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BICALHO, Pedro Paulo.; BARBOSA, Roberta Brasilino.

As violações de direitos humanos


nas políticas de 'guerra às drogas' no Brasil. In: Silvana Maciel; Wânia Lima; Samkya
Andrade. (Org.). Saúde Mental & Dependência Química. João Pessoa: Ed.UFPB, 2014, v. 2,
p. 169-184

As violações de direitos humanos nas políticas de 'guerra às drogas' no Brasil

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho1 e Roberta Brasilino Barbosa2

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

__________________________________________________________________

Resumo

A proposta é problematizar o tema Direitos Humanos a partir de apontamentos para

as controvérsias que têm habitado as propostas de políticas públicas

contemporâneas acerca da temática que envolve a questão das drogas no Brasil.

Deste modo, afirma-se Direitos Humanos a partir de nossas práticas e, assim, como

agenciamentos e efeitos que por elas são produzidos. Questionando a perspectiva

positivista que naturaliza os objetos estudados, entende-se que não existem direitos

humanos naturais, mas contextos históricos que os produzem. Por meio da noção

de acontecimento, é possível entender que os direitos são datados, localizados,

descontínuos, produzidos pelo cotidiano de nossas ações. Pensar a formação e

atuação profissional (e, portanto, política) inseridas em tal contexto de análise é

convocar para se pensar nos lugares que se ocupam, nas subjetividades que são

produzidas, nas forças que os atravessam ao construírem o campo problemático em

que se insere o tema Direitos Humanos. Deste modo, entende-se que tal debate

1
Professor do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ) – ppbicalho@ufrj.br
2
Discente do curso de Doutorado em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - robertabrasilino@gmail.com
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configura-se como pressuposto para a construção de saberes indissociados de

processos de intervenção.

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A tarefa que habitualmente se espera dos “Direitos Humanos” é a de afirmá-

los como um substantivo que sirva para potencializar tratados, convenções e

declarações. Direitos Humanos, portanto, reduzidos a uma interlocução jurídica e

normativa.

Coloca-se em análise, aqui, discursos hegemônicos que têm o poder cooptar

a discussão em direitos humanos – reduzindo-a a mera palavra de ordem –, pela

força e presença de uma certa perspectiva epistemológica de corte positivista, que

insiste em um projeto objetivista, asséptico, neutro, inodoro e incolor para as lutas

políticas, cujas demandas são endereçadas a intervir e resolver problemas de ditos

desajustamentos em situações definidas como problemas. (BICALHO, 2005).

Foucault pensa o homem como a fisionomia de uma forma dominante, como

uma resultante de relações de forças que compõem tal forma (DELEUZE, 1992).

Homem, assim, é pensado como relação, como “um singular que não pode existir

sem o outro” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, s.n.t.). Homem, deste

modo, é pensado como subjetivação. Forma-homem como resultante de relações de

força (sempre em relação com outras forças) que constituem o poder. Da mesma

forma, Foucault não emprega a palavra sujeito como pessoa ou forma de identidade,

mas o termo ‘subjetivação’ como processo. Trata-se da invenção de modos de


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existência e de possibilidades de vida que não cessam de se recriar, e não pessoas

ou identidades (DELEUZE, 1992).

É neste sentido que Foucault nos ensina que o homem não possui uma

interioridade, pois é formado como resultante de forças que o atravessam. Forças

que se configuram enquanto práticas históricas que o objetivam, que o subjetivam e

que provocam um exercício ético (REVEL, 2005). São produções que dizem respeito

a um solo histórico, com arranjos políticos, com jogos de saber, de poder e de

técnicas de si. O homem é, portanto, efeito de uma constituição que se dá na

imanência histórica, sem essências, sem naturalizações, sem um caráter de a-prioris

ou de transcendência.

Partimos, então, do pressuposto de que o mundo, os objetos que nele existem,

os sujeitos que nele habitam e suas práticas sociais são produzidas historicamente,

não tendo, portanto uma existência em si, coisas já dadas, essência ou natureza.

Somos solicitados, de acordo com Guattari e Rolnik (2000), “o tempo todo e de

todos os lados a investir a poderosa fábrica de subjetividade serializada, produtora

destes homens que somos. (...) Muitas vezes não há outra saída. (...) Corremos o

risco de sermos confinados quando ousamos criar quaisquer territórios singulares3,

independentes das serializações subjetivas” (p.12).

Hegemonicamente produzem-se subjetividades normalizadas, articuladas por

sistemas hierárquicos, por sistemas de valores e sistemas de submissão,

3
O termo ‘singularização’ é usado por Guattari para designar os processos de ruptura com o modo de produção
da subjetividade capitalística. Guattari chama a atenção para a importância política de tais processos, entre os
quais se situariam os movimentos sociais, as minorias – enfim, os desvios de toda a espécie. Guattari utiliza
também outros termos, como revoluções moleculares, minorização ou autonomização. Segundo ele: “É um devir
diferencial que recusa a subjetivação capitalística” (GUATTARI; ROLNIK, 2000).
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internalizados por uma idéia de subjetividade que precisa ‘ser preenchida’, oposta a

um modo de subjetivação singular, conceituado por Guattari e Rolnik (2000) como

‘processos de singularização’ – que recusaria os modos de manipulação

preestabelecidos.

Direito humano é, como nos diz Almeida (2002), “direito de viver bem, direito

de acesso às políticas, direito de conviver na diversidade, direito de viver com todos

em um mundo melhor” (p. 23)

Pensar direitos humanos como produção de subjetividade é a afirmação de

direitos locais, descontínuos, fragmentários, processuais, em constante construção,

produzidos pelo cotidiano de nossas práticas e ações. Deste modo, não entendemos

a noção de direitos humanos a partir de uma história linear assinalada por grandes

eventos marcados e discriminada em períodos históricos, mas a partir da noção de

acontecimento4, como condições de possibilidade que assinalam formas diferentes

de saber e poder, que representam rupturas na forma de conhecer as coisas ou na

forma das relações de poder.

Assim, não faz sentido citar ‘os direitos humanos’ de modo genérico, sem pôr

em questão de que humanos ou de que direitos – e de que concepção de cidadania

– se fala. Políticas como um ‘estar com’, em detrimento de um ‘conhecer sobre’.

De modo análogo propomos, aqui, a discussão acerca das políticas públicas

sobre drogas no Brasil, mais especificamente porque o assunto ‘drogas’

4
“Acontecimento para Deleuze, Guattari e Foucault, mesmo em suas sutis diferenças, é um efeito sem corpo, um
traçado de linhas e percursos que cruzam estruturas diversas e conjuntos específicos. O acontecimento não se dá
a partir de uma intenção primordial ou como resultado de algo; ele põe em cena o jogo de forças que emerge no
acaso da luta. Produz rupturas, decompondo o que se apresenta como totalidade excludente; é datado, localizado
e funciona por conexão e contágio. Nele não há sujeito. As quebras que produz podem se irradiar, encontrar
ressonância em uma multiplicidade de outros acontecimentos ainda invisíveis, e suas potenciais invenções numa
forma de atualização” (NEVES, 2002, p.2-3)
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indiscutivelmente ocupa espaço em todos os principais meios de comunicação de

massa na atualidade no Brasil, e, da mesma forma, também é frequentemente tema

das conversas mais corriqueiras entre os diferentes pares. Observa-se com

freqüência que o modo privilegiado de tratamento dessa temática envolve afirmar a

importância (em forma de certeza) do combate ao uso e comercialização dessas

substâncias, o que se faz quase exclusivamente pela via da repressão,

principalmente às atividades que ocorrem nos denominados aglomerados

suburbanos das cidades, como favelas.

Nas discussões sobre drogas – seja no discurso ‘oficial’, ‘científico’ ou do dito

senso comum – por muitas vezes está presente o elemento segurança como um

bem que para ser acautelado não pode prescindir de uma existência ‘saudável’,

necessariamente longe de qualquer contato com ‘drogas’. E uma forma bastante

expressiva de visibilidade/produção desta lógica atende pelo nome ‘Guerra ao

Tráfico’ em nome da qual recorrentemente são tomadas medidas de exceção que

afetam diretamente e das mais diversas formas as pessoas que moram nas favelas

do Brasil. Atrelar garantia de segurança ao combate às ‘drogas’ (seja uso ou

comércio) é uma lógica muito pregnante na qual se produzem efeitos e também

sujeitos.

Drogas, tema que vem sendo entendido neste país como “epidemia”, forjado

a partir de ideais advindos de uma natureza descontextualizada política e

historicamente. Tema que insiste em vincular “tratamento” à noção de castigos ou

penas advindos de um ideal normativo que não suporta a transgressão como parte
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de um devir humano, reduzindo à condição de objeto e à perda da cidadania os

sujeitos-alvos das ações impostas.

A potência da prática em direitos humanos está na problematização da

violência e exclusão produzida na sociedade. Os diversos modelos de

aprisionamento produzem efeitos no mundo, que podemos (e devemos) colocar em

análise. A individualização da problemática em questão configura-se como uma

armadilha, pois entende que há um sujeito errado a ser corrigido, e punido. Uma

alternativa possível está no reconhecimento de tal produção coletiva e do caráter

político das práticas que se articulam a discursos de proteção e de cuidado.

Questionar respostas políticas que são produzidas antes mesmo de serem

formuladas como perguntas. Produzir redes de conversa e interrogação, apontando

que a urgência do tema não pode prescindir a amplitude de nossas discussões.

Em novembro de 2010, a sociedade brasileira presenciou (e produziu) uma

das atualizações mais expressivas (e visíveis) de uma política de enfrentamento às

‘drogas’ que parece ser bastante característica do momento atual. Ocorreu nessa

data a ocupação policial e das Forças Armadas de dois complexos de favelas

chefiados por traficantes no Rio de Janeiro. Os Complexos da Penha e do Alemão

foram invadidos por tanques e outros equipamentos de guerra usados pela Marinha,

Exército e Aeronáutica após uma série de acontecimentos que se sucederam em

diferentes bairros espalhados por todo estado do Rio de Janeiro (como lançamento

de bombas em espaços públicos, queimada de ônibus e carros particulares). O

tráfico de drogas foi responsabilizado por esses e outros feitos amplamente

divulgadas na mídia como ações terroristas que urgiam por uma resposta do Estado.
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E a resposta foi dada na forma de uma ‘Guerra contra o Tráfico’, maneira como foi

incansavelmente denominada pelos jornais, telejornais e revistas.

Não é apenas de forma recente que ações armadas por parte do Estado são

usadas contra certos grupos sob justificativa de necessidade de tomada de ‘medidas

de exceção’ como fazendo parte de um ‘estado de guerra’. A própria utilização da

terminologia ‘guerra’ é funcional à implementação dessas ‘medidas de exceção’, já

que não se trataria de um período ‘normal’ (COIMBRA, 2001). Coimbra (2003)

ressalta que nos anos 60 e 70 aos movimentos de oposição às ditaduras militares na

América Latina foi destinado tratamento semelhante. Como complemento à Doutrina

de Segurança Nacional, numa clara alusão a uma ‘guerra interna’, os ‘inimigos do

regime’ eram vistos como forças a serem combatidas e eliminadas em nome da

segurança nacional.

Coimbra (2001) destaca também outro momento na história brasileira em que

os militares foram chamados a ocupar os morros e favelas em nome do combate a

desordem e a violência causada pelos traficantes de drogas. Sob maciço apoio (e

até clamor) das elites, teve início em outubro de 1994 (e durou até maio do ano

seguinte) a chamada Operação Rio, um convênio assinado entre os governos do

estado do Rio de Janeiro e o governo federal brasileiro acordando “a presença

ostensiva das Forças Armadas nas favelas e bairros populares fluminenses, locais

percebidos como perigosos e degenerados” (COIMBRA, 2001:143). Segundo a

autora, os principais efeitos da Operação Rio foram a disseminação da imagem de

‘guerra civil’ e a concepção militarizada de segurança pública.


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Nota-se assim que “da mesma forma que ontem os ‘terroristas’ punham em

risco a segurança do regime, hoje os miseráveis tornam-se uma ameaça para a

‘democracia’, em especial, por sua aliança com o narcotráfico” (COIMBRA, 2003:

167). Segundo a autora, a resposta do Estado na forma de ‘guerra’ é um reflexo de

ideias que tiveram início desde os anos 80, quando o aumento da criminalidade foi

associado ao fim dos governos militares. Tal mudança foi denominada por Batista

(2011) como deslocamento do paradigma da segurança nacional para o da

segurança urbana, igualmente promotor de alta letalidade.

Carvalho (2006) também observa que a construção da existência de um

inimigo interno, personificado no traficante de drogas, está muito presente no

discurso oficial e serve como justificativa para ações próprias de um Estado de

Exceção. “A máxima na nova configuração da política criminal autoritária

contemporânea parece ser ‘contra o terror das organizações criminosas, o

terrorismo de Estado.’” (p. 167) Ele chama a atenção para o fato de que a

Constituição Brasileira prevê possibilidades para o estabelecimento do Estado de

Exceção, as quais estarão voltadas à preservação e estabelecimento da ‘ordem

pública’ e da ‘paz social’, mas sempre com restrições em relação ao tempo e aos

direitos suscetíveis de suspensão. No entanto, o que se observa na atualidade é que

(...) para além da disciplina constitucional de eventos episódicos de

desestabilização das Democracias, nota-se a constante tendência

dos Estados contemporâneos em criar eventos excepcionais de modo

a garantir uma permanente situação de emergência. Se na América

Latina o discurso de emergência foi constantemente revigorado pelas

agências repressivas como instrumento de (re)legitimação das


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políticas criminais de guerra às drogas, encontrando no ‘crime

organizado’ o inimigo a ser combatido, na atualidade a exceção

ganha contornos de estado de permanência com a adição do

discurso de luta contra o terrorismo. (Idem: 171)

Toda essa discussão parece conectar-se com os estudos de Foucault (2008b)

acerca do espraiamento da lógica neoliberal para esferas fora do campo econômico.

Segundo o autor, “o liberalismo [...] é toda uma maneira de ser e de pensar. É um

tipo de relação entre governantes e governados, muito mais que uma técnica dos

governantes em relação aos governados.” (p. 301). A forma como se exerce o

poder, e consequentemente os sujeitos formados segundo essa lógica,

fundamentam-se no estabelecimento de um pacto entre Estado e população que

visa à garantia de seguranças. O governo se dá não pela imposição de uma

vontade jurídica e consequente anulação dos interesses dos homens, mas a partir

do pedido por ser governado. Trata-se de uma forma de governamentalidade em

que se encontram articulados o sujeito de direito e o sujeito de interesse.

“(...) o interesse aparece como um princípio empírico de contrato. E a

vontade jurídica que se forma então, o sujeito de direito que se

constitui através do contrato é, no fundo, o sujeito de interesse, [...]

que se tornou calculador, racionalizado.” (FOUCAULT, 2008b: 373).

Nota-se que a questão da segurança é central para que essa lógica de

governamentalidade se opere. Os fenômenos naturais, como são tratados os

processos intrínsecos à população, precisam ser regulados e aí reside a função

essencial do Estado nesse pacto que estabelece com a população: garantir

segurança por meio dessa regulação. E para exercer esse papel o Estado faz uso
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de procedimentos de conhecimento científico sobre esses fenômenos,

“conhecimento científico absolutamente indispensável para um bom governo”

(FOUCAULT, 2008a: 471). Em outras palavras, o exercício dessa modalidade de

poder depende de um saber, que embora naturalizado, é produzido e emerge da

própria população.

As discussões aqui propostas acerca do universo de relações que cinge o

assunto ‘drogas’ permitem afirmá-las enquanto um dispositivo capaz de apontar

para a pregnância de exercícios de poder característicos de tecnologias biopolíticas

de regulação da vida. Embora não se possa afirmar ser essa modalidade de poder

aquela que exclusivamente marca as relações desse universo, é possível sustentar

que relativamente ao assunto ‘drogas’ pode-se observar de forma bastante intensa

uma vigência de um pacto de segurança e produções de saberes naturalizados

acerca dos fenômenos próprios da população.

Dando prosseguimento às reflexões sobre o campo problemático que se este

texto quer dar visibilidade, convoca-se a leitura de um trecho de um pronunciamento

feito na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro pelo então deputado estadual

Marcelo Freixo acerca dos acontecimentos anteriormente citados nos complexos de

favelas do Alemão e da Penha.

Primeiro, que as imagens, as armas, o número de mortos, tudo isso

poderia nos levar a uma conclusão da ideia de uma guerra. Mas, qual

é o problema de nós concluirmos que isso é uma guerra, de forma

simplista? Não há elemento ideológico: não há nenhum grupo

buscando conquistar o Estado. Não há nenhum grupo organizado que

busca a conquista do poder por trás de qualquer uma dessas


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atitudes. As atitudes são bárbaras, são violentas, precisam ser

enfrentadas, mas daí a dizer que é uma guerra traz uma concepção e

uma reação do Estado que, em guerra, seria matar ou morrer. Numa

guerra a consequência e as ações do Estado são previstas para uma


5
guerra.

Freixo chama a atenção para um dos efeitos dessa política: “numa guerra a

reação do Estado seria de matar ou morrer”. E tal ideia condiz perfeitamente com as

ações em vigor, que transformam o ‘criminoso’ em ‘inimigo’. Afinal, o ‘criminoso’ é

detido para averiguações, já o ‘inimigo’ é morto.

Ou seja, essa violência da polícia que está instituída e, portanto, liberada e

defendida pelas autoridades e pela população em geral percebe o pobre como um

criminoso que deve ser exterminado. [...] Sua função [...] não é prender, é matar.

Com isso, fecha-se o circuito e ganha espaço a crença de que vivemos em uma

‘guerra civil’ que, por sua vez, fortalece mais ainda a concepção militarizada de

segurança pública. [...] os ‘marginais’, ‘bandidos de toda a espécie, nesta concepção

de segurança pública, são percebidos como ‘inimigo’ e não como suspeitos.

(COIMBRA, 2003: 171)

Dessa forma, a morte de indivíduos quando identificados como traficantes é

tida como de menor valor. Em outras palavras, ser traficante é elemento legitimador

de homicídio policial (COIMBRA, 2001). E na conversão do ‘criminoso’ em ‘inimigo’

encontra-se em operação um processo de naturalização da criminalidade. O

‘criminoso’ é transformado em alguém mau, portador de uma essência maléfica,

podendo-lhe até mesmo ser retirado o status de ‘humano’ (COIMBRA, 2003).

5
Disponível em <http://www.marcelofreixo.com.br/site/noticias_do.php?codigo=114>. Acesso: 16 Dez.2013.
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Foucault (2002) faz uma comparação entre o ‘fazer morrer e deixar viver’,

próprio de um exercício soberano de poder, e o ‘deixar morrer e fazer viver’,

presente nas práticas biopolíticas de governo da vida, que parece muito cara a

análise dessa realidade apresentada. A técnica do suplício, manifestação de poder

soberano por meio do qual o corpo do inimigo é marcado para que se restabeleça a

superioridade lesada, comparece por meio das ações (e pedidos) de combate aos

traficantes de drogas nas favelas. Da mesma forma, é possível afirmar que um

‘deixar morrer’ neste universo se opera quando se atrela a garantia de segurança

(um desejo da população) a um viver distante de qualquer contato com ‘drogas’. Ou

seja, matam-se formas de existência singulares que não se deixam assujeitar (ou

pelo menos tentam) insistindo em escapar pela via da aproximação diversificada

(vendendo, usando, etc.) a essas substâncias psicoativas. Segrega-se, culpabiliza-

se e infantiliza-se toda iniciativa que insiste em ousar ser autônoma e afirmar outro

lugar para as ‘drogas’ que não o de representante do ‘mal’ na Terra.

Outro autor que oferece importantes contribuições acerca dessa ‘guerra às

drogas’, que ‘mata’ mais (traficantes, policiais, ‘criancinhas voltando da escola’,

‘trabalhadores de bem’, consumidores ‘ilustres’ e não tão ilustres) do que o uso

abusivo dessas substâncias, é Zaccone (2007). Para ele essa guerra é bastante

funcional em relação à eliminação da concorrência do comércio ilegal, “convertendo

o sistema penal num fator de concentração econômica, que não importa na exclusão

das atividades ilegais do mercado, senão somente sua concentração junto às

atividades legais. [de lavagem desse dinheiro ilegal]” (p. 25) O autor pontua ainda
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que se encontra em franca operação o que o sociólogo Zygmunt Bauman denomina

de criminalização dos consumidores falhos.

Ainda que o principal argumento que respalda as leis referentes ao combate

ao tráfico e uso de algumas substâncias psicoativas seja a defesa da saúde pública,

esse autor afirma que os marcos legais atuais em relação às substâncias

consideradas ilícitas no Brasil oferecem claras evidências de uma diferenciação no

tratamento penal de usuários e traficantes. Aqueles usualmente respondem segundo

o modelo médico, uma vez que se trata de dependência química, uma doença;

enquanto a esses é aplicado o modelo penal, próprio a criminosos.

A legislação referente a drogas no Brasil, [...] lei 11.343, em vigor

desde 23/08/2006, é resultado da ‘ideologia da diferenciação’ [...]

Com o passar dos anos a resposta penal às condutas definidas para

o ‘traficante’ e ‘usuário’ vem aumentando, considerando-se o primeiro

como autor de uma conduta ‘equiparada’ a crime hediondo [...]; e o

segundo como autor de uma ‘infração de menor potencial ofensivo’,

não mais sujeita à pena privativa de liberdade. (Zaccone, 2007:100)

Contudo, fica uma pergunta. Tomando como base a realidade do Brasil (e,

por conseguinte, de demais nações latinoamericanas), como se constroem

processos de subjetivação que capturam as identidades ‘usuário’ e ‘traficante’?

Segundo pesquisa realizada por Batista (1998) a partir de processos criminais

no período de 1968 a 1988 da 2ª Vara do então Juizado de Menores do Rio de

Janeiro, o envolvimento com certas drogas está diretamente relacionado a um

vertiginoso crescimento da criminalização da juventude no período estudado. A

autora afirma ainda que a criminalização dos envolvidos diferencia-se em virtude do


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grupo social do qual são oriundos. “Aos jovens de classe média que a consumiam

aplicou-se sempre o estereótipo médico, e aos jovens pobres que a

comercializavam, o estereótipo criminal.” (BATISTA, 1998: 134). Sutilezas muito

próximas àquelas apontadas por Zaccone (2007), quando destaca que não é a

quantidade de drogas flagrada com o sujeito que vai determinar tratar-se de um

usuário ou traficante, mas sim sua classe social.

O critério socioeconômico torna-se ainda mais crucial quando se coloca em

análise os diferentes atores envolvidos com a atividade comercial de drogas ilícitas

no Brasil. Segundo Barbosa (2008) não é possível falar sobre a existência de um

único tráfico de drogas no país, apresentando então três grandes modalidades a

partir dos mercados que abastecem. Para esse autor, no Brasil existem: o tráfico

que acontece nas favelas; o que acontece fora delas sem passar por elas; e um

terceiro que alimenta os mercados externos, passando pelos portos e aeroportos.

Misse (2003) complementa essa discussão ao afirmar que o movimento – como

denomina o mercado informal ilegal de drogas no varejo nas favelas – tem como

uma de suas principais características a relativa organização local, muitas vezes

com base familiar. Isso significa que “[o movimento] não se subordina diretamente

nem aos grandes atacadistas nem a organizações verticais de base familística ou

patrimonialista, como as máfias.” (MISSE, 2003: 147)

Por fim, um último aspecto merece ser observado. As ações implementadas

de discriminação entre usuários e traficantes (inclusive na forma da lei) e mais do

que isso os critérios apontados enquanto aqueles utilizados para captura dessas

identidades aparentam muitas vezes uma preocupação/produção de uma


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periculosidade desses sujeitos. Foucault (2009b) apresenta o conceito de

periculosidade como aquele que torna possível a punição pelo controle, pela

vigilância, uma vez que se pauta na virtualidade do sujeito. Na distinção das formas

de contato com a droga e na eleição de critérios para denominação de usuários e

traficantes parece estar presente (e atuante) um interesse no vir a ser, interesse que

se opera controlando, vigiando, reformando segundo uma norma construída e

aplicada sobre esses mesmos sujeitos.

O que fazer?

Façamos, enfim, como nos sugerem Deleuze e Guattari (1997), nossas

máquinas de guerra, que significam aqui a ousadia de colocar em análise algumas

produções de subjetividades – umas hegemônicas, outras nem tanto – que forjam

uma certa fisionomia para o objeto Direitos Humanos. Fisionomias que nos possam

alertar para que não nos acostumemos com práticas cotidianas de violações dos

mais diferentes direitos, fazendo com que não percamos nossa capacidade de

estranhamento e, portanto, de indignação, acreditando na possibilidade de

experimentação de ferramentas que afirmem diferentes potências de vida.

Uma prática compromissada com os Direitos Humanos pode produzir outras

alternativas, que não envolvam a criminalização e tentativa de adequação de modos

de existência. Estes direitos humanos, porém, não são ensinados em modelos.

Deste modo, devemos nos perguntar, cotidianamente: “Em nome da proteção e do

cuidado, que formas de sofrimento e exclusão temos produzido?”6 É necessário

6
Campanha Nacional de Direitos Humanos do Sistema Conselhos de Psicologia, lançada em novembro de 2011,
na sede do Conselho Federal de Psicologia, em Brasília.
BICALHO, Pedro Paulo.; BARBOSA, Roberta Brasilino. As violações de direitos humanos
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