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IIIIS.I.ORIA E,

^lfusLoa/
NO BNNSIL
JosÉ Gr,nalno VIxcl on Mona¡,s
Euas TnovrÉ Salte¿ (orgs.)
Copyright @ zoro José Geraldo Vinci de Moraes & Elias Thomé Saliba

Edigáo: Joana Monteleone


Sumário
Editor fusistente: Vitor Rodrigo Donofrio furuda
Projeto gráfr,co, capa e diagramagáo: Pedro Henrique de Oliveira
Revisáo: Laudizio Correia Parente Jr.

Imagem da capa: Passeio de domingo á tarde. Aquarela de Frangois Debret, r826. APRESENTA0A0 o9
o historiador, o lutbiere a música
José Geraldo Viruci de Moraes
Elias Thomé Sal¡ba
crp-Bnesrr. CerarocegÁo-NA-FoNTE
SrNorca:ro NacroNer oos Eprron¡s on Lrvnos, n¡
Hr8 CAP¡IUIÍI I it
Música na América portuguesa
HIsróm,r ¡ uúsIce No Bnesrr / José Geraldo Vinci de Moraes, Elias Thomé Saliba (orgs.)
Paulo Castagna
Sáo Paulo: Alameda, zoro.

4r2p.

rsnN 978-8 5-7 9 J9-ozo-


CAPíTUIÍI II 79
1
Aspectos da música no Brasil na primeira metade
r. Música - Brasil - História e crírica. z. Música e história. r. Moraes, José Geraldo
Vinci de, t96o. tt. Saliba, Elias Thomé. do século xx
Mauricio Monteiro
o9-6427. coo:78o.98r
cou:78(8r)

or6811 cAPrTUr0 ¡il TT9


Batuque: mediadores culturais
do final do século xrx
Cacá Machadn

[zoro]
Ar-a.unoe Cese Eprronrer
Rua Conselheiro Ramalho , 694
CAPIIUI.ÍI ru t6j
- Bela Vista
or32t-ooo Imagens da escuta:
cEP: - Sáo Paulo - sp
Tel. (rr) jotz-z4oo tradugóes sonoras de Pixinguinha
www. alamedaeditorial. com. br Wrgínia de Almeida Bessa
0 historiador, o luthiere a música
José Geraldo Vinci de Moraes,
Elias Thomé Saliba

o nrsronreoon pneNcÉs Menc Brocn (t,g6-r944), tarvez


um dos mais im-
portantes do século lo<, avaliava em meados daquele
século que a história tinha
prazeres estéticos táo peculiares que náo poderiam
ser encontrados em nenhuma
outra ciéncia ou disciplina. Essa condigáo era derivada
de seu objeto particular
de estudo, "o espetáculo das atividades humanas
que (...) é, mais que quarquer
outro, feito para seduzir a imaginagáo dos homens".,
Diante de um objeto táo
delicado enrerrado no passado, mas que permanecia
vivo estimurando a imagina-
9áo humana seria preciso desvelo na sua reconstrugáo e tradugáo para
o presente.
como um milimét rico " lutltier (...) q,r. guia-se, antes de tudo,
pera sensibiridade

r José Geraldo Vinci de Moraes é Professor do Departamento


de História da r¿cn/usp.
Autor de Metrópole em Sinfonia (Estagáo Liberdade),
Conaersas com Historiadores brasi-
leiros (Ed. 34) e Sonoridades paulistanas (Funarte).

Elias Thomé Saliba é Professor Titular do Departamenro


de História da p¡rcn/usp. Autor de
Raízes do rzra (compatrhia das Letras) e (Jtopias
románticas (Estagáo Liberdade).
z Brocu, Marc. Apologia da História. ou o oficio de historiador. Rio de Janeiro:
Jorge
Zahar, zoor, p. 44.
tz JosÉ Grneroo VrNcr ¡B Moness ¿¿ Erns TnouÉ Seuee O historiado¡ o luthier e a música 11

História assumiram melhor, durante décadas, atarefa de compreender a constru- limites na passagem das décadas de
ry7ol8o.7Já a História da música como área
gáo, o funcionamento e a difusáo da música nas sociedades. Todas elas surgiram cspecífica e a mais jovem das histórias da arte,
cuidou da abordagem no rem-
no século xrx em razáo do tardio ingresso da música e dos músicos no universo po da música, classificando épocas e estilos, determinando
a linearidade dos
do "belo artístico", até entáo restrito ás artes visuais e plásticas. Nessa época, na géneros e exaltando os grandes artistas e suas
obras, produzindo uma historio_
Europa o músico deixou de ser simples artesáo e transformou-se em artista in- muito tradicional de género predominante biográfico.
gráfrca
só bem mais re-
dividual, do mesmo modo que a música europeia transitou da condigáo de ma- centemente, apoiando-se em um "conceito mais
mod,erno de arte,, ela passou a
nufatura funcional para liturgias religiosas e das cortes, e simples entretenimento incluir autores e obras "mais triviais" e permitiu o surgimento ,,históriade uma
cortesáo, para tornar-se obra artística única. Nestas novas condigóes a música social da música".8
póde entáo ser compreendida como fenómeno artístico e cultural pelos novos Talvez por essas razóes
- e provavermente mais algumas outras reratiyas
ao
conhecimentos em forma de disciplina que surgiam no século xrx. Os conteúdos cliscurso historiográfico
- o historiador de oficio manteve-se distante
da música e
epistemológicos e metodológicos dessas disciplinas foram, entáo, predominan- tl<¡s sons' Poucos como o francés Henri-Irénée Marrou
arriscaram penetrar nesre
temente marcados pela concepgáo do conhecimento positivo e pelo exagerado rr,iverso, escrevendo sobre o assunto e oferecendo
uma abordagem de historia_
cientificismo. Bem de acordo com essa mentalidade oitocentista, a musicologia rlor' Em plena rr Guerra Mundial, a pedido de colegas
itarianos, ele preparou um
surgiu com a pretensáo de ser a "ciéncia da música", com objetivo de entender e curso de introdugáo á cangáo popular francesa,
que se tornou posteriormente
explicar cientificamente o discurso interno da linguagem musical. Mas para isso trrna alentada obra publicada em 1944- com exemplos musicais, Ietras de can_
deveria tratar também dos estilos, géneros, artistas e sua coletividade, já esbogan- r'.íres, análises melódicas
- de tonalidades evidentemente folcloristas.e Na mesma
do os limites de uma história da música. úPoca, escreveu um pequeno tratado sobre a música em santo Agostinho,o
e so-
Concorrendo com pretensóes de compreender a música para além das aná- r)rcnte bem depois retornou ao tema quando
abriu um capíturo sobre o assunto
lises formalistas internas da linguagem - e apresentando caminho diverso da na- rra conhecida obra sobre os trovadores
med.ievais.,, Talvezpelo contexto da ten-
tlÍeza dos sons e suas linguagens - a sociologia da música aparece neste quadro. sá«r gerada pela guerra e provavelmente
também pela temática, ere escreveu as
Ela pretendia pensar e perceber suas agóes em correspondéncia direta com o in- rluas obras sobre música com o pseudónimo
de Henri Davenson. outro historia-
divíduo e com a sociedade, levando em conta os modos como eles organizavam d,¡ bem mais conhecido, que também se manteve incógnito
durante anos pero
os sons em forma de música, como a produziam, divulgavam e criavam gostos.6
Seguindo nesse mesmo caminho, surgiu um pouco mais tarde a etnomusicologia 7 cnucns, Francisco. Las curturas musicares. Lectura, de etuomusicorogia. Mad,rid,:
F_d,.

com objetivo de entender a música na cultura e para além do horizonte euro- 'Iiotta, zoor.

céntrico da "música culta", abrindo espaqo para as músicas populares, orientais, l'l D'trHeus, Carl. Fundamentos de la historia de la música.
Barcelona: Gedisa Editoral,
africanas, indígenas e mesmo as europeias. Oscilando entre um forte folcloris- t997' P. t6-8.

mo romántico e exagerado empirismo, ela só comesou a sair destes angustiantes t¡ l)nvrNsoN, Henry. Introduction a ra connaissance de ra chanson popuraire
frangaise. Le
liure des chansons. §euchátel: Ed. se la Baconniére,
r9gz.

6 ldem. La estética musical desde la antigüedad hasta el siglo xx. Madrid: Alianza Editorial, ro ldern. Tiaiil de ld musique, seron rbspirit de saint Augustin paris: Ed. seuil, 1942.
1999, p. 405-47 t t Me¡rnou, Henri-lrénée. Lcs troubadour¡, z0 cd. paris: Editions du Seuil, ¡97¡.
Erres THoltÉ Sel-rse O historiadoLo luthier e amúsica rj
14 JosÉ Gnneroo VrNcI oB Monens
¿¿

sobre música manifestagóes repletas de músicas, os historiadores aproximaram-se de seus sons


codinome Francis Newton foi Eric J. Hobsbawm, quando escreYeu
ainda que de maneira marginal e timidamente. Aliás, o próprio Vovelle arriscou-
nosanos 5o16o." Fatos pitorescos como estes' náo podem
passar
popular \jazz)
historiadores do se por esse caminho, desenyolvendo pesquisas sobre as cangóes populares que
despercebidos, pois, na verdade reVelam como dois destacados
obras que tra- apareceram no contexto revolucionário do final do século xvrrr, aré a eleigáo po-
século)or tiveram, de certa forma, que resguardar seus nomes em
pular daMarseillaise como hino da revolugáo.'6 Na mesma linha, Marc Ferro ana-
tavam da música, mais especificamente a popular'
com sons e mú- lisou as origens e sucessivas alteragóes e adaptagóes da cangáo da Interruacional,
Alguns outros historiadores chegaram a flertar timidamente
em meados dos anos 7o desde a sua versáo primitiva composta por Eugene Pottier e Pierre Degeyter, até
sica, seja como tema ou fonte. E.P. Thompson escreYeu
ao chariaari as suas improvisagóes e usos na história dos movimentos de esquerda.rT
um texto sobre a Rough Music,'1 ritual e festa violenta semelhante
de barulhos, Além deles, poucos foram os historiadores que se arriscaram por essa trilha,
francés, em que a música aparece apenas incidentalmente na forma
agóes violentas' situagáo idéntica que se apresentou no Brasil. Por aqui, o conhecido e combati-
ruídos e sons desorganizados, formando certa trilha sonora das
a lei ainda do historiador oitocentista Francisco Adolfo Varnhagen, filho de um engenhei-
A festa da Rough Musicconstituía parte de um modo de vida no qual
das multidóes po- ro alemáo e compositor bissexto, chegou a fertar com o binómio poesia-música
pertencia á comunidade: uma espécie de "economia moral"
agrícolas' contra rra sua atividade de crítico e comentador de documentos e no Florilégio da poe-
pulares que se reuniam em motins contra a fixa}áo de pregos
sia brasileira, obra de rB5o, em que biografou pela primeira vez o compositor e
taxaEóes draconianas ou, simplesmente, para satisfazer a mais universal das ne-
culturas, manifestagóes e cantor Domingos Caldas Barbosa, o mestigo "cantor de viold'.'8 Capistrano de
cessid.ades, a fome. No início da década seguinte essas
Abreu, que manteve permanente relagáo de profundo respeito e conflito com a
festas populares tornaram-se temas recorrentes entre os historiadores, apontando
obra de Varnhagen, também fez referéncias tangenciais á música. No Capítulos
para uma modd" segundo Michel vovelle,'a chegando até mesmo a tornar-
,,boa

se uma moda "das mais cansativas" de acordo com Jacques


Revel''¡ Como eram

Francis. História social do iazz. Sáo Paulo: Paz e Terra, r99o'


Mais tarde,
rz N¡wroN,
assim justificaria o uso do pseudónimo:
"como eu desejava manter sepa-
Hobsbawm
radas as personalidades do professor universitário e do crítico
musical, escrevi durante t6 Vovurr, Michel. "La marseillaise". In: Les lieux de la mémoire. La Republique, vol. r.
Newton, em fuomenagem Pierre Nora (org.). Paris: Gallimard, 1984. \y'er também MasoN, Laura. "Cangóes. Mes-
os dez anos seguintes (" ,s;t) sob o pseudónimo de Francis
comunista, excelente
a Frankie Newton, um dos poucos músicos de jazz sabidamente
clando veículos". In: Robert Darton e Daniel Roche (orgs.). Reuolugáo impressa. A impren-
na grande sessáo da
trompetista embora náo superestrela, que tocara com Billie Holiday sa na Franga (1755-1800). Sáo Paulo: Edusp, 1996.

produziu strange Fruit". Tempos interessantes; um uida t7 Frnno, Marc. L'Internationale. Histoire d'un chant d'Eugéne Pottier et Pierre Degeyter.
commodore Records na qual se
das Letras, Looz, p' 252'
no século xx.Tradugáo de S. Duarte. Sáo Paulo: Companhia Paris: Éditions Noésis, 1996.
sobre a cuhura popular
13 Tnorr.rPsoN, E. "Rough music". In" costumes em comum. Estudos rtl VenuuecnN, F. A. Florilégio da poesia brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de

tradicional. Sáo Paulo: Companhia das Letras, 1998' [,etras, 1946, 3 -,-vbls., p. 42. O texto foi republicado no ano seguinte, com algumas mo-

f4 vovnrrE, Michel. Ideologias e rnentalidades. sáo Paulo: Brasiliense, f987, P. Í53-254' dificagóes, na s'e9áo "Biografias" da Reuista do Instituto Histórico e Geográfco Brasileiro

Difel/Bertrand, 1989, P' 45' (vol. r4, r85r), com o tftulo "Domingos Caldas Barbosa".
rt R.rwL Jacque s. A inuengá.o da
soci¿dad¿. Lisboa/Rio de Janeiro:
O historiador, o lutltier e a música t7
16 JosÉ Genar-oo VrNcr oB MoneEs
¿¿ Eues TnorurÉ Serrs'q'

cesas.z, Sáo abundantes as referéncias aos lundus, cantos de trabalho, maracatu,


de História Colonial elaaparece nas festas populares, nas irmandades religiosas da
rssim como ás músicas das ruas tocadas ao violáo, nos batuques e carnaval rui-
regiáo mineradora e nos cantos de trabalho no Rio de Janeiro"e
closo, todas elas reprimidas pela nova ordem reeuroperizante em ascensáo. Ele
a produgáo historiográfica renovadora da geragáo imediatamente Poste-

também problematiza a oposigáo entre piano e violáo como revelador desse con-
rior a do historiador cearense teve relagáo muito desigual com os sons e a música'
fionto cultural mais amplo. E, ao mesmo tempo, chega ao detalhamento do uso
Na obra fundamental de caio Prado Jr., o siléncio é absoluto. sérgio Buarque de
da unha comprida, de tradigáo nobiliárquica oriental, que servia ao manejo da
Holanda conhecido por seu gosto juvenil pela boemia e pela danqa e convivén-
-
viola e do violáo. No terceiro volume, Ordem e Progresso, escrito bem posterior-
cia com músicos e poeras'o - em Raízes d.o Brasil fez apenas pequena referéncia
cristo rnente, a música continua presente com comentários e análises sobre modinhas,
á música na festa de Bom Jesus de Pirapora, em sáo Paulo, quando Jesus
"desce do altar para sambar Com o povo"," e também cita os "lundus e modinhas ¡rolcas e dobrados, entre outros géneros, e até surge documentada em forma de
partituras. Porém, Gilberto Freyre é excegáo no quadro historiográfico brasileiro.
do mulato Caldas Barbosd'." Em contrapartida, a obra em trés andamentos de
Seu esbogo, ainda que rarefeito, das relagóes entre música e trabalho historiográ-
Gilberto Freyre sobre a formagáo e decadéncia da sociedade patriarcal no Brasil'
fico, teve continuidade muito dispersa e limitada entre os historiadores de ofício
desponta uma abundáncia de sons, ritmos, músicas e canqóes. No primeiro
vo-
das geragóes seguintes.
lume, Casa GrAnde e Senzala, os ritmos africanos se misturam ás cangóes infan-
ás músicas das festas profanas e religiosas e aos primeiros lundus e O fato concreto é que, durante muito tempo, pouco se produziu na oficina
tis e de ninar,
Mocambos, a cultura musical do século xlx se rl¿r história além destas obras. O espago e o papel concedidos á música nos livros,
modinhas. No volurne Sobrados e
Assim, ilrtigos em revistas especializadas, colegóes e manuais de história continuaram in-
apr€senra de maneira viva e permanente no coddiano privado e público.
significantes até o final do século >or. Até mesmo o impacto das transformagóes
aparecem as modinhas tocadas ao piano pelas mogas como também as músicas
lristoriográficas ocorridas nos anos 7ol8o, que ampliou os quadros temáticos,
dos salóes e teatros, onde se escutava "árias de Rossini e Bellini" e músicas fran-
tcóricos e metodológicos, náo chegou a esse campo, apenas ressoando tardia e

indiretamente na década de ry9o. Ainda nesse mesmo contexto de profundas


rnudangas teóricas, a sociologia viveu situagáo diversa, sobretudo a de extragáo
19 Annnu, Capistrano. Capítulos de História Colonial. Belo Horizonte/Sáo Paulo:
ltatiaial
irrglesa e norte-americana, e se abriu destacadamente á música. Infuenciada ini-
Edusp, 1988, capítulo xI, "Trés séculos depois"'
cialmente pelo cubural studies ela discutiu e desenvolveu teorias exclusivamente
e poe-
zo Lembre-se, a propósito que o enconrro de sérgio e Gilberto Freyre com inúsicos
cm torno da música popular, deixando marcas importantes nos estudos musicais.
tas populares, serviu de mote para as refexóes iniciais na obra Mistério do
samba, de
jovem Oontudo, náo raro foi compreendida no limitado universo da músicapop e do
Hermano vianna. Rio de Janeiro: Jorge zahat, 1995. sobre o envolvimento do
rock,'4 e, em razáo do contexto em que aparecem, seus estudos foram exagerada-
historiador com a música e a danga, SeLIne, Elias Thomé. "Piadas impressas e formatos
dos Países
da narrativa humorística brasileira: de Pafúncio Pechincha a Sérgio Buarque
Baixos". In: Antigos e Modernos. Sáo Paulo: Alameda Editorial, zoog' 2l Fnrynn, Gilberto. Sobrados e mocnmbos, 13" ed. fuo de Janeiro: Record, zoo2, p.75
i

zl Hor¿NoA, sérgio tsuarque de. Raízes d.o Brasil, Sa ed. Rio de Janeiro: Livraria José e 76o. i

Olympio, t975, P. rro. 24 É, impressionante como essas condigóes aparecem em dois balangos recentes da produgáo

sobre a música popular na Franga e Inglaterra nas últimas décadas. Ln GurnN, Philippe.
zz ldem, p, 7r.
r 8 JosÉ Grneloo VrNcr oB Moneas e¿ Erns TuouÉ Seuse O historiador, o luthier e a música ry

mente marcados pela ideia da "música jovem", da "cultura musical de massd', da história-música apresentou sensíveis alteragóes nos ílltimos anos e esta obra revela
indústria fonográfica e, muitas vezes, apoiados por certa ilusáo empirista que as urn pouco deste processo de mudangas. Se elas ainda náo soam como tom predo-
fontes seriais apresentavam, como a produgáo de discos, imprensa especializada, lllinante, suas primeiras notas já despontam com certa intensidade. Isso significa
grades de venda, índices de popularidade entre outras.zt (ltte tentatiYas de diálogo tém sido feitas e os historiadores tém procurado
definir
No campo historiográfico o que se observa até a década de ry9o sáo al- scus objetos de estudo a parrir de um diálogo interdisciplinar. De certo modo,
guns aspectos bem evidentes. Em primeiro lugar, a auséncia completa da música, rrs disciplinas mais próximas da música, como a ernomusicologia e a musicologia
dando razáo á. reclamagáo de Frangois Lesure feita ainda na década de ry6o, da também tém realizado relevantes esforqos nesta diregáo, como destacou a musi-
"surdez" entre os historiadores e áreas de estudo próximas.'6 Diante deste quadro t:tiloga Myriam Chiménes. Este movimento nos últimos anos rem sido considerá-
poderíamos tomar emprestada a crítica de Steven Feld aos antropólogos e afir- vcl, a tal ponto que a musicóloga francesa afirmou que "a surdez dos historiadores
mar com ele que se 'bs musicólogos ignoram o povo, os [historiadores] ignoram cstá em via de cvÍi'.'8 Suas primeiras experiéncias de pesquisa com a participagáo
o som".'z E, quando sons e músicas apareceram, bifurcaram por dois atalhos: ou tlc historiadores de offcio se reproduziram em alguns grupos interdisciplinares,
surgiram de modo tangencial em trabalhos interessados noutras quesróes, como rrrnpliando os horizontes historiográficos. Reforgando essa nova atitude dos his-
as festas populares, moyimentos políticos, géneros, grupos marginalizados etc., tr¡riadores de se aproximar dos sons e músicas, Aiain Corbin escreveu nos anos
90
ou entáo, de modo mais corriqueiro, se transformaram exclusivamente em texto. rrrna obra que revela essas transformagóes.'e Ele discute como os sons dos sinos
Gradativamente, esse quadro de estranheza e lateralidade entre música-história e presidiam o ritmo da vida rural e constiruíam uma verdadeira linguagem e aré
nresmo símbolo de poder. No início do século xrx eles se transformaram, reve-
"En arriére la musique! Sociologies des musiques populaires em France. La génese d'un
lundo uma mudanga de sensibilidade e, consequentemenre, de escura. Ele utiliza
champ". It Réseaux, n" r47.Paris: Lavoisier, zoo7, p. 15-45 e Fnrtr, Simon. "Une his-
0 conceito de 'paisagem sonora"¡o como a chave de compreensáo para essas trans-
toire des reche¡ches sur les musiques populaires au Royaume-IJni",Idem, p. 46-61.
firrmagóes. No mesmo ritmo seguiuJ-P. Gutton, que além dos sinos incluiu nessa
z 5 Neste sentido, a produgáo analítica na América Latina parece ser bem mais ampla e rica,
trova "paisagem sonora" os sons das cidades, das oficinas, entre vários outros.r,
creio mesmo que acompanhando seu ritmo da produgáo musical. Vale a pena apenas a tí-
tulo comparativo observar algumas das análises mais amplas e diversificadas sobre música

e mírsica popular de \(rsNrr<, José Miguel. O som eo sentido. Sáo Paulo: Companhia das ¿[l Cr¡rlriNts, Myriam. "Musicologie et histoire. Frontiére ou 'no mank land' entre deux
Letras, 1989 e "Machado, Maxixe". Teresa 41 5. Reuista de Literatara Brasileira. Sáo Pau- disciplines". ln: Reuue de Musicologie, sociétéfrangaise de musicologie, Tomo g4, no r.
lo, zoo4, p. 14-79; SeNonoNr, Carlos. Feitigo Decente. fuo de Janeiro: Jorge Zahar, zoor; Paris: 1998, p. 78.
FrsnnnveN, Diego. Efecto Beethouen. Buenos Aires: Paidós Diagonales, zoo4; GoNzerrz, 19 ConnerN, Alain. Les cloches de la terre. Paisage sonor€ e culture sensible dans les cdm?gnes
Juan Pablo. "Musicologia popular en América Latina: síntesis de sus logros, problemas y aux xtx siécle. Flammarion, 1994.
desafios". Reuista Musical Chilena, ry5, janeiro-junho de zoor, 18-64.
¡o scHerrn, R. Murray. A afnagáo do mundo. Sáo paulo: Edunesp, zoot e o ouuido pen-
z6 L¡sunn. F. (org.) Encyclopedie de la musique. Paris: Fasquelle, 196r, sanie. Sáo Paulo: Edunesp, r99r

z7 Apud, Besros, Rafael de Menezes. "Esbogo de uma história da música: para além de 1r Gu:r:roN, Brult et sons dans notre histoire. paris: nur, zooo. vale destaca¡ que em
J-l',,
uma antropologia sem a música e de uma musicologia sem o homem".In Anuário An- sentido e abordagem semelhante a de Corbin e Gutton, segue a obra de Nelson Aprobato
tropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 9-71, rg91. Machado, Kaleidosfone. As nouas camadas sonorat da cidade de S,áo Paulo, Fins do século
JosÉ Grnaroo VrNcr or MoneEs e¿ Erres THouÉ Serre¡ O historiador, o luthiere a música

Aqui no Brasil parece que de fato caminhamos na diregáo d.a cura relativa
ser compreendidas e estudadas devidamente nas suas redes culturais e sociais,
dessa surdez. Desde meados da década de t99o, inúmeros trabalhos tém surgi- sob pena de perderem-se ou em generalidades ou em excessivas especificidades
do ampliando o horizonte historiográfico e apontando na diregáo de um campo
técnicas. Por fim, as problemáticas metodológicas e práticas relacionadas com as
específico.r'Portanto, esse pode ser um momento excepcional para o historiador
fbntes, documentagáo e sua hermenéutica, surgem derivadas dessas questóes mais
aprofundar a discussáo em pelo menos trés diregóes. Em primeiro lugar, em ror-
abrangentes. Seguindo nessa diregáo, provavelmente o historiador de ofício estará
no das questóes relacionadas ás sutilezas e complexidades da hermenéutica da
rnais próximo daquela "sensibilidade dos sons e dos dedos", notavelmenre pres-
criagáo, performance e divulgagáo artística. Talvez a interpretagáo da criaEáo
ar- sentida por Marc Bloch.
tística, sua linguagem inrerna, o desempenho de execu gáo e a recepgáo da obra,
Esperamos que este livro revele um pouco da riqueza e da dinámica destas
permanegam como as mais complicadas pafa o historiador, mas ele precisa
ter transformagóes ainda em curso na oficina da História. Os noye capítulos que
em mira que sáo problemas mais abrangentes e náo exclusivos dele, como já
des- compóem o livro foram escritos por pesquisadores que tém justamente como
tacou Gianfranco vinay.,
Nesse campo, a atitude interdisciplinar torna-se im- c¿rracterística a formaEáo ou a abordagem interdisciplinar. Todos eles, em al-
periosa, senáo iniludível, levando o historiador a recorrer á musicologia, língua
gum momento de sua trajetória profissional e académica, estiveram envolvidos
e literarura, etnomusicologia, semiótica, história da música e assim por diante. com a música, mas, sobretudo, com História e as preocupagóes historiográfi-
Todo esse universo musical
cria uma ampla rede de sociabilidades (formas de so- cas. A História permanece sendo o eixo central de seus questionamentos, mas
brevivéncia, espaEos de divulgagáo, performances, reragáo criador-intérprete,
in- crn diálogo permanente com a música e as redes de sociabilidade criadas em
térprete-ouvinte etc.) e alcanga no rempo historicidades peculiares que precisam
t«¡rno dela. A formagáo e as preocupagóes diversificadas leyaram todos a buscar
novos e variados caminhos do conhecimento e diferentes eixos interpretatiyos.
xtx início do xx. sáo Paulo: Edusp, zoog. Essa preocupagáo com os sons e as cangóes
-
l)cste modo, o leitor encontrará nesta obra capítulos com temática variada (da
urbanas que circulam pela cidade carregando algum tipo de recado ou informagáo
ram-
"lnúsica colonial" ás grandes orquestras), abordagens próprias (algumas mais
bém foi objeto de análise em Paris, em períodos dife¡entes, de Robert Darton
no artigo
"Uma precoce sociedade da informagáo. As notícias e a mídia ruusicológicas, outras mais descritivas e narrativas, ou entáo a associagáo delas),
em Paris no século xr¡rrrr".
ln: varia História, n" 25. Belo Horizonre: 2oor, p. tlocumentagáo variada (memória, partituras, registros indiretos, fonogramas,
e deJean-yves Mollier,
9-jr o cameló.
Figura emblemritica da comwnicagáo. Sáo paulo: Edusp, zoo9. programas radiofónicos, imprensa), mas, sobretudo, poderá perceber os diver-
sos caminhos interdisciplinares criados por eles ao longo do processo de cons-
3z Na realidadejá se pode até observar a formagáo de uma espécie rnainstream, que muitas
vezesatuou como camisa de forga para as pesquisas. Fazem parte delas por exemplo, o trugáo de uma narratiya historiográfica.
binómio samba/malandragem, nadécadade r93o, e o trinómio Bossa Noua/Tropicalismo/ Os capítulos que compóem o livro estáo organizados de modo cronológi-
Festiuais da cangáo dos anos
5ol6o.Yer sobre o assunto Mox.ers, José Gerald.o Vinci de. co sem a intengáo de buscar certa linearidade e sentido do tempo histórico. Ao
"Modulagóes e novos rirmos na oficina da História'. lpresentáJos iniciando com temáticas relativas práticas e experiéncias musicais
ln: Reuista G.c.c.r., no r r. Espanha, ás
zoo5. Uma amostragem dessa produgáo historiográfica académica pode ser verificada cxistenies na América portuguesa, ou Brasil colonial, e encerrar com temas situ-
no
site www.memoriadamusica. com. br
nclos em meadds do século >or, o objetivo é apenas oferecer ao leitor um pano-
33 VINA¡ Gianfranco. "Historiographie musicale et heméneutique". In: Reuue de Musicolo- tnma organizado de parte da cultura musical brasileira. Apresentados desta for-
gie, Sociétéfrangaise de musicologie, Tomo g4, no r. paris, r99g. nra, cada capítulo abre evidente diálogo com os textos imediatamente anteriores
JosÉ Gnnaroo VrNcr ne Mon¡cs Erlq.s Tuo¡.rÉ Serrse
¿¿
O historiador, o lutbier e a música 23

e posteriores, possibilitando uma leitura mais interessada


e crítica. Ao mesmo ¡rrcfbre analisar como essas práticas e estilos musicais se concretizaram
no tem-
tempo, o leitor poderá ler cada um deles de maneira independenre,
penerrando ¡ro de modo peculiar nas diversas regióes da col6nia. Assim, o rexto revela, por
numa certa paisagem sonora de sua época e nas diferentes temáticas apresentad.as cxcmplo, que a assimilagáo dos requintes da práticamusical portuguesa na Bahia
pelos autores. Finalmente, é possível agrupáJos por
temáticas ou interpretagóes rkr século xvu é distinta daquela de Minas Gerais da segunda metade do xr,rrr.
e análises sobre a cultura e a música brasileira. Deste
modo, o leitor terá a liber- li tardia e lenta em sáo Paulo, e mais rápida e reluzente no fuo de Janeiro após a
dade de ler e analisar o livro e seus capítulos da maneira
que consid.erar melhor chcgada da Família Real no início do xrx, quando a vida citadina se ampliou e se
e mais agradável.
rliversificou, possibilitando também a formaqáo de modinhas e lundus de sabor
o primeiro capítulo, Música na América
?ortuguesa apresenta um ampro ruais popular e urbano. Em sínrese, seu capítulo apresenra náo apenas o que já foi
painel das experiéncias musicais realizadas na colónia porruguesa
enrre os séculos r','¿lizado em rermos de música colonial, mas, ao mesmo tempo aponta caminhos
xvr e início do xrx. Insatisfeito com o consagrado conceiro
de música colonial uti- t¡rrc ainda podem ser percorridos pela historiografia.
lizado pela historiografia musical para explicar experiéncias
culturais completa- o período que inicia com a chegada da família real e se esrende até me-
se
mente distintas e, evidentemenre, marcado pela tradicional
periodizagáopolítica .rtlos do século xrx é o foco do capítulo seguinre, Aspectos da Mt)¡ica no Brasil na
da história, o professor Paulo Castagna prefere identificar
as diferentes experién- ¡rimeira metade do século lr¡ escrito pelo professor Mauricio Monteiro. Para ele,
cias e práticas musicais que aqui ocorreram, sem criar
fortes hierarquias entre a t'ssc é um momento crucial de nossa história cultural e musical, pois a chegada
música erudita e popular. Deste modo, ele analisa tanro
a música religiosa e pro- tlir Corte portuguesa com seus intérpretes, compositores, copistas, ouvintes, prá-
fana tazida pelos colonizadores europeus, como aborda
também as práticas dos t icas e hábitos musicais,
foi determinante para a organizaEáo de um novo circui-
indígenas e negros e as misturas decorrentes dos variados
contatos entre essas trés tt¡ cla música e implicou uma "construgáo do gosto" musical entre os brasileiros.
culturas neste longo período. claro que as dificuldades
com os vestígios docu- li, ¡rreciso levar em conta também a transigáo que ocorria na Europa nesta época
mentais das práticas musicais indígenas, dos negros e mestigos, (oln a condigáo do músico e da música: de simples artesáo á artista individual;
que transitam da
rarefaEáo do vestígio ao exagero exótico nos registros
dos cronistas europeus, tor- t' dc manufatura funcional religiosa e entretenimento cortesáo, para obra artís-
nam sua reconstruEáo mais problemáticae fragmentada,
e impedem a compreen_ tica. Aqui no Brasil essa rransigáo foi acelerada pela chegada ao fuo deJaneiro
sáo mais adequada dessas músicas, reforgando, infelizmente,
a assertiva de Mário tlrr Família Real e de vários composirores estrangeiros, colaborando para formar
de Andrade de que "náo sabemos nada de técnico sobre a música popular dos trés ('ssc gosto musical artístico. Assim, artistas como Sigismund
Neukomm, Marcos
séculos coloniais".'a Para castagna, nesres trés séculos
de vida social e cultural va- Itrrtugal e Marcos Antonio da F. Portugal, passaram a suprir fungóes cortesás,
riada, díspar e atomizada, seria impossível falar em música
brasileira ou encontrar rcligiosas, saraus, serenatas e compuseram modinhas, missas, óperas, obras sinñ-
ali os vestígios de nossa "música nacional", lembrando de
algum modo as análi_ tticas e camerísticas.
ses feitas no início do século xx pelo insatisfeito
historiador e crítico da realidade Todo esse processo, segundo Monteiro, significou uma rápida europeiza-
nacional, capistrano de Abreu. por isso, seguindo a
documentagáo rarefeita, ele 1íro da'sociedade carioca, fato já identificado e, sobretudo, reclamad.o melan-
colicamente por Gilberto Freyre em Sobrados e Mocambos. A incorpo raqáo da
34 ANotaor, Mário. Pequena história da música,7" ed. Sáo paulo: Martins Fontes, sinfbnia' o predomínio das formas instrumentais, as interpretagóes dramáticas
r9go,
p. r 8o.
c virtuosísticas nas missas e a ópera seriam alguns exemplos expressivos dessa
24 JosÉ Grneroo VrNcr oB Mon¡as e. Erres TuorurÉ Sarru¡ O historiador, o luthier ea música zj

nova condigáo. É nesse contexto que surgem compositores brasileiros


imPortan- ttovos géneros musicais urbanos, ainda completamente indefinidos na passagem
Fernandes da
tes, como Lobo de Mesquita, José Maurício Nunes Garcia e Gabriel dos séculos.

Tiindade, além de um vasto universo de músicos anónimos, geralmente pobres


e O texto revela como alguns dos géneros da música popular, entre eles o
tam- ttraxixe (e, como desdobramento no século )or, o samba urbano), váo se desen-
submetidos ás relagóes de poder e apadrinhamento. Aliás, o autor penetra
histórias tranhando gradativamente dos modelos europeus, misturando-se com os ritmos
bém nessa relagáo entre música e política, apresentando até saborosas
da intimidade e bastidores do poder. No entanto, a vida musical do
período náo r¡fro-americanos, num processo muito peculiar em que a decantagáo da síncope

se restringia á música apolínea da corte. Ao contrário, Maurício Monteiro mos- é central. Mas essa mediagáo só foi possível em virtude da onipresenga do piano,

tra que o universo dionisíaco ampliou em oposigáo, mas também dialogando


se r¡ue transformou a capital do Império na "cidade dos pianos", na qual pianistas

com o de Apolo, revelando-se na circularidade e diversidade das misturas musi- c pianeiros tocayam a "tamanha misturada" de géneros. Para percorrer e com-

cais ocorridas nas ruas, nas festas religiosas ou profanas, nos encontros
informais preender melhor esse híbrido e intricado universo musical, Cacá Machado esco-
mais informal, lheu dois compositores com trajetórias opostas - Henrique Alves de Mesquita
dos músicos-barbeiros e assim por diante. Neste ambiente cultural e

híbrido e misturad.o, brancos pobres, negros e mestigos de toda ordem


(re)articu- lirnesto Nazareth - e dissecou duas composigóes distintas que curiosamente tém \

lam suas culturas e, como afirma o autor, criam um "espetáculo á parte daquilo que o rnesmo título: Batuque. A trajetória cruzada dos dois compositores e pianis-

acontecia na corte, ou dentro dos templos, nos teatros ou na§ casas


mais abastadas' t¡ts é central na explicitagáo deste processo, pois ambos yiveram nos limites da

Tinha tanto de sincrético". ntcdiagáo cultural. O primeiro estudou na Franga apoiado pelo governo impe-
A questáo do cruzamento, hibridizagáo e recriagóes culturais éo objeto cen- rlal como uma promessa, mas voltou desacreditado ("desvirtuado pela boémia e

tral do capítulo u, Batuque: mediadores culturais do fnal do século xtx, de autoria por uma paixáo amorosa", segundo o disse-que-disse da época) transformando-se

do professor Cacá Machado. O criativo eixo analítico escolhido pelo autor pri- cm um célebre e feliz compositor de operetas. Nazareth, em sentido inverso, tal

vilegia o rico diálogo e as mediagóes entre a música erudita e a popular, encara- como Pestana da ficgáo de Machado de Assis, oscilou melancolicamente entre "a

do como eixo definidor de toda nossa formagáo cultural. O texto se concentra rmbigáo de se tornar um pianista erudito e a vocagáo de ser um compositor po-

na cidade do Rio de Janeiro da segunda metade do século xrx, período em que pular (que a despeito de sua ambigáo o celebrizou)". A partir da década de t9zo,

a capital já tinha consolidado intensa vida musical que se manifestava


tanto de Nezareth e a síncope, num nor,o processo de decantagáo cultural, comegaram a

modo tradicional nos teatros fechados e ambientes cortesáos, como nos esPagos tc tornar símbolos da "identidade nacional" brasileira pela via da música popular
me-
públicos e populares. Entre estes dois universos, porém, haveria esPa§os de urbanaenáoaerudita.
diaqáo cultural, lugar ocupado pela polca. Para o autor, esse género europeu
de É curioso perceber que toda essa longa trajetória de hibridizagáo cultural e

música de danga de compasso binário e andamento vivo, originado na Boémia, tffinsformagóes musicais ocorridas nas passagens do século xrl>or, foi identifica-

foi primeira manifestaqáo da moderna música popular urbana que circulou e foi
a dr c sintetizada de maneira notável por Pixinguinha. Ao comentar as caracterís-

consumido por amplas e indeterminadas camadas da sociedade carioca. Foi este ¡lc¡s de sua composigáo mais conhecida ele disse que"Carinhoso eÍauma polca

incrível processo de adaptaqáo das danqas europeias ao ambiente cultural brasilei- lcnta. Naquele tempo tudo era polca (...). Chamei de polca lenta. Depois passei

ro, marcado pelo deslocamento rítmico da síncope, que resultou na criagáo dos I chamar de choro. Mais tarde, alguns acharam que era samba". Aliás, o pró-
prlo Pixinguinha é outro cornpositor que pode ser compreendido nesse mesmo
ps Mon¡¡s Erres TuouÉ Ser'rse
O historiador, o luthier ea música 29
LB JosÉ Gnuroo VrNcr
e¿

a alegria (que náo é o mesmo que felicidade), a simpatia de Deus, o lema da li-
MarizaliratenhadesempenhadopapelrelevantenesteProcesso,amisturaentre
e historiadora, se cristalizou nas in-
llerdade, o sensualismo de sua gente e acabou-se por configurar a imagem de
memória, folclorismo, práticacolecionadora
trm país musical". E Aquarela do Brasil, com o arranio orquestral de Radamés
de Almirante' Ao reunir e sintetizar
os
críveis e criativas atividades radiofbnicas (inatalli
auténtica" opert- - gue, consagrado no pentagrama, se tornou um clássico quase táo im-
diversos elementos da nova narrativa, o radialista construiu uma
ba- portante quanto á própria composigáo - foi provavelmente o caso mais conheci-
indica Michel de Certeau' De maneira inusitada'
as
gáo historiográf.ca", corno
tlo, tornando-se modelo de conteúdo e forma do "samba exaltagáo". Mas o autor
sesteóricasepráticasdesseauténticoprogramadedesenvolvimentodamemória e quase monumental
lanqadas nas séries radiofónicas' iniciadas
náo se concentra apenas neste caso - demasiado conhecido
e da história da música popular foram
- e nos apresenta ourras leituras nacionalistas que surgiram á época. Ele discute,
nadécadaderg3ocomCuriosid'ad'esMusicais'eencercadanosanosdergtoem
pessoal dawlha Guard.a. E a conclusáo deste intricado processo
se deu com a llor exemplo, como passamos sem mediaEóes do
"samba exaltagáo" da natureza -
o e de nossa gente, para a "exaltagáo do samba",
pessoal' acumulado e otganizado durante
com seus mares, rios e cachoeiras -
transformagáo de seu imenso arquivo
(:omo expressáo acabada de nossa gente, modo de vida e de nossa identidade na-
a música popular urbana' concedendo-
anos, no primeiro acervo público sobre
cional. AIém disso, mostra que havia todo um rePertório tratando do clima da z"
lhe finalmente uma "memória de papel"'
no país nos anos 30 (luerra Mundial, no qual se destacaram lemas e temas exaltando o papel do país
O discurso nacionalista de diversos matizes presentes
Iro confito. Porém, em algumas dessas cangóes também se podia "ouYir o louvor
na construgáo da música popular e das
e 4o foi elemento importante Presente
de diversas maneiras tanto a me- clc malícias e truques do 'soldado -capoeird" , ainda ecoando de maneira sutil o
narrativas criadas em torno dela. Ele marcou
lnodo de vida do malandro, visto com maus olhos pela censura e propagandistas
móriacomahistóriadamúsicapopularurbana.Ocapítulovl,SAMaAEXALTAQA2,
tlo governo. Mas as notas dissonantes deste discurso grandiloquente nacionalista
FanmsiadeumBrasi,lbrasileiro,escritopeloprofessorJoáoErnaniFurtadoFilho
tnmbém continuavam expostas na sociedade, forjando uma espécie de brasilida-
sambas e marchas compostos e divulga-
aborda justamente os diversos tipos de
de na contramáo. As composiqóes de Noel Rosa tragavam outro ruidoso "retrato
dos nesta época e que tinham o Brasil
como tema' Essas cangóes apareceram em
em que o nacionalismo do Estado do Brasil". Em Quem dd mais, por exemplo, os elementos típicos da "nova brasi-
um momento crucial da vida política do país
lldade", como o violáo, a mulata e o samba, eram leiloados e vendidos ao maior
varguistasignificoucensuraseimposiqóesdemodelosculturais.Pelaprimeiravez
preso, penetrando assim em questóes mais profundas - e, Por que náo, muito
políticadeEstadoemúsicapopularaproximaram-Seeodiscursonacionalistae
Embora fosse um Estado autoritário com Ituais! - de nossa vida social e da "brasilidade".
da identidade nacional foram o mote.
o capítulo v:l^, Vitrola paulistana pelos olhos e ouuidos de um basbaque'
mecanismos institucionais de pressáo -
do olp á Rádio Nacional - parece que Já
mdarilho, de autoria da jovem historiadora Camila Koshiba Gongalves, aborda
suapolíticaculturalemrelagáoámúsicapopularestavaSemprepassoatrásdas
s '\antbas da legitiruidade" desta época tema relativamente recente e importante para compreensáo da história da música
criagóes culturais e artísticas. Os inúmero
popular: a indústria fonográfica. Diferente da maioria dos outros capítulos que
das pressóes' em que compositores assu-
revelam essas aproximaqóes e o produto
..malandramente,, por conveniéncia ou mesmo por tem de modo geral a cidade do Rio de Janeiro como palco das práticas e ativida-
miram o caráter legalista, seja
des musicais, este trata especificamente do binómio disco-rádio na cidade de Sáo
brasileira assumiu de diversas formas
convicqáo. Independente disso, a sociedade
P¡Ulo nos anos 2olro. As "esferas negras" produzidas no ambiente técnico Pouco
osdiscursosnacionalistasfortementePresentesnaépocanomundotodoeacan.
mágico do estrldio de gravagáo ganham nos ambientes Públicos ou privados da
gáopopularatuouaquidemodoativodesteProcesso.Elacantou,,artaÍtJfeza,
O historiador, o luthier e a música 27
26 Eues ThouÉ Serrse
JosÉ Gennroo VrNcr oE MoRABs
e¿

tlcste momento a memória e a história da música popular em construgáo come-


análise de Virginia
enquadramento da intermediagáo culrural, e ele é o foco da
(ilram a tratar precocemente o criatiyo compositor como o mais auténtico repre-
de Pixinguinha' Evitando
Bessa no capítulo tv, Imagens da escuta: nadugóes sonoras
§crrtante da "velha guarda", guardiáo de uma tradigáo e uma espécie de "museu
em que
o rom biográfico tradicional muito presente na historiografia musical,
ttiuo" da música popular e da "identidade nacional".
e linear do
predominam o binómio "vida e obra" e a concepgáo racionalizante
a traletó'
Essa discussáo envolvendo a invengáo de uma narrativa em torno da música
tempo histórico e individual, a jovem pesquisadora Procura aPresentar
o painel cul- ¡ropular que criou personagens, mitos, consagrou fatos e compositores, é objeto
ria do célebre compositor carioca de outra maneira. Reconstruindo
tlc discussáo do capítulo seguinte Entre a memória e a história da música popular,
ela prefere perceber
tural e musical da capital republicana no início do século ror,
explici- escrito por José Geraldo Vinci de Moraes. Para ele, ao mesmo tempo em que a
a multiplicidadede possíveis caminhos que se aPresentam ao indivíduo e
tnúrsica urbana se formou e se consolidou durante a primeira metade do século
tar por ele neste rico e aberto painel de tempos e possibilidades
as escolhas feitas
"Pixinguinha dr- xx, surgiu uma forma de contar esse fenómeno cultural. Seu caráter inicial de
históricas. como boa parte dos músicos populares do período,
tim' cr0rnica dos eventos das novas culturas populares que tinham a música como eixo,
os nouos ritrnos e
senuolueu umL. escutd aberta, incorporando em seu repertório
rrr¡ridamente transformou-se em discurso de rememoragáo, preservaqáo, para, fr-
bres", presentes na éPoca.
sobre- Irirlrnente, cristalizar-se numa narrativa historiográfica articulada e legitimadora.
Para virgínia Bessa, essa escuta era ainda parte de uma estratégia de
l)csprezada pelas elites e intelectuais, o discurso sobre a música urbana foi cons-
vivéncia, já que possibilitava sua participaqáo profissional -
e, consequentemen-
Neste longo ttrrído por autores que participayam quase simultaneamente da vida artística, da
te, de insergáo social - em variados ambientes e esPagos musicais'
produgáo e difusáo da música de entretenimento, da indústria radiofrnica e fo-
da música popular
processo ele incorporou ás suas composiqóes e á formagáo
trográñca, da nascente crítica e da vida boémia, essa última uma espécie de espa-
(do choro ao samba),
urbana elementos do folclore, a "misturada de géneros"
das nascentes in- 5o cle convergéncia. Autores e obras com essa característica formaram até os anos
infuénciasfa zzísticas, discursos da música erudita, imposigóes
tle r97o o principal acervo da memória e da história da música popular urbana,
dústrias fonográfica e radiofónica. desdobramento dessa situagáo peculiat fez
o
fases de cons-
confundindo-se na maioria das vezes com ele. Essa peculiaridade é decorrente
com que o compositor participasse de forma variada das diferentes
e amadoras até
trnlbém da impossibilidade e dificuldade desses autores em delimitar as frontei-
truqáo do entretenimento musical, desde suas formas incipientes
!¡ts entre as duas formas de acesso ao passado, já que a própria experiéncia afetiva
a "brasilidade" atribuída a
aquelas da indústria da cultura. E, em cada uma delas,
como no vlvida e sua memória estavam em jogo.
Pixinguinha se modificou tanto na avaliagáo de seus contemporáneos,
No entanto, esse conjunto de autores, obras e narratiya náo é interpretado
juízo posterior dos historiadores da música popular. Diante desta complexidade
por Vinci simplesmente como representante de uma cultura popular circunscrita
e é um dos seus
do indivíduo e da históíia cultural e musical de que Participa
a historiadora arrisca uma periodizagáo para compreender
melhor c nrarginalizada - quase um folclore urbano - que se distingue, resiste e se opóe
protagonistas,
l¡ outras culturas. Ao contrário, seu processo de construgáo foi bem mais com-
o multifacetado compositor: a fase regionalista (r9r9-r928)' quando
integrou a
na indústria
plcxo'e abriu diálogo entre tradigóes de origens aparentemente irreconciliáveis:
orquesrra típica "Oito Batutas"; a fase de intensa profissionalizagáo
que se afastou I da "cultura de massa", da "pura cultura popular" e da "cultura de elite"; a dos
fonográfica e orquestras radiofdnicas $928'].937); e a fase em
mcnrorialistas e da "historiadora científica"; a da memória individual e a nacio-
dessa indústria do entretenimento (:.977-'95.-) - ocupada entáo por Radamés
A partir nrl¡ c da memória coledva ea oficial. Segundo o pesquisador, embora a folclorista
Gnatalli e seus arranjos e orquestragóes "sinfonizantes" e"ihzzif'cAdai"
jo JosÉ Generoo Vrucr »B Mon¡¡s ¿¿ Erres TsorlÉ S¡'rrsa O historiador, o luthier ea música 3t

cidade uma espécie de encantamento sonoro que "embasbacd' completamente o O capitulo vilt, Na trilha das grandes orquestras. O ABC da cidade modrrna.
Auióes, Bailes e Ciruema, do professor Francisco Rocha, também tem a cidade de Sáo
ouvinte paulistano. A pesquisadora acomPanha entáo esse "basbaque da vitrold'
- cujo mote romou emprestado de reportagem do Diário Nacional de ry29' l)aulo como palco. Seu texto procura compreender as relagóes que se estabelece-

para percorrer as ruas da cidade e apresentar o impacto cultural e musical deste rirm entre alguns signos importantes da vida moderna como o aviáo, os bailes e

novo universo na capital paulista. Por meio de seus olhos e, sobretudo ouvidos, o cinema (o ABC qre o titulo alude) com a música popular. A relagáo do mundo
tlrr aviagáo com a música é incidental, mas é claro que ela sempre colaborou para
aparecem os discos das conhecidas indústrias estrangeiras - Columbia e Victor -
como também aqueles produzidos pelas empresas nacionais como a Imperador, rcfbrgar o imaginário de fantasia, luxo, mito e o glamour em torno dos artistas

Arte-fone, Brazilphone, Ouvidor e os selos paulistanos. Surgem entáo Pelo ca- ruais célebres. Mas aqui, além dessas condigóes, empresas de aviagáo financiaram

pítulo as obras de artistas como Amador Pinho, Domingos Pecce, Nabor Pires l)rogramas radiofrnicos - como Aquarelas da América e Curiosidades musicais
*
Camargo, Alberto Marino, Petit e outros menos conhecidos. A gravagáo elétrica c o aeroporto de Congonhas situado em Sáo Paulo, comportou nos anos 4ol 5o

desta época significou melhoria técnica e também crescimento da produqáo de rrnl saláo de bailes em suas dependéncias para eventos em alto estilo e por onde

discos. Era preciso entáo estimular nos paulistanos a escuta pública de "música l)irssaram as mais conceituadas orquestras brasileiras. Essa conjungáo aeroporto/

elétrica" em bares, cafts, cinemas ou calgadas. A cidade tornou-se uma babel de sirlíro de baile, aparentemente insólita, surge no texto como uma chave valiosa

sons incomodando certos setores da sociedade. Esse processo de crescimento da pilla compreender o que essa "cultura musical, associada ás grandes orquestras e a

indústria fonográfica foi acompanhado pela expansáo do rádio, formando assim ¡rrática da danga, representou para o imaginário daquela sociedade". Nas décadas

o eixo cenrral da produqáo e divulgagáo dos novos géneros da música popular tlc r94ol5o se multiplicaram pela cidade de Sáo Paulo os salóes e pistas de danga

no mercado. Além disso, essas indústrias criaram idolos e impuseram gostos e cttt irssociagóes, clubes, boates e hotéis mais luxuosos. Acompanhando essa proli-

padróes de composigáo. Mas a historiado ra náo interpreta tais mudanqas como lbrlgáo surgiram inúmeros cursos de danga, entre eles a Escola de DanEa de Saláo

simples e automáticas imposigóes da "indústria cultural" que se desdobraram em rlrr Madame Pogas Leitáo, uma das mais rígidas e célebres da sociedade paulista-

"regressáo auditiva" dos ouvintes. Ao contrário, ela nos mostra que o "basbaque flnrt. Segundo o autor, essas escolas de danga e os salóes de baile assumiram caráter

davitrold' ampliou sua escuta e seu uniYerso cultural e nem sempre aderiu aos dc vcrdadeira instituigáo para os paulistanos da época. Na realidade, Sáo Paulo

modelos e mitos criados e impostos. E revela também que, em torno das criagóes tn¡nlrém foi conquistada pela moda internacional impulsionada pelo cinema nor-

divulgadas pelos discos, apareceram ouüas práticas e experiéncias musicais ines- ic-atnericano que divulgava suas orquestras, repertórios e modelos coreográficos.

peradas como a dos modinheiros que vendiam pelas ruas suas "liras" feitas em pa- Ax Big-bands com seus bands-leaders - Benny Goodman, Tommy Dorsey, Glenn

pel barato. Essa auténtica "lira paulistand'," de que falava Antonio de Alcántara Millcr - e seus géneros dangantes como o suting- aliás comparado a uma decola-

Machado, contaya o coddiano - geralmente trágico da cidade - e deviarn ser §cnl de um aviáo pelo conservador e polémico crítico de música Henry Pleasants
acompanhadas justamente pelas melodias conhecidas e divulgadas pelos discos - ocuparam as telas e discos. A maioria das cangóes que animavam os bailes desta
sendo que algumas delas chegaram mesmo a ser gravadas Por selos paulistanos' época eram inicialmente apresentadas nas trilhas sonoras dos filmes e depois es-
cutadas em discos. Mas algumas orquestras internacionais também estiyeram na

"Lira Paulistana". In: Reui.sta do Arquiuo Municipal, clclade, divulgando cangóes e melodias vistas na tela, como as orquestras do ma-
15 Mecneoo, Anronio Alcánta¡a.
Gttro George Henry e a de Xavier Cugat, que se apresentaram no luxuoso saláo
vol. xvlt. Sáo Paulo: Departamento de Cultura, 1915'
)z JosÉ Gnnel.po VrNcI or Mours e¿ Erres THoIvtÉ Sarrse

do Hotel Excelsior. Mas quando elas náo estavam Presentes, a escuta dos paulis-
ranos era realizadapelas conhecidas orquestras dos maestros Osmar Milani,
Silvio

Mazzuca eLtizArruda Paes. O repertório era o mesmo dos conjuntos interna-


por
cionais, acrescido pelos arranjos orquestrais de cangóes brasileiras, cantadas
paisagem
conhecidos intérpretes, formando parte da expressiva e pouco estudada
sonora de Sáo Paulo dos anos 4ol5o.
Ao final de cada um dos capítulos o leitor encontrará recomendagóes de
que é
escuta feitas pelos autores, para que possa reconhecer pelos sons aquilo
apresentado no texto. Além disso, há encartado neste livro um cD com
alguns

registros fonográficos documentando com sons alguns capítulos e orientando


a

escuta atenta do leitor.'6 O objetivo náo é exclusivamente ilustrativo


ou de mera

fruigáo, embora estes elementos estejam Presentes e espera-se que o leitor possa
usufruir plenamente destas condigóes. Na realidade, a intengáo é permitir ao lei-

tor aprofundar e penerrar ainda mais nas experiéncias musicais do período, com-
com-
partilhando do esforgo dos historiadores em escutar o passado para melhor
e do som
preendé-lo. Agindo deste modo, na mobilidade criativa do texto ao som
ao texto, acreditamos, como indicou Marc Bloch, que a relagáo
entre História e

Música "guia-se, antes de tudo, pela sensibilidade dos sons e dos dedos".

No site www.memoriadamusica.com.br o leitor poderá escutar alguns outros regis-


V6

tros sonoros.
Euas TnolrÉ S'tusa O historiador,o luthier eamúsica rr
ro JosÉ Grneroo Vrr'rcr os MoRABs e¿

deveria utilizar procedimentos


metódicos linguagem e notagáo para náo se perder. Com a capacidade da memória musical
dos sons e dos dedos,,,r o historiador
reduzida e, principalmente, sem conhecer a linguagem, a notagáo e a teoria mu-
rigorosos,linguagemcuidadosaetomCorretonaescritadahistória.Conteúdoe
sical, é dificil para o historiador penetrar neste universo intrincado e desconheci-
formaexpressivadalinguagemestariamentáoassociadosdemaneirarigorosae
das atividades dos homens do
passado' Deste do. Essa linguagem exige especializagóes técnicas evidentes - que a distingue das
criativa para apresentar fragmentos
outras artes - e, por isso, o historiador, ou o ouyinte comum, náo deve ser recri-
modo,paraele,atensáoentreciénciaeaÍte'conhecimentoeestética'estaria
do século xrx' Como se sabe' minado por desconhecé-la, como bem destacou o musicólogo Joseph Kerman.+
relegada ás polémicas do passado
suplantada e
Uma das maneiras apontadas para ultrapassar esses limites impostos pela "me-
infelizmente,od'ebatehistoriográficoqueseseguiunáolevoumuitoemconsi-
mória eyanescente" e a complexidade da teoria e linguagem musical estrita, se-
deraqáoessasindicagóesdeMarcBlochemuitasvezesapolémicacriativadeu
ria tratar com os registros escritos indiretos que comentam sobre música. De
lugarásposigóesextremadas,opondodemaneiraquaseintransponível..cien-
acordo com E. Fubini,t eles seriam fundamentais para alcangar e compreender
tistas" aos "artistas"'
o pensamento musical de uma época e, consequentemente, aproximar-se dos
Paraoshistoriadoresquetémahistóriadaculturanohorizontee,maises-
sons ali produzidos e difundidos. Para ele, as informagóes e o pensamento es-
pecificamente,acolocamemdiálogocomaSdiversaslinguagensartíSdcas-Como
tético musical de um determinado período passam por esse mundo das ideias
amúsica-,asafirmaqóesdeMarcBlochsáodeumaatualidadeextraordináriae
e das culturas.
alentoparacontinuarpersistindonestediálogo'Mas'provavelmente'éametá'
Por outro lado, o desenvolvimento no século >or da "música em conserva"
foradoluthieramaisSugesdYaParaoshistoriadoresquetémamúsicacomoob.
rnaterializada nos fonogramas significou enorme impacto nestas relagóes e trans-
jetodesuaspesquisas.Enáoésimplesmentepelalembranqaóbviadoartesáode
formou profundamente os processos de memorizagáo, registro, divulgagáo e re-
instrumentosmusicais.AafirmagáodequeéprecisoUlsar,,dsensibilidadedossons
ser a indicaqáo de um criativo caminho produgáo da música, criando um novo mundo de sons, técnicas, sociabilidades e
e d.os d.ed,os,,é muito inreressante e pode
cscutas. Ao lado das inumeráveis fontes indiretas, os fonogramas aparecem assim
Pafaaevoluqáodestecampodeinvestigaqáohistoriográfica,AsugestáodeMarc como recursos yaliosos e mais acessíyeis para os historiadores chegarem aos sons
escrira, mas é possível dar um
passo
Bloch é claramente dirigida á linguagem
qLre tém do passado. Porém, seria a associagáo de todos esses elementos, certamente em
dos sons. Isto é, Para oS historiadores
adiante e ampliar Para oS registros
condigóes desiguais e distintas, a depender da época e temática abordada pelo
interessepelamúsicanáobastaSomentealinguagemescritaparaCompreendere
historiador, que nos levariam á "sensibilidade dos sons" do passado. Esperamos
traduziropassado;eletemquelevaremcontaossonsdessepassadoesuaescuta
apresentar nesta obra parte destes intricados processos teóricos e metodológicos
nopresente.Claroque,Pordiversosmotivos,estanáoéumatarefasimples,já
aplicados á complexa realidade da cultura musical brasileira e filtrados de maneira
quenamaioriadasvezesessessonssáoimpossíveisdeseremrecuperadosouescu.
ato mesmo cliversa pelos vários historiadores e historiadoras.
arte do tempo que desaparece no
tados pelo historiador' Como uma
Além das dificuldades de lidar com um objeto evanescente, com a tecnicida-
desuaexecuqáo,restaaelaregistrar-seemprimeirolugarnamemória,depoisna
dc da linguagem musical e as suas fontes, campos do conhecimento próximos da

Ñenteafiguraseriafamiliaraohistoriadorfrancés,jáqueum 4 KrnveN, Joseph. Musicologia. Sáo Paulo: Martins Fontes, 1987, p. j.


dosseusavósteriasidoumluthier.Cf.Bncxen,Annette(org.).MarcB]loch.L,Histoire,
zoo6' t Fun¡Nr, Enrico. Estética de k música, z" ed. Madrid: A. Machado Libros, zoo4, p.21-6.
la (]uete, la Résistance' Paris: Gallimard-Quarto'

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