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In: Educação e Leitura: desafios e criatividade, 2016. São Paulo: Mercado de Letras.

2. OS CAMINHOS DA POESIA NA ESCOLA: som, imagem, pensamento

Marly Amarilha
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Alessandra Cardozo de Freitas


Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Literatura é linguagem que escreve a história da nossa condição humana com


criatividade. Essa é uma das premissas que tem mobilizado o trabalho do nosso grupo
de pesquisa “Ensino e Linguagem” (CNPq-UFRN) no desenvolvimento de estudos e
pesquisas que ampliem o horizonte do ensino de literatura. Por muitos anos, a tradição
beletrista e historicista orientou estudantes e professores com abordagens de estilos de
época e ignorou que toda literatura busca o leitor do seu tempo. E, na busca desse leitor,
o texto se carrega de provocações a sentidos, explora veredas pregnantes do léxico,
redescobre-se inaugural no olhar para o mundo e na constituição de nossa humanidade.
Esse pensamento tem sido uma das linhas que nos motiva a promover um ensino de
literatura que seja a leitura de textos em sua potência inventiva de significados para os
jovens leitores de hoje. Do texto ao livro que acolhe a literatura, que tem se oferecido às
crianças e jovens, evidencia-se a exploração de sua travessia entre vida e linguagem e
vice-versa, em sintonia com outros usos das diferentes linguagens na
contemporaneidade.
Nesse quadro de reflexão, entendemos que a literatura é também a transcendência
de nossa condição primeva, que como seres de linguagem, colocamo-nos em constante
desafio de a ela nos acomodarmos, ou de por ela nos recriarmos. E, para com a
literatura nos recriarmos é preciso acreditar na potência dialética do texto como criação
que consolida nossa história e que permite, ao mesmo tempo, o nascimento de outras
gerações de leitores sensíveis ao novo, à descoberta, ao simbólico. Entretanto, novos

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leitores, novas sensibilidades não surgirão se não houver trabalho experimental e de
risco das gerações precedentes, como se espera que sejam as de professores-mediadores.
Há, portanto, um rito de passagem intergeracional implicado no processo.
Com essa compreensão, realizamos o projeto A multimodalidade na leitura do
poema e do livro de poesia em aprendizes da escola fundamental – estudo
longitudinal (Amarilha et alii, 2014), que objetivou investigar aspectos do
desenvolvimento da formação leitora de escolares desencadeados pela diversidade de
linguagens presentes no livro de poesia para a infância desde o seu princípio: o texto
verbal. Como foco dos aspectos investigados foram tomados indicadores de
competência recepcional de sujeitos escolarizados às atividades de leitura de textos
poéticos presentes em livros impressos. No contexto do projeto, entendemos como
competência recepcional a superação da leitura do nível referencial para o nível
conotativo da linguagem, visto que na pragmática comunicativa da literatura “o sujeito
da produção e o sujeito da recepção não são pensáveis como sujeitos isolados, mas
apenas como social e culturalmente mediados, como sujeitos ‘transubjetivos’” (Stierle;
2002, p.143). Nessa lógica, assim como o produtor do texto literário cria, transitando do
referencial para o conotativo, em igual movimento deve agir seu leitor no processo de
leitura. É com esse fundamento teórico que entendemos o avanço como leitor de
poemas pode ocorrer, na escola. No trânsito do referencial para o conotativo, da relação
texto-vida e vice-versa é que se formula uma didática da leitura de literatura para
leitores em formação. E esse é o caminho proposto no projeto realizado, do qual
descrevemos e discutimos alguns aspectos, no presente capítulo.

O desenho da pesquisa

A pesquisa qualitativa com características de intervenção teve como corpus


escola pública do ensino fundamental de Natal-RN. A intervenção se iniciou com uma
turma do 4º ano do ensino fundamental que foi acompanhada até o 5º ano,
compreendendo quatro semestres letivos referentes aos anos de 2012 e 2013. Assim, o
corpus foi constituído de 16 sujeitos, na faixa etária de 9 a 11 anos, sendo 14 na faixa
regular, e 02 fora de faixa, totalizando 11 meninos e 06 meninas.

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Adotamos o modelo de estudo longitudinal tendo em vista acompanhar os
sujeitos, em dois anos consecutivos, no desenvolvimento de apropriação das
multimodalidades da linguagem presentes no poema e no livro de poesia.

O 4º ano foi selecionado tendo em vista que, nesse nível, os estudantes estão
consolidando o processo de alfabetização e estão aptos a desfrutarem da leitura do livro
de poesia em sua multimodalidade linguística e plástica.

A partir do texto do poema para o livro foram previstas e realizadas 15 sessões


de leitura do livro acompanhadas de sessões em fórum eletrônico, especialmente criado
com a finalidade de realizar discussão pós-leitura e servir de instrumento de coleta de
dados. O endereço do fórum é www.pesquisaepoesia.ativoforum.com.

Nas sessões, cada sujeito dispunha do livro impresso e foram mediados por uma
professora-pesquisadora.

Para observar a competência recepcional dos sujeitos à leitura do texto literário,


especificamente, de poemas e de livros de poesia, foi solicitada a postagem de
comentários no fórum eletrônico.

No registro das postagens no fórum, as hipóteses de escrita dos sujeitos foram


respeitadas, desde que não comprometessem a comunicação das ideias. Quando
necessário, os pesquisadores auxiliaram os sujeitos na expressão escrita de suas
opiniões, isto é, os sujeitos as formulavam oralmente e os pesquisadores os auxiliavam
na escrita, estimulando-os a fazerem seu próprio texto. Em cada sessão, havia sempre
um grupo de cinco a seis pesquisadores auxiliando os aprendizes tanto a manusear o
computador como a expressar suas ideias.

No ato de postagem, cada sujeito dispunha do livro impresso como andaime à


escrita, que serviu de recurso para a apreciação mais detalhada do texto, para sua
releitura e decorrente postagem.

Em todas as etapas da realização das sessões de leitura e escrita, os sujeitos foram


mediados pela metodologia da andaimagem. Esse procedimento para a aula de leitura
foi desenhado por Graves e Graves (1995) fundamentando-se nas orientações de Bruner
(1997) e de Vygostsky (1991). A metáfora do andaime se baseia no princípio
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vigostkiano de que um sujeito mais experiente pode auxiliar outro a realizar tarefas que
sem auxílio não tem condições de fazê-lo. Nesse processo, o sujeito-aprendiz percorre a
zona de desenvolvimento proximal - zdp, ou seja, parte com a ajuda de alguém e ao
término deve estar apto a realizar a mesma tarefa sozinho. O objetivo da andaimagem,
na medida do avanço do sujeito aprendiz, é conquistar autonomia na tarefa que se
iniciou com a ajuda de outro.
Assim, foram procedimentos de andaimagem a pose do livro, a leitura em voz alta
pela mediadora, a discussão entre pares, a escrita no fórum com o uso do livro e o
auxílio dos pesquisadores e, eventualmente, de pares.

Repertório de literatura

Para a realização das sessões de leitura foram utilizados os livros “Minha ilha
maravilha” (2007), de Marina Colasanti; “Quando chove a cântaros” - “Cuando llueve a
cántaros” (2005), de Gloria Kirinus e “Lampião e Lancelot” (2011), de Fernando Vilela.
Essas obras foram selecionadas porque são produções contemporâneas, atendendo,
portanto, ao princípio de que todo texto é escrito para o leitor do seu tempo; atendiam
ao critério de qualidade estética em sua textualidade, considerando-se aspectos da
melopeia, fanopeia e logopeia, conforme os conceitua Pound (1997), realizando-se,
portanto, como textos em que se destaca o trabalho conotativo com a linguagem.

Na lógica de Pound, em que “literatura é [...] linguagem carregada de significado”


(Pound, 1977, p.40), a melopeia é compreendida como a saturação da linguagem
explorando seu potencial sonoro. Na fanopeia, o produtor do texto lança palavras para
desencadear imagens na imaginação do leitor e na logopeia a palavra é explorada “numa
relação especial ao ”costume”” (Pound, 1977, p.41) desautomatizando relações
previsíveis de sentidos, criando assim um campo de instabilidade, conotação e
arejamento na maneira de pensar, de ver o mundo. Esses aspectos evidenciam a
natureza conotativa, plurissignificativa e semiótica da linguagem verbal, que pode ser
encontrada nos livros escolhidos, e são processos implícitos à produção literária que
demandam do leitor competência recepcional equivalente.

Na apreciação dos poemas, consideramos os modos de potencializar a linguagem,


qual sejam, a melopeia, a fanopeia e a logopeia. Esses modos de realização da potência
da linguagem, apresentados por Pound, foram articulados à teoria da semiótica social,
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multimodal conforme a realizam Kress e Leeuwen (2001). Para esses teóricos, a
“multimodalidade compreende o uso de vários modos semióticos no desenho de um
produto ou evento” (p.20). No contexto da teoria da multimodalidade, os modos
semióticos podem desempenhar diferentes funções desde reforçar um a outro modo,
desempenhar função complementar, adicionar elementos emotivos, de realce e assim,
sucessivamente. Da teoria da semiótica social, multimodal, consideramos quatro
aspectos: discurso, design, produção e distribuição. No discurso foram contemplados a
modalidade escrita e a oral e ainda os aspectos nomeados por Pound, a melopeia, a
fanopeia e a logopeia, visto que eles compõem tanto a oralidade quanto a escrita. No
design, consideramos o projeto gráfico, a ilustração e elementos plásticos presentes nas
obras, aos quais estão já, de certa maneira, incluídos os aspectos da produção. Na
distribuição, consideramos a acessibilidade das obras e a qualidade da editora.

Sobre o design, os três livros escolhidos apresentam projeto gráfico cuidadoso,


qualidade plástica na escolha do tamanho do volume, das cores, do papel, das
ilustrações; apresentam articulação das imagens com o texto verbal que oferecem
oportunidade de expansão, complementaridade de informações e desencadear de
significações ao texto literário. Os autores Marina Colasanti, Gloria Kirinus e Fernando
Vilela publicam em editoras renomadas pela qualidade de seus livros e de garantia de
acessibilidade às obras. As três editoras circulam nacionalmente seja por meio de
distribuidores em lojas, seja por veículo virtual. O critério de acessibilidade foi
considerado para assegurar que, os resultados advindos da pesquisa possam ser
explorados, no que se refere ao uso dessas obras em contexto escolar. Sobre esse item,
os sujeitos foram incentivados a pesquisarem em sites informações sobre os autores, as
obras e as editoras de maneira a recolher informações e analisar de maneira
fundamentada esses aspectos nos livros lidos.

Lendo “Minha ilha maravilha”

A obra “Minha ilha maravilha” (2007), de Marina Colasanti, apresenta estrutura


verbal, semântica e plástica relevante, pois todos os poemas são articulados visando a
revelar aspectos da temática proposta pela autora do que seja uma ilha cheia de
encantos. Do ponto de vista semântico, os poemas desautomatizam conceitos sobre o
que se espera encontrar em uma ilha, como, por exemplo, no poema que abre o livro
“Uma casa se faz”:
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Uma casa se faz
com tudo aquilo
que a sorte traz
cimento sonho
suor canseira
barro e madeira
folha de zinco ou
de bananeira
tijolo oco
tinta reboco.
Tem que ter teto
parede e porta,
melhor se reta
mas vale torta
pois o que importa
é que dê guarida
abrigue o sono
proteja a vida.

A colocação, lado a lado, de elementos que constroem uma casa do ponto de


vista referencial quanto do ponto de vista conotativo, como em cimento-sonho, amplia a
percepção do sujeito-leitor, promove o arejamento de visão sobre o que se lê. Esse
aspecto foi claramente percebido por alguns sujeitos, que comentaram sobre associações
inesperadas, presentes no poema:

[poesia] é uma coisa muito importante, porque


faz a gente ler. Eu sinto alegria quando leio uma
poesia. Achei legal, porque a casa tinha coisas
que a gente nunca viu (Paulo;1ª sessão; grifo
nosso).

A ilustração do livro “Minha ilha maravilha” é feita pela própria autora,


Marina Colasanti, também artista plástica. Essa particularidade torna a obra mais
estimulante, pois desafia o leitor a percorrer uma proposta de leitura pela palavra e outra
pela imagem pela mesma interlocutora. No trabalho de ilustração, de Colasanti, nem
sempre as relações entre palavra e imagem são óbvias. Exemplo desse procedimento
pode ser encontrado na página 32, em que um par de tênis ilustra o poema “No ponteiro
o tempo passa”.

No ponteiro o tempo passa


no relógio de brinquedo
com seus ponteiros pintados
o tempo da infância passa
tão depressa quanto as horas
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nos ponteiros dourados
do relógio da praça.

A relação plausível entre texto e imagem é que o tênis remete a calçado usado
por crianças, como sendo apropriado a atividades realizadas na infância como correr,
jogar bola, visto que o poema trata do tempo da infância.

Na leitura das ilustrações, alguns sujeitos sentiram-se provocados e outros


incomodados com o fato de que as imagens não estabeleciam relação direta, referencial
com o texto verbal. Entendemos que esse estilo de ilustração favorece ao pensamento
criativo, à imaginação do leitor, que deve especular sobre possíveis relações entre
imagens e palavras, ampliando assim seu repertório relacional e de significação ao
texto. Nesse caso, a provocação, da aparente desarticulação entre palavra-imagem, ao
pensamento do leitor, desenvolve, simultaneamente, o raciocínio lógico e a potência
criativa. Na busca pela relação mais apropriada, o leitor percorre o caminho da lógica e,
nesse percurso apreende outras relações que podem ser exploradas na busca pelos
sentidos. Essa trama, palavra-imagem, exercita no leitor sua capacidade multimodal
tanto quanto o texto que o estimula, realizando o que preconiza Stierle (2002; p. 143) “o
sujeito da produção e o sujeito da recepção não são [...] sujeitos isolados” conforme
citamos, anteriormente.

No estudo, merece destaque a escolha do livro “Quando chove a cântaros”-


“Cuando llueve a cántaros” (2005), de Gloria Kirinus, por se tratar de obra bilíngue,
escrita em português e em espanhol, prática constante da autora, visto que nasceu no
Peru, mas vive no Brasil há mais de 30 anos. O objetivo dessa escolha foi o de observar
a sensibilidade à recepção melódica de outra língua, explorando a elaboração sonora
(melopeia) do poema, pelos sujeitos, no confronto com sua própria língua.

É verdade que em Lima


Não chove?
É verdade que lá
Guarda-chuva somente
Serve para brincar
De aterrisar?

?Es verdad que en Lima


No llueve?
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?Es verdad que allá
Lós paraguas solamente
Sirven para jugar
De aterrizar?

O objetivo de “degustação sonora” e do desenvolvimento do “ouvido pensante”


(Shafer,1991) como etapas de uma educação pelo e para o sensível, dessa sessão de
leitura, foi amplamente atendido e em certo sentido superado. Alguns sujeitos
expressaram, claramente, o contentamento em ter contato com outra sonoridade e não
demonstraram resistência ao fato de que se estava lendo em outra língua. Pelo contrário,
muitos foram capazes de exercer raciocínio comparativo em relação ao Português e
demonstraram encantamento com as descobertas feitas, conforme observamos no
exemplo, abaixo (os textos foram mantidos conforme registrados pelos sujeitos):

Eu gostei muito da leitura em espanhol por


que o espanhol e quasse igual ao Portuguesa
só que alguns palavras se escrevem do
mesmo jeito da língua portuguesa mais no
espanhol se pronuncia diferente... (8ª sessão;
Silvia).

A propósito, podemos afirmar que a presença em sala de aula de outras línguas,


de outras sonoridades, quando introduzidas de maneira pedagogicamente relevante,
propicia a consciência sobre diferentes culturas e desenvolve no sujeito abertura para as
possibilidades de aprendizados, o que julgamos pertinente considerando o contexto de
diversidade cultural a que estamos expostos na sociedade. Há, portanto, um ponto
axiológico, sobre o valor da língua em diferentes manifestações, que a leitura de
literatura em outra língua propicia e que é potencial a ser explorado, pois sedimenta a
percepção de que a sonoridade é determinante na compreensão poética e carrega
indicadores de territorialidade. Ao ler um mesmo texto em diferentes línguas, o sujeito
amplia sua visão de mundo e, seja por comparação, seja por espelhamento, conhece e
constrói sua identidade linguística e cultural. Do ponto de vista da multimodalidade, a
experiência permite evidenciar a importância das modalidades escrita e oral e suas
realizações em cada língua. Esse aprendizado torna o sujeito-leitor participante de uma
comunidade maior e colabora na formação e no desenvolvimento de sua identidade em
face de outras culturas, de maneira valorativa e sensível. Assim, ao mesmo tempo em
que fortalece raízes, abre-se para outras experiências, para o outro.

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Esse aspecto é relevante para uma educação do sensível, do traço de
humanidade solidária presente no poema, na musicalidade do espanhol, conforme
entendemos a leitura de “Cuando llueve a cántaros” provoca. Nesse sentido, Cruz
(2010) assinala com lucidez a fortuna humana, agregadora que significa a experiência
de conhecer outra língua:

unem-me ao mundo as línguas que leio ou quisera ler, que


intuo, que aprendo a reconhecer. Identificar palavras novas em
um texto original, e degustar o sabor de um texto que também
foi escrito para mim, porque também foi capaz de me comover,
apesar dos obstáculos dos códigos linguísticos, me reconcilia
com o caos (Cruz, 2010, p.38),

e, acrescentamos, o contato com outras sonoridades linguísticas nos aproxima de nós


mesmos e de outros.

O livro como linguagem

O projeto gráfico do livro “Quando chove a cântaros” - “Cuando llueve a


cántaros” (Kirinus, 2005), é bastante atraente. Trata-se de uma brochura, cuja capa e
contracapa formam um único painel. As ilustrações de Graça Lima exploram aspectos
específicos da cultura e do povo do Peru. Na imagem da capa, o guarda-chuva
referencia o artesanato, o desenho e as cores próprias da cultura peruana bem como
ganha destaque a cor da pele dos personagens, marcadamente de origem indígena.

A leitura de “Quando chove a cântaros” – “Cuando llueve a cántaros”


(Kirinus, 2005), que é um poema narrativo, propiciou uma intervenção pedagógica
pontual sobre “argumentação” (8ª sessão), que foi ministrada por um dos pesquisadores.
Havíamos observado que as postagens no fórum não estavam progredindo de maneira
satisfatória. Os comentários eram limitados, com sucessivas repetições do tipo “foi
interessante”; “gostei” sem a devida justificação.

Assim sendo, conforme permite o modelo de pesquisa qualitativa, reorientamos


uma sessão de leitura para que também fosse incluída uma aula sobre o que significa
argumentar, defender um ponto de vista, uma vez que, como procedimento de
andaimagem, a discussão pós-leitura é parte das nossas escolhas metodológicas. O tema
do livro “Quando chove a cântaros” era oportuno porque trata de um dia de chuva em
Lima, capital do Peru, pois em Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte (Brasil)
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um dia de chuva também apresenta peculiaridades. O tema propiciou promover a
comparação de um dia de chuva em Lima com um dia de chuva em Natal e, assim, os
sujeitos tiveram mais assunto para refletir e para justificar seus pontos de vista no
fórum. A relação texto-vida que norteou a intervenção mostrou-se pertinente, engajando
os sujeitos de maneira mais proficiente na leitura do livro, tornando-os mais
protagonistas do processo. Esse momento mostrou que, para desenvolver atitude
recepcional adequada ao texto lido, os sujeitos precisam ser mediados e,
intencionalmente, ensinados sobre como proceder nas diferentes etapas do processo de
leitura. Enquanto na discussão oral, estimulados pela mediadora, os sujeitos, com
facilidade, justificavam seu ponto de vista, igual habilidade não se transferia nas
postagens no fórum, apesar de que todas as postagens também tivessem sido
estimuladas por uma provocação.

Depois da intervenção, observou-se que, tanto as postagens avançaram com


significativas manifestações de opiniões fundamentadas, como também, na oralidade,
houve mais aprofundamento nas discussões.

O terceiro livro utilizado foi “Lampião e Lancelote” (2006), de Fernando Vilela,


com ilustrações do próprio autor, e recebeu inúmeros prêmios: menção honrosa do
Prêmio Bolonha Ragazzi (Itália), em 2007; Jabuti de melhor livro infantil e melhor
ilustração de livro infantil ou juvenil, em 2007; melhor livro de poesia, melhor projeto
editorial, melhor ilustração, escritor revelação da Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil, em 2007. Na pesquisa, foi utilizada a 4ª reimpressão, publicada em 2011. A
obra cruza em sua narrativa poética o universo de Lancelote, cavaleiro medieval
britânico, e o universo de Lampião, cavaleiro-cangaceiro moderno do nordeste
brasileiro. Ao mesmo tempo em que essas trajetórias se entrecruzam, o texto explora o
cordel em setilhas e, nas ilustrações explora as formas populares de xilogravura e
carimbos que também eram utilizadas na idade média européia e que permanecem na
cultura brasileira contemporânea do nordeste.

Para exemplificar a natureza do texto, transcrevemos a apresentação dos


personagens Lancelote e Lampião:

Agora vou lhes dizer


Este homem é tão forte
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Que mesmo em fogo cruzado
Com o cavalo no pinote
Levanta a cabeça e luta
Espalha bravura arguta
O seu nome é Lancelote. (p.02)

[...]

Agora eu lhes apresento


Um grande cangaceiro
Nascido em nosso país
Leal e bom companheiro
Para uns foi criminoso
Para outros justiceiro (p. 08).

A intertextualidade verbal e plástica da obra a tornam um livro de arte para além


de um livro de literatura. Nele, o projeto gráfico a partir da composição visual,
associando a cor de cobre ao personagem Lampião e a cor prata ao cavaleiro Lancelote,
provoca o leitor, de imediato, à experiência de leitura multimodal, ou seja, ele deve
realizar, simultaneamente, leitura verbal e imagética tamanha a exuberância da
ilustração e do projeto gráfico do livro.

No texto verbal de Lampião e Lancelote, as modalidades da escrita e da


oralidade também são exploradas e a leitura oral é uma exigência do texto, pois sem ela,
perde-se a sonoridade rítmica e melódica do cordel. Esse aspecto ficou evidente quando,
na sessão em que o livro foi lido (12ª sessão), os sujeitos se sentiram integralmente
envolvidos com sua musicalidade e, antes que lhes fosse solicitado, leram em coro o
texto e utilizaram-se das mãos, batendo-as sobre as carteiras, para marcar o ritmo dos
versos. Um sujeito, mais entusiasmado, chegou a criar outros versos como resposta ao
texto lido.

A beleza plástica da obra é um aspecto a ser destacado. O tamanho da


publicação (35.5cm x 24.5cm), a capa dura e a qualidade das ilustrações merecem
apreciação contemplativa detalhada. Como o livro é grande, preferimos distribuir um
exemplar por dupla, de maneira a facilitar o manuseio, visto que o tamanho das carteiras
não comportava que cada sujeito usasse um exemplar. Essa alternativa mostrou-se
pedagogicamente eficiente porque permitiu aos sujeitos conversarem entre si sobre o
livro, estimulando a interlocução entre os pares e potencializando as provocações de
leituras das ilustrações e do próprio projeto gráfico. A modalidade de leitura imagética
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foi amplamente explorada e os sujeitos, de boa vontade, ficariam mais tempo
explorando a obra. Ficou evidente que, dos três livros lidos, “Lampião e Lancelote” foi
o preferido pelos sujeitos. Entendemos que parte dessa preferência decorre da
familiaridade com a história do cangaço, da proximidade com a cultura local, e da
ocorrência do cordel que cativa ouvidos e mentes e é amplamente disseminado entre os
sujeitos, além do apelo visual incontestável das ilustrações e do projeto gráfico.

As sessões de leitura e de fórum

Durante os anos de 2012 e 2013, realizaram-se 15 sessões de leitura, seguidas de


sessões de fórum eletrônico, alternadas a cada quinze dias. Consideramos sessão de
leitura a unidade didática que contemplava todas as etapas planejadas de pré-leitura;
leitura e pós-leitura. Na pós-leitura, a discussão em sala e as postagens no fórum
eletrônico foram os procedimentos realizados. Algumas sessões se prolongaram por
mais de um encontro, então, a elas foram agregadas mais 03 encontros, que são
considerados etapas das sessões, visto que dão continuidade à unidade didática
planejada.

Nas sessões de leitura, que se realizavam na sala de aula, cada estudante,


recebia, em mãos, um exemplar da obra. Em seguida, realizava-se a leitura mediada
pela pesquisadora. Após esse momento, que durava em torno de 60min, a turma,
dividida em dois grupos (devido à limitação de computadores disponíveis, em torno de
12), cada sujeito, a seu turno, era acompanhado ao laboratório de informática onde
acessava o fórum eletrônico e postava suas impressões a propósito do texto lido. Esse
momento durava em torno de 40min, sendo respeitado o ritmo de cada sujeito.
Adotamos essa sequência, sala de aula-laboratório, porque poucos sujeitos, de fato,
tinham acesso ao computador fora do ambiente escolar. Embora o fórum eletrônico
tenha a característica de assincronia, essa foi pouco praticada. Alguns sujeitos relataram,
esporadicamente, que o acessavam nos finais de semana para mostrá-lo a seus
familiares, sem de fato, interagirem com o grupo. Levantamos a hipótese de que pela
pouca familiaridade com o equipamento e também pela dificuldade de acesso, a
interatividade, fora do momento no laboratório, não ocorreu. Essa situação leva-nos a
pensar que como ferramenta de desenvolvimento da sociabilidade e da interatividade
sobre a leitura de literatura, o fórum ainda está limitado ao ambiente escolar. Entretanto,

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o seu uso mostrou-se eficiente como instrumento de coleta de dados e como fator de
entusiasmo e desenvolvimento do interesse pela leitura e pela resposta ao texto literário
pelos sujeitos. Sobre a acessibilidade, constatamos que, a despeito de entusiasta política
governamental de introdução da informática na vida dos nossos escolares, os fatos
revelam que a participação desses nossos estudantes na cultura digital para fins
educativos é ainda bastante tímida.

As sessões seguiram os seguintes passos: pré-leitura – em que eram feitas


provocações por meio de perguntas para que os sujeitos fizessem previsões sobre o livro
e o poema a ser lido; leitura: leitura silenciosa pela turma e, em seguida, leitura oral do
texto pela pesquisadora mediadora; pós-leitura: discussão em sala de aula seguida de
postagem no fórum eletrônico.

Foram instrumentos da pesquisa; gravação em vídeo de sessões de leitura;


observação in loco; fórum eletrônico. O fórum foi coordenado por uma pesquisadora e
teve como sujeitos todos os membros da turma. O fórum se constituiu em elemento
fundamental da formação leitora, favorecendo a formação de uma comunidade que se
organizou em torno da prática do registro da recepção e sua discussão.

A integralização entre a sessão de leitura em sala de aula e a utilização do


cyberespaço foi uma forma de dinamizar e dar fidedignidade ao registro da interação
com o texto e o livro; estimular a autonomia de pensamento e a agilidade de trocas entre
pares. Cada situação ofereceu oportunidades diferentes aos aprendizes.

No fórum, os alunos registraram seus comentários sobre a sessão de leitura


feita na sala de aula. Foi frequente a troca de ideias entre os pares antes do registro no
fórum bem como utilizaram o livro como material para recuperar impressões e postar
com maior fidedignidade citações de trechos dos poemas lidos. Essa atitude revelou a
importância de cada sujeito ter um exemplar do livro, o que favoreceu a familiaridade e
à retomada do texto, demonstrando que a releitura é um procedimento significativo para
a apreciação da leitura e o rendimento reflexivo sobre o que se lê. De maneira que, a
metodologia de que cada sujeito tenha um exemplar do livro em suas mãos revela o
aproveitamento pedagógico desse suporte de leitura, enfatizando o que temos defendido
por muito tempo, de que na formação do leitor, o acesso livre ao material de leitura é de
fundamental importância. Se tivéssemos apenas um exemplar do livro lido, a atividade

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pedagógica ficaria bastante comprometida. Daí que, as políticas públicas que distribuem
acervos às bibliotecas escolares precisam contemplar maior número de exemplares de
cada título para a realização de um trabalho mais envolvente e produtivo com os leitores
em formação.

Análise dos dados: do poema ao livro

No fórum eletrônico, os dezesseis sujeitos se manifestaram sobre os seguintes


aspectos: composição do poema (melopeia,fanopeia,logopeia); composição do livro –
projeto gráfico, ilustração, autor, editora; mediação - leitura em voz alta, leitura
silenciosa, discussão, acesso ao livro.

Postagens sobre os poemas

Em resposta ao objetivo de investigar como a leitura do poema afeta o


desenvolvimento cognitivo, semântico e estético na formação leitora desencadeado pela
diversidade de linguagens presentes no livro de poesia para a infância, nesta primeira
etapa de análise dos dados, vamos considerar a competência recepcional, no que se
refere aos aspectos de composição do poema: a melopeia, a fanopeia e a logopeia
(Pound,1997), conforme proposta do projeto.

No que se refere à melopeia (aspecto relativo à sonoridade e ao ritmo), ficou


muito evidente a percepção sonora dos poemas, mostrando que a modalidade acústica
da linguagem é facilmente percebida pelos sujeitos que, desde a primeira postagem até
as últimas, destacaram a musicalidade e a rima como aspectos relevantes, estimulantes,
lúdicos do texto.

Por meio do acesso à linguagem sonora, os sujeitos se identificaram com muitos


dos poemas, agregaram conhecimentos ao repertório linguístico e literário,
estabeleceram relações significativas. Além disso, a sonoridade dos poemas os
disponibilizou a um processo cognitivo mais aprofundado e abrangente que os conduziu
à percepção, à compreensão e a comentários sobre outros aspectos da composição
poética a fanopeia e a logopeia.

Diante da presença marcante da melopeia nas postagens dos sujeitos, pode-se


inferir que ela representa via de acesso aos outros aspectos do poema, a fanopeia e a
logopeia. Entretanto, é preciso assinalar que a separação desses aspectos da composição

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poética é apenas funcional, pois, de fato, a significação do poema acontece
contemplando todos esses aspectos, de maneira que seria inadequado pensá-los
isoladamente.

Julgamos relevante evidenciar, por meio do quadro abaixo, a presença dos


aspectos da melopeia, fanopeia e logopeia nos comentários postados no fórum pelos
sujeitos. Destacamos, no quadro, a frequência dos aspectos da composição poética como
recurso que permite a inferência sobre a valoração desses componentes estéticos na
expressão dos sujeitos, conforme orienta a análise de conteúdo, segundo Bardin (1979).
Nessa abordagem, a partir da mensagem condensada, registrada no fórum, é possível
inferir indicadores da valorização desses aspectos da composição poética pelos sujeitos,
ou pelo menos, da sensibilidade e percepção por eles quando em contato com o texto.

Referência sobre os aspectos de composição do poema nas postagens

Aspectos Frequência
Melopeia 36
Fanopeia 23
Logopeia 31

Para cada aspecto elencado no quadro acima, selecionamos uma postagem a fim
de ilustrar a natureza da experiência vivenciada pelos sujeitos. Apresentamos os textos
dos sujeitos tal como estão registradas no fórum. Os sujeitos receberam nomes fictícios
para preservar suas identidades.

Sobre a melopeia:

Eu não sabia que formava uma


melodia. (Eduarda; 1ª sessão de
leitura; grifo nosso).

Eu acho a poesia muito interessante


porque ela tem rimas. (João; 1ª
sessão de leitura; grifo nosso).

Sobre a fanopeia:

Eu imaginei o pássaro com fome e


não tinha ninguém para
ajudá-lo. (Carla; 7ª sessão; grifo
nosso).

15
Achei legal, porque a casa tinha
coisas que a gente nunca viu.
(Paulo;1ª sessão; grifo nosso).

Sobre a logopeia:

Poesia é interessante e importante e


a gente aprende muita coisa
(Beatriz; 1ª sessão; grifos nossos).

Achei legal e interessante porque


fala sobre o sertão e quando a gente
quer ler toda hora. E fala sobre
coisas antigas que eu nem sabia,
mas agora eu sei. Por isso que eu
achei muito interessante (Eduarda;
12ª sessão; grifos nossos).

Na fanopeia, consideramos as manifestações em que os sujeitos reconhecem o


processo de imaginar, isto é, criam imagens provocadas pelo poema. Na logopeia,
evidenciamos a presença de informações novas, arejamento de ideias, quase sempre
assinaladas pela surpresa do sujeito com determinado conceito, palavra ou nova
situação. A logopeia desautomatiza as expectativas do sujeito. Nesse sentido, como
trabalha com a semântica, ela se aproxima da aesthesis, conforme a entendem os
teóricos da estética da recepção (Jauss, 2002), segundo os quais, na experiência estética
a percepção sensitiva promove o deslocamento do olhar, o alargamento do horizonte do
sujeito.

A maneira como a composição poética, por meio da melopeia, fanopeia e logopeia


apresenta aspectos da referencialidade da língua é que tornam a comunicação diferente
no texto literário. A articulação do plano do significado com o da significação, isto é, da
estabilidade da língua frente à inventividade da linguagem literária desafia o sujeito a
interagir com a linguagem do poema e, desse processo, dar sua resposta. Portanto, o
desenvolvimento da competência recepcional é interdependente da habilidade de ler
referencialmente. Daí, a relevância em se expor leitores aprendizes à experiência de ler
literatura, visto que, dessa maneira estão desenvolvendo processos cognitivos
implicados no ato de ler e, simultaneamente, estão agregando experiência estética,
distanciamento e julgamento crítico sobre o que leem.

Postagens sobre a ilustração

16
A ilustração representa a contribuição da linguagem imagética na composição
do livro de literatura para a infância. Todos os três livros escolhidos para a pesquisa
apresentam projeto gráfico cuidadoso e, cada obra veicula ilustrações de estilos
diferentes. Como linguagem, a ilustração tem a função de comunicar ideias, despertar
emoções, ampliar informações, sugerir e problematizar aspectos presentes no texto
verbal. A qualidade da ilustração pode ser avaliada pela interatividade com o texto
verbal como pela sua plasticidade. Considerando-se que os sujeitos são leitores em
processo de aprendizagem da linguagem verbal, a ilustração também representa um tipo
de andaime à compreensão do texto. Seguem algumas postagens tratando do assunto:

A ilustração ajuda muito a pessoa,


por que o poema já fala e a
ilustração desenha tudo que está
falando sobre esse poema. Então, a
ilustração é muito importante para
você saber mais dos textos ou poema
(João; 7ª sessão; Colasanti; poema
Dona de nada.).

Ela [ilustradora] foi criativa no


desenho da chuva [...]. A pergunta é
como ela faz desenhos bonitos?
(Fátima; 9ª sessão; Kirinus).

Eu gostei do livro “Quando chove a


cântaros”, porque com ele deu para
saber um pouco mais sobre Lima, e
as ilustraçãoes tem figuras muito
chamativas , por causa do
movinento da chuva e das pessoas
quando chove as pessoas se
divertem muito... (Leila; 14ª sessão;
Kirinus).

Observamos que cada uma dos sujeitos, acima, destaca funções diferentes da
ilustração no processo de leitura: de auxiliar na compreensão “a ilustração ajuda...”;
apreciação estética “[a ilustradora] foi criativa”; “desenhos bonitos”; como fonte de
informação “saber mais”. Esses depoimentos assinalam sobre a importância de haver
uma pedagogia da imagem que interaja com a leitura do texto verbal.

17
Postagens sobre o livro

Considerando-se que o livro se apresenta como um artefato multimodal, que


articula em sua composição diferentes linguagens como o desenho, a imagem, a forma,
o papel, o texto verbal, buscamos dados que respondessem de maneira mais evidente à
seguinte pergunta: Como a multimodalidade presente no livro, suporte da literatura,
afeta a formação leitora, na escola? Para tanto, na 14ª sessão, solicitamos, no fórum, que
cada sujeito escolhesse um dos livros lidos e justificasse essa indicação recomendando-
o para a próxima turma. Entretanto, os sujeitos não se manifestaram sobre o projeto
gráfico nem sobre as ilustrações.

A curiosidade e deslumbramento com os aspectos imagéticos e plásticos ficaram


evidentes no primeiro contato com os livros e estão registrados em vídeo. A cada
sessão, foi permitido, por alguns minutos, que os sujeitos se familiarizassem com o
livro. Na 12ª sessão, por exemplo, foi lido “Lampião e Lancelote”. Muitos tatearam as
páginas, como que explorando a textura do papel, das imagens e das cores. Como o
livro tem dimensões maiores, distribuímos um para cada dupla de sujeitos, assim a
interlocução foi favorecida e a apreciação plástica foi mais intensa, cada um comentava
e acrescentava observações aos comentários dos colegas. Da gravação em vídeo,
registramos alguns comentários:

Olha como é legal! Abre a capa! (a


capa e a contracapa compõem um
painel contínuo; Ivo; 12ª sessão).

Olha, a luta! Lampião é este! O prata


é Lancelote. (José; 12ª sessão).

Mesmo não havendo registro no fórum sobre os aspectos do projeto gráfico e das
ilustrações, pelas imagens do vídeo constatamos a intensa participação e a
movimentação em torno do livro como objeto. Registramos manifestações de alegria, de
admiração e surpresa, conforme citado acima.

Na 14ª sessão, colocamos no fórum a seguinte provocação: Dos três livros que
foram trabalhados na pesquisa, qual deles você indicaria para a próxima turma de
alunos da professora Camila? O que os alunos aprenderiam sobre poesia ao ler o livro
por você indicado? Selecionamos algumas respostas:

18
Minha ilha maravilha, porque eles
aprenderam mais sobre os poemas,
sobre os autores e sobre editoras
(Ivo; 14ª sessão).

eu indecatria o livro quando chove a


cantaros, eles poderiram aprender
varias coisas tipo tem uma leitura
interesante, e tem em uma língua
diferente português e espanhol etc...(
Carla; 14ª sessão).

Eu indico “Lampião e Lancelote”,


pois a pessoa que estiver lendo esse
livro vai se enteressar muito porque
[...] um se chama lampião e outro se
chama lancelote são dois guerreiros
que brigam um derrubando o outro é
muito legal, vocês vão apreder da
vida deles dois e os poemas tem
varias rimas bem divertidas e se
quizenrem podem fazer ate um
duelo de musicas com os poemas e
as rimas (João; 14ª sessão).

As escolhas dos livros, conforme os exemplos acima, demonstram que os


sujeitos ficaram envolvidos com a melodia do espanhol, com a rima do cordel, com o
aprendizado sobre poemas e sobre os temas de que tratavam além da evidente
ludicidade que vivenciaram ao lê-los. Embora as justificativas apresentadas para as
escolhas se relacionem ao aspecto semântico ou linguístico dos livros, o contentamento
manifestado pela leitura permite inferir que as ilustrações e os aspectos plásticos
também participam do julgamento da obra, ainda que esses não sejam mencionados
claramente nas postagens, apenas nas gravações em vídeo.

Os destaques sobre os poemas

Analisamos, agora, do ponto de vista do processo cognitivo, o desenvolvimento da


compreensão sobre aspectos dos poemas que se destacaram para os sujeitos. Nas
sessões do livro “Minha ilha maravilha”, todos os sujeitos comentaram sobre a
sonoridade dos poemas, sobre o ritmo e o uso da imaginação que os permitiam
visualizar mentalmente as imagens sugeridas pelos textos. Esses indicadores
possiblitam inferir que os aspectos multimodais dos poemas: melopeia, fanopeia e
logopeia foram relevantes para os sujeitos como caminhos de acercamento aos textos.

19
Conforme as respostas às provocações da primeira sessão: O que é poesia? O que você
achou do poema “Uma casa se faz?”, observamos que os sujeitos já eram propensos a
perceber aspectos da modalidade oral da língua, presentes na composição poética.
Vejamos os depoimentos a respeito:

E quando as palavras rimam.


Em voz alta o som é diferente é melhor de
ouvir.
O poema da casa é interessante por que
rimava e era bonito. (André;1ª sessão;).

Eu acho a poesia muito interessante por que


ela tem rimas e pode ser contadas como uma
historia, lendas, contos de fadas e etc.. e a
poesia ela legal e divertido. “A autora :
Marina Colassanti o livro que ela fez é muito
legal principalmente o poema “UMA CASA
SE FAZ” o poema ele é muito interessante
por que tinha no poema que falava sobre que
a casa se fazia com cimento sonho, tinta,
madeira e etc.. e a menina tava numa ilha e
construiu a própria casinha dela e foi muito
legal. (João;1ª sessão;).

A percepção dos sujeitos sobre o aspecto sonoro do poema ocorre,


possivelmente, porque os sujeitos já apresentam fluência na língua oral e têm
vivência cultural com textos poéticos, na escola, em casa, ouvindo rádio, assistindo
à televisão.

As manifestações sobre esse aspecto da língua são reiteradas em outras sessões:

Eu gostei de ler o poema e brincar com o


som do poema. (Paulo; 2ª sessão).

Por que as rimas paresi musica e os poema


paresi de verdade e as fala de lampião e
lancelote e também paresi de verdade..
(Nilo; 12ª sessão).

Sim porque as rimas e us poremas


viron musica
(...) e vedade porque uns poemas ten rimas
porque pode virar musicas e nos fizemos
na sala o duelo de lanpião e lasel. (Liacir;
13ª sessão;).

O que eu gostei mais no modo como o


narrador conta a história é que tem partes
que ele rima. E também gostei quando ele

20
contou no modo cordel e prosa, porque no
modo de cordel tem rima e no modo da
prosa o texto é continuo. (Silvia;12ª sessão).

Observando-se o desempenho dos sujeitos, verifica-se que desde a 1ª sessão à 15ª,


95% das manifestações no fórum se referem aos aspectos da composição poética. Em se
entendendo que o projeto se propunha observar o desenvolvimento dos sujeitos em
torno da sensibilidade à natureza multimodal, nesse caso, aos aspectos sonoro,
imagético e semântico do poema, podemos afirmar que o contato com os poemas
realizou essa meta. E mais, fica evidente que o trabalho de mediação, via andaimagem,
colabora no desenvolvimento da competência recepcional dos sujeitos, o que os
credencia a reconhecerem um poema e a lerem textos mais complexos.

A primeira percepção de que “poesia tem rima” é consolidada e superada com


comentários mais elaborados e pertinentes sobre a composição em pauta. A função da
poeisis em que o leitor se torna co-autor do texto lido fica também potencializada; nesse
processo, a fanopeia também se apresenta e, assim, cada sujeito se sente participante da
construção do sentido dos textos via imaginação, como afirmam:

Vou voo e volto eu gostei do poema eu


gostei vou voo e volto eu imaginei o cavalo
voar. (Liacir; 2ª sessão; grifo nosso).

[...] Eu imaginei que o cavalo cavougava no


mar e ficou muito cansado e voutor para
casa e fim (Ricardo; 2ª sessão; grifo nosso).

A mediação na leitura do poema e do livro de poesia

Nas postagens no fórum, além dos aspectos relacionados à composição poética,


verificamos que os sujeitos monstram-se sensíveis ao processo de mediação pedagógica,
respaldado na experiência de leitura por andaime (Graves e Graves; 1995).

A andaimagem contempla duas fases: planejamento e execução. Nessa


abordagem, a sessão de leitura se desdobra em três etapas: pré-leitura; leitura; pós-
leitura. Nesse contexto, manifestam-se aspectos da mediação, aos quais passamos a
considerar.

De maneira a contemplar o conhecimento que os sujeitos já dominam, ou seja, a


linguagem oral, damos grande ênfase à leitura oral do texto. Entendemos que a leitura
21
oral é também um processo de andaimagem à compreensão mais sofisticada da língua
escrita, visto que nos silêncio das palavras estão implícitas suas diferentes sonoridades.
Dessa forma, na leitura oral feita, durante a pesquisa, o trabalho com a prosódia foi
cuidadosamente planejado. Esse cuidado repercutiu nos comentários dos sujeitos. Esse
dado é relevante porque evidencia que a exploração da modalidade oral que está
implícita na composição do texto contribui para a significação do que se lê. Esse
aspecto se constitui em um componente da multimodalidade da linguagem. Ou seja, a
própria linguagem verbal é dotada de, pelo menos, duas modalidades de realização: a
escrita e a oral.

Gostei de ler [em voz alta] junto com a turma (Beatriz; 2ª


sessão).

Em voz alta o som é diferente é melhor de ouvir (André;1ª


sessão).

Eu Gostei Muito Foi Muito InportanteLin Quatro Cantigas


OtimasInmaginei Coisas Uma Molhe Con Cheiro De
PefumeIspllique Muitas Coisas Inportantes Achei Muito Bon
Lemos Jutos [em voz alta] Todas as ProfesorasColaborarao E os
Alunos. Foi Muito Bon E Fim” (Ricardo; 3ª sessão).

Eu gostei de ouvir o poema porque eu consegui entender melhor


(Leila; 1ª sessão).

Quando a professora leu eu entendi melhor [...] (Vicente; 12ª


sessão).

Nessas postagens, a mediação na leitura do poema e do livro de poesia ganha


relevo por meio dos procedimentos de leitura oral e leitura compartilhada. Em seus
discursos, os aprendizes evidenciam o valor social da leitura em comunidade, em que o
ler juntos favorece a troca de ideias, que pode resultar em discussões em que os sentidos
iniciais atribuídos ao texto podem ser modificados, isto é, ao experimentar o conflito
sócio-cognitivo os sujeitos avançam em autonomia e competência recepcional. Os
sujeitos também nos revelam que a leitura em grupo do poético favorece a recepção
estética, pois ler juntos “é melhor de ouvir”, por extensão, é melhor de aprender, de
entender e de vivenciar os afetos desencadeados na interação do leitor com o texto.
Podemos inferir que a leitura oral em grupo também favorece a fruição estética.

Os aspectos prosódicos evidenciados nas postagens dos aprendizes, pela ênfase


atribuída à leitura oral, são indicativos de que o poema e o livro de poesia pressupõem
mediação pedagógica que considere as especificidades do poético, presentes na
22
articulação entre a melopeia, fanopeia e logopeia. Esse dado conduz ao entendimento
de que é necessário valorizar a multimodalidade constitutiva do gênero, explorando o
som, a imagem, a palavra e os sentidos construídos no processo de mediação
pedagógica com o texto poético.

Considerar o aspecto multimodal do gênero poético implica em selecionar


procedimentos e intervenções que envolvam a atenção à diversidade, definindo desafios
e ajudas apropriadas às respostas dos aprendizes durante a sequência de leitura por
andaime. A esse respeito são ilustrativos os dados das sessões de leitura em que a
linguagem referencial (informativa) foi abordada como procedimento necessário para o
acesso à linguagem poética. Merecem destaque a leitura e a discussão realizadas a partir
do poema “Visita meio esquisita”, de autoria de Marina Colasanti (2007, p. 07).

Visita meio esquisita

O gambá entrou correndo


pela porta da varanda,
ai meu Deus que cheiro horrendo!
e todo mundo debanda
o gato salta da estante
a avó derruba a cadeira
a tia tropeça no chão
parece até brincadeira
Maria grita na cozinha
quando a fera se avizinha
e no atropelo do instante
ferve o leite no fogão.
No meio da confusão
o gambá não se amesquinha
sai correndo porta afora
sem nem dizer a que vinha.

Anterior à leitura desse poema, os sujeitos foram motivados a responderem a


perguntas de pré-leitura: O que é um gambá? Alguém da turma já viu um gambá? O que
vocês sabem sobre esse animal? De modo a apoiá-los em suas respostas, foram
apresentadas imagens de gambá retiradas de sites da internet. Essa intervenção
mobilizou diversos processos cognitivos. Um dos sujeitos fez referência ao timbu,
espécie de gambá característico da região nordeste, explicitando semelhanças e
diferenças entre o timbu e as imagens de gambá veiculadas na mídia, como nos filmes
infantis. Esse dado revela que o esclarecimento sobre a linguagem referencial (as
23
imagens) constitui andaime relevante, por auxiliar o leitor na compreensão da
linguagem poética e, assim, desenvolver habilidade recepcional adequada ao texto
literário.

Na discussão de pós-leitura sobre o poema em destaque, foram encaminhadas


perguntas explorando a logopeia: Por que o gambá foi considerado visita meio
esquisita? Por que o gambá entrou na casa correndo? Alguém já teve uma visita meio
esquisita em sua casa? Em suas respostas, um dos sujeitos comentou que o gambá não é
visita esquisita porque o ambiente natural pertence aos animais. A visita esquisita, de
fato, somos nós, humanos, que tomamos o habitat natural e o transformamos com
nossas moradias. Esse pensamento revela o impacto cognitivo e estético na leitura do
poema, decorrente da conduta mediadora. Confirma-se, assim, o potencial da imagem
enquanto signo mobilizador de funções psicológicas superiores, como a memória e a
imaginação.

A discussão sobre aspectos da recepção à multimodalidade presente no poema e


nos livros que os veicula, o uso da andaimagem durante as sessões de leitura
demonstraram que é possível desenvolver interlocução sensível e compreensível com
textos poéticos em leitores em formação. Entretanto, esse processo se caracteriza como
rito de passagem, é lento, (ficamos na escola por dois anos e lemos três livros), precisa
ser realizado sistematicamente com textos estimulantes em livros com ilustrações e
projeto editorial que dialogam com a linguagem verbal, que favoreça a experiência
multimodal simultânea, da palavra e da imagem, em inquietos jovens da nossa escola.

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