões teórico-políticas de fundo relativas à ação do Estado no campo das
políticas públicas de gênero se acentuaram nos anos 1990. Além do neoliberalismo que
introduziu a ideologia do Estado mínimo - fator que enfraqueceu a possibilidade de
políticas de caráter universal e introduziu as políticas focalizadas para mulheres
vulneráveis ou excluídas onde se dá, em grande medida, a funcionalização das mulheres
(Farah, 2004; Silveira, 2004) - perde-se a iniciativa de propor políticas que impactem
efetivamente a vida das mulheres e privilegiam-se as políticas para grupos
discriminados específicos, o que pode evidenciar armadilhas a uma pleiteada
transversalidade das políticas públicas de gênero (Bandeira e Bittencourt, 2005), fato
que coincide com o espaço adquirido na academia para os estudos culturais, sobretudo
nos estudos de gênero.
Nesse sentido, a socióloga e filósofa habermasiana Nancy Fraser considera que
uma das falhas da política liberal é proclamar uma igualdade sem procurar 'igualizar' as
condições sociais através de um paradigma redistributivo.
Assim, Fraser analisa que, nos anos 1990, o neoliberalismo deu o tom nas
políticas na relação Estado-mercado e as reivindicações feministas que se ancoravam
numa aposta em direção a um Estado do Bem Estar ficaram na contramão. Surge a
aposta no “reconhecimento das diferenças” e o debate sobre a necessidade de políticas
8

de reconhecimento.
Para Fraser, nesse contexto, os projetos de redistribuição igualitária dos países
do Sul tiveram pouco alcance. Políticas liberais, tais como as políticas de
empoderamento, sem relação com políticas para a autonomia econômica das mulheres,
podem ser vistas como exemplo de práticas e discursos de políticas de gênero, inclusive
no Brasil, que não ultrapassam via de regra a retórica liberal. Essas questões centrais
precisam ser levadas em conta para pensar a construção de alternativas de políticas
públicas para mulheres.
Virgínia Guzmán (2001; 2003) analisando as “instâncias de gênero no Estado”
na América Latina destaca um componente essencial do contexto:

“[A] maioria destes mecanismos de gênero foi criada em conjunturas


extraordinárias que se distinguem pela maior receptividade dos
atores políticos e das autoridades públicas às demandas sociais, o
que permitiu ao movimento feminista e de mulheres atrair a atenção
para suas propostas. Os mecanismos foram criados em momentos em
que houve uma mudança significativa do clima político nacional, em
momentos de alternância parlamentar ou de governo, e/ou sob
pressão de acordos internacionais” (Guzmán, 2003:25).

Essa colocação acima, além de demonstrar o contexto de conformação de


agenda favoráveis às políticas públicas de gênero, demonstra a necessidade da
organização das mulheres para demandar políticas de igualdade ou do ponto de vista
emancipatório (Godinho, 2007) com a finalidade de interferir nas agendas
governamentais.
Godinho chama a atenção para a “capacidade de conflito” das mulheres
organizadas:

“A capacidade de conflito da categoria social mulheres não aparece


imediatamente vinculada às grandes forças em disputa, que estão na
superfície da sociedade capitalista, por não interferirem diretamente
em interesses econômicos claramente identificáveis e mensuráveis.
Seja porque as tarefas da reprodução social, a produção do viver,
permanecem não contabilizadas nas análises e políticas econômicas e
continuam não valorizadas, mesmo que tenham ganhado alguma
visibilidade pela ação do movimento de mulheres; seja porque parte
da plataforma feminista traduz relações não-mercantis, o que os torna
menos capazes de obter sucesso, através da pressão que possam
exercer” (Godinho, 2007, p.38).

Quando as políticas para mulheres se apoiam numa visão apenas de


9

vulnerabilidade ou reparação, e não da defesa de uma cidadania autônoma (Godinho,


2007), podem-se traçar políticas que não ampliem as possibilidades econômicas das
mulheres, ou ainda, fica-se no nível socialmente aceito dentro do aparato estatal,
restringindo-se às políticas de combate à violência contra mulheres.
Para aproximarmos essa reflexão de uma demanda antiga, porém fundamental,
do movimento de mulheres, numa necessidade legítima de política pública e de grande
eficácia e efetividade quando impulsionada, toma-se aqui o exemplo dos estudos de Sorj
(2008) sobre a repartição das tarefas de cuidados familiares. Sorj, analisando as
políticas públicas e as responsabilidades com os cuidados familiares que
sobrecarregaram as mulheres aponta, como parte da solução, o impacto de políticas
públicas de educação infantil sobre a participação das mulheres no mercado de trabalho
a partir da perspectiva da autonomia e da independência econômica das mulheres:

“As mães de crianças em creche têm uma taxa de participação no


mercado de trabalho maior do que as mulheres cujos filhos não têm
acesso à educação infantil. Essas mães conseguem trabalhar mais em
relação àquelas cujos filhos estão em casa, bem como recebem
salários superiores. O emprego formal também se torna mais
provável quando os filhos estão na creche ou pré-escola.
Evidencia-se, assim, que a educação infantil é um mecanismo
eficiente de articulação entre família e trabalho, (...) podemos
sustentar que o acesso à educação infantil tem amplo potencial não só
para promover um trabalho mais bem remunerado das mães como
também para inseri-las em ocupações de qualidade” (Sorj, 2008,
p.88).

Outro debate central para o sucesso das políticas para a igualdade de gênero: a
noção de transversalidade de gênero nas políticas públicas tem sido objeto de debate e
sua defesa resultou em diretriz para os Estados a partir da Conferência Mundial para
Mulheres da ONU, em 1995, que ficou conhecida como “gender mainstreaming”. Em
que pese a legitimidade dessa elaboração para a implementação de políticas em todas as
áreas de governo, e não apenas como políticas confinadas a uma área específica nas
estruturas governamentais, a pouca efetividade de políticas nessa direção tem sido um
dilema a ser enfrentado (Ferreira, 2000) pelas gestoras no Estado.
Bandeira e Bittencourt (2005) analisaram os desafios concretos à
transversalidade na medida em que mostraram que as políticas não alcançaram reduzir a
pobreza das mulheres, sobretudo na América Latina e Brasil, evidenciando que a noção
de transversalidade de políticas públicas de gênero, que implicariam a intersetorialidade
10

das políticas, inclusive deveriam adentrar nos espaços relativos às políticas econômicas
e de mercado de trabalho. Por isso, a transversalidade deveria levar em conta também a
necessidade de alcançar um impacto redistributivo, o que permanece, no entanto, um
desafio crucial.
A proposta de construção de políticas públicas de gênero se baliza na
perspectiva de construção da autonomia econômica das mulheres e em uma relação com
políticas públicas que contextualizem o plano local no horizonte de alternativas que
desconstruam os tradicionais padrões excludentes e de divisão sexual do trabalho
tradicionais, e apontem na direção de políticas que tomem as mulheres como sujeitos
das políticas e que objetivem lançar raízes permanentes para a implantação de políticas
sustentáveis a partir do diálogo com espaços autônomos de articulação das mulheres.
A produção de diretrizes de alternativas de políticas para mulheres deverão, no
mínimo, refletir sobre um campo de possibilidades de sobrevivência e de
reposicionamento do trabalho das mulheres e que leve em conta o ponto de vista do
avanço para uma cidadania menos fragilizada e mais crítica das mulheres. Os estudos
propostos devem preocupar-se em levantar experiências realmente existentes que sejam
exemplares para contextos locais e que possibilitem uma abertura para sua disseminação
segundo os parâmetros avaliados como prioritários e segundo a temática.
Nesse sentido, mostra-se interessante também consultar os critérios de bancos de
experiências de políticas públicas de gênero de governos locais. Para tanto, o banco de
projetos da Fundação Getúlio Vargas (FGV) na área de Gestão Pública e Cidadania
propõe-se a classificar experiências consideradas inovadoras e abertas à disseminação,
sobretudo em relação a governos subnacionais com os seguintes critérios:

(i) Relevância: ou seja, o nível em que a prática seja adequada às prioridades do


grupo receptor ou destinatário;
(ii) Impacto: obteve melhoras tangíveis nas condições de vida nas distintas esferas
temáticas;
(iii) Associação: incluiu a colaboração de entidades que estejam articuladas
organicamente;
(iv) Sustentabilidade: propõe-se a introduzir mudanças duradouras que assegurem
que as ações se mantenham no tempo;
(v) Liderança e fortalecimento da comunidade: reforça as redes sociais e de
participação;
11

(vi) Gênero e inclusão social: iniciativas que aceitam e respondam à promoção da


igualdade em meio à diversidade de situações dos segmentos sociais em análise;
(vii) Inovação no contexto local: iniciativas que são inovadoras e que se busque a
difusão da experiência;
(viii) Transferência: impacto tangível de transferência, isto é, se gerou alguma
replicação da experiência.

O Programa Gestão Pública e Cidadania da FGV preocupa-se, além da


disseminação de políticas públicas, com o objetivo de iluminar experiências que se
diferenciem do padrão habitual e se centrem em buscar processos com sujeito e abertura
do poder local a iniciativas não governamentais.
Experiências de políticas com impacto no espaço local deve enfatizar também a
inovação, cujo aspecto central é a busca de resposta a um desafio ou a um problema
como parte de um repertório de alternativas a serem consideradas por aqueles que têm
problemas similares (Farah, mimeo, 2006). As iniciativas de políticas com recorte de
gênero classificadas no programa acima citado procuram inovar para fazer frente à
escassez de recursos destinados às mulheres enquanto sujeito das políticas.
Finalizando, a formulação de planos de igualdade acompanhado de destinação
orçamentária às políticas públicas de gênero colocam as políticas públicas para as
mulheres em outro patamar.

Referências Bibliográficas
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BANDEIRA, Lourdes e BITTECOURT, Fernanda. “Desafios da transversalidade de
gênero nas políticas públicas brasileiras” em Muniz, D. E Swain, Tania N (orgs).
Mulheres em Ação. Florianópolis: Ed,. Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2005.
CASTRO, Mary e Lavinas, Lena. “Do feminino ao gênero: A construção de um objeto”.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo, (1949) Rio de janeiro: Civilização
Brasileira, 1969.
ERGAS, Y. “O sujeito mulher. O feminismo dos anos 1960-1980”. THÉBAUD, F.
(org.) História das Mulheres: o século XX. Vol.5. Porto: Afrontamento. 1995.
FARAH, Marta F. S. Gênero e Políticas Públicas. Estudos Feministas, 12, jan-abril/04,
Florianópolis: UFSC, 2004.
FERREIRA, Virgínia. A globalização das Políticas de igualdade entre os sexos.
12

Godinho, T. e Silveira, M.L. (orgs). Políticas Públicas e Igualdade de Gênero. São


Paulo: Coordenadoria da Mulher/PMSP. 2004.
GODINHO, Tatau. Estrutura de Governo e Ação Política Feminista. A experiência do
PT na Prefeitura de São Paulo. Tese de doutorado. São Paulo: PUC. 2007.
GODINHO, T. e SILVEIRA, M.L. Políticas Públicas e Igualdade de Gênero. São
Paulo: Coordenadoria da Mulher, PMSP, 2004.
GUZMÁN, Virginia. “A equidade de gênero como tema de debate e de políticas
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GUZMÁN, Virginia. La institucionalidad de género em el estado: nuevas perspectivas
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KERGOAT, D. (1996) Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. (0rgs)
Lopes, M.; Meyer, D.; Waldow, VOL. Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas.
SCOTT, Joan. 1990. Gênero: uma categoria útil de análise Histórica. Educação e
realidade. Porto Alegre, vol.16, n°2, jul/Dez.1990.
SAFFIOTI, H. I. B. "Rearticulando gênero e classe social". Costa, A. e Bruschini, C.
(orgs). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos e São Paulo:
Fundação Carlos Chagas, 1992.
SORJ, Bila. O trabalho Doméstico e de Cuidados: Novos Desafios para a Igualdade de
Gênero no Brasil. Silveira, M. L. E Tito, N. (orgs). Trabalho Doméstico e de Cuidados:
Por outro paradigma de sustentabilidade da vida humana. São Paulo: SOF, 2008.
1  
 
Igualdade de Gênero e Políticas Públicas1
Maria Amélia de Almeida Teles – União de Mulheres de São Paulo

“As mulheres são diferentes. Assim como também os homens são


diferentes. Isto seria suficiente para ambos receberem um tratamento
justo e harmonioso. No entanto, usam as diferenças para justificar o
tratamento de desigualdade e injustiça para com as mulheres.” –
Maria Amélia de Almeida Teles.

Introdução
O conceito de gênero, com o sentido político de reconhecer e buscar ações
concretas para corrigir e erradicar as relações desiguais de poder entre os sexos, emerge
a partir do princípio de que há uma distinção entre a dimensão biológica (natural), que
se refere ao sexo, e a construção social do que é ser mulher ou ser homem. Mulheres e
homens são fruto da realidade social e política. Não é a natureza humana que determina
as desigualdades existentes entre os sexos, como salários menores, sub-representação
política ou a violência cotidiana contra as mulheres.
A categoria social de gênero na sua acepção antropológica rompe com a
naturalização das desigualdades e repudia o determinismo biológico que mascara e
justifica a discriminação social, econômica e política contra as mulheres. As relações
sociais e as representações de gênero variam conforme o sistema político-social dos
povos, mas também, dentro de uma mesma sociedade, variam de acordo com a classe
social, cor/raça/etnia, a faixa etária e a orientação sexual. O uso do conceito de gênero
torna possível perceber e compreender o significado político-social das relações sociais
entre mulheres e homens, entre mulheres e mulheres e também entre homens e homens.
Com o uso de gênero, compreende-se que estas relações criam e reforçam as
desigualdades de poder, o que afeta a realização pessoal, profissional, social e política.
Por outro lado, com o uso de gênero compreende-se que é possível mudar esta situação
desde que se busque construir ações, medidas e políticas que venham a desnaturalizar as
desigualdades e, ao mesmo tempo, a criar oportunidades e condições para o

                                                                                                                       
1
Texto baseado na aula de fechamento do curso Igualdade de Gênero, promovido pela Escola do
Parlamento e coorganizado pela União de Mulheres de São Paulo. A aula, ministrada pela autora, ocorreu
no dia 05 de setembro de 2013, nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo.
2  
 
empoderamento2 das mulheres de modo a torná-las protagonistas de suas próprias vidas
e histórias.
Com isso, pretende-se dizer que são fundamentais as políticas públicas para
reestabelecer novas relações de gênero, igualitárias e justas, uma vez que não é natural,
nem justo, tamanha discriminação contra as mulheres.

Políticas públicas sob a perspectiva de gênero

“Todas as políticas públicas afetam as mulheres mas nem todas são


afetadas da mesma maneira. A ausência de políticas de
igualdade/equidade de gênero traz prejuízos às mulheres
principalmente as mais pobres”- Maria Amélia de Almeida Teles.

Quando se fala em políticas públicas sob a perspectiva de gênero, entende-se que


a expressão significa um conjunto de ações, medidas, serviços e recursos que
constituem elementos estratégicos para garantirem a efetivação e a implementação de
diagnósticos das desigualdades e para o planejamento de intervenções adequadas, com
orçamento capaz de desenvolver as atividades programadas, com o acompanhamento
dos movimentos sociais interessados e com a avaliação frequente e profunda para
propor mudanças e possíveis correções.
O Estado Brasileiro assinou e ratificou (reconheceu como legislação interna)
convenções de direitos humanos das mulheres, o que o obriga a implementar políticas
públicas no sentido de eliminar todas as formas de discriminação e de violência contra
as mulheres3. Há ainda um conjunto de direitos constitucionais que reconhecem
juridicamente a igualdade de direitos entre mulheres e homens (por exemplo, a
Constituição Federal de 1988). Portanto, há um arcabouço político-jurídico suficiente
para garantir a implementação e a efetivação de políticas públicas de equidade de
gênero.
As políticas públicas de equidade de gênero devem ser pautadas por princípios que irão
viabilizar o exercício de direitos e o protagonismo das mulheres. São os princípios de
                                                                                                                       
2
Empoderamento (ou desempoderamento) trata-se de um neologismo que passou a ser usado tanto pelos
movimentos feministas como também pelos formuladores de políticas, após a IV Conferência
Internacional sobre a Mulher, promovida pelas Nações Unidas, em Beijing (China), em 1995.
3
(i) “Convenção para Eliminar Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher”, aprovada nas
Nações Unidas em 1979 e ratificada pelo Brasil com reservas, em 1984, sendo que, em 2004, passa a ter
status constitucional, com a Emenda Constitucional no. 45; (ii) “Convenção Interamericana para Punir,
Prevenir, Erradicar a Violência Contra a Mulher”, aprovada pela OEA (Organização dos Estados
Americanos) em 1994 e ratificada pelo Brasil em 1995. Para mais detalhes vide Teles, 2006, p. 19.  
3  
 
igualdade e respeito à diversidade, de equidade, de autonomia das mulheres, de
laicidade do Estado, de justiça social, de transparência dos atos públicos e de
participação e controle social.
Há políticas públicas de caráter permanente como a instituição de creches, como
o direito das crianças pequenas à educação ou de saúde das mulheres. Em quaisquer
circunstâncias, ou seja, em qualquer tipo de sociedade, deve-se garantir que as crianças
pequenas sejam educadas e cuidadas, assim como as mulheres tenham acesso às
políticas de saúde.
Outras políticas são de caráter provisório, tais como as ações afirmativas. Essas
são medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado - de modo
geral, compulsoriamente - com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente
acumuladas e de garantir condições e oportunidades igualitárias. Devem também ter o
caráter compensatório pelas perdas causadas pela discriminação e marginalização em
decorrência das desigualdades históricas de gênero, raça/etnia, dentre outras. Assim são
consideradas as políticas de cotas que exigem a participação igualitária da representação
política das mulheres ou a criação de delegacias especiais para o atendimento de
mulheres de modo a oferecer acolhimento e orientação adequados. Há uma perspectiva
de que sejam superadas essas situações de discriminação. E, ao serem superadas, não
haveria mais necessidade de tais políticas e ações de caráter afirmativo.
As políticas públicas sob a perspectiva de gênero promovem a justiça social nas
mais diversas áreas da vida e do trabalho das mulheres para que sejam, de fato, não só
superadas as desigualdades históricas, como também seja liberada a força
impulsionadora que deverá emergir das mulheres para a construção de uma sociedade
justa e humana.
A participação das mulheres na elaboração e na formulação das políticas
públicas deve ser garantida em todas as fases do processo: no diagnóstico, no
planejamento, na implementação e efetivação, na avaliação e reformulação/alteração do
plano executado. As demandas podem ter uma resposta rápida, eficiente, de acordo com
as necessidades reais relativas aos direitos de trabalho, de saúde integral em todas as
fases da vida - incluindo a garantia de seu direito de ser ou não ser mãe, sem ferir sua
dignidade -, e de uma educação não sexista, que contemple uma formação intelectual
capaz de atender as diversas áreas do mercado de trabalho e do bem estar pessoal e
social das mulheres.
4  
 
Com um corpo de políticas permanentes (estruturantes) implementadas, sem
dúvida, ocorrerá o empoderamento das mulheres que passarão a ter mais autoconfiança,
a elevar sua autoestima e a se tornar protagonistas de uma vida com autonomia e
independência. Ainda que seja necessária, por um longo tempo, a utilização de políticas
temporárias, como as que devem atender as mulheres em situação de violência – por
exemplo, delegacias de polícia, defensorias públicas, juizados de violência doméstica e
familiar, casas-abrigo, redes multidisciplinares de atendimento, acolhimento, orientação
e reparação.
Se a violência de gênero for entendida como não natural, mas sim fruto de um
longo aprendizado que construiu socialmente a supremacia masculina e a
desvalorização das mulheres, é possível criar novas formas de convivência de modo a
mudar as relações entre os sexos, tornando-as mais igualitárias e sem violência. Assim,
mulheres poderão ter uma vida sem violência de gênero quando tiverem condições e
liberdade para exercer o direito de escolha (em relação à maternidade, ao trabalho, à
sexualidade, entre outras áreas da vida), de serem sujeitos políticos, donas de suas vidas,
de suas opiniões e de suas decisões. As mulheres irão recuperar a credibilidade, serão
ouvidas e a violência deixará de ser banalizada.
Há de se combinar com empenho e eficiência as políticas estruturantes da
sociedade com as políticas temporárias e imediatas. Dada a complexidade das políticas
e seu caráter emergencial, há de se cuidar para que não sejam tomadas iniciativas que
tenham um efeito apenas midiático, sem, contudo, contribuir efetivamente para
promover mudanças concretas e necessárias para a vida das mulheres. Há de se cuidar
para que tais iniciativas não passem de uma falácia sem sentido, um faz de conta, que
não haja simplesmente repasse dos serviços que deveriam ser de responsabilidade do
Estado para entidades privadas, não garantindo a execução de políticas efetivas. É
necessária a participação dos movimentos sociais comprometidos com a cidadania das
mulheres, bem informadas para serem capazes de perceber possíveis falhas e terem
força política para uma articulação ampla com representantes do Estado e também com
o poder de articular e agir com outros movimentos aliados.
O capitalismo neoliberal, ao reduzir o papel social do Estado e, ao mesmo
tempo, manter o sistema de exploração e opressão, cria mecanismos mascarados como
se fossem inovadores, mas que, na realidade, aumentam as responsabilidades/deveres
das mulheres sob a alegação de se dar um tratamento de autonomia e liberdade. Assim,
5  
 
tornam precárias suas condições de trabalho. Por exemplo, apenas 35,5% de
trabalhadoras inseridas no mercado de trabalho têm carteira assinada. Não são
oferecidos equipamentos sociais (como creches, restaurantes e lavanderias populares)
que possam reduzir seu trabalho doméstico e de cuidados de forma a lhes garantir o
direito ao descanso, lazer e recuperação de suas energias.
Tornou-se frequente a imposição de políticas públicas de caráter familista que
trata a família como um grupo homogêneo e abstrato, sem considerar as desigualdades
existentes entre os integrantes da família, dando assim invisibilidade para a condição
das mulheres, a mais desigual dentro da unidade familiar. Outro aspecto a ser destacado
é a interferência desastrosa das igrejas na formulação e na implementação de políticas
públicas. As igrejas querem que o Estado desconsidere os avanços conquistados pelas
mulheres, e insistem em tratá-las como inferiores, incapazes e objetos. Daí a
necessidade de se reafirmar a laicidade do Estado e seu caráter democrático. As
mulheres não são obrigadas a usar todos os direitos obtidos democraticamente, mas
também não são obrigadas a abrir mão de seus direitos e de sua cidadania devido às
pressões de grupos religiosos.
As políticas públicas de igualdade de gênero são frutos da participação das
mulheres na tomada de decisões e inclusive na representação do poder político e
econômico. É um longo caminho que as feministas percorreram, e ainda percorrem,
desde a luta pelo sufrágio feminino no século XIX até meados do século XX.
Ainda nos dias atuais, as mulheres estão sub-representadas na política. Temos
uma Presidenta da República, Dilma Roussef, pela primeira vez na história política do
país. No entanto, segundo os dados eleitorais, apresentados pelo TSE – Tribunal
Superior Eleitoral, em 2012, nas eleições municipais, em todo o país, as mulheres
representaram a terça parte do total de 448.771 candidatos, ou seja, elas foram 30,702%,
o que quer dizer que houve 137.783 candidatas. Enquanto houve 310.783 homens
candidatos, ou seja, 69,298%. A desproporcionalidade é muito significativa. As
dificuldades históricas que obstaculizam a participação das mulheres permanecem ainda
como um fator que impede o avanço. E isto reforça a reprodução das desigualdades
entre os sexos e compromete o desenvolvimento da democracia. No que se refere ao
âmago do poder, as decisões políticas tomadas são feitas num espaço majoritariamente
masculino.
6  
 
A situação não é exclusiva do Brasil. Layli Miller, advogada da Tahirih Justice
Center (EUA), alerta que:

“... mantendo a taxa de progresso atual, as mulheres chegarão à


igualdade com os homens, em relação à tomada de decisão, no ano de
2465, de acordo com os dados do Fundo dos Estados Unidos por uma
Maioria Feminista. As Nações Unidas têm uma data ainda posterior e
estimam que as mulheres não chegarão à igualdade com os homens,
em relação à decisão, até o ano 2490.” 4

Antecipar a data prevista por estes estudos é o caminho mais prático e eficiente
para atingirmos uma democracia com transformações substantivas, em qualidade e
quantidade, tanto nos espaços públicos como domésticos. Para isto há muito que fazer.
Portanto, mãos à obra! A discriminação das mulheres é uma questão política que
demanda uma maior participação da sociedade e do Estado na concretização de
soluções.

Referências Bibliográficas

TELES, Maria Amélia de Almeida. Os Cursos de Direito e a Perspectiva de Gênero,


Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2006.

                                                                                                                       
4
Fala de Layli Miller em conferência no Brasil sobre a participação política, em 2002, na Secretaria de
Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo.
1  

Desigualdades de Gênero: direitos humanos e políticas públicas no enfrentamento


da violência contra a mulher

Renata Porto Bugni1

O fim da Segunda Guerra Mundial em 1945 trouxe novos olhares e perspectivas


aos Estados Nacionais, principalmente no que tange aos direitos humanos dos povos. A
criação, naquele ano, da Organização das Nações Unidas (ONU) iniciou o processo de
construção de um consenso internacional sobre a existência de um mínimo de direitos a
serem respeitados. Em 1948, a ONU lançou a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, um marco histórico na luta pela igualdade, liberdade e pela dignidade da
pessoa humana. Os Direitos Humanos (DH) tratavam da conjunção dos direitos sob a
tríade da universalidade, da interdependência e da indivisibilidade, com direitos e
deveres a serem cumpridos em busca de uma sociedade mais justa e igualitária.
Proclamações de DH ganharam espaço por todo o mundo, e imprimiram aos Estados
Nacionais a obrigação de garanti-los em âmbito interno.
Desse contexto, surgiram diversas Conferências e Convenções Internacionais,
assim como novos Sistemas Regionais de DH, complementares ao Sistema Global,
como o caso do Sistema Interamericano de Direitos Humanos - vinculado à
Organização dos Estados Americanos (OEA) - e à Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH). A Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993) é um
exemplo importante, pois consolida o caráter universal dos DH e das liberdades
fundamentais, alavancando o processo de especificação dos sujeitos de direitos. Nesta
Conferência, foram, formal e literalmente, reconhecidos os direitos humanos das
mulheres:
“Os DH das mulheres (...) constituem uma parte inalienável, integral
e indivisível dos DH universais. A participação plena das mulheres,
em condições de igualdade na vida política, civil, econômica, social e
cultural, aos níveis nacional, regional e internacional, bem como a
erradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo,
constituem objetivos prioritários da comunidade internacional. (...)
Os DH das mulheres deverão constituir parte integrante das
atividades das Nações Unidas no domínio dos DH, incluindo a
promoção de todos os instrumentos de DH relativos às mulheres.”
(CEDIN, 1993, Art.18)

                                                                                                                       
1
A autora participou como aluna do Curso Igualdade de Gênero, promovido pela Escola do Parlamento e
coorganizado pela União de Mulheres de São Paulo. O curso, composto de dez aulas, ocorreu nas
dependências da Câmara Municipal de São Paulo entre os dias 06 de agosto e 05 de setembro de 2013.  
2  

Em princípio, conforme afirma Piovesan (2004), “o processo de


internacionalização dos direitos da mulher se inicia com o processo de
internacionalização dos direitos humanos” em 1948 na ONU, já que a condição de
pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos. Entretanto, apenas no último
quarto do século XX é que se inicia o processo de especificação de certos sujeitos de
direitos, reconhecendo não apenas o direito à igualdade, mas também o direito à
diferença e à diversidade, estruturados por convenções, como a das crianças, das
minorias étnicas e das mulheres. A Conferência de Viena, portanto, promove maior
visibilidade ao tema.
Um marco importante desses sistemas especiais de proteção a direitos, para as
mulheres, foi a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
contra a Mulher (Convenção CEDAW), de 1979, no âmbito das Nações Unidas.
Ratificada no Brasil em 1984, descreveu as medidas necessárias a fim de suprimir essa
discriminação em todas as suas formas e manifestações, as assimetrias de poderes entre
homens e mulheres, relações público e privado e a necessidade de igualdade de direitos.
O segundo marco, e com especial destaque, é a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como “Convenção
de Belém do Pará”, adotada pela OEA em 1994 e ratificada posteriormente pelo Brasil,
que trata de forma inédita e específica da violência contra a mulher, define conceitos e
tipos de violência. Ratifica e amplia a Conferência Mundial de DH de Viena, assim
como apresenta recomendações para a ação e compromissos dos governos para avançar
nessa temática, conseguindo representar o esforço do movimento feminista
internacional para dar visibilidade ao tema.
Outro marco internacional de extrema relevância foi a IV Conferência Mundial
sobre a Mulher, conhecida como Conferência de Beijing, em 1995. Estiveram presentes
representantes de 189 países que adotaram a Declaração e Plataforma de Ação de
Beijing, que recomendava a adoção de medidas apropriadas a eliminar os obstáculos de
participação da mulher em todas as esferas da vida pública e privada, bem como adotar
medidas até o ano 2000 (Beijing+5) com o intuito de erradicar a discriminação e a
violência contra mulheres e meninas por qualquer pessoa, organização ou empresa,
fomentando a criação de mecanismos de coordenação nacional de intercâmbio de
informações.
3  

Na análise de Piovesan (2004, p.51), duas contribuições importantes para o


âmbito jurídico foram respaldadas neste processo: a compreensão de que tanto os
direitos civis e políticos como os direitos econômicos, sociais e culturais são necessários
para a promoção e proteção dos DH; e o fim da dicotomia entre o público e o privado,
em que a violação da dignidade da pessoa humana no âmbito privado passa a não ser
mais tolerado, encerrando o ciclo de naturalização e invisibilidade das atrocidades
ocorridas no interior da família.
Tais referências internacionais na área de DH encontraram grande repercussão
em toda a América Latina a partir dos anos 1980. Os países viviam um momento de
redemocratização e de profundas mudanças sociais, processos pós-ditaduras militares,
que abriram espaço para o debate e a incorporação de direitos internacionais e para a
elaboração e o avanço dos direitos fundamentais das minorias. Os direitos previstos nas
convenções de CEDAW e de Belém do Pará, bem como as recomendações da
Declaração de Beijing, ganharam status de norma constitucional no Brasil, passando a
fazer parte do ordenamento jurídico do país. A América Latina, na área da legislação, é
a região em que se registraram os avanços mais importantes no combate à violência
contra a mulher, é a única região que conta com uma Convenção específica orientada à
sua prevenção, sanção e erradicação.

“América Latina y el Caribe es una de las regiones del mundo que


mayor atención ha prestado a la lucha contra la violencia hacia la
mujer. (...) es indispensable reconocer que la lucha contra la
violencia hacia la mujer recorrió un largo trayecto de construcción de
redes sociales y tramas institucionales que han implicado la
reformulación de marcos jurídicos, la creación de normas e
instituciones, el diseño de metodologías, la capacitación de
operadores de políticas, la sensibilización de los medios de
comunicación y un permanente debate para incorporar a múltiples
actores en la prevención y erradicación de este flagelo calificado
como una violación a los derechos humanos.” (CEPAL, 2002, p.11)

A adoção de leis nacionais e o desenvolvimento de planos nacionais para a


erradicação da violência contra a mulher, no Brasil, contou com os esforços de
articulações intersetoriais e, principalmente, com a colaboração da sociedade civil.
Estudos mostram o alto grau de aceitação social e o reconhecimento da violência como
problema social (CEPAL, 2002, p.17). Desse processo deflagram ações para a criação
de políticas públicas sociais de atenção especial à mulher. Em consonância à adoção da
4  

perspectiva de DH, os novos desafios na gestão pública dos países latino-americanos


passam a inserir essas novas delineações e determinações às políticas públicas.
Na jurisdição brasileira, a Lei Maria da Penha, promulgada em 2006, trata das
diversas formas previstas de violência contra a mulher. A violência física é apenas uma
delas; existe a violência psicológica; a violência sexual; a violência
patrimonial/econômica; e ainda a violência moral; determinadas e contempladas na Lei
Maria da Penha (Art.7º). A violência doméstica e familiar contra a mulher é definida
como “toda e qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”, praticado por
pessoa (homem ou mulher) com quem a ofendida (somente a mulher) conviva no
âmbito da unidade doméstica; no âmbito da família ou em qualquer relacionamento
íntimo de afeto atual ou já encerrado (Lei nº 11.340/06 - Art.5º).
Sabemos que o Brasil hoje ocupa a sétima posição no cenário internacional em
taxas de homicídio feminino, chegando a 4,4 homicídios em 100 mil mulheres, segundo
o Mapa da Violência (WAISELFISZ, 2012). O local de residência da mulher é onde
preponderam as situações de violência contra a mulher: “71,8% dos incidentes
acontecendo na própria residência da vítima, permite entender que é no âmbito
doméstico onde se gera a maior parte das situações de violência vividas pelas mulheres”
(WAISELFISZ, 2012, p.18). Os maiores índices da agressão de mulheres já adultas
apontam pessoas conhecidas como responsáveis pela agressão, liderando o ranking o
cônjuge da mulher, seguido do ex-cônjuge. A violência física é a preponderante,
abarcando 44,2% dos casos, seguida da psicológica, com cerca de 20%, e da sexual,
com aproximadamente 12%. Esses dados indicam claramente a desigualdade e a
vulnerabilidade das mulheres na sociedade, advertem para os elevados níveis de
tolerância da violência contra as mulheres até hoje, apontam a insuficiência das atuais
políticas públicas e, portanto, deixam exposta a necessidade de elaborar estratégias mais
efetivas de prevenção e de redução dessa situação.
A origem da violência contra a mulher é muito antiga e faz parte do imaginário
latino-americano há séculos. Segundo Eva Blay (2003), várias razões mantém a alta
frequência de violências contra a mulher, sendo, a principal delas, a persistente cultura
de subordinação da mulher ao homem, que configura uma cultura machista e patriarcal
que inviabiliza a compreensão de que os Direitos das Mulheres são DH e não cria reais
mecanismos de políticas públicas transversais para modificar essa situação.
5  

A cultura patriarcal reside na compreensão das relações sociais entre homens e


mulheres como uma relação desigual, de opressão, que mescla dominação e exploração
da categoria feminina pelos homens. De acordo com Saffioti (2004), o patriarcado se
baseia no controle e no medo, constituídos de atitudes e sentimentos que formam um
círculo vicioso, que perpassa todas as áreas da convivência social, ganhando terreno e se
tornando invisível, corporificando-se nos agentes sociais tanto de um polo quanto de
outro da relação de dominação-subordinação. O patriarcado “Se trata de un sistema de
dominación masculina enraizado en las normas sociales, culturales, em las estructuras
políticas y jurídicas, en las economías locales y globales que requiere de la violência
como dispositivo real y simbólico para el disciplinamiento de las mujeres.” (CEPAL,
2010, p.14). Para compreender essa relação utilizaremos o conceito de gênero, que situa
melhor as condições das relações entre homens e mulheres.
O conceito de gênero, na América Latina, alastrou-se rapidamente na década de
1990, ressaltando o gênero como categoria analítica e categoria histórica, que se
constrói e se reconstrói juntamente com as novas maneiras de articular relações de
poder: “Gênero diz respeito às representações de masculino e do feminino, a imagens
construídas pela sociedade a propósito do masculino e do feminino, estando estas inter-
relacionadas” (SAFFIOTI, 2004, p.116). A categoria gênero é, certamente, mais ampla
do que a de patriarcado, compreendendo, desta forma, que “o patriarcado é um caso
específico de relações de gênero” na atual sociedade (SAFFIOTI, 2004, p.119). Essa
análise aponta para as duas categorias de sexo como desiguais hoje, e não apenas
diferentes.
A violência deriva dessa relação desigual, da primazia masculina, da
naturalização e da invisibilidade desse poder social:

“Os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao


longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia,
induzem relações violentas entre os sexos e indica que a prática desse
tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim do processo de
socialização das pessoas” (SANTOS e IZUMINO, 2005, p. 9).

Compreende-se a violência contra a mulher como constitutiva das relações entre


homens e mulheres na fase histórica da ordem patriarcal de gênero ainda em curso.
Utiliza-se, de acordo com essa explanação, o termo mais geral violência de gênero,
violência perpetrada sobre o sexo feminino e condicionada pelo atual contexto de
6  

desigualdade de poder entre as categorias de sexo. De acordo com a Relatoria Especial


da ONU sobre a temática:

“La violencia contra las mujeres es la expresión brutal de la


discriminación de género, tiene su origen en el espacio doméstico y se
proyecta a la esfera pública. Constituye un dispositivo eficaz y
disciplinador de las mujeres en su rol subordinado y es por tanto un
componente fundamental en el sistema de dominación, no un mero
acto de abuso individual.” (CEPAL, 2010, p.14).

O Estado brasileiro reconhece que a violência doméstica/intrafamiliar contra a


mulher deixa de configurar um problema privado e, portanto, particular da família, para
se tornar um problema de ordem pública, que exige do Estado a adoção de medidas nos
diversos níveis de governo – federal, estadual e municipal – e nas mais diversas áreas de
atuação – justiça, segurança pública, saúde, assistência social, educação, trabalho e
habitação. As Políticas Públicas dessa área precisam focar tanto a prevenção como o
enfrentamento da violência, atuando com equipes multidisciplinares através do trabalho
em rede das diversas instituições contempladas para este objetivo.
O relacionamento e as agressões não são lineares, mas fazem parte de um ciclo
de violência, definido em três fases contínuas: inicia-se com a evolução da tensão, segue
com a explosão e o incidente da agressão, recaindo à terceira fase de comportamento
gentil e amoroso. Retorna-se à fase um, como um círculo contínuo (Cartilha MPSP,
2012). Romper este ciclo e deixar uma relação violenta é um processo longo e difícil,
que muitas vezes leva anos para se completar. Por isso a importância da construção de
políticas públicas, que trabalhem sobre a prevenção dessa violência, “empoderando”
mulheres de seus direitos, que divulguem os serviços de atendimento à mulher e que
punam quem cometa tais crimes.
Ainda assim, após tantos avanços nas duas últimas décadas no país, com leis
específicas, apoio internacional, jurisdição em defesa da mulher, dentre outros, existem
grandes obstáculos para a erradicação ou diminuição da violência de gênero. Em se
tratando dos direitos das mulheres, numa sociedade regida pelos interesses patriarcais,
não basta assegurar os direitos na forma de lei. É preciso criar condições e mecanismos
para que, na ação política, o direito já declarado se transforme em direito real, em
benefício das mulheres em situação de violência. São apontados números insuficientes
7  

de serviços públicos à disposição das mulheres somados ao sentimento de impunidade


dos agressores:
“[d]estacam-se três obstáculos ao acesso da mulher, vítima de
violência, à justiça: (a) a demora na prestação jurisdicional,
especialmente no que toca à violência doméstica; (b) a inexistência de
garantias processuais e de serviços sociais a mulheres vítimas de
violência; e (c) a ausência de uma cultura inspirada na igualdade de
gêneros. Estima-se que 70% das denúncias criminais de violência
doméstica contra mulheres [no Brasil] são suspensas,
impossibilitando-se uma conclusão do processo, e que apenas 2% das
denúncias criminais tocantes a essa forma de violência chegam à
condenação do agressor” (PIOVESAN, 2004, p.58).

Entretanto, esse não é um problema restrito ao Brasil. De acordo com a CEPAL


(2010, p.18), as reformas processuais penais implementadas no início deste século nos
países da região latino-americana apresentaram problemas de garantia de acesso à
justiça de mulheres vítimas de violência. Estudos da CIDH identificaram que a maioria
dos casos não são formalmente investigados, julgados e sancionados pelos sistemas de
justiça nacionais, o que determina uma sensação de insegurança nas mulheres e uma
constante desconfiança na justiça. Entre os problemas detectados na aplicação das leis
elaboradas nos respectivos países, destaca-se a insuficiência e a inadequação dos
mecanismos que permitiriam verificar o cumprimento das sanções.
Mesmo após os avanços no sistema internacional de DH e as iniciativas
nacionais de políticas públicas e legislações que objetivam a erradicação das
desigualdades de gênero, e, em específico, o enfrentamento à violência contra a mulher,
enormes são os caminhos a percorrer e as barreiras sociais a superar para que o atual
cenário seja modificado. Os desafios são internacionais, e a luta das mulheres,
cotidiana.

Referências Bibliográficas
BLAY, Eva Alterman. Violência Contra a Mulher e Políticas Públicas. Scielo Brazil –
Nº49, Vol.17. São Paulo, 2003.  
CARTILHA MPSP. Mulher: Vire a Página. Ministério Público de São Paulo. 2012.  
CEPAL. Serie Mujer y desarrollo Nº 40. Violencia contra la mujer en relación de
pareja: América Latina y el Caribe. Una propuesta para medir su magnitud y
evolución. Naciones Unidas. Santiago de Chile, 2002.  
8  

CEPAL. Serie Mujer y desarrollo Nº 99. Estudio de la información sobre la violencia


contra la mujer en América Latina y el Caribe. Naciones Unidas. Santiago de Chile,
2010.  
CEDIN. Declaração e Programa de Ação de Viena – Conferência Mundial de Direitos
Humanos, Viena, 1993. Disponível em: Centro de Direito Internacional www.oas.org  
IZUMINO, Wânia Pasinato; SANTOS, Cecília MacDowell. Violência Contra as
Mulheres, Gênero e Cidadania: notas sobre estudos feministas no Brasil. 2005.  
NUDEM. Mulheres Legislações. CEDAW – 1981 / Convenção de Belém do Pará –
1994 / Lei Nº7353/85 / Lei Nº10.778/0 / Lei Maria da Penha Nº11.340/06.  
PIOVESAN, Flávia. A Violência Doméstica Contra a Mulher e a Proteção dos Direitos
Humanos. In: Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Grupo de Trabalho de
Direitos Humanos. Direitos Humanos no Cotidiano Jurídico. Série Estudos Nº14. 2004  
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, Patriarcado e Violência. Ed. Fundação Perseu
Abramo. São Paulo, 2004.  
WAISELFISZ, Julio Jacob. Mapa da Violência 2012. Atualização: Homicídio de
Mulheres no Brasil. CEBELA. FLACSO. Brasil: 2012.  

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