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06/11/2018 Acerca da escassez de alimentos

Acerca da escassez de alimentos


por Prabhat Patnaik [*]

A teoria económica ortodoxa foi


durante muito tempo assombrada
pela perspectiva de que o
crescimento da produção de cereais
na economia mundial não seria
suficientemente elevado para
sustentar o crescimento da
população mundial. Malthus foi um
dos primeiros expoentes deste
temor. Keynes também subscreveu
a visão de que se os países pobres
não assegurassem de alguma forma
que o crescimento da sua população
fosse controlado, haveria uma
escassez de alimentos na economia
mundial e a pobreza crescente seria
um sintoma disso.

Esta visão, é claro, era o produto de uma disposição intelectual que via a pobreza como
consequência da procriação excessiva, ao invés de qualquer arranjo social. Isto foi
explicitamente declarado por Malthus. E a economia política clássica, influenciada pela
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teoria malthusiana da população, avançou o argumento de que os salários dos


trabalhadores permaneciam ligados a um nível de subsistência devido à sua propensão a
procriar rapidamente no momento em que excedia o nível de subsistência. Marx,
naturalmente, rejeitou esta posição com desprezo. Ele considerou a teoria malthusiana da
população, na qual se baseava, como "uma calúnia à raça humana".

O caso de Keynes é mais curioso. Agudamente consciente dos defeitos do sistema


capitalista (embora se esforçasse ao mesmo tempo para preservá-lo de uma forma
modificada), o corpo principal do seu trabalho intelectual serviu para sugerir que o
sofrimento dos trabalhadores sob o capitalismo era patético porque o seu emprego, e
portanto o seu rendimento, era determinado pelas loucuras e caprichos de um punhado de
especuladores. A preocupação de Keynes acerca do crescimento populacional
ultrapassava a questão de a oferta de alimentos ser a causa da pobreza e parece ímpar
neste contexto. Mas deve-se lembrar que mesmo Keynes, com toda a sua percepção do
sistema capitalista, era notavelmente limitado sobre a questão do imperialismo. Nunca lhe
ocorreu atribuir a pobreza do terceiro mundo à exploração imperialista: ao contrário, ele
era profundamente crítico àqueles que faziam tal sugestão. Em consequência, a pobreza
do terceiro mundo, que estava ali para ser vista por toda a gente, tinha de ser explicada
por alguma causa interna destas sociedades. E uma taxa de crescimento da população
excessivamente alta era uma "explicação" óbvia.

A visão de Keynes é reflectida por uma multidão de outros economistas mainstream, os


quais, relutantes até em reconhecer a categoria imperialismo, muito menos qualquer efeito
engendrador pobreza que este possa ter tido no terceiro mundo, volta a recorrer a
argumentos internos a estas sociedades para explicar a privação económica dos seus
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povos. E o crescimento populacional está à mão como uma explicação conveniente.

Mas apesar de não haver objecções quanto a que sociedades do terceiro mundo devam
dar passos para controlar seu crescimento populacional (o que é uma questão totalmente
à parte), a visão de que a sua pobreza é causada pelo crescimento populacional
excessivo é manifestamente absurda. Tomemos o mais simples dos índices de pobreza, a
saber, a privação nutricional. De facto na Índia, e mesmo alhures, a própria definição
oficial de pobreza é em termos de privação nutricional. Na Índia, por exemplo, qualquer
um com acesso a menos de 2100 calorias por dia em áreas urbanas e menos de 2200
calorias por dia em áreas rurais é considerado "pobre"; e estas referências nunca foram
repudiadas, não importa que subterfúgios sejam de facto utilizados para determinar a
extensão de tal pobreza. A pergunta é: será a pobreza assim definida um resultado da
inadequada produção de alimentos em relação à população?

O notável é que o crescimento da produção mundial de cereais tem estado mais ou


menos a acompanhar o crescimento da população mundial. A média anual mundial da
produção de cereais no triénio 1979-81, por exemplo, quando dividida pela população do
ano médio do triénio, era de 355 quilogramas. O número correspondente para o triénio
2015-17 foi de 350 quilogramas. Não obstante todas a previsões sinistras, a produção de
cereais tem portanto acompanhado a população ao longo das últimas três décadas e
meia. Ao mesmo tempo, contudo, a quantidade de stocks de cereais em relação à
produção foi notavelmente elevada em 2016; na realidade tem estado a subir
ultimamente.

Apesar da crise capitalista e da recente desaceleração do crescimento económico


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mundial, certamente tem havido uma taxa de crescimento per capita positiva para o
período de 35 anos como um todo. Uma vez que a elasticidade-rendimento da procura por
grãos alimentares incluindo cereais é positiva para a economia mundial, dever-se-ia
esperar que, com a produção per capita de cereais permanecendo mais ou menos
inalterada, houvesse um excesso de procura no mercado cerealífero, provocando um
esgotamento dos stocks de cereais. O facto de ter acontecido exactamente o oposto
sugere que a procura mundial de cereais realmente declinou ainda que a produção per
capita de cereais tenha permanecido quase inalterada.

Deve-se esclarecer aqui que estamos a falar não do consumo directo de cereal mas da
procura de cereal para todas as utilizações, incluindo o consumo indirecto (via alimentos
processados e produtos animais que exigem grãos alimentares). E a evidência estatística,
tomando uma secção transversal agrupada e dados de séries temporais para países,
mostra que a procura total per capita de cereais aumenta com o rendimento per capita
real. Portanto, o facto de que isto não aconteceu recentemente para a economia mundial
indica que tem havido um esmagamento da procura de cereais através de uma redução
directa do poder de compra real dos trabalhadores dentro dos países, os quais são
forçados a economizar mesmo no consumo de cereais. (O declínio real no consumo per
capita mundial de cereais é mesmo maior do que o sugerido acima porque agora uma
maior proporção da produção é desviada para a produção de etanol em comparação com
a situação anterior).

Ao contrário dos temores da teoria económica ortodoxa, a razão para a fome persistente e
mesmo crescente no mundo de hoje surge não está do lado da oferta mas sim do lado da
procura. Isso acontece não porque haja escassez de produção em relação à população
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mas porque há escassez de procura relativa para esta produção. Uma vez que a
magnitude da procura depende da magnitude do poder de compra real e da sua
distribuição, a qual é socialmente determinada, não é a população excessiva mas a
organização social sob a qual vivemos hoje, a organização do capitalismo neoliberal, que
é responsável pela fome persistente e crescente no nosso mundo. A causa próxima da
privação nutricional e portanto da pobreza no mundo é a nossa ordem social, não a
população excessiva.

Dizer isto não significa, como já foi mencionado, que as populações não deveriam ser
controladas. Mas utilizar a população excessiva como uma camuflagem para obscurecer o
papel da ordem social é totalmente errado e deve ser rejeitado.

Nossa discussão tão pouco significa que não devesse ser tentado um aumento na
produção per capita de grãos alimentares. De facto, uma razão importante para a
ausência de poder de compra entre os trabalhadores é a baixa taxa de crescimento da
produção da agricultura, incluindo os grãos alimentares. Se esta taxa de crescimento
fosse acrescida então também haveria maior poder de compra entre aqueles que
procuram cereais alimentares, o que reduziria a privação nutricional. Mas nossa discussão
sugere que mesmo que o poder de compra seja de alguma forma posto nas suas mãos,
ainda assim haveria uma redução na pobreza nutricional sem que isto causasse
necessariamente excesso de procura na economia mundial de grãos alimentares. Se por
exemplo cuidados de saúde baratos ou gratuitos pudessem ser dispensados aos
trabalhadores do mundo haveria então poder de compra adicional nas suas mãos, o qual
eles usariam para maior consumo de grãos alimentares, superando com isso a pobreza
nutricional.
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Como matéria de facto, o mesmo factor que mantém baixa a procura por grãos
alimentares também mantém baixa a produção dos mesmos: a gama de medidas através
das quais o capitalismo neoliberal reduz o poder de compra dos trabalhadores também
inclui medidas dirigidas contra o campesinato que afectam adversamente a produção. Ao
eliminar todos os subsídios dados anteriormente à agricultura, retirar esquemas de apoio
aos preços, privatizar serviços essenciais como educação e cuidados de saúde tornando-
os mais caros, que são características comuns da agenda neoliberal, reduz-se a
lucratividade real da agricultura camponesa (isto é, ganhos em relação ao custo de vida),
empurrando o campesinato para um ciclo vicioso de dívida, sofrimento e suicídios. A
produção também é afectada adversamente em consequência.

Portanto a argumentação mainstream avançada por um conjunto de distintos escritores


desde Malthus até Keynes é errada por duas razões. Primeiro, a pobreza existe mesmo
quando não há escassez de produção de cereais na economia mundial, de modo que o
constrangimento próximo que perpetua a fome não está do lado da oferta mas do lado da
procura. Segundo, mesmo o constrangimento ao aumento da produção verifica-se não por
causa de quaisquer "limites naturais" mas sim por causa das políticas prosseguidas sob o
regime do capitalismo neoliberal.

Estas duas razões, por sua vez, estão relacionadas: medidas que esmagam a procura por
cereais também esmagam a produção de cereais e vice-versa (com o esmagamento da
procura sendo relativamente maior). Estas medidas têm a ver com a organização social e
não com qualquer "população excessiva". O facto de que escritores mainstream
continuem a rufar o tambor da "população excessiva" como causa da pobreza,
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especialmente no terceiro mundo, apenas sublinha a natureza profundamente ideológica


da teoria económica.

08/Abril/2018

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2018/0408_pd/prospect-food-


shortage . Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .


20/Abr/18

https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_08abr18.html 7/7

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