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ISABELA ABES CASACA

MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO


CURSO DE DIREITO
CAMPO GRANDE-MS
2014
2

ISABELA ABES CASACA

MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

Monografia apresentada à
Universidade Católica Dom Bosco,
curso de Direito, sob orientação
temática da Profª. Maria Teresa
Casadei e orientação metodológica do
Prof.º Dr. José Manfrói para efeito de
obtenção do título de Bacharel em
Direito.

CAMPO GRANDE-MS
2014
3

FOLHA DE APROVAÇÃO

Este documento corresponde à versão final da monografia intitulada


Mutação Constitucional defendida por Isabela Abes Casaca perante a Banca
Examinadora do curso de Direito da Universidade Católica Dom Bosco, tendo sido
considerada aprovada.

_____________________________________________

Prof.ª Maria Teresa Casadei

_____________________________________________

Prof. Edson Luiz Xavier

_____________________________________________

Prof. Luiz André De Carvalho Macena


4

“Tudo o que temos de decidir é o


que fazer com o tempo que nos é
dado.” (John Ronald Reuel
Tolkien, 1892-1973)
5

Dedico esta
monografia às
futuras gerações.
6

AGRADECIMENTOS

Primeiramente sou grata aos meus pais e demais familiares, pessoas de valor
inestimável em minha vida, que com carinho me transmitiram valores, ensinamos, e
pelo auxilio na decisão de cursar esta graduação.

Sou grata também a minha orientadora pela sua dedicação ao exercício da


docência, por me guiar durante este trabalho monográfico. Igualmente agradeço aos
outros professores, que no exercício de sua nobre profissão me transmitiram
conhecimento.

Dedico gratidão aos meus exemplos, André Luis Moraes de Oliveira, Carlos
Teodoro José Hugueney Irigaray, Flávio Garcia Cabral e Lenirce Aparecida Avellaneda
Furuya, pela convivência e experiência prática do Direito.

Por fim, externo minha gratidão a Deus e ao Grande Mestre.


7

ABREVIATURAS

PCO – Poder Constituinte Originário

PCD – Poder Constituinte Derivado

PCDR – Poder Constituinte Derivado Reformador


8

RESUMO

O presente trabalho monográfico buscou explicar de maneira sintética, clara e objetiva o


conceito de Constituição, sua relevância social e jurídica e também demonstrar através de qual
ótica ou concepção ela pode ser vista e compreendida, destacando as principais correntes de
pensamento. Caracterizar e traçar uma linha demonstrativa de como o Poder Constituinte se
expressa na realidade fática, quais são suas subdivisões e suas particularidades e singularidades,
trazendo a baila o Poder Constituinte Originário, o Poder Constituinte Derivado, seja ele
Reformador ou Decorrente, e o Poder Constituinte Difuso, dando especial foco a este último,
explicitando que este tem o poder de modificar o entendimento do texto constitucional sem
modificar-lhe uma vírgula sequer, sendo esta valiosa prerrogativa uma contribuição para criar
uma correspondência e harmonia da realidade fática com o texto escrito. Compreender e
analisar de maneira crítica o fenômeno jurídico ainda pouco conhecido da Mutação
Constitucional, explicando seu conceito, sua natureza, pontuando suas principais características,
diferenciando suas modalidades mais célebres, classificando e dividindo sua ocorrência de
acordo com exemplos constatados de maneira concreta, sendo possível verificar a ocorrência
deste fenômeno operado em virtude de intepretações constitucionais, decorrente de práticas
constitucionais e por meio da construção constitucional. Verificar e apontar quando o fenômeno
da Mutação Constitucional extrapola o limiar dos limites jurídicos aceitáveis e transmuta-se em
sua antagonista, a mutação inconstitucional, apresentando mecanismos que possam corrigir ou
anular esse antagonismo inconstitucional, elencando os sistemas de controle eventualmente
usados com o objetivo de solucionar mutações indevidas e equivocadas em nosso ordenamento
jurídico, guarnecendo a integridade do texto da nossa carta constitucional.

Palavras-chaves: Poder Constituinte Difuso. Mutação Constitucional. Constitucionalismo.


9

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 10
1. TEORIA GERAL DA CONSTITUIÇÃO............................................................................... 12
1.1. CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO ................................................................................. 12
1.2. DAS CONCEPÇÕES DE CONSTITUIÇÃO .................................................................. 13
1.2.1. Sentido sociológico ................................................................................................... 13
1.2.2. Sentido político ......................................................................................................... 14
1.2.3. Sentido jurídico ......................................................................................................... 14
1.2.4. Sentido de ordem material e aberta da comunidade .................................................. 15
1.2.5. Sentido de processo público ...................................................................................... 16
1.2.6. Sentido culturalista .................................................................................................... 17
1.3. PODER CONSTITUINTE ............................................................................................... 17
1.3.1. Poder Constituinte Originário ................................................................................... 17
1.3.2. Poder Constituinte Derivado ..................................................................................... 19
1.3.3. Poder Constituinte Difuso ......................................................................................... 20
2. MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL ......................................................................................... 22
2.1. CONCEITO...................................................................................................................... 23
2.2. NATUREZA .................................................................................................................... 24
2.3. CARACTERÍSTICAS ..................................................................................................... 25
2.4. MODALIDADES ............................................................................................................ 26
2.5. CLASSIFICAÇÃO DOS TIPOS DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL ...................... 27
2.5.1. Mutações Operadas em virtude da interpretação constitucional ............................... 28
2.5.2. Mutações através da Construção Constitucional ....................................................... 32
2.5.3. Mutações Decorrentes das Práticas Constitucionais ................................................. 35
3. MUTAÇÃO INCONSTITUCIONAL ..................................................................................... 37
3.1. LIMITES DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL .......................................................... 37
3.2. CARACTERÍSTICAS DAS MUTAÇÕES INCONSTITUCIONAIS ............................ 39
3.3. EFEITOS DAS MUTAÇÕES INCONSTITUCIONAIS ................................................. 40
3.4. EXEMPLO DE MUTAÇÃO INCONSTITUCIONAL ................................................... 41
3.5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ACERCA DA MUTAÇÃO INCONSTITUCIONAL ...... 42
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 44
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 46
10

INTRODUÇÃO

Com o advento do Neoconstitucionalismo, cada vez mais se torna evidente e


notável o destaque e valor atribuído a Constituição, a Lei Maior de uma sociedade.
Muitos estudiosos vêm empregando seus esforços para melhorar nossa compreensão a
respeito deste documento legal, procurando estabelecer qual o poder legítimo que
provoca seu nascimento.

Da mesma forma, os catedráticos também se esforçam para delimitar as


maneiras formais que as Cartas Máximas podem ser alteradas, sem acarretar prejuízos
ao seu espírito inicial. Assim, por este zelo em não deturpar o texto constitucional,
emergiu uma tendência de tais textos permanecerem um pouco imutáveis perante a
passagem de tempo e evolução dos anseios sociais.

Esta imutabilidade é de certa forma um problema, pois as Constituições a


fim de serem realmente efetivas, devem guardar uma compatibilidade com a realidade
concreta da sociedade. Para corrigir o problema supramencionado despontou uma via
informal de promover alterações necessárias de maneira espontânea, criando uma
correspondência do texto escrito com a realidade fática.

Os doutrinadores nomearam de Mutação Constitucional o fenômeno


supracitado, procuraram explica-lo como a alteração que não acontece na letra da lei,
mas sim no campo da consciência dos interpretadores, dos julgadores e da sociedade em
geral, e também buscaram alertar de uma eventual deturpação deste mecanismo.

O presente trabalho monográfico tem como fim, de maneira sucinta e


objetiva, elucidar mais a respeito das Mutações Constitucionais, inicialmente
explicando e conceituando o que é Constituição, esclarecendo sobre quais principais
óticas ela pode ser compreendida, mostrando evolução do pensamento dos
doutrinadores.
11

Em seguida, apresentar a força motriz legítima que faz nascer um texto


constitucional e explicar o resquício dessa força motriz inicial que emerge no momento
que mecanismos formais de alteração constitucionais acontecem.

E finalmente, trazendo a baila o fenômeno que titula esta monografia, a


Mutação Constitucional, esclarecendo seu conceito, sua natureza, suas modalidades,
suas classificações e suas limitações.
12

1. TEORIA GERAL DA CONSTITUIÇÃO

O Constitucionalismo é a ciência que busca compreender a organização


estatal fundamental, estudando a estrutura do poder político, delineando seus aspectos
jurídicos e suas limitações. Ele também procura a conceituação do que é uma
Constituição, quais são suas dimensões e compreensões, qual a origem da sua força
geradora e como ela pode ser modificada.

1.1. CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO

Conceituar a expressão “Constituição” é deveras uma tarefa árdua, ainda


mais hercúlea seria a pretensão de condensar em poucas palavras todas as suas várias
significâncias. Como sapientemente observa Uadi Lammêgo Bulos1: “Na Teoria
Constitucional, a sua noção é plurívoca”. Logo, a fim de não nos perdermos num
torvelinho conceitual, é fundamental atermo-nos em seu significado como elemento da
Ciência Política e do Direito Público.

De tal maneira, é possível notar o amalgama existente entre o conceito de


Constituição e o conceito de Estado. Não poderia ser diferente, afinal “o Estado compõe
a substância e a essência da Constituição. A realidade da constituição é inseparável do
Estado. Daí a necessidade de se considerar o Estado como matéria-objeto da
Constituição”2. A Lex Legum3 cria o Estado e depois ordena seus elementos
compositivos: povo, território e governo soberano.

1
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional, 2007, p.27.
2
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional – Teoria do Estado e da Constituição, Direito
Constitucional Positivo, 2007, p. 71.
3
Expressão latina que pode ser usada para se referir a Constituição.
13

Portanto, a Constituição se revela como “a particular maneira de ser de um


Estado”4, estando impresso nas entrelinhas de seu texto a história, cultura, crença,
objetivos, anseios e identidade de um povo.

1.2. DAS CONCEPÇÕES DE CONSTITUIÇÃO

Ao longo dos anos foram propostas inúmeras formas de se compreender a


Lei das Leis, grandes catedráticos postularam a respeito do tema, gerando uma grande
riqueza de compreensões acerca da Constituição, que só fizeram progredir no decurso
do tempo.

Podemos formar duas tríades no tocante as teorias mais relevantes que


buscam explicar as várias concepções de constituição. Primeiramente os sentidos
clássicos: Sociológico, Político, Jurídico. Em seguida os contemporâneos: Ordem
Material e Aberta da Comunidade, Processo Público e Culturalista.

1.2.1. Sentido sociológico

Ferdinand Lassalle estabelece esta visão em sua obra A Essência da


Constituição, apresentando a Lei Máxima em dois níveis, a Constituição Real e
Efetiva, o somatório dos fatores reais de poder que comandam uma sociedade, e o texto
constitucional escrito, sendo que “de nada servirá o que se escreve numa folha de papel,
se não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder”5. Tais fatores podem ser as
forças políticas, científicas, econômicas, culturais, militares e religiosas, e caso não
sejam levados em conta pelo texto escrito, este não passará de um reles pedaço de papel.

Para se obter uma constituição boa e duradoura, esta deve corresponder a


chamada constituição real, do contrário a constituição escrita ou pedaço de papel não
4
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, 1999, p. 24.
5
LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição, 2010, p.44.
14

terá outro destino senão sucumbir perante os fatores reais de poder dominantes. Dessa
forma, fica exposto que o texto escrito tem sua importância extremamente diminuída ao
passo que a realidade social ganha muito mais importância.

1.2.2. Sentido político

Na obra Teoria da Constituição, Carl Schmitt defende ser a Constituição


fruto da decisão político fundamental, em outras palavras, sua essência se encontra na
decisão política do titular do poder constituinte. Há uma inequívoca politização do
Direito no pensamento deste autor, que aborda a constituição como particular estrutura
da unidade política6.

Há também uma diferenciação daquilo que seriam normas efetivamente


constitucionais e leis constitucionais; as primeiras tratariam dos elementos afins à
estrutura mínima e essencial do Estado (povo, território e governo soberano), já as
segundas por não trazerem matéria relacionada à essência estatal são assim chamadas
por estarem meramente localizadas na constituição7.

1.2.3. Sentido jurídico

Segundo Hans Kelsen, no livro Teoria Pura do Direito, a Constituição


nada mais é do que norma pura, ou seja, puro dever-ser, assim sendo, sua concepção é
totalmente dissociada de qualquer outro fundamento, seja ele político, filosófico ou
sociológico. Tal compreensão apresenta a Lex Legum como o paradigma criador do
ordenamento jurídico estatal, caracterizando a função do estado como uma função
jurídica8.

6
SCHMITT, Carl. Teoria da Constituição, 2008, p.47.
7
SCHMITT, Carl. Ob. Cit., 2008, p.63.
8
HANS, Kelsen. Teoria Pura do Direito, 1979. p. 17.
15

Todas as demais normas jurídicas fundam-se na constituição, e como um


dever ser só pode decorrer de outro dever ser, a constituição por sua vez tem sua
validade retirada da norma hipotética fundamental.

Para Kelsen, existem dois sentidos de constituição, o jurídico-positivo e o


lógico-jurídico9. O primeiro é a constituição escrita que conhecemos. O segundo é a
norma hipotética fundamental, uma espécie de constituição transcendental e imaterial,
que paira na consciência do indivíduo que transmutará o imaterial pensado no material
escrito.

1.2.4. Sentido de ordem material e aberta da comunidade

Konrad Hesse postula em sua obra A Força Normativa da Constituição


que a Lei das Leis se condiciona pela sua realidade histórica, não podendo ser
dissociada desta; portanto, sua eficácia é igualmente associada à realidade concreta de
seu tempo. Nota-se assim, uma semelhança com o pensamento lassalliano, todavia, a
teoria em presente apreciação é uma evolução da primeira10.

Konrad Hesse defende que a constituição não é a mera soma dos fatores
reais e efetivos do poder, mas “também pode servir de instrumento de modificação da
realidade histórica e social”11, configurando dessa forma uma via de mão dupla no
concernente a transformações, em outras palavras, a realidade social pode aprimorar a
constituição escrita ou a constituição escrita pode aprimorar a realidade social.

Nas próprias palavras de Konrad Hesse12:

A Constituição não está desvinculada da realidade histórica concreta


de seu tempo. Todavia, ela não está condicionada, simplesmente, por
essa realidade. Em caso de eventual conflito, a Constituição não deve
ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca. Ao contrário,

9
HANS, Kelsen. Ob. Cit., 1979. p. 31.
10
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição, 1991, p. 5.
11
AZEVEDO, Nivaldo. Direito Constitucional Sistematizado para Concursos Públicos, 2012, p. 14.
12
HESSE, Konrad. Ob. Cit., 1991, p. 5.
16

existe pressupostos realizáveis que, mesmo em caso de confronto,


permitem assegurar a força normativa da Constituição.

Uma das grandes percepções do supramencionado autor é de que as


constituições não são completas e perfeitas, pelo contrário, são incompletas e
imperfeitas, encontrando-se num estado perene de transmutações.

1.2.5. Sentido de processo público

O pensamento inovador de Peter Haberle apresenta uma incomum virtude


ao reconhecer que todos os indivíduos, não só os doutos juristas, de alguma forma
podem contribuir para construção do texto constitucional e de sua consciência.

Até pouco tempo imperava a ideia de que o processo de interpretação


constitucional estava reduzido aos órgãos estatais ou aos participantes
diretos do processo. Tinha-se, pois, uma fixação da interpretação
constitucional nos "órgãos" oficiais, naqueles órgãos que
desempenham o complexo jogo jurídico-institucional das funções
estatais. (...) A interpretação constitucional é, todavia, uma “atividade”
que, potencialmente, diz respeito a todos. Os grupos mencionados e o
próprio indivíduo podem ser considerados intérpretes constitucionais a
longo prazo.13

Ao conceber que a constituição “participa de uma ordem fragmentária,


indeterminada e carente de interpretação”14 esta passa a ser compreendida como um
documento pertencente a uma sociedade pluralista e aberta, uma verdadeira obra de
vários participantes, por exemplo, a sociedade e a ordem jurídica estatal.

13
HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional - A Sociedade Aberta dos Intérpretes da
Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e "Procedimental" da Constituição, 2002, p. 24.
14
AZEVEDO, Nivaldo. Ob. Cit., 2012, p. 15.
17

1.2.6. Sentido culturalista

Por fim, é preciso notar que todos os sentidos ou concepções, antes de serem
antagônicas, são na realidade complementares, surgindo assim à ideia de Hermann
Heller: a Constituição Total. De tal maneira, a Lei das Leis é um “conjunto de normas
fundamentais condicionadas pela cultura total, e, ao mesmo, tempo condicionante desta,
emanadas da vontade existencial da unidade política, e reguladora da existência, da
estrutura e fins do Estado e do modo de exercício e limites do poder político”15.

De tal forma que, a Constituição age simultaneamente como o resultado da


expressão cultural e também como elemento conformador de alguns aspectos da
supramencionada cultura.

1.3. PODER CONSTITUINTE

O Poder Constituinte é diretamente e profundamente associado à ideia de


Estado e de Constituição, porque ambos são criados em razão da manifestação da
vontade do titular do Poder, esta manifestação de vontade tem duas características
singulares, ela é criadora e soberana. Explicando mais detalhadamente, criadora, pois
institui a Constituição e o Estado, fundando o ordenamento jurídico, e é soberana, pois
deixa estabelecida a organização política, jurídica, social, administrativa e econômica
do Estado.

1.3.1. Poder Constituinte Originário

O Poder Constituinte Originário é a energia vital das constituições. Trata-se


da força criadora que elabora a Constituição e estabelece as fundamentais diretrizes do
Estado. É um poder de fato e de direito, pois tem fundamento em si próprio e não se
15
AZEVEDO, Nivaldo. Ob. Cit., 2012, p. 16.
18

baseia em nenhuma regra jurídica predecessora. Sua natureza tem uma índole histórica,
afinal é anterior ao Estado. Nas palavras do notório constitucionalista Uadi Lammêgo
Bulos:

O poder constituinte originário é um poder de fato. Sua natureza, pois,


é fática. Não é um poder jurídico, sujeito aos desígnios do mundo do
Direito, e sim metajurídico ou extrajurídico. Brota das relações
político-sociais, porque seu fundamento reside nas necessidades
econômicas, culturais, antropológicas, filosóficas e, até religiosas, da
vida em sociedade. O poder constituinte originário não tem como
referencial nenhuma norma jurídica que o precedeu. Posta-se acima do
plano legislativo; afinal, é a produção legiferante do Estado que se
lastreia nele. Resultado: o ordenamento jurídico nasce a partir do
momento em que ele cria a constituição. Então o poder constituinte
originário é um poder preexistente à ordem jurídica.16

Ele nasce da manifestação de vontade criadora e soberana do povo, sendo a


máxima expressão da soberania popular, ou seja, nos Estados democráticos o gênesis do
PCO é oriundo do povo, todavia no momento de seu exercício, este é concedido para
um grupo de representantes, e em alguns poucos casos o exercício é feito diretamente
pelo próprio povo. “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente”17.

Podemos notar as seguintes características no Poder Constituinte Originário:


ele é inicial, ilimitado, autônomo e incondicionado. Vejamos:

a) Inicial, porque é o criador do Estado e inaugurador do ordenamento


jurídico;

b) Ilimitado, pois não está sujeito aos limites jurídicos durante a criação de
sua obra, a única limitação que ele pode vir a sofrer é de ordem metajurídica;

c) Autônomo, porque não coexiste com nenhum outro poder, podendo


determinar livremente a estrutura da ordem jurídica;

16
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit., 2007, p.284.
17
BRASIL, Constituição Federal de 1988, artigo 1ª paragrafo único.
19

d) Incondicionado, pois não está submisso a nenhuma regra ou condição na


manifestação de sua vontade.

1.3.2. Poder Constituinte Derivado

O Poder Constituinte Derivado é um poder constituído, pois seu criador e


instituidor é o Poder Constituinte Originário. Sua natureza é jurídica, portanto, trata-se
de um poder de direito ou poder jurídico, pois suas forças proveem da Constituição, a
ordem jurídica preexistente. Sua função é promover adequação do texto constitucional
às novas realidades ascendentes e organizar os estados-membros que compõem o
Estado Federal, sendo caracterizado pelo fato de ser derivado, limitado, subordinado e
condicionado. Vejamos:

a) Derivado, porque sua força provém de outro poder, o PCO, sendo criado
e instituído por ele;

b) Limitado, pois seu exercício deve respeitar os limites impostos pelo PCO;

c) Subordinado, porque deve obediência irrestrita ao PCO, encontrando-se


abaixo dele;

d) Condicionado, pois tem sua ação predefinida pelo PCO.

Dentro do poder em questão, existe uma subdivisão chamada Poder


Constituinte Derivado Decorrente, também nominado de Poder Constituinte Estadual.
Este é o responsável por estruturar a organização dos estados membros, ele exerce uma
função complementar a Constituição, pois seu destino é perfazer a obra do PCO nos
estados, conferindo-lhes o poder de auto-organização por meio de Constituições
Estaduais. É importante frisar a não existência de um “Poder Constituinte Municipal”,
pois a Constituição conferiu apenas aos estados-membros poder constituinte próprio,
não podendo existir um poder assim que não derive diretamente do PCO.
20

Há ainda mais uma subdivisão: o Poder Constituinte Derivado Reformador.


Sua existência justifica-se pelo fato de que as normas constitucionais não tem caráter
definitivo ou permanente, precisando de atualizações. Muito embora a tendência natural
das Constituições seja a de permanecer no tempo, as transformações sociais e o
dinamismo da vida humana instauram a necessidade por reformas, demonstrando a
relatividade do princípio da imutabilidade das leis constitucionais.

Desta forma, o PCO cria o PCDR, a fim de preestabelecer meios de adequar


a Constituição à realidade vigente, devendo o segundo, irrestrita obediência aos
princípios, regras e procedimentos estabelecidos pelo primeiro. O detentor da
titularidade do poder de reforma é um órgão representativo, o Congresso Nacional, que
pode atuar por meio de revisão ou emenda.

1.3.3. Poder Constituinte Difuso

Definindo em poucas palavras, se o Poder Constituinte Originário é a força


vital que cria as Constituições, por sua vez, o Poder Constituinte Difuso é a força
invisível que a altera, sem modificar lhes uma vírgula.

Embora não formalizado nas constituições, é inegável sua existência na vida


dos ordenamentos jurídicos, ele é responsável pela atualização informal dos preceitos
constitucionais, ou seja, é a modificação que acontece no plano da consciência das
pessoas, dos interpretadores.

Pode-se dizer que, quanto mais rígidas forem as exigências para uma
reforma constitucional, mais fortemente se apresentarão os meios difusos de
modificação, a fim de adaptarem o Texto Maior as exigências sociais. A Constituição
está numa relação condicionante e condicionadora com as demais estruturas estatais,
caso as estruturas éticas, sociais, jurídicas, econômicas e políticas se altere, ela também
deverá modificar-se, objetivando fazer com que a realidade social não se desarmonize
com o texto judicioso.
21

É de fácil verificação que o legislador constituinte deixou algumas


disposições em aberto, mais especificamente palavras, expressões ou frases presentes
nos artigos, incisos e alíneas, aos quais apresentam conceitos subjetivos e ensejam uma
qualificação tipológica acordando com os valores presentes naquele momento jurídico.

Exemplificando, expressões tais como justiça social, interesse público,


reputação ilibada etc., deixam demonstrados vocábulos com significados amplamente
subjetivos, variáveis e mutáveis.

Nem sempre os processos de reforma formal conseguem acompanhar as


inúmeras mudanças nas exigências da facticidade social. Surge, assim, o recurso
indireto da mutação, que não modifica uma letra sequer da norma, tendo como foco de
transformação o seu sentido, dando-lhe dimensões outrora sem contemplação.

A fim de compreender o processo de mudanças constitucionais difusas é


necessário perceber que há uma dialética entre o texto escrito e o movimento social.
Nesse contexto, emerge o fenômeno da mutação constitucional, onde alteração
normativa ocorre somente no mundo das ideias.
22

2. MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

A Lex Legum contém em seu texto todos os valores superiores e essenciais


de uma sociedade, muito embora elas sejam dotadas de estabilidade, simultaneamente,
também são permeadas por uma certa dinamicidade, em virtude de serem quase
organismos vivos, relacionados intimamente com o meio circundante, às forças
políticas, sociais, históricas, econômicas, morais e religiosas atuantes na sociedade.

Para serem dotadas de efetividade as constituições devem resguardar


afinidade com os fatores reais do poder, sujeitando-se as mudanças e exigências sociais,
tais mudanças não acontecem apenas mediante os mecanismos previstos no texto
constitucional, acontecem sobretudo na consciência dos seus intérpretes: o povo,
ganhando novos significados com o passar do tempo.

Assim, a Mutação Constitucional se apresenta como o conjunto de


atualizações materiais no texto da Carta Magna, em decorrência do Poder Constituinte
Difuso, que não chega a modificar a letra da Lei, modificando, na verdade, seu sentido,
trazendo-lhe ampliações, novos significados e alcances às suas disposições.

Uma constatação, porém, parece não deixar dúvidas: as constituições


não se encerram nos limites de suas normas. Estão em permanente
progresso, em eterno devenir. Embora contidas num instrumento
formal, jamais se imobilizam, nem estratificam. Evoluem no dia a dia,
através dos costumes, das interpretações e decisões jurisprudenciais,
nas lições dos professores de Direito, nas argumentações dos
advogados. O seu ser reside no estar-se realizando, porque não são
documentos prontos e acabados. As constituições têm vida!18

O fenômeno descrito acima é lento, acontecendo de forma espontânea e sem


qualquer previsibilidade, acontecendo via interpretação ou via costume. Caso haja
violação dos limites explícitos ou implícitos a mutação pode ser repelida da ordem
vigente por meio de controle de constitucionalidade, nas modalidades difusa ou
concentrada.

18
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. 1997, p. 194.
23

2.1. CONCEITO

Conforme explicado anteriormente, o fenômeno da mutação constitucional


nada mais é do que uma alteração informal no texto constitucional, onde tal alteração
dá-se pela via interpretativa, ou seja, há mudanças, sobretudo, na maneira que as
palavras expressas na Constituição são interpretadas. Em outras palavras, são
“alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações
no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação.”19

Assim, denomina-se o processo informal de mudança da Constituição,


por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então
não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação,
em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da
construção (construction), bem como dos usos e costumes
constitucionais.20

Nas palavras do abalizado doutrinador José Afonso da Silva:

Consiste num processo não formal de mudanças das constituições


rígidas, por via da tradição, dos costumes, de alterações empíricas e
sociológicas, pela interpretação judicial e pelo ordenamento de
estatutos que afetem a estrutura orgânica do estado.21

É importante mencionar, mesmo que brevemente, a existência de uma


divergência terminológica do fenômeno explicado. Conforme Uadi Lammêgo Bulos
constata “inexiste terminologia uniforme para se cognominar o fenômeno das mudanças
informais das constituições.”22 Portanto, as expressões como “transição constitucional
ou revisão informal”23, “processos não formais”24, “processos oblíquos”25 e “vicissitude
constitucional tácita”26, são nomeações diversas para o mesmo fenômeno.

19
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2008, p.129
20
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 57
21
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito constitucional Positivo. 2006, p. 61.
22
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 61.
23
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 1993, p. 231
24
BISCARETTI DI RUFFIA, Paolo. Diritto costituzionale. 1986, p. 86.
24

Compreendemos que (...) são denominações convenientes que


expressam o conteúdo dos meios difusos de modificação
constitucional. O uso de uma ou outra expressão alcança o mesmo
resultado, pois revela a existência de alterações operadas no texto da
Constituição, diversas da atividade, adrede demarcada, do poder
reformador.27

A fim de estabelecermos um parâmetro terminológico, nos ateremos à


nominação “mutação constitucional”, expressão mais consagrada e comum no
constitucionalismo brasileiro.

2.2. NATUREZA

Utilizando como parâmetro as ideias do constitucionalista francês Georges


Vedel, podemos analisar a natureza de uma atividade jurídica sob dois aspectos, o
material e o formal. “No primeiro considera-se o objeto em sua substância. No segundo,
investiga-se o processo de formação do ato ou da atividade.”28

Correlacionando o ensinamento supracitado com as mutações


constitucionais, nada mais lógico do que constatarmos que os meios difusos, não se
orientam por nenhuma formalidade e muito menos procedimentos expressos no texto
constitucional de nossa constituição.

Muito pelo contrário, o fenômeno em questão é completamente livre de tais


formalidades e procedimentos, por isto, sua natureza não poderia ser outra senão a
informal. “São mudanças de fato, não raro despercebidas, só notadas de vez em
quando.”29

25
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações
constitucionais e mutações inconstitucionais. 1986, p. 12.
26
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 1991, p. 133.
27
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 58.
28
VEDEL, George. Manuel élémentaire de droit constitutionnel. 1949, p. 112.
29
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 61.
25

2.3. CARACTERÍSTICAS

Por meio dos usos e costumes, do modo de interpretação dos tribunais, da


construção judicial, das mudanças de paradigmas sociais e jurídicos, e demais meios
que podem provocar mudanças na realidade constitucional, “as mutações
constitucionais procedem-se lentamente, embora a letra da Constituição permaneça
imodificada”30, porém, é preciso ressaltar que tais modificações não devem gerar
subversões jurídicas, muito menos deformações maliciosas.

Há uma espontaneidade e imprevisibilidade na maneira como estas


mudanças informais se manifestam, portanto é possível perceber “a natureza fática dos
meios difusos de alteração constitucional”31. Como são mudanças de fato, geralmente se
desenvolvem perante diferentes contextos situacionais, em momentos cronológicos
distintos.

Contudo, o distanciamento entre os momentos cronológicos distintos não


necessitam de ser muito espaçados, pois as mutações constitucionais podem ocorrer
entre momentos cronológicos bem próximos. Como conclui o douto professor Uadi
Lammêgo32:

Seguimos a orientação, consoante a qual as mudanças informais da


Constituição dão-se, normalmente, em períodos separados no tempo,
sendo esta uma das marcas características do fenômeno. Isto,
entretanto, não precisa ser levado ao pé da letra, ou seja, não
descartamos a hipótese de existirem mutações constitucionais em
momentos próximos.

Assim, podemos concluir que as principais características do fenômeno em


tela são a espontaneidade, imprevisibilidade, natureza fática e a ocorrência em
momentos distintos.

30
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 61.
31
Ob. Cit. 1997, p. 61.
32
Ob. Cit. 1997, p. 62.
26

2.4. MODALIDADES

Como já dito anteriormente, não há uma uniformidade na nomeação


terminológica das mudanças difusas. Tal particularidade igualmente ocorre com a
sistematização doutrinária das categorias ou modalidades, existem inúmeros critérios
utilizados pelos autores com fim de estudar as mutações constitucionais.

Paolo Biscaretti Di Ruffia averbou que as mudanças na realidade


constitucional, que não atingem a letra da lei da Constituição,
agrupam-se em dois ramos, bem delimitados. No primeiro,
encontramos as modificações operadas em decorrência de atos
elaborados por órgãos estatais de caráter normativo (leis,
regulamentos etc.) e de natureza jurisdicional (decisões judiciais,
principalmente em matéria de controle de constitucionalidade das
leis). No segundo ramo, estão as mudanças ocorridas em virtude dos
fatos de caráter jurídico (como os costumes); de natureza político-
social (normas convencionais ou regras sociais de conduta correta
frente à Carta Suprema; ou, simplesmente, as práticas constitucionais
(tais como a inatividade do legislador ordinário que, não elaborando
normas de execução, logra, substancialmente, impedir a realização
efetiva de disposições constitucionais.33

A notável constitucionalista brasileira Anna Cândida da Cunha Ferraz


procurou seguir em essência a propositura classificatória de Biscaretti34, por sua vez
Milton Campos prevê as seguintes hipóteses: construção judiciária, consenso
costumeiro e complementação legislativa35. Já Karl Wheare postula que as mudanças
constitucionais podem se dar através dos costumes e usos36, da mesma forma Hector Fiz
Zamudio37 e Humberto Quiroga Lavié38 se posicionam.

33
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 63.
34
FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações
constitucionais e mutações inconstitucionais, 1986, p. 13.
35
CAMPOS, Milton. Constituição e Realidade, 1960, RF, 187:19.
36
WHEARE, Karl. Las constituciones modernas, 1975, p. 77.
37
ZAMUDIO, Hector Fix. Algunas reflexiones sobre la interpretación constitucional em el
ordenamento mexicano, 1975, p. 14.
38
LAVIÉ, Humberto Quiroga. Los câmbios constitucionales a través de la constumbre y la
jurisprudência, 1977, p. 112.
27

Como conclui Uadi Lammêgo, “como se vê, não existe consenso a respeito
das modalidades pelas quais as constituições são modificadas através dos processos
informais de mudança.”39

Na realidade, não há como elencar o rol de todas as hipóteses em que uma


Constituição pode sofrer mutações desta natureza, até porque no momento de sua
edição, as Cartas Surpremas não conseguem ser perfeitas ao ponto de refletirem todos
os anseios, crenças e interesses em pugna. Afinal, elas derivam das forças sociais,
políticas, culturais, econômicas, interesses diversos etc, de um momento histórico
determinado, estes podem se alterarem com percurso do tempo.

E “justamente por serem inumeráveis, tais métodos alcançam várias


maneiras de exteriorização”40, mas é preciso dizer que “alguns deles já foram
evidenciados, tanto pela doutrina quanto pela observação atenta da experiência
constitucional vivida pelos Estados”41. Podemos mencionar os usos e costumes, a
interpretação constitucional, a complementação legislativa, a construção judicial, as
práticas governamentais, legislativas e judiciárias, e a forte influência dos grupos de
pressão, como modos que as mutações constitucionais podem acontecer.

2.5. CLASSIFICAÇÃO DOS TIPOS DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

Muito embora existam divergências, vaguidades e imprecisões na


criteriológica para estudar os meios que ocasionam as mutações constitucionais, “é
possível construir generalizações, extraídas da experiência constitucional e de certos
conhecimentos oriundos da classificação genérica do direito”42. E para tal intento nos
valeríamos de dados concretos, extraídos de casos reais, cuja proveniência vem das
práticas constitucionais conhecidas.

39
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 65.
40
Ob. Cit. 1997, p. 66.
41
Ob. Cit. 1997, p. 66.
42
Ob. Cit. 1997, p. 70.
28

2.5.1. Mutações Operadas em virtude da interpretação constitucional

No contexto das mutações constitucionais a interpretação funciona como um


modo de atualização do texto da Carta Suprema aos anseios sociais, dando-lhe certo
caráter de atualidade e evitando sua obsolescência perante decurso temporal.

Anna Cândida da Cunha Ferraz elenca de forma enumerativa, não exaustiva,


algumas hipóteses de mutações via intepretação:

A mutação constitucional por via interpretativa é claramente


perceptível numa das situações seguintes: a) quando há um
alargamento do sentido do texto constitucional, aumentando-se-lhe,
assim, a abrangência para que passe à alcançar novas realidades; b)
quando se imprime sentido determinado e concreto ao texto
constitucional; c) quando se modifica interpretação anterior e se lhe
imprime novo sentido, atendendo à evolução da realidade
constitucional; d) quando há adaptação do texto constitucional à nova
realidade social, não prevista no momento da elaboração da
Constituição; e) quando há adaptação do texto constitucional para
atender exigências do momento da aplicação constitucional; f) quando
se preenche, por via interpretativa, lacunas do texto constitucional.43

Este rol de hipóteses supramencionado evidencia que os textos


constitucionais sempre sofrem mutações por meio de técnicas de interpretação quando a
realidade social se revela diferente em relação aquela do momento de sua publicação.
Igualmente há mutação quando o a letra da lei constitucional, antes uma norma
programática, se concretiza, exigindo assim uma atuação restritiva ao contexto concreto
por parte de seu interprete. Há também mutação quando seu texto é atualizado e suas
lacunas preenchidas via interpretação.

A fim de melhor compreender a modalidade de mutação constitucional em


questão é importante indicar, sinteticamente, as espécies de interpretações
constitucionais mais recorrentes e consagradas doutrinariamente, haja vista que cada
método utilizado contribui diferentemente para o processo de mutação e tem suas
maneiras únicas de influenciam o fenômeno em questão.

43
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Ob. Cit.1986, p. 38-39
29

Quando se trata de uma interpretação gramatical a visão do interpretador


visa encontrar antes de qualquer coisa o literal significado de cada palavra, então há
uma análise isolada ou dentro do contexto da oração, exclusivamente o que está no texto
é considerado. “Na interpretação constitucional pelo método gramatical, o espírito ou o
sentido da Constituição devem ser extraídos primacialmente da letra constitucional”44.

É importante acrescentar que existem palavras com vários significados,


nesse caso recomenda-se que seja adotado o significado que guarda maior afinidade
com a intenção inicial do Poder Constituinte Originário.

A interpretação lógica por sua vez busca desvendar a pretensão do


constituinte originário, logo por meio deste método de interpretação “busca-se
reconstruir o pensamento ou a intenção do constituinte de modo a alcançar, depois, a
precisa vontade do texto constitucional”45.

A doutrina costuma seguir três vertentes para desenvolver a interpretação


lógica, são elas: a sistemática, a histórica e a teleológica, a primeiro analisa a norma
focando sua relação com as demais normatizações do ordenamento jurídico, ao passo
que a segunda procura analisar a sua formação e elaboração, a terceira vertente busca
compreender a norma através do fim que ela objetiva.

Anna Cândida expõe brilhantemente a especial importância na interpretação


lógica sistemática:

A Constituição, resultado da elaboração de um poder constituinte


busca, no seu conjunto, firmar o ponto de encontro da vontade do
povo acerca da forma institucional do Estado, dos princípios
fundamentais que devem reger a sua vida política, econômica e social,
particularmente no que diz respeito à atuação dos poderes políticos e à
proteção dos direitos do homem. As normas positivadas, que vão dar
vida a tal desideratum devem, necessariamente, ser desenvolvidas de
forma encadeada, coordenada, coerente e lógica, um sistema de
formas, enfim, que reflita uma realidade viva. A interpretação
sistemática é necessária e até mesmo indispensável para aclarar o
sentido de qualquer norma jurídica, mais necessária ainda se apresenta
na interpretação da Constituição que é, em si mesma, concebida, pelo

44
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Ob. Cit.1986, p. 36.
45
Ob. Cit.1986, p. 40.
30

legislador constituinte, como um sistema baseado na concatenação


lógica entre princípios e normas, na coerência entre o conteúdo das
diversas proposições normativas nela encerradas e na coordenação
destas com os fins perseguidos que não podem ser com elas
incompatíveis.46

A abalizada autora, de maneira igualmente didática, revela a ainda as


características únicas das vertentes histórica e teleológica:

A diferença entre a utilização do elemento histórico ou teleológico na


interpretação constitucional e nas leis em geral reside em especial no
fato de que, a interpretação constitucional, não se limita o interprete a
analisar o conteúdo aparentemente cristalizado na norma. Procuram-
se, sobretudo, os substratos histórico, político, ideológico, que estão
na origem da Constituição ou que defluem da norma, mas que não são
totalmente captados ou traduzidos no plano normado.47 (sic)

A interpretação analógica, por sua vez, é um procedimento consolidado na


lógica, onde uma matéria ou caso sem regulamentação explicitada recebe tratamento
semelhante à de outra matéria ou caso semelhante. Trata-se a rigor de um método de
preenchimento de lacunas, pois não há bem uma interpretação. Portanto, tal modalidade
carece de um pressuposto, que é a lacuna constitucional.

Já a interpretação evolutiva ocorre em decorrência da inexorável passagem


do tempo, observando principalmente o momento presente que a sociedade se encontra.

Sem contrariar o texto literal da Constituição, admitem-se novos


conteúdos ao mesmo, em razão de mudanças históricas ou de fatores
políticos e sociais, que não estavam presentes na mente dos
constituintes quando elaboraram a Constituição. Este o chamado
método evolutivo, a interpretação evolutiva ou critério evolutivo
aplicado à interpretação constitucional.48

46
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Ob. Cit.1986, p. 42-43.
47
Ob. Cit.1986, p. 42.
48
Ob. Cit.1986, p. 45.
31

Por intermédio deste método o interprete adapta a letra normativa as


eventuais exigências surgidas após a consolidação do texto constitucional. Igualmente
configura-se interpretação evolutiva a atualização de conceitos elásticos e
indeterminados como: “interesse público”, “bons costumes”, “ordem pública”, tais
conceitos evoluem conforme o desenvolvimento da sociedade através do tempo.

Como podemos perceber, esta modalidade de interpretação é imprescindível


para manter a Lei Máxima viva e atualizada com as necessidades que emergem no seio
social.

Dentro deste arcabouço de métodos interpretativos existem ainda, duas


vertentes mais modernas: o método integrativo ou científico espiritual e o método
interpretativo de concretização. O primeiro se propõem a tecer uma crítica respeitosa ao
texto da Lei das Leis, observando a realidade fática.

O traço principal do método integrativo consiste numa atitude


profundamente crítica com respeito ao conteúdo da Constituição,
apreciada globalmente, em seus aspectos teleológicos e materiais, que
servem de critério para o trabalho de interpretação. O interprete da
Constituição prende-se, acima de tudo, à realidade da vida, à
concretitude da existência, compreendida esta sobretudo pelo que tem
de espiritual, como processo unificador e renovador da própria
realidade, submetida à lei de sua integração.49(sic)

Já o método interpretativo de concretização procura direcionar o texto


constitucional à realidade social vigente. Veja-se o que Anna Cândida explica a
respeito:

O método interpretativo de concretização considera a interpretação


constitucional uma concretização, admitindo que o intérprete, onde
houver obscuridade, determine o conteúdo material da Constituição,
de forma tal que o teor da norma só se concretiza ou só se completa no
ato de interpretação da Constituição independentemente de problemas
concretos, o que torna impossível a formulação de construções
abstratas, do mesmo modo que se torna inviável explicar-se a
Constituição pela fundamentação lógica e clássica dos silogismos
jurídicos. Esse meio de interpretação permite amoldar a Constituição

49
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Ob. Cit.1986, p. 50.
32

às realidades sociais mais vivas, recorrendo-se inclusive a fatores


extra-constitucionais.50

É impossível deixar de mencionar que há severas críticas feitas a última


modalidade explicada, pois se considera que há uma excessiva valorização da realidade
em detrimento dos aspectos mais formais da Constituição, abalando o status prestigiado
da Lei Maior.

Perante esta análise, podemos afirmar que todos os métodos citados podem
provocar mutações constitucionais de menor ou maior amplitude, cada qual dentro de
suas margens, observando sempre os limites razoáveis para não macular a Lei das Leis.

2.5.2. Mutações através da Construção Constitucional

Uadi Lammêgo Bulos sintetiza e objetiva o conceito de construção


constitucional:

Diz-se construção constitucional o expediente supletivo, por meio do


qual se constrói ou recompõe o direito aplicável, nas circunstâncias de
premência e necessidade, para suprir as deficiências ou imperfeições
da manifestação constituinte originária51.

Tal expediente supletivo tem reconhecimento e utilização pelos tribunais, os


quais sanam eventuais imperfeições e deficiências detectadas no texto constitucional.
Esta técnica é amplamente usada pela Suprema Corte dos Estados Unidos, ela “adaptou
a Constituição dos americanos à evolução política, social e econômica, sem permitir que
o texto se imobilizasse diante do dinamismo da vida e do direito”52.

50
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Ob. Cit. 1986, p. 50.
51
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 149.
52
Ob. Cit. 1997, p. 167.
33

Trazendo esta modalidade de mutação para o contexto nacional analisando


as decisões do Supremo Tribunal Federal percebemos a presença do construcionismo
judiciário, preleciona Uadi Lammêgo:

A análise das decisões do colendo Supremo Tribunal Federal


demonstra a presença do construcionismo judiciário, permitindo-lhe
desprender-se do rígido formalismo legal, possibilitando a existência
de amplos debates sobre problemas constitucionais, tal a messe de
decisões repetidas na aplicação de certas teses. Como consequência de
ser o Pretório Excelso o guardião da Constituição, cabe-lhe cumprir
essa obrigação, erigindo meios capazes para tanto. E, se esses meios
não estiverem delimitadas pela própria manifestação constituinte
originária, advém o recurso supletivo da construção, que autoriza o
aplicador a sair do texto, buscando para os casos obscuros uma
solução que os constituintes previram, embora não esteja,
suficientemente, clara, ou então não a previram.53

As notáveis palavras acima revelam o poder normativo que detém o


Supremo Tribunal Federal, este se exterioriza através da construcionismo. Podemos
concluir que o processo de construção se revela um meio eficaz pelo qual as mutações
constitucionais atuam, pois dispensam os recursos formais de revisão e emenda
constitucional.

A fim de sentirmos ainda mais a importância da construção constitucional,


podemos lembrar também da jurisprudência, esta “tem se antecipado às legislações na
solução dos conflitos de interesses”54.

Ilustrando afirmação supramencionada podemos trazer à tona a questão do


cheque pré-datado, entendimento atualmente pacificado. O cheque é uma ordem de
pagamento à vista, contudo, no comércio se originou uma prática reiterada de aceitar-se
cheque pré-datado, onde ficava acordada uma data posterior onde aquele cheque seria
descontado.

Caso o comerciante descontasse o cheque antes da data acordada haveria um


grande desconforto ao emissor, porém este nada poderia fazer. Depois de reiterados

53
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 152.
54
Ob. Cit. 1997, p. 154.
34

casos como os narrados anteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça sumulou a


respeito, posicionando-se em favor do respeito à data acordada entre as partes,
considerando dano moral a cobrança antecipada de cheque pré-datado.

Outro notável exemplo de construcionismo em nosso ordenamento jurídico


é um caso histórico envolvendo o habeas corpus, onde Pedro Lessa e Ruy Barbosa
ampliaram a interpretação do art. 72 § 22, da Constituição de 1891, para que este
remédio fosse cabível contra qualquer abuso de autoridade.

Segundo Pedro Lessa:

A liberdade individual é um direito fundamental, condição de


exercício de um sem-número de direitos: para trabalhar, para cuidar de
seus negócios, para tratar de sua saúde, para praticar os atos de seu
culto religioso, para cultivar seu espírito, aprendendo qualquer
ciência, para se distrair, para desenvolver seu sentimento, para tudo,
em suma, precisa o homem da liberdade de locomoção, do direito de ir
e vir.55

A partir disto houve um desenvolvimento de uma fecunda jurisprudência


que atribuiu ao habeas corpus uma “latitude que, em país algum, jamais se lhe
reconhecera”56.

O notável jurista brasileiro Ruy Barbosa em seu livro Comentários à


Constituição Federal brasileira argumentou em favor das construções constitucionais:

Se, pois, a constituição debuxa somente a estrutura do organismo


político, the frame of a government, se apenas delineia as instituições
nos seus traços predominantes, bem se vê que à interpretação,
exercida pelo governo e pela legislatura nos caos políticos,
desempenhada, nos caos judiciários, pelos tribunais, incumbe
subentender as noções complementares, lançar, por construção lógica,
entre as grandes linhas o tecido conjuntivo, extrair das generalidades
as especialidades, decompor cada síntese nos seus elementos, buscar
no todo o significado indeciso das partes, elucidar, por comparação, as
obscuridades ou insuficiências, e, mediante os recursos da analogia,
suprir as lacunas inadmissíveis.57

55
LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário, 1915, p. 18.
56
FAGUNDES, Seabra. Cadernos de conferência, 1971, p. 31.
57
BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição Federal brasileira, 1933, p 477.
35

Por meio desta modalidade de mutação podemos verificar a imensa


relevância da atuação dos tribunais superiores na efetividade da Constituição, pois por
meio do construcionismo a legislação constitucional pode acompanhar e se posicionar
mais rapidamente a respeito de temas relevantes para a sociedade, solucionando dúvidas
e preenchendo eventuais lacunas.

2.5.3. Mutações Decorrentes das Práticas Constitucionais

A terminologia prática constitucional é bastante ampla, englobando os


“usos” e “costumes” formados pela orientação constitucional, compreende também
outras figuras com as quais resguarda afinidades, tais os praxes58 e os precedentes59,
assim fica claro que a terminologia prática constitucional agrega diversas noções
correlacionadas. Em especial os usos e costumes promovem, com frequência, mudanças
difusas, bem como, a mutação constitucional.

Os usos e costumes devem ser gerais, constantes e uniformes para que


acarretem mutações, suas funções dividem-se em interpretativa e supletiva. A primeira
tem como objetivo servir de substrato para a interpretação judiciária, se algum
prescrição normativa se apresenta de modo confuso, a prática consuetudinária lhe
atribui um significado mais claro, “assim, o costume serve de base para o intérprete
compreender normas”60.

Já o segundo serve de fonte supletiva para suprir lacunas, “nesse ínterim, o


costume serve para preencher as lacunas axiológicas e ontológicas do sistema
jurídico”61. No caso das lacunas axiológicas existe uma lei aplicável ao fato concreto,
todavia, sua aplicação poderá acarretar inconveniência ou injustiça, devendo deste modo

58
São práticas que possuem elemento objetivo ou psicológico do costume, falta certeza no concernente a
sua obrigatoriedade.
59
São decisões cuja índole é política, onde os órgãos do poder a maneira como assumem suas respectivas
competências em face a outros órgãos ou entidades.
60
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 178.
61
Ob. Cit. 1997, p. 179.
36

sua aplicação ser afastada, já as lacunas ontológicas ocorrem quando se nota um


descompasso entre as normas e os acontecimentos fáticos.
37

3. MUTAÇÃO INCONSTITUCIONAL

Como ensina Milton Campos62, para que as modificações sejam


constitucionais elas não podem gerar deformações maliciosas e nem subversões
traumatizantes, caso contrário incorreram naquilo que a doutrina sinaliza como
mutações inconstitucionais, estas violentam a letra da Carta Suprema.

3.1. LIMITES DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

Antes de tudo é de ímpar importância perceber o quão difícil é estabelecer,


delinear, fixar de maneira exata os limites da mutação constitucional, pois este, como
dito anteriormente se trata de um fenômeno informal. Vale dizer que, por enquanto, a
maioria dos doutrinadores desta temática não enfrentou esta questão especificamente.

A prática constitucional evidencia a impossibilidade de traçarmos,


com exatidão, as limitações a que está sujeito o poder constituinte
difuso, de que nos fala Burdeau, responsável pela ocorrência daquelas
alterações informais, que, se não alteram a letra dos preceitos
supremos do Estado, modificam-lhes a substância, o sentido, o
significado e o alcance.63

A mutação constitucional é essencialmente fruto de “uma atuação de forças


elementares, dificilmente explicáveis, que variam conforme acontecimentos derivados
do fato social cambiante, com exigências e situações sempre novas, “logo não se
realizam por vias convencionais e em razão de um Direito Constitucional estático,
acomodatício” 64.

Muito pelo contrário, como já descrito anteriormente ela se opera de


diversas modalidades, usos, costumes, construção judicial dos tribunais, e no intermédio
de interpretação. E criar uma teoria jurídica exata acerca dos limites deste fenômeno só

62
CAMPOS, Milton. Constituição e Realidade, 1960, RF, 197:22.
63
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional, 1997, p. 87.
64
Ob. Cit. 1997, p. 88.
38

poderia ser feito mediante a separação brusca da Realidade e do Direito. Se tal distinção
fosse feita, teríamos como consequência a inadmissão de fazermos quaisquer
considerações, sejam elas filosóficas, políticas ou histórias, do processo de evolução das
concepções do Direito.

Como explica Uadi Lammêgo Bulos:

A Constituição é um organismo vivo, em cujo esteio se encontra a


autoconsciência de um povo, assentado em uma base territorial
definida e submetida a um governo soberano, numa determinada
época histórica, sujeita a fatores sociais cambiantes. Como a doutrina
das mutações constitucionais é o reflexo, teórico e prático, desses
fatores sociais e cambiantes, ela se produz quando a normatividade
constitucional se modifica pelo influxo de acontecimentos que não
afetam a sua forma, porém transmutam seu conteúdo.65

Se separarmos o Direito da Realidade estabeleceremos justamente o


contrário, consideraremos as Constituições como organismos jacentes, incapazes de se
aprimorarem ou acompanharem as progressões, transformações de pensamento, e de
corresponderem aos anseios sociais.

É importante ressaltar a imensa diferença existente entre a reforma


constitucional, meio já sacramentado de alterar o texto constitucional, e as mudanças
difusas. A primeira segue limites expressos pelo legislador, enquanto a segunda não
conta com tais limitações explícitas.

Então, depois de dito isto, podemos concluir que não existem muitos limites
para o exercício das alterações informais. Uma das únicas limitações que a doutrina
considera tem caráter subjetivo e psicológico. Em outras palavras: os limites estariam na
consciência do interprete, que buscaria “não extrapolar a forma plasmada na letra dos
preceptivos supremos do Estado, através de interpretações deformadoras dos princípios
fundamentais que embasam o Documento Maior”66.

Deste modo poderíamos evitar as indesejáveis mutações inconstuticonais, a


ponderação dos intérpretes da lei colocariam limites e freios nas mudanças difusas,
65
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 90.
66
Ob. Cit. 1997, p. 91.
39

empreendendo um processo de interpretação que não viole a Lei Máxima e a adequem à


realidade social.

É claro que não podemos confiar de forma cega “no elemento psicológico
da consciência do interprete em não violar os parâmetros jurídicos”67, estes podem
muito bem realizar interpretações que tenham malícia, causando traumas a Carta
Magna. Caso aconteçam mutações inconstitucionais decorrentes da forma maliciosa de
interpretação o controle mais eficaz que se pode exercer é aquele feito pela opinião
pública, pelos grupos de pressão, partidos políticos etc.

Muito embora os limites não possam ser fixados com maestria, existem sim
certos meios para identificar as mutações que frutificadas a partir interpretação corrupta,
já que as mutações constitucionais não alteram o espírito da Constituição.

3.2. CARACTERÍSTICAS DAS MUTAÇÕES INCONSTITUCIONAIS

Primeiramente, por mais que parece redundante, é preciso assinalar esta


característica, haja vista ser comum em todos os casos, tais mutações são
manifestamente contrárias a Constituição. Portanto, como o próprio nome já deixa
explícito, são inconstitucionais.

A segunda característica é que transbordam “os limites ou fundo fixado pelo


constituinte e de observância obrigatória pelos órgãos de aplicação constitucional”68.
Em terceiro lugar temos “a ausência de controle de constitucionalidade, que não
colhendo o processo em suas falhas, não impede a sua sobrevivência, posto que
viciada”69

67
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 91.
68
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações
constitucionais e mutações inconstitucionais. 1986, p. 245.
69
Ob. Cit. 1986. p. 245.
40

Por fim, é importante explicitar que nem sempre a violação do texto


constitucional prejudica a Constituição de modo definitivo, portanto, tornando nula a
norma constitucional. Muitas vezes, a inconstitucionalidade se esgota no ato praticado.

3.3. EFEITOS DAS MUTAÇÕES INCONSTITUCIONAIS

Observando o que foi dito no tópico anterior, os efeitos que as mutações


inconstitucionais não têm uma padronização sacramentada, conforme Anna Cândida
muito bem explica:

Produzem deformação constitucional cujo alcance varia em grau e


profundidade: a) podem contrariar parcialmente a Constituição
afetando-a apenas num caso concreto, sem que o texto constitucional
seja alterado ou revogado. (...); b) podem ab-rogar ou derrogar
determinada norma constitucional; c) podem suspender,
temporariamente, a eficácia das normas constitucionais; d) podem
produzir rupturas no ordenamento constitucional; e) podem provocar
mudança total da Constituição70.

Na hipótese “a” a consequência acarretada não é muito danosa, já que se


esgota com a prática do ato inconstitucional, podem ser facilmente remediada. Já o caso
“b” é mais grave, pois uma norma constitucional será abolida do ordenamento jurídico,
podendo causar lesões mais diretas aos direitos dos indivíduos submetidos a ela. A
hipótese “c” guarda muita semelhança com o caso anterior, já que pode prejudicar os
indivíduos que compartilham daquele ordenamento, porém a eficácia pode ser
restaurada com mais facilidade do que abolição de um dispositivo legal.

Porém, indubitavelmente, as mais agressivas e danosas são as hipóteses “d”


e “e”, pois nestes casos o ordenamento constitucional inteiro será alterado, mudando
completamente a realidade dos indivíduos inseridos nele. Este é perceptivelmente o caso
dos golpes de Estado, que maculam a Constituição vigente ignorando de forma
arbitrária o Poder Constituinte Originário, que elaborou o Texto Magno, ou seja, é uma
mutação sem a anuência dos titulares do Poder.

70
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Ob. Cit. 1986. p. 245.
41

Finalmente, cabe observar que as situações excepcionais e as crises


institucionais conduzem ou induzem, com frequência, os detentores do
Poder Executivo a praticarem atos inconstitucionais, que percorrem
um variado caminho, desde o exercício, puro e simples, de poderes de
exceção não previstos na Constituição, até o uso de poderes dessa
ordem, previstos na Constituição, para subverte-la, mediante golpes de
Estado.71

Nas palavras supracitadas de Anna Cândida há um importante alerta,


explicitando que em momentos de crise é necessário redobrar a vigilância, a fim de que
nenhum oportunista ou um grupo de oportunistas se comporte com demasiada
arbitrariedade, extrapolando o uso dos poderes e até mesmo realizando um golpe.

3.4. EXEMPLO DE MUTAÇÃO INCONSTITUCIONAL

Para ilustrar esta distorção da mutação constitucional podemos citar o


seguinte exemplo histórico:

A investidura do Marechal Floriano Peixoto, então Vice-Presidente,


na Presidência da República, violando o art. 42 da Constituição de
1891, que prescrevia: “No caso de vaga por qualquer causa, da
Presidência ou Vice-Presidência, se não houverem decorridos dois
anos do período presidencial, prodecer-se-á nova eleição”. Olvidando
esse artigo, o Congresso Nacional permitiu que o Vice-Presidênte
assumisse a chefia interina do Executivo, embora a renúncia do
primeiro Presidente tenha se dado antes de findar o prazo dos dois
anos.72

Como é perceptível houve naquela época uma violação grosseira ao Texto


Constitucional, derivada de uma interpretação maliciosa, atentando contra e
desrespeitando as finalidades expressas da Lei Maior.

71
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Ob. Cit. 1986. p. 249.
72
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 135.
42

3.5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ACERCA DA MUTAÇÃO INCONSTITUCIONAL

Muito embora a possibilidade de ocorrência de uma mutação


inconstitucional seja preocupante, não podemos nos alarmar. Veja-se o que considera
ponderadamente Uadi Lammêgo Bulos:

Os riscos existem. Isso, contudo, não serve de pretexto para que as leis
deixem de ser interpretadas com larga visão de sentido, alcance e
significado, através dos meios difusos de modificação constitucional.
As mutações, quando constitucionais, tem um fundamento que não
pode ser ignorado, o de promover mudanças necessárias e
perfeitamente admitidas.73

Os benefícios de uma mutação constitucional bem empregada são de


extrema necessidade se quisermos ser agraciados por uma Constituição que corresponda
aos anseios dos titulares do Poder Constituinte.

Anna Cândida da Cunha Ferraz procura solucionar de maneira prática a


degeneração em tela, a renomada autora sugere:

No que se refere às mutações manifestamente inconstitucionais,


dentro das proposições passíveis de serem reduzidas a fórmulas
específicas, que possam encontrar abrigo em cláusulas constitucionais,
sugere-se: Ampliação do controle de constitucionalidade por via de
ação direta, (a) para abranger atos de todo e qualquer poder, em todos
os níveis de poder do Estado Federal brasileiro e (b) para permitir
extensão da titularidade desse tipo de ação aos partidos políticos, aos
órgãos de classe e aos próprios poderes públicos, em todos os níveis,
para que se estabeleça novo mecanismo de freios e contrapesos, com
vista não somente à eficiência e responsabilidade da ação
governamental, mas, e principalmente, à garantia dos direitos
fundamentais do homem. Fortalecimento dos órgãos de controle, quer
se trate de controle político, quer de controle jurisdicional, para que
atuem de modo efetivo e eficaz. Ampliação do alcance dos remédios
constitucionais, particularmente da ação popular, com a consequente
extensão da legitimidade de propô-la, a órgãos e entidades e, em
especial, aos partidos políticos. Em contrapartida, previsão de sanções
e ônus, inclusive honorários advocatícios, para coibir abusos.74

73
BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. Cit. 1997, p. 139.
74
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Ob. Cit. 1986. p. 257.
43

Além destas, lúcidas e sólidas soluções enumeradas acima, cada vez mais
podemos contar com a ascensão, a um lugar de destaque, dos Direitos Humanos e dos
Princípios, sejam eles implícitos ou explícitos, no Ordenamento Jurídico, como
mecanismo de defesa contra as arbitrariedades de quem possa eventualmente agir
contra constitutionem75.

75
Expressão latina que quer dizer “contra constituição”.
44

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao fim deste trabalho monográfico é importante dizer que não há


esgotamento do tema, muito pelo contrário, evidencia-se ainda mais a necessidade de
mais estudo a respeito do fenômeno em questão, a fim de consolidar a ideia de que o
texto escrito da Constituição deve guardar zelosamente uma correlação e
correspondência com a realidade fática da sociedade.

Para tal intento, não só existe a ação do Poder Constituinte Derivado


Reformador, promovendo as já consagradas mudanças formais, mas também há a
atuação do Poder Constituinte Difuso com suas mudanças informais.

Conclui-se desta maneira que a Mutação Constitucional representa um


mecanismo de grande valia e utilidade para o Constitucionalismo, pois facilita que haja
a correspondência supracitada entre a letra do papel e o fato concreto social.

É importante ressaltar que existem diferentes os meios pelos quais a


Mutação pode se concretizar, a primeira é a interpretação constitucional, esta pode
ampliar, reduzir ou alterar o sentido na norma escrita, ou quando há um preenchimento
de alguma lacuna. A interpretação pode se dar pelos métodos gramaticais, lógicos,
analógicos, evolutivos, o método integrativo e o método interpretativo de concretização.

O segundo meio evidencia a importância que os tribunais superiores têm


para o Direito atualmente, pois a construção constitucional feita pelas cortes supremas
igualmente sana dubiedades e imprecisões contidas na Carta Magna.

Existem também aquelas mutações que se operam em virtude das práticas


constitucionais, que são os usos, costumes, praxes e precedentes, as práticas gerais de
determinado assunto, que serem de base para esclarecer quais quer confusões presentes
na Constituição.

Porém, apesar destas vantagens, é preciso uma supervisão de toda sociedade


sobre a Mutação Constitucional, como também a ampliação do controle de
constitucionalidade por via de ação direta e dos remédios constitucionais, igualmente é
45

necessário o fortalecimento dos órgãos de controle, sejam eles jurisdicionais ou


políticos, e é imprescindível a atuação dos direitos humanos e dos princípios.

Assim ficaremos livres da indesejável Mutação Inconstitucional, que ao


invés de atender aos anseios sociais, deturpam a Lei Máxima, agraciando interesses
corruptos e de uma minoria, ferindo o espírito da Constituição.
46

REFERÊNCIAS

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