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Todos, ao menos quase todos, sentiam e falavam admirados da transforma-

ção. O Recife, na verdade, era um ser em mudança, uma mudança rápida, em


quantidade e em qualidade. A Cidade vinha perdendo a ordem, o silêncio, a
placidez e a sonolência de antigamente, substituídos pelo movimento de pessoas
apressadas, animais esbaforidos, de carroças transportando cargas e pelos gritos
de muita gente e os ruídos de muitas coisas.

.As ruas e praças estavam cheias de canteiros de obras com reformas,


demolições e construções. Os moradores refaziam suas casas e sobrados,
seguindo os modelos importados. Pelos arrabaldes da Boa Vista, dos Coelhos, da
Madalena, dos Manguinhos e de Casa Forte, senhores-de-engenho, lavradores-
de-algodão e comerciantes grossistas erguiam palacetes, onde se instalavam com
suas famílias. Por toda parte, apareciam novos estabelecimentos comerciais, com
fachadas reluzente e letreiros coloridos, anunciando as mais diversas mercadorias
e serviços. No porto, havia dezenas de navios estrangeiros, carregando e
descarregando mercadorias, enchendo a Cidade de marinheiros, que falavam
línguas nunca ouvidas, compravam, vendiam, farreavam, amavam, conversavam,
brigavam, enganavam e partiam .Começavam a aparecer os residentes
estrangeiros com seus hábitos estranhos. Cresciam os serviços profissionais de
médicos, advogados, parteiras, arquitetos, cirurgiões, boticários, dentistas e tam-
bém as atividades artesanais de sapateiros, ferreiros, barbeiros, alfaiates,
modistas, tanoeiros, calafates, pedreiros, pintores e outros mais. Expandiam-se os
negócios suspeitos, tolerados e proibidos. Falavam da necessidade de iluminar,
empedrar, sanear, manter limpas e de policiar as ruas. A população aumentava e já
alcançava o dobro do que fora há 20 anos. Os escravos não davam para o uso.
Todas as semanas, navios negreiros despejavam levas e mais levas de africanos,
que, cumprindo a lei, ficavam de quarentena por mais de um mês, em “fora de por-
tas”, no istmo de Olinda, antes de serem comercializados no mercado ao ar livre
da Rua da Cruz.

A população reclamava da vida difícil e dos preços elevados. Todos, porém,


compravam de tudo, principalmente os artigos importados. As compras variavam
na conformidade das fortunas e dos gostos. A maioria consumia as chitas inglesas
de cores faiscantes, enquanto uma pequena minoria adquiria os pianos, instru-
mentos musicais ostentatórios da riqueza privada e de uso um tanto esotérico.
Mulheres ricas exibiam o luxo da moda européia nas idas para as igrejas, nas
visitas às amigas; mulheres remediadas, sempre que podiam, passeavam suas
imitações pelas ruas e as demais mulheres olhavam, suspiravam e devaneavam.
Os homens se enfeitavam de chapéus altos, botinas de atacar, casacos de
casimira, camisas de colarinho, lenços, gravatas e, na vida privada, vinham
trocando roupões, ceroulas, camisões e tamancos por calças, camisas, coletes e
chinelos. Cada um e todos queriam ter do melhor em suas casas, para conforto e
para ostentação. E assim as preferências iam desde os vidros transparentes nas
janelas, as mobílias européias, as cortinas de veludo, os tapetes orientais, as
escarradeiras, as louças e os talheres estrangeiros, até aos fogões de ferro e aos
deslumbrantes carros de cavalo franceses e ingleses.
Havia os que queriam aprender e qualificavam-se estudando as disciplinas
antigas e os novos conhecimentos. Muitos procuravam saber do que ocorria no
Mundo: fatos como as revoluções dos vice-Reinados da Espanha, as guerras na-
poleônicas, os ditames da Santa Aliança, os acontecimentos de Portugal e do Rio
de Janeiro. Alguns liam e debatiam as novas idéias libertárias, ampliadas pelas
lojas maçônicas, pelos areópagos, academias e pelo ensino liberal do Seminário
de Olinda. A Igreja Católica Romana vivia o momento e enriquecia ainda mais:
multiplicavam-se as esmolas e as doações, as procissões se faziam cada vez mais
suntuosas e as festas religiosas atraíam multidões com tríduos e novenas, missas
solenes, bênçãos, sermões, cânticos, luzes, músicas e fogos de artifício.

É certo que se continuava a trabalhar, adoecer, sofrer e morrer, mas, com


toda certeza, a vida havia ganhado um maior dinamismo e um novo encanto.
Estes, todavia, não alcançavam a todos com a mesma intensidade. Expandiam-se
em ondas quase concêntricas a partir de um centro, composto de altos
funcionários públicos, oficiais militares, grandes comerciantes, senhores-de-
engenho, lavradores-de-algodão, negociantes médios e profissionais liberais até às
camadas sociais periféricas e marginais, enfraquecendo à medida em que se
acercavam dos segmentos extremos. Mesmo assim, não houve quem deixasse de
ser atingido, mesmo os escravos domésticos, que aproveitavam do progresso e
das sobras das casas dos senhores e também aqueles das grandes plantações,
que passaram a comer mais e a morar melhor.

No entanto, em tudo e por toda parte, existia algo de perturbador. As mudan-


ças desrespeitavam o quadro social vigente. Via-se, sabia-se e sentia-se que as
fortunas recentes não mais coincidiam com as antigas, que os novos valores
corroíam as verdades tradicionais e consagradas, que os costumes importados
afrontavam usos e comportamentos seculares e que o governo deveria mudar. Em
conseqüência, o espanto, a desconfiança, a resistência, a frustração, o ódio e o
medo também se propagavam. Revestiam formas diversas e freqüentemente
apareciam precedidos da expressão exclamativa e interrogativa “onde já se viu”,
que se dizia para quase tudo que contrariava os interesses estabelecidos.

Problemas! Os problemas coloniais não constituíam novidades. Existiam há


séculos, mais ou menos conhecidos, mais ou menos controlados, mais ou menos
submersos. Agora, eles emergiam isolados e combinados, complicando e descom-
pensando a realidade.

Os mais significativos diziam respeito à ineficiência do Governo, à rivalidade


entre os portugueses do Brasil e aqueles de Portugal e à perigosa questão servil.
As transformações estavam revolvendo e ativando tudo. Em linhas gerais, pode-se
dizer que elas fortaleciam os brasileiros, sobretudo os produtores rurais, revelavam
a incapacidade da administração pública colonial para as novas tarefas e
despertavam as resistência latentes dos cativos para com a escravidão. Assim, aos
poucos, nos anos que sucederam a Abertura dos Portos, estes grupos e seus
interesses foram se distinguindo uns dos outros. Distanciaram-se, passaram para a
desconfiança e depois para a hostilidade. E isto – convém registrar – acontecia
sobretudo no Recife, o grande centro urbano, que concentrava a maior parte do
poder, da autoridade, da decisão, do saber, da riqueza, da renda e dos sonhos da
Capitania de Pernambuco.

Recife, 1817 e ainda predominavam os sobrados com telhados de


andorinha, as varandas de madeira, as gelosias nas janelas, as ruas de terra, a
insalubridade pública, a insegurança noturna e os hábitos rurais. Ao contrário do
Rio de Janeiro, a cidade não contava com a presença de uma Corte Real, capaz
de cuidar das necessidades imediatas, de ditar a moda, de impor o respeito da lei,
de promover melhorias. Também era diferente da Bahia, onde havia uma forte
administração colonial, um numeroso comércio português, fortunas do gado, do
algodão e do açúcar, consideráveis efetivos militares e uma maior tradição de vida
urbana.
No Recife, capital da Capitania de Pernambuco, inexistiam serviços públicos,
predominavam a corrução, a violência e o Governo Colonial literalmente saqueava
a população com tributos escorchantes. O progresso e os novos interesses se
chocavam diretamente com as estruturas coloniais ultrapassadas, sem um sistema
de amaciamento, sem quaisquer providências, sem um maior controle. Daí o
quadro explosivo e a reação de agricultores e negociantes e povo brasileiros,
resistentes e revoltados contra os pesados impostos, as discriminações e, mais
ainda, contra o descaso administrativo, a malversação dos recursos estatais e a
transferência dos excedentes para as Cortes do Rio de Janeiro e de Lisboa.

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