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LITERATURA E CONSCIENCIA Octavio lanni* RESUMO A producao literéria brasileira sobre o negro ja permite falar de uma literatura negra. Um segmento que se descola e autonomiza, se vemos a literatura brasilei- ra em perspectiva ampla. Forma-se um sistema de obras, autores e leitores, arti- culados em torno de uma problematica, um imagindrio povoado de construcées, imagens, figuras, ressoando o drama e a épica do negro brasileiro. Em termos hu- manos, sociais e culturais, 0 negro se constitui em um nucleo bastante nitido, marcante, da producao literaria. Negro — Literatura — Consciéncia — Critica — Protesto — Parédia A literatura negra é.um imaginario que se forma, articula e transforma no. curso do tempo. Nao surge de um momento para outro, nem é aut6noma des- de o primeiro instante. Sua histéria esta assinalada por autores, obras, temas, invenc6es literarias. E um imaginario que se articula aqui e ali, conforme o didlogo de autores, obras, temas e invencées literarias. E um movimento, um devir, no sentido de que se forma e transforma. Aos poucos, por dentro e por fora da literatura brasileira, surge a literatura negra, como um todo com perfil proprio, um sistema significativo. Um sistema no sentido de “obras ligadas por denominadores comuns’, com “notas dominantes”’ peculiares desta ou aque- la fase, deste e aquele género. “Estes denominadores sao, além das carac- teristicas internas (lingua, temas, imagens), certos elementos de natureza so- cial e psiquica, embora literariamente organizados, que se manifestam histori- camente e fazem da literatura aspecto organico da civilizagdo. Entre eles, se distinguem: a existéncia de um conjunto de produtores literarios, mais ou me- Nos conscientes doseu papel; um conjunto de receptores, formando os dife- rentes tipos de publico, sem os quais a obra nao vive; um mecanismo transmis- (*) — Professor Livre-Docente do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 28:91-99, 1988 91 sor (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns e ou- tros.’” Trata-se de um sistema aberto, em movimento, diferenciado, as vezes tam- bém contraditério, que se desenvolve e recria. Um poema, conto, romance ou peca de teatro pode abrir outro horizonte, inaugurar uma corrente, desvendar um estilo. Ha obras ou autores que instituem toda uma “familia”. Criam os seus descendentes e inventam antecessores. Por isso é que por dentro da mes- ma literatura surgem correntes, escolas, tendéncias ou “familias” literarias. S$4o autores, obras, temas, solugoes literarias que se articulam, influenciam, continuam; sem romper o sistema constituido pela literatura negra. Talvez se possa dizer que Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto criaram familias literarias fundamentais da literatura negra. Sao autores cujas obras permaneceriam inexplicadas se nado se desvendasse a sua relagao com o siste- ma literario que se configura na literatura negra. E isto sem prejuizo da sua po- sicdo na literatura brasileira. O negro é 0 tema principal da literatura negra. Sob muitos enfoques, ele é © universo humano, social, cultural e artistico de que se nutre essa literatura. Naturalmente o negro sempre implica no branco, no outro do negro: senhor de escravos, capataz, feitor, fazendeiro, empresario, empregado, funcionario, operario, lavrador, politico, governante, intelectual e assim por diante. Impli- ca na escravatura, época colonial, periodo monarquico, varias republicas, va- rias ditaduras, urbanizacdo, industrializacao, formas de trabalho e vida. Com- preende diversidades, multiplicidades, desigualdades, antagonismos. Mas nao ha ditvida de que o negro brasileiro é o tema principal dessa literatura. Uma li- teratura “que trabalha no seu contetido contextos onde os personagens (ou fa- tos) se desenvolvem segundo principios e fins historicos, relacionados no tem- po € no espaco comiaspectos do individuo, da familiae dos povos negros, em fungao de relacdes sociais conhecidas ou decodificaveis”.* Mas cabe ressaltar aspectos implicitos nessa colocacdo. A “literatura negra é aquela desenvolvida por autor negro ou mulato que escreva sobre sua raca dentro do significado do que @ ser negro, da cor negra, de forma assumida, discutindo os problemas que a concernem: religido, sociedade, racismo. Ele tem de se assumir como negro”. Nesse sentido é que Luiz Gama, Lima Barreto, Solano Trindade e muitos outros, principalmente no século XX, demarcam algumas linhas funda- mentais dessa literatura, como tema e sistema. Nem sempre, no entanto, esse universo humano, social, cultural e artistico esta explicito, pleno. Em alguns escritores ele pode aparecer em fragmentos, pouco estruturado. E ha mesmo obras nas quais ele parece rec6ndito, invisfvel, sublimado. Esse pode ser o caso de Cruz e Souza e Machado de Assis. Nesses autores o tema da negritude, ou negricia, estaria implicito, subjacente, decan- tado. Mas pode ser um segredo da sua invengao literaria, de tal maneira que sem ele suas obras permaneceriam inexplicadas, inexplicaveis. Podemos, pois, distinguir duas polarizacées principais, nado Uinicas, na for- macao da literatura negra. Uma diz respeito ao desenvolvimento de um siste- ma, um todo aberto. Outra se refere ao negro brasileiro como tema principal, como universo humano, social, cultural e artistico. E claro que essas polariza- Ges se constituem em conjunto, mesclam-se, s Sao varias e dificeis as operacées “‘ideolégicas” que os escritores negros tealizam para desanuviar o ambiente, mapear as situacdes presentes, resgatar (1) = CANDIDO, Antonio. Formacao da literatura brasileira. 2 v. Sao Paulo, Ed. Martins, 1951, v. 1, p. 17. (2) — SEMOG, Ele. Perfil da literatura negra, citado por Luiza Lobo, Literatura negra brasileira contemporanea. Fstudos afro-asiaticos, Rio de Janeiro, (14): 190-40. 1987. Citacao da p.118. (3) — Ironides Rodrigues, em entrevista a Luiza Lobo, “Literatura negra brasileira contempora- nea”, citado, p. 118-119. 92 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 28:91-99, 1988 a historia, desvendar a'sua matéria de criacdo, formular os'seus temas, pesqui sar as suas linguagens, alcancar a transparéncia na relacao do seu eu indivi- dual com oseu eu coletivo. A cultura e a ideologia dominantes escondem mu to, praticamente tudo: histéria incruenta, escraviddo acucarada, democracia racial etc. Uma dessas ‘operacées “‘ideolégicas” 6 o resgate dos escritores negros. Trata-se de libertar Cruz e Souza da metafora da brancura simbolista; Macha- do de Assis da compostura de maior escritor da literatura brasileira, coma gl6- tia da fundacao da Academia Brasileira de Letras; e Lima Barreto do escritor gramaticalmente vacilante, o cronista do suburbio. O'escritor negro ea litera- tura negra, ou afro-brasileira, podem resgatar esses escritores, mostrar como s4o fundadores. E como apontam além do seu tempo. Abrem horizontes que permitem repensar aspectos fundamentais da dialética arte e sociedade, litera- tura e consciéncia social. De acordo com Cuti (Luiz Silva), a'literatura negra nao pode perder: “De Cruz e Souza a vertente tragica, o profundo mergulho psicolégico, a estética da velocidade, o dominio da métrica e recursos musi- cais. De Lima Barreto, a objetividade ir6nica, o despojamento na abordagem da questao racial, a visdo do cotidiano. De Machado de Assis, a monumental ironia com que focaliza a sociedade dominante, o refinado dominio técnico na elaboracdo da narrativa.’’4 E provavel que Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto sejam os fundadores da literatura negra. Sem preju(zo da sua importancia na literatura brasileira. Mas. também é provavel que o resgate desses autores pela literatura negra permita repensa-los melhor, descobrir dimensdes novas em suas obras, redimensiona-los no. ambito da literatura brasileira. Certamente contribuem decisivamente para a formacao da literatura negra, enquanto tema e’sistema: Mais uma vez reabre-se o contraponto arte e sociedade, literatura e conscién- cia social, criador e criatura. Para descobrir a presenc¢a do negro na obra de Machado de Assis, € preciso ultrapassar o mapeamento demografico, racial, sociolégico ou ideolégico. Es- se método rende pouco, quando se quer desvendar esse segredo da escritura desse autor. Muitos ja se debrucaram sobre os seus romances e contos, che- gando a poucas indicaces, impressdes vagas, conclusdes modestas, juizos pessimistas. Machado de Assis teria sido indiferente, alheio etc. Em seu excelente estudo Machado de Assis: a pirdmide e o trapézio, Ray- mundo Faoro ultrapassa essas colocacées. Empenha-se em sintetizar as contri- buicdes do autor sobre “operarios e escravos: hierarquia'e vinganca’. Consta- ta que sdo varias e muito significativas as referéncias a problematica do negro: Pode-se mesmo supor, como sugere Faoro, que Machado de Assis'via com ce- ticismo o modo pelo qual o escravo estava sendo libertado. Por antecipacao, fazia a critica do logro em que o negro seria jogado. Foi jogado. O ceticismo essencial de Machado de Assis Ihe permitia visualizar 0 escravo e€ o livre no contexto da miséria social inerente a sociedade. Para muitos, a’alforria poderia significar uma calamidade, quanto as condi¢ées de vida e trabalho que teriam de enfrentar. “O escravo seria livre, mas ficaria sem trabalho e sem pao, entre- gue a mendicancia.” Isto é, “o abolicionismo, ao tempo que entrega/ao cativo © proprio destino, prende-o ao salario de fome, com as mesmas humilhagoes que a escravidao consagrava”’. Ainda de acordo com Faoro, Machado de Assis “percebe que a libertacao do escravo pode ser apenas um bom negécio para‘o branco‘e o caminho da miséria para o preto”’.> (4) — CUTI. Fundo de quintal nas umbigadas, publicado em Criacdo crioula, nu Elefante Branco, | Encontro de Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros, realizado em setembro de 1985, Sao Paulo, 1987. p. 151-160. Citacao da p. 152. (5) — FAORO, Raymundo: Machado de Assis: a pirdmide e 0 trapézio. Sao Paulo, Editora Na- cional, 1974. p. 326, 329 e332. Rev. Inst. Est. Bras. ,, SP, 28:91-99, 1988 93

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