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IIIIS.I.ORIA E,
^lfusLoa/
NO BNNSIL
JosÉ Gr,nalno VIxcl on Mona¡,s
Euas TnovrÉ Salte¿ (orgs.)
Copyright @ zoro José Geraldo Vinci de Moraes & Elias Thomé Saliba
Imagem da capa: Passeio de domingo á tarde. Aquarela de Frangois Debret, r826. APRESENTA0A0 o9
o historiador, o lutbiere a música
José Geraldo Viruci de Moraes
Elias Thomé Sal¡ba
crp-Bnesrr. CerarocegÁo-NA-FoNTE
SrNorca:ro NacroNer oos Eprron¡s on Lrvnos, n¡
Hr8 CAP¡IUIÍI I it
Música na América portuguesa
HIsróm,r ¡ uúsIce No Bnesrr / José Geraldo Vinci de Moraes, Elias Thomé Saliba (orgs.)
Paulo Castagna
Sáo Paulo: Alameda, zoro.
4r2p.
[zoro]
Ar-a.unoe Cese Eprronrer
Rua Conselheiro Ramalho , 694
CAPIIUI.ÍI ru t6j
- Bela Vista
or32t-ooo Imagens da escuta:
cEP: - Sáo Paulo - sp
Tel. (rr) jotz-z4oo tradugóes sonoras de Pixinguinha
www. alamedaeditorial. com. br Wrgínia de Almeida Bessa
0 historiador, o luthiere a música
José Geraldo Vinci de Moraes,
Elias Thomé Saliba
História assumiram melhor, durante décadas, atarefa de compreender a constru- limites na passagem das décadas de
ry7ol8o.7Já a História da música como área
gáo, o funcionamento e a difusáo da música nas sociedades. Todas elas surgiram cspecífica e a mais jovem das histórias da arte,
cuidou da abordagem no rem-
no século xrx em razáo do tardio ingresso da música e dos músicos no universo po da música, classificando épocas e estilos, determinando
a linearidade dos
do "belo artístico", até entáo restrito ás artes visuais e plásticas. Nessa época, na géneros e exaltando os grandes artistas e suas
obras, produzindo uma historio_
Europa o músico deixou de ser simples artesáo e transformou-se em artista in- muito tradicional de género predominante biográfico.
gráfrca
só bem mais re-
dividual, do mesmo modo que a música europeia transitou da condigáo de ma- centemente, apoiando-se em um "conceito mais
mod,erno de arte,, ela passou a
nufatura funcional para liturgias religiosas e das cortes, e simples entretenimento incluir autores e obras "mais triviais" e permitiu o surgimento ,,históriade uma
cortesáo, para tornar-se obra artística única. Nestas novas condigóes a música social da música".8
póde entáo ser compreendida como fenómeno artístico e cultural pelos novos Talvez por essas razóes
- e provavermente mais algumas outras reratiyas
ao
conhecimentos em forma de disciplina que surgiam no século xrx. Os conteúdos cliscurso historiográfico
- o historiador de oficio manteve-se distante
da música e
epistemológicos e metodológicos dessas disciplinas foram, entáo, predominan- tl<¡s sons' Poucos como o francés Henri-Irénée Marrou
arriscaram penetrar nesre
temente marcados pela concepgáo do conhecimento positivo e pelo exagerado rr,iverso, escrevendo sobre o assunto e oferecendo
uma abordagem de historia_
cientificismo. Bem de acordo com essa mentalidade oitocentista, a musicologia rlor' Em plena rr Guerra Mundial, a pedido de colegas
itarianos, ele preparou um
surgiu com a pretensáo de ser a "ciéncia da música", com objetivo de entender e curso de introdugáo á cangáo popular francesa,
que se tornou posteriormente
explicar cientificamente o discurso interno da linguagem musical. Mas para isso trrna alentada obra publicada em 1944- com exemplos musicais, Ietras de can_
deveria tratar também dos estilos, géneros, artistas e sua coletividade, já esbogan- r'.íres, análises melódicas
- de tonalidades evidentemente folcloristas.e Na mesma
do os limites de uma história da música. úPoca, escreveu um pequeno tratado sobre a música em santo Agostinho,o
e so-
Concorrendo com pretensóes de compreender a música para além das aná- r)rcnte bem depois retornou ao tema quando
abriu um capíturo sobre o assunto
lises formalistas internas da linguagem - e apresentando caminho diverso da na- rra conhecida obra sobre os trovadores
med.ievais.,, Talvezpelo contexto da ten-
tlÍeza dos sons e suas linguagens - a sociologia da música aparece neste quadro. sá«r gerada pela guerra e provavelmente
também pela temática, ere escreveu as
Ela pretendia pensar e perceber suas agóes em correspondéncia direta com o in- rluas obras sobre música com o pseudónimo
de Henri Davenson. outro historia-
divíduo e com a sociedade, levando em conta os modos como eles organizavam d,¡ bem mais conhecido, que também se manteve incógnito
durante anos pero
os sons em forma de música, como a produziam, divulgavam e criavam gostos.6
Seguindo nesse mesmo caminho, surgiu um pouco mais tarde a etnomusicologia 7 cnucns, Francisco. Las curturas musicares. Lectura, de etuomusicorogia. Mad,rid,:
F_d,.
com objetivo de entender a música na cultura e para além do horizonte euro- 'Iiotta, zoor.
céntrico da "música culta", abrindo espaqo para as músicas populares, orientais, l'l D'trHeus, Carl. Fundamentos de la historia de la música.
Barcelona: Gedisa Editoral,
africanas, indígenas e mesmo as europeias. Oscilando entre um forte folcloris- t997' P. t6-8.
mo romántico e exagerado empirismo, ela só comesou a sair destes angustiantes t¡ l)nvrNsoN, Henry. Introduction a ra connaissance de ra chanson popuraire
frangaise. Le
liure des chansons. §euchátel: Ed. se la Baconniére,
r9gz.
6 ldem. La estética musical desde la antigüedad hasta el siglo xx. Madrid: Alianza Editorial, ro ldern. Tiaiil de ld musique, seron rbspirit de saint Augustin paris: Ed. seuil, 1942.
1999, p. 405-47 t t Me¡rnou, Henri-lrénée. Lcs troubadour¡, z0 cd. paris: Editions du Seuil, ¡97¡.
Erres THoltÉ Sel-rse O historiadoLo luthier e amúsica rj
14 JosÉ Gnneroo VrNcI oB Monens
¿¿
produziu strange Fruit". Tempos interessantes; um uida t7 Frnno, Marc. L'Internationale. Histoire d'un chant d'Eugéne Pottier et Pierre Degeyter.
commodore Records na qual se
das Letras, Looz, p' 252'
no século xx.Tradugáo de S. Duarte. Sáo Paulo: Companhia Paris: Éditions Noésis, 1996.
sobre a cuhura popular
13 Tnorr.rPsoN, E. "Rough music". In" costumes em comum. Estudos rtl VenuuecnN, F. A. Florilégio da poesia brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
tradicional. Sáo Paulo: Companhia das Letras, 1998' [,etras, 1946, 3 -,-vbls., p. 42. O texto foi republicado no ano seguinte, com algumas mo-
f4 vovnrrE, Michel. Ideologias e rnentalidades. sáo Paulo: Brasiliense, f987, P. Í53-254' dificagóes, na s'e9áo "Biografias" da Reuista do Instituto Histórico e Geográfco Brasileiro
Difel/Bertrand, 1989, P' 45' (vol. r4, r85r), com o tftulo "Domingos Caldas Barbosa".
rt R.rwL Jacque s. A inuengá.o da
soci¿dad¿. Lisboa/Rio de Janeiro:
O historiador, o lutltier e a música t7
16 JosÉ Genar-oo VrNcr oB MoneEs
¿¿ Eues TnorurÉ Serrs'q'
zl Hor¿NoA, sérgio tsuarque de. Raízes d.o Brasil, Sa ed. Rio de Janeiro: Livraria José e 76o. i
Olympio, t975, P. rro. 24 É, impressionante como essas condigóes aparecem em dois balangos recentes da produgáo
sobre a música popular na Franga e Inglaterra nas últimas décadas. Ln GurnN, Philippe.
zz ldem, p, 7r.
r 8 JosÉ Grneloo VrNcr oB Moneas e¿ Erns TuouÉ Seuse O historiador, o luthier e a música ry
mente marcados pela ideia da "música jovem", da "cultura musical de massd', da história-música apresentou sensíveis alteragóes nos ílltimos anos e esta obra revela
indústria fonográfica e, muitas vezes, apoiados por certa ilusáo empirista que as urn pouco deste processo de mudangas. Se elas ainda náo soam como tom predo-
fontes seriais apresentavam, como a produgáo de discos, imprensa especializada, lllinante, suas primeiras notas já despontam com certa intensidade. Isso significa
grades de venda, índices de popularidade entre outras.zt (ltte tentatiYas de diálogo tém sido feitas e os historiadores tém procurado
definir
No campo historiográfico o que se observa até a década de ry9o sáo al- scus objetos de estudo a parrir de um diálogo interdisciplinar. De certo modo,
guns aspectos bem evidentes. Em primeiro lugar, a auséncia completa da música, rrs disciplinas mais próximas da música, como a ernomusicologia e a musicologia
dando razáo á. reclamagáo de Frangois Lesure feita ainda na década de ry6o, da também tém realizado relevantes esforqos nesta diregáo, como destacou a musi-
"surdez" entre os historiadores e áreas de estudo próximas.'6 Diante deste quadro t:tiloga Myriam Chiménes. Este movimento nos últimos anos rem sido considerá-
poderíamos tomar emprestada a crítica de Steven Feld aos antropólogos e afir- vcl, a tal ponto que a musicóloga francesa afirmou que "a surdez dos historiadores
mar com ele que se 'bs musicólogos ignoram o povo, os [historiadores] ignoram cstá em via de cvÍi'.'8 Suas primeiras experiéncias de pesquisa com a participagáo
o som".'z E, quando sons e músicas apareceram, bifurcaram por dois atalhos: ou tlc historiadores de offcio se reproduziram em alguns grupos interdisciplinares,
surgiram de modo tangencial em trabalhos interessados noutras quesróes, como rrrnpliando os horizontes historiográficos. Reforgando essa nova atitude dos his-
as festas populares, moyimentos políticos, géneros, grupos marginalizados etc., tr¡riadores de se aproximar dos sons e músicas, Aiain Corbin escreveu nos anos
90
ou entáo, de modo mais corriqueiro, se transformaram exclusivamente em texto. rrrna obra que revela essas transformagóes.'e Ele discute como os sons dos sinos
Gradativamente, esse quadro de estranheza e lateralidade entre música-história e presidiam o ritmo da vida rural e constiruíam uma verdadeira linguagem e aré
nresmo símbolo de poder. No início do século xrx eles se transformaram, reve-
"En arriére la musique! Sociologies des musiques populaires em France. La génese d'un
lundo uma mudanga de sensibilidade e, consequentemenre, de escura. Ele utiliza
champ". It Réseaux, n" r47.Paris: Lavoisier, zoo7, p. 15-45 e Fnrtr, Simon. "Une his-
0 conceito de 'paisagem sonora"¡o como a chave de compreensáo para essas trans-
toire des reche¡ches sur les musiques populaires au Royaume-IJni",Idem, p. 46-61.
firrmagóes. No mesmo ritmo seguiuJ-P. Gutton, que além dos sinos incluiu nessa
z 5 Neste sentido, a produgáo analítica na América Latina parece ser bem mais ampla e rica,
trova "paisagem sonora" os sons das cidades, das oficinas, entre vários outros.r,
creio mesmo que acompanhando seu ritmo da produgáo musical. Vale a pena apenas a tí-
tulo comparativo observar algumas das análises mais amplas e diversificadas sobre música
e mírsica popular de \(rsNrr<, José Miguel. O som eo sentido. Sáo Paulo: Companhia das ¿[l Cr¡rlriNts, Myriam. "Musicologie et histoire. Frontiére ou 'no mank land' entre deux
Letras, 1989 e "Machado, Maxixe". Teresa 41 5. Reuista de Literatara Brasileira. Sáo Pau- disciplines". ln: Reuue de Musicologie, sociétéfrangaise de musicologie, Tomo g4, no r.
lo, zoo4, p. 14-79; SeNonoNr, Carlos. Feitigo Decente. fuo de Janeiro: Jorge Zahar, zoor; Paris: 1998, p. 78.
FrsnnnveN, Diego. Efecto Beethouen. Buenos Aires: Paidós Diagonales, zoo4; GoNzerrz, 19 ConnerN, Alain. Les cloches de la terre. Paisage sonor€ e culture sensible dans les cdm?gnes
Juan Pablo. "Musicologia popular en América Latina: síntesis de sus logros, problemas y aux xtx siécle. Flammarion, 1994.
desafios". Reuista Musical Chilena, ry5, janeiro-junho de zoor, 18-64.
¡o scHerrn, R. Murray. A afnagáo do mundo. Sáo paulo: Edunesp, zoot e o ouuido pen-
z6 L¡sunn. F. (org.) Encyclopedie de la musique. Paris: Fasquelle, 196r, sanie. Sáo Paulo: Edunesp, r99r
z7 Apud, Besros, Rafael de Menezes. "Esbogo de uma história da música: para além de 1r Gu:r:roN, Brult et sons dans notre histoire. paris: nur, zooo. vale destaca¡ que em
J-l',,
uma antropologia sem a música e de uma musicologia sem o homem".In Anuário An- sentido e abordagem semelhante a de Corbin e Gutton, segue a obra de Nelson Aprobato
tropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 9-71, rg91. Machado, Kaleidosfone. As nouas camadas sonorat da cidade de S,áo Paulo, Fins do século
JosÉ Grnaroo VrNcr or MoneEs e¿ Erres THouÉ Serre¡ O historiador, o luthiere a música
Aqui no Brasil parece que de fato caminhamos na diregáo d.a cura relativa
ser compreendidas e estudadas devidamente nas suas redes culturais e sociais,
dessa surdez. Desde meados da década de t99o, inúmeros trabalhos tém surgi- sob pena de perderem-se ou em generalidades ou em excessivas especificidades
do ampliando o horizonte historiográfico e apontando na diregáo de um campo
técnicas. Por fim, as problemáticas metodológicas e práticas relacionadas com as
específico.r'Portanto, esse pode ser um momento excepcional para o historiador
fbntes, documentagáo e sua hermenéutica, surgem derivadas dessas questóes mais
aprofundar a discussáo em pelo menos trés diregóes. Em primeiro lugar, em ror-
abrangentes. Seguindo nessa diregáo, provavelmente o historiador de ofício estará
no das questóes relacionadas ás sutilezas e complexidades da hermenéutica da
rnais próximo daquela "sensibilidade dos sons e dos dedos", notavelmenre pres-
criagáo, performance e divulgagáo artística. Talvez a interpretagáo da criaEáo
ar- sentida por Marc Bloch.
tística, sua linguagem inrerna, o desempenho de execu gáo e a recepgáo da obra,
Esperamos que este livro revele um pouco da riqueza e da dinámica destas
permanegam como as mais complicadas pafa o historiador, mas ele precisa
ter transformagóes ainda em curso na oficina da História. Os noye capítulos que
em mira que sáo problemas mais abrangentes e náo exclusivos dele, como já
des- compóem o livro foram escritos por pesquisadores que tém justamente como
tacou Gianfranco vinay.,
Nesse campo, a atitude interdisciplinar torna-se im- c¿rracterística a formaEáo ou a abordagem interdisciplinar. Todos eles, em al-
periosa, senáo iniludível, levando o historiador a recorrer á musicologia, língua
gum momento de sua trajetória profissional e académica, estiveram envolvidos
e literarura, etnomusicologia, semiótica, história da música e assim por diante. com a música, mas, sobretudo, com História e as preocupagóes historiográfi-
Todo esse universo musical
cria uma ampla rede de sociabilidades (formas de so- cas. A História permanece sendo o eixo central de seus questionamentos, mas
brevivéncia, espaEos de divulgagáo, performances, reragáo criador-intérprete,
in- crn diálogo permanente com a música e as redes de sociabilidade criadas em
térprete-ouvinte etc.) e alcanga no rempo historicidades peculiares que precisam
t«¡rno dela. A formagáo e as preocupagóes diversificadas leyaram todos a buscar
novos e variados caminhos do conhecimento e diferentes eixos interpretatiyos.
xtx início do xx. sáo Paulo: Edusp, zoog. Essa preocupagáo com os sons e as cangóes
-
l)cste modo, o leitor encontrará nesta obra capítulos com temática variada (da
urbanas que circulam pela cidade carregando algum tipo de recado ou informagáo
ram-
"lnúsica colonial" ás grandes orquestras), abordagens próprias (algumas mais
bém foi objeto de análise em Paris, em períodos dife¡entes, de Robert Darton
no artigo
"Uma precoce sociedade da informagáo. As notícias e a mídia ruusicológicas, outras mais descritivas e narrativas, ou entáo a associagáo delas),
em Paris no século xr¡rrrr".
ln: varia História, n" 25. Belo Horizonre: 2oor, p. tlocumentagáo variada (memória, partituras, registros indiretos, fonogramas,
e deJean-yves Mollier,
9-jr o cameló.
Figura emblemritica da comwnicagáo. Sáo paulo: Edusp, zoo9. programas radiofónicos, imprensa), mas, sobretudo, poderá perceber os diver-
sos caminhos interdisciplinares criados por eles ao longo do processo de cons-
3z Na realidadejá se pode até observar a formagáo de uma espécie rnainstream, que muitas
vezesatuou como camisa de forga para as pesquisas. Fazem parte delas por exemplo, o trugáo de uma narratiya historiográfica.
binómio samba/malandragem, nadécadade r93o, e o trinómio Bossa Noua/Tropicalismo/ Os capítulos que compóem o livro estáo organizados de modo cronológi-
Festiuais da cangáo dos anos
5ol6o.Yer sobre o assunto Mox.ers, José Gerald.o Vinci de. co sem a intengáo de buscar certa linearidade e sentido do tempo histórico. Ao
"Modulagóes e novos rirmos na oficina da História'. lpresentáJos iniciando com temáticas relativas práticas e experiéncias musicais
ln: Reuista G.c.c.r., no r r. Espanha, ás
zoo5. Uma amostragem dessa produgáo historiográfica académica pode ser verificada cxistenies na América portuguesa, ou Brasil colonial, e encerrar com temas situ-
no
site www.memoriadamusica. com. br
nclos em meadds do século >or, o objetivo é apenas oferecer ao leitor um pano-
33 VINA¡ Gianfranco. "Historiographie musicale et heméneutique". In: Reuue de Musicolo- tnma organizado de parte da cultura musical brasileira. Apresentados desta for-
gie, Sociétéfrangaise de musicologie, Tomo g4, no r. paris, r99g. nra, cada capítulo abre evidente diálogo com os textos imediatamente anteriores
JosÉ Gnnaroo VrNcr ne Mon¡cs Erlq.s Tuo¡.rÉ Serrse
¿¿
O historiador, o lutbier e a música 23
se restringia á música apolínea da corte. Ao contrário, Maurício Monteiro mos- é central. Mas essa mediagáo só foi possível em virtude da onipresenga do piano,
com o de Apolo, revelando-se na circularidade e diversidade das misturas musi- c pianeiros tocayam a "tamanha misturada" de géneros. Para percorrer e com-
cais ocorridas nas ruas, nas festas religiosas ou profanas, nos encontros
informais preender melhor esse híbrido e intricado universo musical, Cacá Machado esco-
mais informal, lheu dois compositores com trajetórias opostas - Henrique Alves de Mesquita
dos músicos-barbeiros e assim por diante. Neste ambiente cultural e
lam suas culturas e, como afirma o autor, criam um "espetáculo á parte daquilo que o rnesmo título: Batuque. A trajetória cruzada dos dois compositores e pianis-
Tinha tanto de sincrético". ntcdiagáo cultural. O primeiro estudou na Franga apoiado pelo governo impe-
A questáo do cruzamento, hibridizagáo e recriagóes culturais éo objeto cen- rlal como uma promessa, mas voltou desacreditado ("desvirtuado pela boémia e
tral do capítulo u, Batuque: mediadores culturais do fnal do século xtx, de autoria por uma paixáo amorosa", segundo o disse-que-disse da época) transformando-se
do professor Cacá Machado. O criativo eixo analítico escolhido pelo autor pri- cm um célebre e feliz compositor de operetas. Nazareth, em sentido inverso, tal
vilegia o rico diálogo e as mediagóes entre a música erudita e a popular, encara- como Pestana da ficgáo de Machado de Assis, oscilou melancolicamente entre "a
do como eixo definidor de toda nossa formagáo cultural. O texto se concentra rmbigáo de se tornar um pianista erudito e a vocagáo de ser um compositor po-
na cidade do Rio de Janeiro da segunda metade do século xrx, período em que pular (que a despeito de sua ambigáo o celebrizou)". A partir da década de t9zo,
modo tradicional nos teatros fechados e ambientes cortesáos, como nos esPagos tc tornar símbolos da "identidade nacional" brasileira pela via da música popular
me-
públicos e populares. Entre estes dois universos, porém, haveria esPa§os de urbanaenáoaerudita.
diaqáo cultural, lugar ocupado pela polca. Para o autor, esse género europeu
de É curioso perceber que toda essa longa trajetória de hibridizagáo cultural e
música de danga de compasso binário e andamento vivo, originado na Boémia, tffinsformagóes musicais ocorridas nas passagens do século xrl>or, foi identifica-
foi primeira manifestaqáo da moderna música popular urbana que circulou e foi
a dr c sintetizada de maneira notável por Pixinguinha. Ao comentar as caracterís-
consumido por amplas e indeterminadas camadas da sociedade carioca. Foi este ¡lc¡s de sua composigáo mais conhecida ele disse que"Carinhoso eÍauma polca
incrível processo de adaptaqáo das danqas europeias ao ambiente cultural brasilei- lcnta. Naquele tempo tudo era polca (...). Chamei de polca lenta. Depois passei
ro, marcado pelo deslocamento rítmico da síncope, que resultou na criagáo dos I chamar de choro. Mais tarde, alguns acharam que era samba". Aliás, o pró-
prlo Pixinguinha é outro cornpositor que pode ser compreendido nesse mesmo
ps Mon¡¡s Erres TuouÉ Ser'rse
O historiador, o luthier ea música 29
LB JosÉ Gnuroo VrNcr
e¿
a alegria (que náo é o mesmo que felicidade), a simpatia de Deus, o lema da li-
MarizaliratenhadesempenhadopapelrelevantenesteProcesso,amisturaentre
e historiadora, se cristalizou nas in-
llerdade, o sensualismo de sua gente e acabou-se por configurar a imagem de
memória, folclorismo, práticacolecionadora
trm país musical". E Aquarela do Brasil, com o arranio orquestral de Radamés
de Almirante' Ao reunir e sintetizar
os
críveis e criativas atividades radiofbnicas (inatalli
auténtica" opert- - gue, consagrado no pentagrama, se tornou um clássico quase táo im-
diversos elementos da nova narrativa, o radialista construiu uma
ba- portante quanto á própria composigáo - foi provavelmente o caso mais conheci-
indica Michel de Certeau' De maneira inusitada'
as
gáo historiográf.ca", corno
tlo, tornando-se modelo de conteúdo e forma do "samba exaltagáo". Mas o autor
sesteóricasepráticasdesseauténticoprogramadedesenvolvimentodamemória e quase monumental
lanqadas nas séries radiofónicas' iniciadas
náo se concentra apenas neste caso - demasiado conhecido
e da história da música popular foram
- e nos apresenta ourras leituras nacionalistas que surgiram á época. Ele discute,
nadécadaderg3ocomCuriosid'ad'esMusicais'eencercadanosanosdergtoem
pessoal dawlha Guard.a. E a conclusáo deste intricado processo
se deu com a llor exemplo, como passamos sem mediaEóes do
"samba exaltagáo" da natureza -
o e de nossa gente, para a "exaltagáo do samba",
pessoal' acumulado e otganizado durante
com seus mares, rios e cachoeiras -
transformagáo de seu imenso arquivo
(:omo expressáo acabada de nossa gente, modo de vida e de nossa identidade na-
a música popular urbana' concedendo-
anos, no primeiro acervo público sobre
cional. AIém disso, mostra que havia todo um rePertório tratando do clima da z"
lhe finalmente uma "memória de papel"'
no país nos anos 30 (luerra Mundial, no qual se destacaram lemas e temas exaltando o papel do país
O discurso nacionalista de diversos matizes presentes
Iro confito. Porém, em algumas dessas cangóes também se podia "ouYir o louvor
na construgáo da música popular e das
e 4o foi elemento importante Presente
de diversas maneiras tanto a me- clc malícias e truques do 'soldado -capoeird" , ainda ecoando de maneira sutil o
narrativas criadas em torno dela. Ele marcou
lnodo de vida do malandro, visto com maus olhos pela censura e propagandistas
móriacomahistóriadamúsicapopularurbana.Ocapítulovl,SAMaAEXALTAQA2,
tlo governo. Mas as notas dissonantes deste discurso grandiloquente nacionalista
FanmsiadeumBrasi,lbrasileiro,escritopeloprofessorJoáoErnaniFurtadoFilho
tnmbém continuavam expostas na sociedade, forjando uma espécie de brasilida-
sambas e marchas compostos e divulga-
aborda justamente os diversos tipos de
de na contramáo. As composiqóes de Noel Rosa tragavam outro ruidoso "retrato
dos nesta época e que tinham o Brasil
como tema' Essas cangóes apareceram em
em que o nacionalismo do Estado do Brasil". Em Quem dd mais, por exemplo, os elementos típicos da "nova brasi-
um momento crucial da vida política do país
lldade", como o violáo, a mulata e o samba, eram leiloados e vendidos ao maior
varguistasignificoucensuraseimposiqóesdemodelosculturais.Pelaprimeiravez
preso, penetrando assim em questóes mais profundas - e, Por que náo, muito
políticadeEstadoemúsicapopularaproximaram-Seeodiscursonacionalistae
Embora fosse um Estado autoritário com Ituais! - de nossa vida social e da "brasilidade".
da identidade nacional foram o mote.
o capítulo v:l^, Vitrola paulistana pelos olhos e ouuidos de um basbaque'
mecanismos institucionais de pressáo -
do olp á Rádio Nacional - parece que Já
mdarilho, de autoria da jovem historiadora Camila Koshiba Gongalves, aborda
suapolíticaculturalemrelagáoámúsicapopularestavaSemprepassoatrásdas
s '\antbas da legitiruidade" desta época tema relativamente recente e importante para compreensáo da história da música
criagóes culturais e artísticas. Os inúmero
popular: a indústria fonográfica. Diferente da maioria dos outros capítulos que
das pressóes' em que compositores assu-
revelam essas aproximaqóes e o produto
..malandramente,, por conveniéncia ou mesmo por tem de modo geral a cidade do Rio de Janeiro como palco das práticas e ativida-
miram o caráter legalista, seja
des musicais, este trata especificamente do binómio disco-rádio na cidade de Sáo
brasileira assumiu de diversas formas
convicqáo. Independente disso, a sociedade
P¡Ulo nos anos 2olro. As "esferas negras" produzidas no ambiente técnico Pouco
osdiscursosnacionalistasfortementePresentesnaépocanomundotodoeacan.
mágico do estrldio de gravagáo ganham nos ambientes Públicos ou privados da
gáopopularatuouaquidemodoativodesteProcesso.Elacantou,,artaÍtJfeza,
O historiador, o luthier e a música 27
26 Eues ThouÉ Serrse
JosÉ Gennroo VrNcr oE MoRABs
e¿
cidade uma espécie de encantamento sonoro que "embasbacd' completamente o O capitulo vilt, Na trilha das grandes orquestras. O ABC da cidade modrrna.
Auióes, Bailes e Ciruema, do professor Francisco Rocha, também tem a cidade de Sáo
ouvinte paulistano. A pesquisadora acomPanha entáo esse "basbaque da vitrold'
- cujo mote romou emprestado de reportagem do Diário Nacional de ry29' l)aulo como palco. Seu texto procura compreender as relagóes que se estabelece-
para percorrer as ruas da cidade e apresentar o impacto cultural e musical deste rirm entre alguns signos importantes da vida moderna como o aviáo, os bailes e
novo universo na capital paulista. Por meio de seus olhos e, sobretudo ouvidos, o cinema (o ABC qre o titulo alude) com a música popular. A relagáo do mundo
tlrr aviagáo com a música é incidental, mas é claro que ela sempre colaborou para
aparecem os discos das conhecidas indústrias estrangeiras - Columbia e Victor -
como também aqueles produzidos pelas empresas nacionais como a Imperador, rcfbrgar o imaginário de fantasia, luxo, mito e o glamour em torno dos artistas
Arte-fone, Brazilphone, Ouvidor e os selos paulistanos. Surgem entáo Pelo ca- ruais célebres. Mas aqui, além dessas condigóes, empresas de aviagáo financiaram
pítulo as obras de artistas como Amador Pinho, Domingos Pecce, Nabor Pires l)rogramas radiofrnicos - como Aquarelas da América e Curiosidades musicais
*
Camargo, Alberto Marino, Petit e outros menos conhecidos. A gravagáo elétrica c o aeroporto de Congonhas situado em Sáo Paulo, comportou nos anos 4ol 5o
desta época significou melhoria técnica e também crescimento da produqáo de rrnl saláo de bailes em suas dependéncias para eventos em alto estilo e por onde
discos. Era preciso entáo estimular nos paulistanos a escuta pública de "música l)irssaram as mais conceituadas orquestras brasileiras. Essa conjungáo aeroporto/
elétrica" em bares, cafts, cinemas ou calgadas. A cidade tornou-se uma babel de sirlíro de baile, aparentemente insólita, surge no texto como uma chave valiosa
sons incomodando certos setores da sociedade. Esse processo de crescimento da pilla compreender o que essa "cultura musical, associada ás grandes orquestras e a
indústria fonográfica foi acompanhado pela expansáo do rádio, formando assim ¡rrática da danga, representou para o imaginário daquela sociedade". Nas décadas
o eixo cenrral da produqáo e divulgagáo dos novos géneros da música popular tlc r94ol5o se multiplicaram pela cidade de Sáo Paulo os salóes e pistas de danga
no mercado. Além disso, essas indústrias criaram idolos e impuseram gostos e cttt irssociagóes, clubes, boates e hotéis mais luxuosos. Acompanhando essa proli-
padróes de composigáo. Mas a historiado ra náo interpreta tais mudanqas como lbrlgáo surgiram inúmeros cursos de danga, entre eles a Escola de DanEa de Saláo
simples e automáticas imposigóes da "indústria cultural" que se desdobraram em rlrr Madame Pogas Leitáo, uma das mais rígidas e célebres da sociedade paulista-
"regressáo auditiva" dos ouvintes. Ao contrário, ela nos mostra que o "basbaque flnrt. Segundo o autor, essas escolas de danga e os salóes de baile assumiram caráter
davitrold' ampliou sua escuta e seu uniYerso cultural e nem sempre aderiu aos dc vcrdadeira instituigáo para os paulistanos da época. Na realidade, Sáo Paulo
modelos e mitos criados e impostos. E revela também que, em torno das criagóes tn¡nlrém foi conquistada pela moda internacional impulsionada pelo cinema nor-
divulgadas pelos discos, apareceram ouüas práticas e experiéncias musicais ines- ic-atnericano que divulgava suas orquestras, repertórios e modelos coreográficos.
peradas como a dos modinheiros que vendiam pelas ruas suas "liras" feitas em pa- Ax Big-bands com seus bands-leaders - Benny Goodman, Tommy Dorsey, Glenn
pel barato. Essa auténtica "lira paulistand'," de que falava Antonio de Alcántara Millcr - e seus géneros dangantes como o suting- aliás comparado a uma decola-
Machado, contaya o coddiano - geralmente trágico da cidade - e deviarn ser §cnl de um aviáo pelo conservador e polémico crítico de música Henry Pleasants
acompanhadas justamente pelas melodias conhecidas e divulgadas pelos discos - ocuparam as telas e discos. A maioria das cangóes que animavam os bailes desta
sendo que algumas delas chegaram mesmo a ser gravadas Por selos paulistanos' época eram inicialmente apresentadas nas trilhas sonoras dos filmes e depois es-
cutadas em discos. Mas algumas orquestras internacionais também estiyeram na
"Lira Paulistana". In: Reui.sta do Arquiuo Municipal, clclade, divulgando cangóes e melodias vistas na tela, como as orquestras do ma-
15 Mecneoo, Anronio Alcánta¡a.
Gttro George Henry e a de Xavier Cugat, que se apresentaram no luxuoso saláo
vol. xvlt. Sáo Paulo: Departamento de Cultura, 1915'
)z JosÉ Gnnel.po VrNcI or Mours e¿ Erres THoIvtÉ Sarrse
do Hotel Excelsior. Mas quando elas náo estavam Presentes, a escuta dos paulis-
ranos era realizadapelas conhecidas orquestras dos maestros Osmar Milani,
Silvio
fruigáo, embora estes elementos estejam Presentes e espera-se que o leitor possa
usufruir plenamente destas condigóes. Na realidade, a intengáo é permitir ao lei-
tor aprofundar e penerrar ainda mais nas experiéncias musicais do período, com-
com-
partilhando do esforgo dos historiadores em escutar o passado para melhor
e do som
preendé-lo. Agindo deste modo, na mobilidade criativa do texto ao som
ao texto, acreditamos, como indicou Marc Bloch, que a relagáo
entre História e
Música "guia-se, antes de tudo, pela sensibilidade dos sons e dos dedos".
tros sonoros.
Euas TnolrÉ S'tusa O historiador,o luthier eamúsica rr
ro JosÉ Grneroo Vrr'rcr os MoRABs e¿