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Sociólogo e um dos principais teóricos do multiculturalismo, morto este mês, re etiu sobre a
diáspora negra sem se prender a correntes teóricas
Talvez Stuart Hall gostasse de saber que falar dele logo depois de sua morte é participar de uma
polifonia bakhtiniana, um conjunto de vozes diferentes que falam sobre ele, o que ele fez e disse, o
impacto que teve. Minha homenagem favorita, no momento, é um trecho da nota de óbito de David
Morley e Bill Schwarz, seus amigos e ex-alunos. Publicada no site do “The Guardian”, a nota foi a
matéria mais lida do jornal no dia da morte do professor, teórico e ativista, do mestre e maître-à-
penser. O texto termina assim:
“Quando apareceu no programa de rádio Desert Island Discs, Hall falou de sua paixão duradoura
por Miles Davis. Explicou que a música representou para ele o som do que não pode ser, ‘the sound
of what cannot be’. O que era sua vida intelectual, senão o esforço, contra todos os obstáculos,
para fazer ‘o que não pode ser’, viver na imaginação?”
Em “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”, Hall escreveu que “o povo da diáspora negra tem, em
oposição a tudo isso [a cultura logocêntrica, da escrita], encontrado a forma profunda, a estrutura
profunda de sua vida cultural na música”. Hall era duplamente diaspórico, descendente de povos
deslocados pela história da colonização e da escravidão e migrante da Jamaica à Inglaterra. Ele se
pronunciou em textos, como se fosse um Miles Davis: tocava e colaborava com seus parceiros,
livremente solando em sintonia e contradição com seu contexto, em um som complexo, difícil de
ouvir na primeira vez, mas de uma liberdade admirável a cada nova audição.
Hall elaborava suas ideias através da construção de tensões — já descrevi esse processo na
apresentação da coletânea de seu trabalho, “Da diáspora: identidades e mediações culturais” (Ed.
UFMG, 2003). Em “Que ‘negro’…?”, disse: “a pergunta sobre identidade negra a que se refere o título
do artigo reverte para a consideração crítica da etnicidade dominante; a identidade negra é
atravessada por outras identidades, inclusive de gênero e orientação sexual. A política identitária
essencialista aponta para algo pelo qual vale lutar, mas não resulta simplesmente em libertação
da dominação. Nesse contexto complexo, as políticas culturais e a luta que incorporam se trava em
muitas frentes e em todos os níveis da cultura, inclusive a vida cotidiana, a cultura popular e a
cultura de massa. Hall ainda acrescenta um complicador, no nal do texto: o meio mercantilizado e
estereotipado da cultura de massa se constitui de representações e guras de um grande drama
mítico com o qual as audiências se identi cam, é mais uma experiência de fantasia do que de
autorreconhecimento”.
Difícil seria reduzir o caminho desse pensamento à dialética. Ao invés, podemos pensar que a
maneira de Hall elaborar ideias tem uma estrutura musical, em que tema e variação podem ser
interrompidos por improvisações, onde o solo se destaca de um coro de vozes trazidas de uma
bibliogra a entendida como fonte de forças a serem chamadas para entender os objetos — ao
contrário do hábito acadêmico de criticar negativamente os antecessores sob pena de parecer
submisso a eles. Talvez seja por sua maneira de sentir e elaborar ideias a partir de uma estrutura
profunda musical, que também diz respeito à vida cultural brasileira, que Stuart Hall teve tanta
ressonância aqui.
Um igualitarismo utópico marcava a a relação com seus próprios outros: pessoas de outras
identidades raciais, mulheres, homossexuais, estudantes, jovens colaboradores nas instituições
que dirigia, organizadoras de livros. Nunca deixou de lembrar as analogias entre a ideia que a
identidade racial se baseia em diferenças genéticas e a de que os papéis sociais subalternos das
mulheres são determinados biologicamente. Estava sempre aberto a questões que não lhe
afetavam diretamente. Uma vez me perguntaram se Hall era gay: no Brasil, onde a crítica à
discriminação tantas vezes se faz somente por suas vítimas, era impossível imaginar um
apreciador sem rodeios da perspectiva queer, como ele demonstrou ser em diversos textos, a
começar por “The Spectacle of the ‘Other’”, que não fosse gay.
Para Hall, que não queria discípulos, a vida intelectual se vivia pelo combate “mano a mano” com
os textos e guras, não pelo pertencimento aos cortes de um teórico ou outro. Conversar com ele
era entrar em um mundo em que fazer re exões que tivessem alguma repercussão política era o
objeto, o problema, o jogo a ser jogado. Acolhia todos dispostos a entrar nesse jogo, a pensar, a
tentar entender, projetar algo. O bom humor e o afeto — e também o tom combativo de um
discurso da tradição oral, em que o interlocutor está sempre presente, mesmo que implicitamente
—, transparecem nos seus textos e talvez isso diga respeito à vida cultural brasileira e seja mais
um motivo pelo qual Stuart Hall teve tanta ressonância no Brasil.
Valorização do outro
Em meio a tantas homenagens a Hall, é possível que a melhor seja não entrar em consensos
apressados a respeito de seu pensamento — por exemplo, entendendo de forma banal, como
convivência pací ca, o multiculturalismo do qual, se diz, ele é pai. Quando alguém lhe perguntou,
em um simpósio sobre cultura, globalização e o sistema-mundo, realizado no estado de Nova York
em 1989, se existia algo que pudesse ser chamado de “humanidade”, ele respondeu que não.
Quando se fala em humanidade ou no ser humano que “todo mundo é, no fundo”, o que está
acontecendo na prática, disse, é um apagamento das diferenças em nome de uma inclusão
hierárquica, que interessa a alguns. A esperança, disse, é que nesse momento, de naturalização da
hierarquia social feita em nome da humanidade universal, algo escape.
A esperança de Hall que o Outro escape de sua redução ao Mesmo e ao nome que o sistema de
poder lhe dá, assim como a tradução dessa esperança em um respeito pelas pessoas, diferentes
entre si: tudo isso fez parte de seu carisma, de sua capacidade de gerar sentimentos de amizade e,
certamente, de sua contribuição com imagens do que (não) pode ser. Arauto da possibilidade em
aberto — sempre insistia que os resultados de processos históricos não eram determinados de
https://www.geledes.org.br/stuart-hall-a-favor-da-diferenca/ 2/3
antemão —, seu pensamento era tão complexo quantoStuart
29/08/2018 o som deaMiles
Hall: Davis.
favor da Esse- pensamento,
diferença Geledés
motivado pela vontade de um futuro menos cruel, justo, diz respeito à vida social e cultural
brasileira: talvez por isso também Stuart Hall teve tanta ressonância aqui.
*Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da UFRJ e autora de “Aqui ninguém é branco”
O pessimismo de Stuart Hall é um alerta importante para os rumos da esquerda na América Latina
(acontecendo/noticias-mundo/latinas-e-caribenhas/13596-o-pessimismo-de-stuart-hall-e-um-alerta-
importante-para-os-rumos-da-esquerda-na-america-latina)
Stuart Hall, o pensador do multiculturalismo (em-debate/23482-stuart-hall-o-pensador-do-
multiculturalismo)
Venício Lima: Stuart Hall e os estudos de mídia (areas-de-atuacao/comunicacao/312-artigos-de-
comunicacao/23436-venicio-lima-stuart-hall-e-os-estudos-de-midia)
Aos 82 anos, morre o teórico cultural Stuart Hall (acontecendo/noticias-mundo/23217-aos-82-anos-
morre-o-teorico-cultural-stuart-hall)
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