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NIEDERLE, Paulo André ; SCHUBERT, Maycon Noremberg ; SCHNEIDER, Sérgio .

Agricultura familiar,
desenvolvimento rural e um modelo de mercados múltiplos. In: Sheila Doula; Ana Louise Fiúza; Erly Cardoso
Teixeira; Janderson dos Reis; André Luis Lima. (Org.). A agricultura familiar em face das transformações na
dinâmica recente dos mercados. 1ed.Viçosa: Suprema, 2014, v. 1, p. 43-68.

Agricultura familiar, desenvolvimento rural e um modelo de


mercados múltiplos

Paulo Andre Niederle1


Maycon Noremberg Schubert2
Sergio Schneider3

Introdução

A agricultura familiar encontra-se integrada em diversos circuitos de produção e


consumo. Alguns constituem a expressão contemporânea do modelo produtivista
herdado dos anos de modernização compulsória, os quais ganham novo impulso com a
atual expansão da produção de commodities agrícolas estimulada pela crescente
demanda internacional. Outros, ao contrário, emergem justamente como uma espécie de
resposta aos limites deste modelo em constituir uma opção à crescente vulnerabilidade
econômica e social que atinge grande parte das famílias rurais.
Enquanto a dinâmica das cadeias globais de mercadorias está na agenda de
estudo há longa data, permanecem indagações sobre as expressões e as compreensões
dos “novos mercados”. Há algum tempo tem sido questão recorrente no debate
acadêmico e político-institucional o potencial deles para viabilizar um novo padrão de
desenvolvimento, senão para toda a agricultura familiar, ao menos para segmentos
específicos que não encontram espaço nos mercados de commodities. As perspectivas
mais otimistas sugerem que, mais do que evidências de crise do modelo tradicional,
algumas regiões já estariam diante de uma espécie de pós-produtivismo, revelado por
processos de desenvolvimento endógenos e territorializados agenciados pelos atores
locais (Marsden, 2009; 2013). Outras análises assumem uma postura mais crítica sobre
a expressão atual e vitalidade deste modelo, insistindo que o meio rural encontra-se cada
vez mais sob os desígnios dos mercados de commodities.
A rigor, ambas as vertentes acentuam processos presentes em maior ou menor
grau em distintos espaços rurais, mas tendem a permanecer cativas a uma dicotomia que
não se manifesta de tal modo na realidade. O que prepondera é a simultaneidade destas
diferentes variedades de desenvolvimento, sendo até o momento inexeqüível apontar
uma tendência exclusiva. O modelo produtivista continua demonstrando sua vivacidade,

1
Doutor em Ciências Sociais (CPDA/UFRRJ). Professor do Departamento de Sociologia da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: pauloniederle@gmail.com
2
Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail:
maycon.schubert@gmail.com
3
Doutor em Sociologia (UFRGS). Professor do Departamento de Sociologia e dos programas de Pós-
graduação em Sociologia (PPGS) e Desenvolvimento Rural (PGDR) da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). E-mail: schneide@ufrgs.com.br

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não obstante, muitas vezes são justamente os universos sociais mais marcados pelas
conseqüências sociais, econômicas e ambientais deste modelo que assistem ao
crescimento de alternativas que caminham em outra direção, impulsionadas pela
emergência de novas formas de produção e de governança. Talvez o caso mais
emblemático disso no Brasil seja a trajetória recente dos agricultores familiares no oeste
catarinense, uma das regiões mais marcadas pelo avanço do modelo modernizante, mas
também de onde veio à tona um número expressivo de novidades técnicas, institucionais
e organizacionais (Estevan e Mior, 2014; Mello e Schneider, 2010; Schubert e Niederle,
2011).
O reconhecimento de uma variedade de “estilos de agricultura familiar”
(Conterato, Schneider e Waquil, 2010; Niederle, 2006) não favorece conclusões
genéricas. Por conseguinte, um modelo de múltiplos mercados parece sensato em face
da diversidade da agricultura familiar brasileira. De fato, inúmeras unidades de
produção inserem-se competitivamente em várias cadeias convencionais. A
consolidação das mesmas faz inclusive com que o referencial da modernização recupere
seu vigor, não apenas político, mas intelectual (Buainain et al., 2014). O discurso da
tecnologia como solução da lavoura foi novamente incorporado nas políticas públicas e
nas teses econômicas. Mas essa opção está distante da realidade dos agricultores
familiares mais vulneráveis, que não podem suportar o treadmill tecnológico e o
squeeze dos rendimentos promovidos pelos mercados convencionais.
Sobretudo nestes casos o reconhecimento e o suporte a novos circuitos de
produção e consumo constituem uma alternativa que, por um lado, requer incentivos por
parte da ação estatal e, por outro, exige esforços analíticos por parte dos estudos rurais.
O aprimoramento dessa discussão no campo do desenvolvimento rural tem mostrado o
papel central da construção social dos mercados. O resultado é uma sociologia
econômica dos mercados (Lie, 1997), para a qual o desenvolvimento deixa de ser
compreendido pela capacidade de reproduzir, em um determinado espaço (o rural), os
modernos processos de produção agrícola via transferência de inovações exógenas. De
outro modo, a noção assume um conteúdo específico, expressão da capacidade de um
conjunto de atores sociais em produzir (ou adaptar) localmente uma variedade de
novidades tecnológicas, organizacionais e institucionais. É neste sentido que o
desenvolvimento associa-se à construção de novos espaços de mercado (marketplace)
para bens cujas qualidades são formadas em transações concretas envolvendo pessoas
reais com diferentes repertórios valorativos (Hebinck, Ploeg e Schneider, 2014).

Os mercados como objeto de preocupação das ciências sociais

Anteriores ao capitalismo, os mercados constituíram até a atualidade, e


provavelmente o farão ainda por um longo tempo, as estruturas sociais que mais
transformaram o conjunto das relações sociais e humanas. Sua importância, todavia, não
fez de sua essência e de seu funcionamento objetos de perfeito esclarecimento às
ciências sociais (inclusive à economia). Desta forma, seria precipitação desnecessária
aventurar-se por uma análise que os envolve diretamente sem minimamente delimitar

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seu significado. Nosso ponto de partida se encontra na sociologia econômica clássica,
onde prevalece a idéia de autonomização dos mercados em relação às demais estruturas
sociais, processo este capaz de levar à constituição de uma sociedade na qual “em vez
de a economia estar enraizada (embedded) nas relações sociais, são as relações sociais
que estão embutidas no sistema econômico.” (Polanyi, 1980, p. 77).
O desenvolvimento dos mercados e a generalização da economia capitalista com
todas suas conseqüências sobre o conjunto da vida social marcam a grande
transformação polanyiana. Mesmo que sob perspectivas teóricas e epistemológicas
distintas, e com compreensões absolutamente diferenciadas dos mercados e do próprio
desenvolvimento capitalista, Marx, Weber, Polanyi e tantos outros condenaram os
mercados por uma “avalanche de desarticulação social” nunca antes vista na história da
humanidade (Polanyi, 1980, p. 58).
Embora Marx (1982) sequer tenha se colocado o desafio explícito de definir o
mercado, seu significado na teoria marxiana jamais será tido como irrelevante. Pelo
contrário, à medida que se especificam os fundamentos que caracterizam a economia
capitalista para o autor, mais evidente se torna o papel dos mercados. A ele vincula-se
um modo de produção cuja especificidade das relações sociais de trabalho e produção
(em que o excedente econômico produzido por uma classe é apropriado por outra),
define uma visão particularmente trágica sobre a ampliação da economia de mercado, a
qual tornaria as relações humanas completamente mediatizadas pela forma social da
mercadoria (mercantilização) e do dinheiro (monetização).
Segundo Marx (1982), nenhum produtor isolado é capaz de produzir
mercadorias. O produto de seu trabalho somente assume essa forma social e, assim,
valor de troca, sob definidas relações sociais que se encontram nos mercados. O
significado do processo de mercantilização é compreendido pelo papel que o mercado
assume em transformar todas as coisas em mercadorias, e em sua tarefa de tornar
independente das pessoas o resultado de seu trabalho. Com efeito, as “relações
mercantis, para ele, serão sempre e necessariamente alienantes: a solidariedade social só
pode ser encontrada na supressão das relações humanas que dependem de mercados.”
(Abramovay, 2004, p. 46).
Em outra perspectiva, a construção weberiana está diretamente vinculada à idéia
de mercado enquanto lugar da ação social orientada para o lucro, sendo o mercado
capitalista aquele que comporta a ação especificamente racional ajustada por um cálculo
em termos de capital. No capítulo inconcluso de Economia e Sociedade (O Mercado),
Weber assume que a comunidade de mercado como tal constitui a relação vital prática
mais impessoal que pode existir entre os homens, de modo que, “quando o mercado é
deixado à sua legalidade intrínseca, leva apenas em consideração as coisas, não a
pessoa, inexistindo para ele deveres de fraternidade e devoção ou qualquer das relações
humanas originárias sustentadas pelas comunidades pessoais (Weber, 2000, p. 420).
Uma parte substancial dos argumentos de Weber é reencontrada nos textos de
Polanyi. Em algumas passagens este se aproxima de uma reprodução ipsis verbis: “a
transformação implica uma mudança na motivação da ação por parte dos membros da
sociedade: a motivação do lucro passa a substituir a motivação da subsistência.”
(Polanyi, 1980, p. 60). Mesmo com o interesse em evidenciar que os mercados

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constituem somente uma entre tantas outras instituições sociais criadas pelas interações
humanas, Polanyi assevera que sua generalização na sociedade capitalista desintegra as
demais estruturas sociais (regras, convenções, redes, prestígio social) onde estas
relações originalmente estavam inseridas.
O século XX assistiu, contudo, a uma profunda ruptura com esse tipo de análise,
fruto da rendição da economia ao pensamento neoclássico. O utilitarismo da escola
austríaca, liderada por Menger e Walras, tornou o mercado objeto específico dos
interesses da economia, afastando-o da sociologia, filosofia, psicologia e política. Um
dos principais fatores que contribuiu para essa ascensão foi o desaparecimento da escola
histórica alemã, principal “oponente” da escola austríaca, cuja liderança estava nas
mãos de Schomller, mas que sucumbiu ao nazismo, não mais se refazendo após a
segunda guerra mundial. Já o descrédito do pensamento evolucionário darwinista,
devido a sua equivocada associação aos horrores ocorridos durante a guerra, também
fez com que as formulações de Veblen fossem esquecidas durante várias décadas.
Assim, o pensamento neoclássico ocupou o cenário econômico e levou à cabo
sua proposta de apartar a dura racionalidade da matemática econômica dos “modelos
soft” que predominavam nas ciências sociais. Por opção, a sociologia também se afastou
de outros campos do conhecimento a fim de fortalecer seu próprio campo. Como
resultado, os mercados foram relegados a um debate somente econômico e matemático,
afastando-se, do ponto de vista teórico, da sociedade. As teorias de equilíbrio geral
passaram a dominar, especialmente no pós-guerra até a década de 1970, abstraindo
assim o conceito de mercado (mecanismo geral) de outros fenômenos sociais.
As reações ao absolutismo utilitarista envolveram diferentes perspectivas. Ainda
na década de 1930, Commons elaborou uma interpretação da formação dos mercados a
partir de uma visão histórica, sob influência de Veblen, a partir da formação de regras
formais e coerção coletiva sobre as ações individuais. Em outra perspectiva, Shumpeter
desenvolveu sua reflexão buscando integrar a formação dos mercados sob a ótica das
rupturas tecnológicas, geradas, principalmente, pelas inovações, cujo termo cunhado
pelo autor foi reconhecido com sendo um processo de “destruição criativa”. Por sua
vez, Keynes constituiu um novo campo de conhecimento dentro da própria economia,
reivindicando uma preocupação mais detida com o papel das instituições e, em
particular, do Estado.
Retomando o debate anterior à década de 1940, que havia sido marginalizado
nos anos seguintes, na década de 1970 ganha força a Nova Economia Institucional
(NEI) de Williansom, o qual elaborou a sua abordagem a partir da teoria da firma de
Coase, dos conceitos de riscos e incertezas de Knight, da teoria da racionalidade
limitada de Simon, e da própria teoria dos contratos de Commons. Apesar de criticar o
pensamento neoclássico quanto aos seus pressupostos, o individualismo metodológico
continua sendo a dimensão ontológica que define os mercados na NEI, principalmente
ao considerá-los em seu estado de natureza – “no começo já haviam mercados”.
Willianson (1975) foi duramente criticado pela sua interpretação a-histórica descolada
de outros fenômenos sociais que contribuíram para a formação dos mercados.
Nos anos 1980, a discussão também foi marcada pela contraposição dos modelos
estruturais, sejam eles vinculados ao arcabouço marxista ou ao referencial neoclássico.

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Ambas as perspectivas associaram-se a uma visão objetivista da sociedade, que
reconhece os sistemas sociais unicamente como coercitivos dos indivíduos, tornando,
desta maneira, qualquer subjetividade um aspecto residual. Nestas perspectivas,
mercados foram vistos como estruturas genéricas constituindo forças externas que
“encapsulavam a vida das pessoas” (Long e Ploeg, 1994, p. 63). Estas, por sua vez,
estavam condenadas a uma diferenciação socioeconômica progressiva, que reduzia
gradualmente sua autonomia até o momento em que se vissem completamente inseridas
no modelo genérico do desenvolvimento capitalista.
Desde sua constituição, em meados década de 1980, a nova sociologia
econômica tem procurado desconstituir esse tipo de visão. Sua ascensão enquanto
disciplina deve-se, primeiramente, a própria dificuldade da economia ortodoxa em
responder aos desafios impostos pelas transformações societárias do no final do século:
retorno da inflação, baixas taxas de crescimento e desemprego. Ao mesmo tempo, o
sucesso de novas configurações econômicas (o modelo japonês, os distritos industriais e
a persistência da economia informal) demandava uma compreensão mais abrangente
dos fenômenos econômicos (Beckert, 2007). Soma-se a isto o fato de que a
mercantilização avançava sobre fronteiras até então inimagináveis da vida econômica e
social, de modo que o mercado se tornava uma instituição muito importante para ser
omitida pelas análises sociológicas. Ademais, se a sociologia ainda reproduzia a divisão
disciplinar parsoniana e relutava em adentrar no universo dos “fatos econômicos”, os
modelos de escolha racional já construíam explicações para os fatos sociais. Assim, a
ascensão da nova sociologia econômica mostrou-se um misto de reação e necessidade
frente às mudanças em curso nas ciências sociais e nas economias capitalistas modernas
(Grisa, 2010). No centro da nova formulação sociológica, uma defesa intransigente dos
mercados como construções sociais histórica e espacialmente situadas.

Os mercados como construções sociais

Mercados não são mecanismos abstratos de encontro entre curvas de oferta e


demanda. Mercados são construções políticas e, como tais, são o resultado das lutas
entre atores que portam interesses e valores distintos (Fligstein, 1996). Enquanto alguns
mercados são a expressão daqueles interesses e valores dominantes no sistema
agroalimentar, outros abrem a possibilidade de inclusão de atores, produtos e qualidades
diferenciados. É nesta perspectiva que alguns mercados convertem-se inclusive em
espaços profícuos para as “lutas por reconhecimento” (Honneth, 2003) empreendidas
por uma miríade de sujeitos, grupos, organizações e movimentos que, acentuando novos
valores e práticas sociais, procuram legitimar modelos inovadores de produção e
consumo. Esses novos mercados mobilizam infraestruturas técnicas e institucionais que
não apenas sustentam as trocas econômicas, mas reforçam os mecanismos de confiança
e reciprocidade, os quais atuam como cimento de novas relações econômicas.
Com vistas a compreender esse processo de construção, recentemente, Hebinck,
Schneider e Ploeg (2014) apresentaram a nocão de mercados imersos (nested markets)
que os autores descrevem como segmentos específicos de mercados que possuem

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características e dinâmicas distintas, porque realizam uma redistribuição diferente do
valor agregado, operam com mecanismos de preços diferentes e assentam-se em novas
relações entre produtores e consumidores. Apesar de estarem inseridos em mercados
mais amplos, eles se distinguem destes por várias dimensões. A origem destes mercados
está imersa em um processo de luta social e estratégias de reprodução, o que os torna
resultados de processos sociais. A compreensão dessas lutas e processos e,
consequentemente, a natureza e a dinâmica dos mercados imersos, estriba-se em cinco
elementos ou etapas teóricas inter-relacionados que têm distintas implicações
metodológicas.
Primeiro, em vez de visualizar os mercados como um “sistema” eles precisam
ser conceituados em termos de “lugares de mercado” (Shanin, 1973). Os mercados são
espaços concretos em que se dá a interação social (Watson e Suddert 2006). O mercado
é um lugar específico (ou uma arena), onde determinadas transações ocorrem entre
compradores e vendedores específicos, que trocam bens e serviços específicos, de
acordo com regras específicas. Isso nos permite compreender os mercados como
institucionalmente regulados e imersos em repertórios históricos e culturais. Isto
também explica por que diferentes mercados (para um mesmo produto) podem coexistir
lado a lado, cada um com diferentes modus operandi. Anteriormente, estas duas
posições eram conhecidas na antropologia econômica como abordagens formalista e
substantivista (Granovetter 1992, Lie 1997, Brycesson 2000; Polanyi, 1957).
Em segundo lugar, Hebinck, Schneider e Ploeg (2014) sugerem que a noção de
mercados imersos deve ser despida de qualquer enquadramento normativo a priori. Tal
como já afirmado por Abramovay (2004), o mercado não é nem intrinsecamente "bom"
(tal como aparece no teor discursivo neo-liberal), nem intrinsecamente "mau" (como
acusado depreciativa pela esquerda radical). Tudo depende dos resultados, a eficiência,
o espaço concedido aos atores individuais, os graus de liberdade envolvidos e os efeitos
distributivos criado. O que é necessário de fato é uma investigação empírica e
teoricamente bem fundamentada sobre os mercados, o que exclui visões normativas e a
priori discursivos.
Terceiro, deve-se aceitar que os mercados podem tornar-se não só o foco, mas
também o locus das lutas sociais. De acordo com a visão marxista ortodoxa, lutas
sociais ocorrem em locais de produção e não em locais de distribuição, ou seja, nos
mercados. Caso ocorram lutas nos mercados, eles são vistos como questão secundária,
minimizados e considerados sem relevância. A perspectiva marxista ortodoxa não
considera que as sociedades possam ser radicalmente alterada por meio de mudanças
nos mercados. Na verdade, tais mudanças são vistas com suspeição uma vez que só
podem gerar efeitos redistributivos. Hebinck, Schneider e Ploeg (2014) afirmam que é
necessário ir além desta perspectiva e focalizar na complexa dialética das lutas sociais
atuais, que se dão através das mudanças na esfera da produção (o que implica em fazer
novos produtos e serviços que potencialmente incorporam uma série de benefícios para
os produtores) e da circulação (através da construção de novos mercados imersos) que
criam alterações nos espaços de produção.
Em quarto lugar, sustentam os mesmos autores, é preciso ir além da tese da
convencionalização (Guthman 2004; Coombes e Campbell 1998), que argumenta que as

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mudanças radicais feitas na produção e comercialização de alimentos será
inevitavelmente apropriada por grandes corporações de varejo e indústrias de
processamento de alimentos, neutralizando qualquer potencial de mudança. A produção
orgânica (que na Califórnia foi parcialmente fagocitada por grandes impérios de
alimentares) muitas vezes é tomada como uma evidência deste processo de
convencionalização.
Por fim, é preciso considerar a ampla literatura sobre “circuitos alimentares
curtos” (ou “circuitos alimentares alternativos”), que realça a noção de mercados de
lugar (market places). Trata-se de circuitos que conectam produtos ou serviços desde o
produtor até o consumidor através da redução das distâncias físicas e sociais. Mas esta
literatura às vezes desconsidera o fato de que esses circuitos curtos são parte integrante
destes novos mercados imersos e socialmente construídos justamente porque a luta pela
redução de distâncias e o ‘encurtamento’ é um processo de luta. O mesmo ocorre com a
noção “alternativo”, que muitas vezes assume um viés excessivamente normativo
(Goodman e DuPuis 2002).
Em síntese, os mercados imersos de Hebinck, Schneider e Ploeg (2014)
constituem recursos comuns (Ostrom, 1990) que estão assentados em um conjunto
compartilhado de regras, que liga produtores e consumidores através de expectativas
compartilhadas, definições de qualidade, infraestrutura específica, reputação, confiança,
etc). Estes recursos comuns que compartilham regras e normas específicas permitem a
transação de produtos específicos. Uma característica marcante dos mercados aninhados
é que eles são construídos por atores contrahegemônicos. De maneira geral, este
mercados são iniciativas populares que emergem a partir da base. São arranjos e canais
desenvolvidos por pequenos produtores, pequenos comerciantes e / ou em pequenos e
médios empresários, que percebem que não podem sobreviver e muito menos prosperar
nos mercados globalizados e impessoais.

Um modelo de mercados múltiplos4

As dualidades que freqüentemente permearam a discussão em torno dos


mercados para a agricultura familiar têm a ver com a própria dificuldade em se delimitar
com precisão os atores presentes e as fronteiras entre os mercados ditos “convencionais”
e “alternativos”, “globais” e “locais”, os quais se revelam ao mesmo tempo altamente
relacionais, híbridos e concorrentes (Sonino e Marsden, 2006).
Os mercados convencionais são geralmente associados a cadeias globais de
commodities, controladas por empresas transnacionais livres de qualquer vínculo com as
localidades e mesmo com os Estados-nacionais. São mercados tidos como
despersonalizados, cuja marca é a ‘standardização de produtos, processos e pessoas’
(Busch, 2000). Por outro lado, mercados alternativos são vistos a partir do âmbito local
e da relação direta entre compradores e vendedores na lógica de cadeias curtas com
capacidade de re-socializar e re-espacializar os alimentos (local foods e folk foods). São

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As duas próximas seções recuperam elementos já publicados em Niederle (2009).

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mercados particularistas baseados em nichos ou especificidades. Ademais, são vistos
como construções enraizadas (embedded) em relações socioculturais particulares e que
fazem da ligação com localidade, tradição, origem, natureza ou modo de produção seus
maiores apelos comerciais.
Quando analisadas de modo mais minucioso nota-se, contudo, que as distinções
não são assim tão claras. Primeiramente, porque a oposição que se estabeleceu durante
algum tempo entre local e global tem perdido significado empírico e analítico (Hinrichs,
2003). As perspectivas que contrapuseram globalização e localização no setor
agroalimentar têm dado espaço a uma discussão mais frutífera que se desenvolve a
partir da compreensão das múltiplas redes que se organizam de modo sobreposto entre
vários níveis espaciais (Murdoch, 2000; Mior, 2005).
Em segundo lugar, porque junto à mudança anterior tem havido maior
entendimento de que o processo de globalização econômica não constitui um fenômeno
linear e unificado, mas, pelo contrário, um processo contestado que ao invés de
condicionar unilateralmente as ações dos produtores e consumidores, afeta estas ações
em graus e modos variáveis a depender de sua própria dinâmica e da forma como estes
atores reagem (Marsden e Murdoch, 2006, Murdoch et al. 2000).
Em terceiro lugar, é necessário reconhecer uma maior hibridização entre o que
seria um mercado universalista de commodities e um mercado particularista de produtos
diferenciados. Isto parece ainda mais notório a partir do desenvolvimento de uma
“economia de qualidades” (Allaire, 2013), a qual tem expressado conflitos entre
diversos atores em torno da apropriação e reapropriação de determinados circuitos de
produção e consumo, principalmente em decorrência da disputa de poder que perpassa o
controle sobre a qualificação a partir da definição de grades e standards (Wilkinson,
2002).
Vários estudos acentuam diferentes dimensões deste debate, caminhando para
uma perspectiva integrada de análise (Sonino e Marsden, 2007; Winter, 2003; Sage,
2003; Murdoch, et al., 2000). O pressuposto básico destes estudos, principalmente
daqueles mais diretamente associados a processos de relocalização, é de que certos
mercados não-convencionais estariam se reproduzindo em virtude de fatores
socioculturais que decorrem do enraizamento em redes sociais, geralmente
compreendidas em termos de laços de proximidade entre atores pertencentes a uma
mesma localidade ou território. Pressuposto que, como argumentado acima, se mostra
apropriado para muitas redes de produção e comercialização alternativas que se
desenvolvem em regiões de agricultura familiar.
Semelhante perspectiva remonta aos trabalhos em que Granovetter (1985)
examina a questão do enraizamento dos mercados nas sociedades contemporâneas. O
autor argumenta que “as pequenas firmas em um mercado particular podem persistir (...)
porque uma densa rede de relações sociais é sobreposta às relações de negócio,
conectando semelhantes firmas e reduzindo as pressões para integração” (Granovetter,
1985, p. 507). Essa densa rede de relações sociais constitui o componente de
enraizamento social da ação econômica, a qual, no escopo deste artigo, explicaria
porque empreendimentos provenientes da agricultura familiar, aparentemente sem

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condições de se manter frente às pressões exercidas pelos atores globais das cadeias de
valor, conseguem se reproduzir e, em alguns casos, obter certas vantagens competitivas.
Assim como outros autores que seguiram esta discussão, Granovetter centrou
suas atenções sobre redes interpessoais homogêneas cujos laços, positivos e simétricos,
são formados na interação de indivíduos pré-dispostos a cooperar e manter a confiança.
Nesta perspectiva, a discussão sobre embeddedness é associada a relações de confiança
e reciprocidade entre atores locais. Mercados enraizados seriam então aqueles em que as
relações de troca são fortemente mediadas por convenções sociais formadas pelas
interações que ocorrem no “contexto social mais imediato”, nas redes sociais que se
estabelecem na localidade, na região ou no território.
Semelhante assertiva pode levar a conclusão de que os mercados alternativos são
embedded enquanto os mercados convencionais são desembedded, uma vez que estes
teriam pouco ou nenhum vínculo com as instituições (sociais, culturais e políticas)
locais. Contudo, discussões mais recentes têm demonstrado que esta questão é um tanto
mais intricada. A relação entre mercados alternativos e enraizamento tem várias
comprovações empíricas. Porém, a compreensão de que os mercados convencionais
seriam “desenraizados” se mostra particularmente problemática. Por um lado, isto
decorre do fato de Granovetter e outros autores terem ficado reféns do que Zelizer
(2003) chama de “absolutismo socioestrutural”, o qual reduz tudo ao enraizamento em
redes sociais e deixa inexplorado o enraizamento institucional.
Como afirma Beckert (2007), o principal equívoco de Granovetter foi realizar
uma “grande transformação” no conceito de embeddedness retirando o componente
político-institucional que o mesmo continha na formulação original de Polanyi (1980) e
isolando unicamente o aspecto reticular das relações sociais. Assim, o fundador da nova
sociologia econômica teria negligenciado completamente as estruturas institucionais de
modo que resta ausente de sua teoria uma explicação para como os mercados emergem
e para as configurações específicas que diferenciam as redes sociais.
Ao mesmo tempo, e talvez de modo ainda mais relevante para o tema aqui em
questão, é necessário ponderar que o enraizamento em redes sociais não é sinônimo de
relações de confiança e reciprocidade fundadas no pertencimento a determinados
espaços locais. Como nota o próprio Granovetter em um artigo mais recente
(Granovetter, 2005), o interesse, a má-fé ou o egoísmo não deixam de existir em prol do
desinteresse, da confiança e do altruísmo de relações idealmente fundadas em laços de
solidariedade recíproca. As redes permitem todo tipo de comportamento, inclusive o
oportunismo e a desonestidade, o que faz com que nenhuma ação seja previsível ex-
ante. Os atores podem usar sua centralidade na rede para influenciar o comportamento
dos demais em beneficio próprio. Os mercados locais, as cadeias curtas ou os circuitos
de proximidade não podem, portanto, serem tomados como portadores em si de
características emancipadoras para os agricultores familiares.
Sonino e Marsden (2006) argumentam que o conceito de embeddedness tem sido
amplamente utilizado para expressar determinadas características das redes alternativas
que, em oposição aos mercados convencionais, referem-se primeiramente ao vínculo
com a localidade e seus elementos socioculturais e naturais. Mesmo reconhecendo a
íntima relação entre redes alternativas com territórios específicos e processos de re-

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localização, os autores fazem questão de se afastar de posições que se utilizam do
enraizamento destas redes para enfatizar uma oposição entre o local e o global, ao que
asseveram que neste caso o conceito estaria sendo utilizado de modo precipitado para
atribuir interesses comuns a atores sociais pelo simples fato de sua coexistência
geográfica.
Aludindo para a necessidade de a própria localidade ser compreendida a partir
da sobreposição de várias redes que operam em diferentes escalas espaciais (o que
significa que, por mais micro que pretenda ser, a dinâmica local sempre é percebida a
partir de sua interação com a dinâmica global), os autores chamam a atenção para a
necessidade de não se perder de vista as especificidades das redes alimentares
alternativas por sua simples identificação com espaços locais. Ademais, para que o
conceito de embeddedness tenha alguma utilidade analítica é imprescindível que não
reproduza as definições correntes de localidade ou território.
O estudo de Hinrichs (2000) sobre mercados agrícolas diretos assume uma
postura similar neste sentido. Segundo a autora, estes mercados têm sido vistos como
uma espécie de contraponto aos sistemas de produção e distribuição de alimentos de
larga escala representados por mercados globais impessoais e anônimos. Expressões de
proximidade e confiança, baseados na familiaridade e pertencimento à comunidade,
ligados às necessidades e interesses locais e privilegiando relações entre produtores e
consumidores geograficamente próximos, os mercados diretos seriam um típico
exemplo de mercado embeded.
Sem abdicar deste componente de enraizamento, que de fato estaria constituindo
uma condição vantajosa a estes novos mercados vis-à-vis os mercados convencionais,
Hinrichs demonstra que não é ausente deste tipo de mercado alternativo
comportamentos que evocam a lógica do preço (marketness) e o planejamento de metas
econômicas projetadas a partir de uma racionalidade econômica (instrumentalism), o
que faz com que a noção de embeddedness torne-se mais nuançada e as distinções entre
mercados pessoais e impessoais menos clara. Para a autora todos os mercados
apresentam composições variadas de embeddedness, marketness e instrumentalism,
sendo que seriam justamente as diferentes configurações destes fatores que tornariam
possível compreender as dinâmicas de poder e privilégio que também caracterizam
muitos mercados alternativos.
Em outro artigo, voltado à questão da heterogeneidade inerente ao espaço local,
Hinrichs (2003) ratifica esta percepção aludindo que processos de “localização” não
podem ser simplesmente vistos como contrapontos à globalização. Para tanto, a autora
distingue dois tipos de localização. Por um lado, formas de “localização defensiva”
enfatizam a “proteção do local” e a resistência contra forças externas, assumindo o local
como portador de uma homogeneidade e interesses comuns que precisam ser defendidos
contra as mudanças indesejáveis que estariam ocorrendo na sociedade mais ampla. Por
outro, formas de “localização receptivas à diversidade” parecem reconhecer a variação e
a heterogeneidade inerente ao próprio local, trabalhando então para inseri-lo na
sociedade mais ampla, deixando as fronteiras mais tênues para a interação com os
outsiders, a qual passa a ser mesmo desejada.

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Estas questões sugerem, no mínimo, maior precaução em afirmar uma oposição
entre atores globais “desembeded” e suas contrapartes locais “embedded”. É o caso,
então, de buscar entender o enraizamento não somente a partir da dimensão das relações
sociais que se desenvolvem no local, mas da interpenetração de redes verticais e
horizontais constituidas em difersos níveis espaciais, que vão desde as conexões mais
próximas entre parentes e vizinhos nas comunidades rurais, até os vínculos mais
longíquos que se densenvolvem entre os agricultores e atores globais agindo à distância.

Diferentes mundos de produção

Uma vez que todos os mercados são de algum modo enraizados, a questão
principal passa a ser identificar os diferentes tipos e graus de enraizamento. Não existem
mercados que funcionam sob a base exclusiva dos preços ou sob uma relação mecânica
entre oferta e procura. Mesmo que determinados mercados aparentemente funcionem
quase que de modo exclusivo em virtude das relações de preço, como mostra
Granovetter (2005), o preço não é unicamente determinado por pontos ótimos de curvas
abstratas de oferta e demanda, mas pelo impacto da estrutura social que faz com que
este varie conforme o tipo de relação que possuem os atores envolvidos na transação.
Nem mesmo os mercados de commodities escapam da necessidade de sinais que
vão muito além daqueles expressos pelos preços – veja o caso das exigências da União
Européia de certificados de soja não-transgênica e carnes de regiões livres de aftosa.
Como demonstra Busch (2000), os próprios mercados de commodities são resultantes de
um amplo processo histórico em que um conjunto de valores é negociado, constituindo
standards que definem uma “economia moral”, a qual disciplina pessoas e coisas de
acordo com definições aceitas do que é bom e mau, e de modo algum se resume aos
mecanismos abstratos da oferta e procura.
Uma tentativa de analiar essas diferentes configurações provém da proposta
convencionalista de Salais e Storper (1992) em torno dos “mundos de produção”. Ainda
que originalmente desenvolvida para sistemas industriais (setor automobilístico), esta
abordagem vem sendo utilizada na análise dos mercados agroalimentares (Straete;
Marsden, 2005; Murdoch et al., 2000; Ponte; Gibbon, 2005). Segundo a proposição,
pelo lado da oferta os produtos podem ser classificados como “padronizados” ou
“especializados”, dependendo da base de conhecimento envolvida na sua produção.
Produtos padronizados são produzidos a partir de tecnologias amplamente difundidas e
são qualificados fundamentalmente em termos de preço. De outro modo, produtos
especializados envolvem tecnologias e conhecimentos restritos e, neste caso, a
qualidade do produto constitui um elemento de competitividade tão ou mais importante
que seu preço. Já pelo lado da demanda, os produtos podem ser “genéricos” ou
“particulares”, dependendo se circulam em mercados de consumidores anônimos ou
específicos. Produtos genéricos possuem padrões de qualidade amplamente conhecidos,
podendo ser vendidos diretamente em mercados que dispensam relações diretas entre
produtores e consumidores. Diferentemente, os produtos particulares (dedicated) são

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orientados para um conjunto particular de consumidores, circulando em mercados em
que predominam as relações interpessoais destes com os produtores (mercados locais).
Enquanto os mercados convencionais são mais claramente pautados pelas
convenções de um mundo industrial padronizado-genérico, os mercados alternativos
geralmente vinculam-se a um mundo dos mercados de produtos especializados-
particulares (Murdoch et al., 2000). Estes distintos mundos existem em estado de
tensão, uns resistindo a invasão dos outros e tentando impor sua forma de qualificação e
seu modo de coordenação. A dinâmica de disputas e interpenetração entre eles faz com
que suas fronteiras sejam cada vez mais nebulosas, assim como a diferenciação entre
mercados convencionais e alternativos.
Mercados convencionais operam principalmente a partir de normas, regras e
valores provenientes de um mundo “industrial”. Este pressiona para o desenvolvimento
de convenções universais e padrões de qualidade globais. Em que pese as ressalvas
feitas anterioremente em relação aos limites da despersonalização dos mercados de
commodities, seguramente são estes que melhor representam esta situação, haja vista a
relação mais íntima com a lógica do preço, competitividade, produtividade, escala e
eficiência. De outro modo, mercados alternativos podem ser visualizados a partir de
outras formas de qualificação que emanam de valores domésticos (mercados de
produtos tradicionais e de denominação de origem) e cívicos (comércio justo e
economia solidária). Aqui a lógica do preço é mediada por uma economia moral mais
ampla, conjugando o interesse coletivo, a equidade e a solidariedade.
No caso da agricultura familiar, inúmeros autores já discutiram a relevância do
desenvolvimento de mercados alternativos associados a mecanismos domésticos e
cívicos de qualificação e coordenação. Os produtos colonais, caseiros, caipiras etc. são
profudamente enraizados em um contexto espacial e em tradições específicas, sendo o
processo social de qualificação notadamente ligado a relações elementares de confiança
e conhecimento mútuo entre produtores e consumidores. Este tipo de convenção
associa-se à dinâmica peculiar das redes de produção e circulação destes produtos,
notadamente mercados de proximidade que se vinculam ao contexto local/regional.
Cabe notar ainda a singularidade das agroindustriais rurais familiares. As
relações de proximidade que caracterizam os circuitos de comércio dos produtos
provenientes das agroindústrias de pequeno porte fazem com que a confiabilidade do
produto remeta antes de tudo aos vínculos de confiança, reputação e lealdade entre os
consumidores e os produtores advindos da freqüência das transações e, sobretudo, do
compartilhamento de valores morais que qualificam os alimentos. Assim, com
freqüência, estes produtos também dispensam garantias formais de qualidade, o que tem
sido um problema quando da necessidade de construir mercados mais extensos.
Na medida em que os mercados convencionais tentam se apropriar dos espaços
destas agroindústrias, estabelecem-se disputas em torno das normas de qualidade,
principalmente sanitárias. Noções variadas de qualidade entram em disputa, revelando
as distintas grandezas de valor que estão por detrás de normas e técnicas aparentemente
neutras. “O que para alguns são valores estéticos associados à produção artesanal, para
outros são indicadores de ameaça à saúde pública. O que para alguns são os valores de

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eficiência, para outros são premissas na geração de externalidades inadmissíveis”
(Wilkinson, 2002).
O desafio das agroindustrias familiares rurais de construir redes mais extensas
passa, em primeiro lugar, pela aposta na contrução de “laços fracos” que possibilitem
expandir as transações para fora do contexto local e, em segundo lugar, pela criação de
meios que permitam às formas de qualificação domésticas e cívicas serem reconhecidas
fora do contexto de relações interpessoais locais sem perder os valores de proximidade.
Assim, essas qualidades necessitam ser incorporadas em sistemas de certificação e
reconhecimento que possam “traduzir” valores pertencentes ao mundo doméstico e
cívico para standards de qualidade que desobrigem as interações diretas entre
produtores e consumidores. Não obstante, isto ainda necessita envolver a construção de
sistemas de certificação viáveis aos pequenos empreendimentos. O exemplo dos
sistemas participativos de garantia da qualidade orgânica mostraram-se uma alternativa
promissora neste sentido.
À medida que as agroindustrias procuram alternativas para competir com os
mercados convencionais, as fronteiras entre os distintos mundos vai se tornando mais
difusa. A adoção de “boas práticas” de fabricação para acesso a novos mercados leva a
incorporação de técnicas típicas do mundo industrial (BPF, ISO, APPCC). O
atendimento a condições sanitárias, sistemas de rastreabilidade, medidas ambientais,
entre outros, podem afetar o modo tradicional de produção de alguns produtos − como é
o caso de alguns queijos produzidos com leite crú. Em outro sentido, na medida em que
os mercados convencionais vão se apropriando de certos mercados de nicho e
tradicionais, o mundo dos mercados industriais de produtos padronizados e genéricos
vai se mesclando com outros mundos.
Assim, a lógica de segmentação e diferenciação adentra os próprios mercados de
commodities. O quality turn torna-se a tônica da competição em toda a economia
contemporânea (Porter, 2009). Segmentos como soja, café, arroz e carne também
observam a emergência de novos mecanismos de diferenciação. Isso faz com que a
própria distinção entre mercados de commodities e de singularidades seja
crescentemente interrogada. O caso da produção de vinhos no Brasil é emblemático
neste sentido, haja vista o conflito que se estabeleceu entre a produção tradicional de
“vinhos de mesa” e o modelo emergente direcionado ao segmento dos “vinhos finos”. O
setor de vinhos de mesa, muitas vezes considerado expressão máxima de um modelo
industrial onde diferenciação de qualidade não faria sentido algum, também conta com a
maioria dos vinicultores familiares que trabalham de modo artesanal, nos porões de suas
casas, segundo um saber-fazer proveniente de gerações. De outro modo, o segmento de
vinhos finos, que procura assumir uma identidade vinculada à diferenciação qualitativa
e artesanalidade, está à frente das transformações técnicas mais radicais nos métodos de
produção, freqüentemente associadas a um processo de homogeneização das
preferências de consumo e a um processo de standardização em nível global.

Considerações finais

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Neste texto, procuramos mostrar porque entendemos os mercados como
estruturas institucionais em que a lógica da mercadoria coexiste com uma economia
moral que oferece sentido às trocas sociais. Neste sentido, nos alinhamos com Zelizer
(2005), que sustenta que ao invés de analisar esses diferentes princípios como “mundos
hostis” é necessário um “modelo de mercados múltiplos”. Esse modelo sugere dois
movimentos analíticos. Primeiro, é necessário analisar as múltiplas configurações
sociais e institucionais que definem a existência de diferentes mercados, aqui
compreendidos como redes ou circuitos de produção e consumo. Segundo, é
imprescindível conjugar um modelo no qual as forças econômicas não são diminuídas,
porém fatores socioculturais tornam-se igualmente essenciais para que compreender
porque e como as trocas ocorrem. Neste sentido, somos levados a concordar com Lie
(1997, p. 354): “the study of markets is too important to be left to economists".
Entendemos este comentário antes de mais nada como uma convocação aos sociólogos,
para que eles passem a se interessar por este tema que é antigo, mas que apenas
recentemente passou a despertar interesses mais sistemáticos.
Neste trabalho, mostramos que segundo os pressupostos da sociologia
econômica todos os mercados são construções sociais edificadas pelas “mãos visíveis”
dos atores e organizações. Não obstante, como destaca Marques (2003, p. 05), “não
basta afirmar que os mercados são construções sociais, é necessário afirmar sob que
condições e de acordo com que variáveis são os mercados moldados.” Estamos de
acordo que reconhecer que os mercados são construções sociais é apenas o primeiro
passo de um exercício teórico muito mais complexo. Igualmente, é preciso reconhecer
que se trata de uma rede, um circuito, uma arena ou um campo social não é suficiente
para entender as intricadas dinâmicas socioculturais e políticas nas quais as relações
econômicas estão imersas. Assim, é necessário analisar como as redes são formadas,
que fatores levaram a, ou constrangeram a sua constituição, que atores participaram ou
foram excluídos. É mister evidenciar as normas, regras e valores que definem as pré-
condições sociais para as trocas econômicas. As instituições definem quem pode
participar da rede, sob que condições e sob que estrutura organizacional.
Aqui deixamos como sugestão e desafio teórico para estudos e trabalhos futuros
a proposição de que a análise e descrição das formas de ser e operar dos mercados
socialmente construídos não pode dispensar uma perspectiva crítica. E isto é
especialmente válido no que se refere aos estudos sobre desenvolvimento em geral e
rural em particular, sobretudo no que concerne as múltiplas formas de acesso e interação
dos agricultores familiares com os mercados, quer sejam nos espaços concretos ou
como instituições. As velhas e boas questões centrais da economia política, sintetizadas
por Bernstein (2011) - a quem pertence o quê, quem faz o quê, quem recebe o quê e o
que é feito com os resultados? – ainda parecem pertinentes para iluminar os caminhos
das futuras investigações.
Também acreditamos que é necessário conferir algum espaço de manobra para
os agentes econômicos redefinirem o arranjo institucional e, portanto, a estrutura do
mercado. As lutas políticas em torno do reconhecimento da agricultura familiar
mostram que isso se processou ao longo dos últimos vinte anos.   Foram essas lutas que

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criam possibilidades para a reestruturação de normas e regras, abrindo inclusive as
condições necessárias para a criação dos chamados mercados institucionais, em que o
Estado atua como um ator-chave (Grisa, 2010). Essa talvez seja a principal evidência da
construção político-institucional envolvida com a estruturação dos mercados para a
agricultura familiar. De todo modo, é necessário ter em mente que o mesmo também é
válido para as cadeias globais de commodities (Wesz Jr., 2014), que não deixam de ser
o resultado de uma construção institucional, cuja fronteira é definida por regras, padrões
e valores socialmente legitimados e compartilhados.

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