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Petrópolis: Vozes,
2013. 286p.
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husserliana. É o que se vê no segundo humanismo (1946) com o intuito de indicar
capítulo da obra, intitulado “Heidegger e a que este possui tanto conteúdo quanto
analítica existencial”. efeito. O comentador caracteriza a tese do
filósofo segundo qual a experiência
Talvez um dos capítulos mais frágeis do
humana não se traduz em um ente
trabalho, a tematização da filosofia
reificado; sendo, portanto, o ego um nada,
heideggeriana é insuficiente mesmo para
este dependeria da existência para assumir
um texto pretensamente introdutório.
qualquer determinação associada à
Temas importantes para a filosofia de
identidade ou à essência. Assim, a sentença
Heidegger como a questão do ser, a
sartriana que diz que a existência precede a
caracterização da metafísica e a temática
essência não indica uma anterioridade
do cuidado aparecem em resumos pálidos
cronológica ou lógica entre existir e ser,
sem que a implicação entre os mesmos se
mas uma dependência ontológica traduzida
torne visível. Assim, faltou indicar
do seguinte modo: o ser que o homem é se
categoricamente que o projeto
define na dinâmica da existência.
heideggeriano de uma retomada da questão
ontológica requisitaria a análise do único
ente capaz de compreender o sentido que o A análise dos significados filosóficos das
ser possui nas circunstâncias nas quais o frases de efeito de Sartre prossegue no
mesmo se dá; da mesma maneira, com próximo subtópico, desta vez com aquela
relação ao cuidado, precisaria ser dito de que diz que “A humanidade está
modo mais claro que o Dasein (ser cuja a condenada a ser livre”. Concebida
única determinação é o poder-ser) se torna inicialmente como um jogo de palavras,
o que é na medida em que se comporta, e o uma vez que conjuga as ideias
cuidado, enquanto um comportamento, é contraditórias de liberdade e condenação,
decisivo ao ente que o Dasein é enquanto Reynolds se empenha em mostrar o quanto
existe. a liberdade em Sartre expressa a
experiência de transcendência da
Os dois capítulos reservados a Sartre são
consciência ao mundo da vida. Deste
consideravelmente mais substanciais do
modo, o que quer que se concretize na
que o cabido a Heidegger. Em “Condenado
experiência humana já sempre se constitui
à liberdade – A ontologia fenomenológica
no espaço fenomenal aberto por esta noção
de Sartre”, por exemplo, é possível
de transcendência que, para o filósofo
encontrar, inicialmente, considerações
francês, se confunde com a liberdade.
acerca da vida e obra do filósofo inclusive
Partindo desta descrição fenomenológica, é
com a indicação de seus principais escritos.
possível depreender que qualquer fato
Assim, mencionados A transcendência do
referente ao homem é sempre e em cada
ego (1938) O ser e o nada (1943) e Crítica
instante dado no referido campo de
da razão dialética (1960), o leitor passa a
fenômenos, havendo, neste, inclusive, a
conhecer nominalmente parte do núcleo
possibilidade do homem se comportar de
filosófico da obra sartriana. Novamente
modo arbitrário frente ao que se lhe
carente de uma boa tematização, o
apresenta. Podendo afirmar ou negar o que
subtópico referente ao “método da
faticamente manifesta-se para si, e
ontologia fenomenológica” poderia ter
decidindo e responsabilizando-se pelo que
recebido um melhor desenvolvimento. Não
se dá no mundo da vida, ao homem,
se pode acusar, entretanto, o passo
entretanto, permanece inibida a
seguinte, intitulado “A existência precede a
possibilidade de escolher não ser
essência” da mesma falta. A partir deste,
transcendência ou, por outras palavras, de
Reynolds começa a examinar o clichê de
não ser liberdade.
Sartre em O existencialismo é um
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“Merleau-Ponty e o corpo” é o quinto Ao tratar “A mulher como outro” em um
capítulo do livro de Jack Reynolds. Como dos primeiros subtópicos deste sexto
era de se esperar, a temática da capítulo, Beauvoir ressalta que a mulher
corporeidade aparece com certa ênfase no enquanto experiência humana é um nada,
tópico. A abordagem fenomenológica do ou seja, não possui determinação, retirando
corpo é feita de modo a resguardar a assim suas características de sexo e gênero
vinculação do filósofo com a da maneira com as quais existe, daí a
fenomenologia e também ao autora asseverar que “ninguém nasce
existencialismo. mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR
O capítulo sobre Simone de Beauvoir vem apud REYNOLDS, 2013, p.203). Todavia,
muito a propósito no livro em apreço, não nesta dinâmica de se fazer mulher, essas
apenas por revisitar Beauvoir, mas também acabaram se submetendo ao jugo
por enfocá-la a partir dos fundamentos masculino, que reservou para as mulheres
filosóficos em jogo nesse estudo da uma condição histórica de não-sujeitos,
existência. Encimado “Beauvoir: o fazendo com que os homens se
feminismo e a ética existencial”, este novo consolidassem na condição de sujeito e
tópico se empenha por enfatizar que o norma e as mulheres, sempre tomadas com
trabalho da autora, por mais que seja “com referência ao masculino, possuíssem a
frequência, mais sociológico do que determinação ambígua de outro do sujeito
filosófico” (REYNOLDS, 2013, p.202) foi ou daquilo que é fora da norma.
quase sempre formulado em termos do Anti-essencialista, antitotalitarista e anti-
existencialismo e, particularmente, da sexista, Beauvoir tem em vista a sentença
perspectiva de Sartre. sartriana de que a existência precede a
Embora a autora possua diversos romances essência ao pensar o feminino; pode
nos quais o temário do existencialismo afirmar, a partir desse ponto, que ser
transparece, Reynolds se ocupa mulher não constitui uma condição, mas
especificamente da obra O segundo sexo um condicionamento por valores,
(1949). Neste trabalho, debates em torno comportamentos e papéis sociais atribuídos
da “transcendência” e da “imanência”, do pelo masculino. Em linhas bastante gerais,
“para-si” e do “para-o-outro” estão nisso constitui a contribuição original de
presentes, contudo, o foco da obra está na Beauvoir ao existencialismo e ao
temática da opressão feminina, situação feminismo de sua época.
concreta a qual Beauvoir, segundo Ao término do livro, o leitor pode
Reynolds, trata desde a perspectiva teórica encontrar apêndices que trazem: “Questões
existencial. Ao falarmos desta visada para discussão e revisão”, indicações de
existencialista aqui Beauvoir nos põe “Leituras complementares e referências”,
diante de uma reflexão sobre a alteridade, “Cronologia de eventos-chave textos e
diferença que não se ocupa apenas em pensadores” e um índice temático
pensar o outro na condição de uma certamente útil à pesquisa.
“transcendência forte” (como chamaria
Sartre), mas a “outridade” da presença
feminina. Recebido em 2013-09-02
Publicado em 2013-11-11
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