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6 A ECONOMIA DOS BENS SIMBOLICOS A questio da qual vou tratar esteve sempre presente, descle meus primeiros trabalhos de emologia sobre a Cabilia até minhas pesquisas mais recentes sobre o mundo da arte e, especificamente, sobre 0 funcionamento do mecenato nas sociedades moderas.' Gostaria de tentar mostrar que podemos, com mesmo instrumen- sal, pensar sobre coisas tio diferentes como os desafios de honra uma sociedade pré-capitalista ou, em sociedades como a nossa, 2 atuacio da Fundacao Ford ou da Fundacao da Franga, as trocas ‘geragdes no interior da familia e as transagdes nos mercados de bens culturais ou religiosos etc. Por razdes evidentes, os bens simblicos sto espontanea- ente alocados, pelas dicotomias comuns (material/espiritual, cor- So. espitito eic.), no pélo espiritual e, assim, freqllentemente con- ssderaddos como fora do alcance de uma anilise cientifica. Eles se situem em um desafio, a0 qual gostaria de responder com 0 © Exe teto€a wanscricio de dois cuss do Colége de France, ofeyecidos na Faculdade < Antrapolaga e Sociologia da Universidede Limire-Lyon I,m Fevereiro de 1994 157 apoio de rabalhos muito dispares: em primeito lugar, as aniilises que fiz clo funcionamento da economia cabila, exemplo acabado de economia pré-capitalista, fundacla sobre a recusa do econdmico, Ro sentido que the atribuimos; em seguida, as pesquisas que realizei, em momentos e em lugares diferentes (Cabilia, Béarn etc), sobre 0 funcionamento da economia doméstica, isto é, sobre as focas, no interior da familia, entre os membros da unidade doméstica ¢ entre as geracées; as andlises, nunca publicadas, do que chamo de economia da oferenca, isto é, 0 tipo de transagio Que se instaura entre a Igreja e os figis; ¢, ainda, os trabalhos sobre @ economia de bens culturais, através das pesquisas que fiz sobre © campo literirio ¢ sobre a economia burocratica. Partinclo dos dlados que pude obter na anilise desses universos sociais, fenome- nicamente muito diferentes, e que munca foram comparados como ‘ais, gostaria de tentar resgatar os principios gerais de uma econo- mia dos bens simbélicos, Afirmei ha algum tempo, em um de meus primeitos livros, com a intrepidez somada & arogincia (e ignorincia) da juventude (mas foi talvez por ter ousaddo que posso fazer 0 que faco hoje... ue © papel da sociologia era o de construir uma teoria geral da economia das priticas. O que pareceu a alguns adeptos do fasi-rea ding (enue os quais, infelizmente, hi muitos professores) uma ‘manifestagio de economicismo, sublinhava, ao contrario, a vontade de arrancar do economicismo (marxista ou neo-marginalista) as ‘economias pré-capitalistas € setores inteiros das cconomias dlitas apitalistas, que nao funcionam inteiramente de acorelo com a lei do interesse como busca da maximizagio do lucto (monetirio). O- universo econdmico € feito de varios mundlos econdmicos, dotados de “racionalidades" especfficas, que supdem e exigem, 20 mesmo tempo, disposicdes “razodveis” (mais do que racionais), ajustadas as regulariaces, inscritas em cackt um deles, &s *tazdes priticas’ que os caracterizam. Os mundos que’ vou descrever tém em comum a ctiagto de condigdes objetivas para que os agentes sociais tenham ai interesse no “desinteresse”, o que parece paradoxal 158 Retrospectivamente, percebi que, na minha compreensio cla economia cabila, utilizei-me, de maneita mais inconsciente do que consciente, da conheciniento pritico que tinha, como todo mundo (todos nés temos em comum um passado no universo da Familia), da economia doméstica para entender essa economia que freqiientememte contradiz a experiéncia que possamos ter da economia do cilculo. E, inversamente, tenclo compreendido essa economia ndo-econdmica, pude voltar & economia doméstica ou A economia da oferencla, com um sistema de questoes que nao Poderia ter construido, acredito, se tivesse dedicado minha vida & sociologia da familia. A dédiva e 0 “toma la, da ca” De forma resumidla, ji que mo posso supor que se conheca © que disse em Le sens pratique, voltarei a algumas anilises desse livro, tentando recuperar alguns prineipios gerais da economia simbolica. Comecando pela anilise da troca de dadivas, da qual relembrarei rapidamente o essencial, Mauss descreveu a troca de dlidivas como seqliéncia descontinua de atos generosos; Lévi- Strauss definiu-a como uma estrutura de reciptocidade que trans- cendia os atos cle toca, nos quais a dlidiva remete A sua retzibuicao, Quanto a mim, observei que o que faltava nessas duas anslises era © papel determinante do intervalo temporal entre a dadiva ¢ a retribuiglo, o fato de que, em praticamente todas as sociedades, admite-se tacitamente que nao se devolve no ato o que se recebeu — © que implicaria uma recusa. Depois, perguntei-me sobre a fangao desse intervalo: Por que € preciso que a retiibuicao seja dlferida e diferente? F mostrei que o intervalo tinha como fungio colocar um véu entre a eédiva e a retsibuigao, permitindo que dois ates perfeitamente simétricos parecessem atos singulares, sem relagao. Se posso definir minha dAdiva como uma déciva gratuita, generosa, que nao espera retribuigao, é porque existe um risco, por menor que seja, de que mio haja retribuicao (sempre lid ingratos), 159 logo, um suspense, uma incerteza, que permite a existéncia, como tal, do intervalo entre o momento em que se di € 0 momento em. que se recebe. Em sociedades como a sociedade cabila, a pressto € de fato muito forte, ea liberdade de nfo retorno ¢ infima. Mas a possibilidade existe ¢, por isso, a certeza nao & completa, Portanto, tudo se passa como se o intervalo de tempo, que distingue a troca dle didivas do “toma li, df ca’, It estivesse para permitir que quem. «ti defina sua diciva como uma dadiva sem retorno — ¢ a0 que retribut, de definir sua retribuicao como gratuita ¢ niio determinada pela cidiva inicial Na realidade, a verdade estrutural que Lévi-Strauss desven- dou nao € ignorada. Recothi na Cabilia iniimeros provérbios que dizem mais ou menos que o presente é um infortinio porque, no final das contas, € preciso retribui-lo. (O mesmo acontece com a palavra dada ou 0 desafio.) Em todos 0s casos, 0 ato inicial € um atentado a liberchade cle quem o recebe. Ele contém uma ameaga: obriga a retribuigio, © A retribuigao com acréscimo; isto é, cria obrigacées, é um modo de reter, criando devedores. Mas essa verdade estrutural é como que recalcada coletiva- mente. $6 podemos compreendler a existéncia do intervalo tempo ral se tivermos a hipstese de que quem a e quem recebe colaboram, sem sabé-lo, com um trabalho de dissimulacao que vist negara verdade da toca, o “toma Ii, da cé", que significa a anulagao da troca de dfdivas, Estamos aqui diante de um problema dificil: se a sociologia se atém a uma descric3o objetivista, reduz a twoca de dlidivas ao “toma Ii, di cf” © deixa de poder mostear a dliferenga entre uma troca dle dadivas e uma ago de crédito, Assim, © importante na toca de didivas € que, através do intervalo de tempo interposto, os dois trocadores trabalham, sem sabé-lo ¢ sem. estarem combinadlos, para mascarar, ou recalcar, a verdade objetiva do que fazem, Verdacle que 0 soci6logo desvenda, mas correndo 2 CLP. Bourdon Je sens patign, Pals, Min, 1980, pp. 19018 © isco de descrever como cilculo cinico um ato que se quer desinteressado ¢ que € preciso tomar como tal, em sua verdade vivida, ¢ que o modelo teGrico também deve perceber ¢ do qual deve dar conta ‘Temos af uma primeira propriedade ca economia das trocas simbélicas: trata-se de twocas que tém sempre verdades duplas, dificeis de manter unidas. f preciso levar em conta essa dualidade. De forma mais geral, 6 podemos compreencer a economia dos bens simbélicos se aceitamos, dle saida, levar a sério esta ambiglida- de que nao € criada pelo pesquisador, mas que estd presente na propria realidade, essa espécie de contradicio entre a verdade subjetiva e a realidade objetiva (@ qual a sociologia chega através da estalistica ¢ 0 etndlogo através da anilise estrutural). Essa dualidade torna-se possivel, ¢ pode ser vivida, através de uma espécie de Jedeception, de avtomistificacao. Mas essa self-deception individual @apoiada por uma self-deception coletiva, um real desconbecimento coletiva’, cujo fundamento se inscreve nas estruturas objetivas G@ ogica da honra, que comanda todas as ocas — de palavras, de mulheres, de homicidios etc.) e nas estruturas mentais', excluindo a possibilidade de pensar e de agir de outro modo, Se os agentes podem ser, simultaneamente, mistificadores de si proprios e dos outros, ¢ mistificados, € porque eles foram imersos, desde a inffincia, em um universo no qual a troca de didivas € socialmente instituida em disposicées € crengas € eseapa, assim, 20s paracloxos que criamos artificialmente quando, como Jacques Derrida em um livro recente — Passions*—, coloca- mo-nos na légica da consciéncia e do livre arbitrio de um individuo isolado, Quando esquecemos que quem di € quem recebe esto preparados inclinadlos, por tocio um trabalho de socializagao, a entrar sem intenc2o nem célculo de lucro na troca generosa, cuja 3. Bion, p19 4. Bien, p35 Gobee 0 senso de hone, 0 m9. © Pais Campion, Paps, 1985.

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