SIGMUND
FREUD
OBRAS COMPLETAS VOLUME 14
HISTORIA DE UMA
NEUROSE INFANTIL
(“0 HOMEM DOS LoBos"),
ALEM DO PRINCIPIO
DO PRAZER
E OUTROS TEXTOS
(1917-1920)
TRADUGAO PAULO CESAR DE SOUZA
RR
CoMPannia Das LETRASO INQUIETANTE
(1919)
THTULO ORIGINAL: "DAS UNHEIMLICHE”,
PUBLICADO PRIMEIRAMENTE
EM IMAGOV.5,N, 5/6, PP. 297-324.
TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE Xi,
PP. 227-68; TANBEN SEACH
EM STUBIENAUSGABE W, PP 251-74,
OINQUIETANTE!
I
E raro o psicanalista sentir-se inclinado a investigagdes
estéticas, mesmo quando a estética nfo é limitada a teo-
ria do belo, mas definida como teoria das qualidades de
nosso sentir. Ele trabalha em outras camadas da vida
psiquica, e pouco lida com as emogdes atenuadas, inibi-
das quanto 4 meta, dependentes de muitos fatores con-
comitantes, que geralmente constituem o material da
estética. Pode ocorrer, no entanto, que ele venha a inte-
ressar-se por um 4mbito particular da estética, e ent&o
este serd, provavelmente, um Ambito marginal, negli-
genciado pela literatura especializada na matéri
“O inquietante”* é um desses dominios. Sem diivi-
da, relaciona-se ao que é terrivel, ao que desperta an-
giistia e horror, e também esta claro que o termo no é
usado sempre num sentido bem determinado, de modo
que geralmente equivale ao angustiante. E licito espe-
rarmos, no entanto, que exista um niicleo especial [de
significado] que justifique o uso de um termo concei-
: das Unkeinliche. Por raxBes que ficardo evi-
texto, é desnecessirio chamar a atengo do li
tor para a insuficigneia da traduglo desse termo, que é também 0
titulo do ensaio. Limitemo-nos a registrar as solugées adotadas
emalgumas versbes estrangeiras deste ensaio (duas em espa
«da Biblioteca Nueva ea da Amorrortu, a italiana da Boringhier
4 francesa da Gallimard ea Stondardinglesa): Lo siniestr, Lo omi=
nos, I pertubante, Linguittane érangeeé, The uncanny. A prontin-
do termo alemao &, aproximadamente, “unredinmlir’, endo
esse “e” final pronunciado como o “j” espanhol.
89OINQUETANTE
tual especifico, Gostarfamos de saber que mticleo co-
mum é esse, que talvez permita distinguir um “inguie~
tante” no interior do que é angustiante.
A respeito disso nada encontramos nos minuciosos
tratados de estética, que se ocupam antes das belas, su-
blimes, atraentes — ou seja, positivas — sensibilidudes,
de suas condigdes e dos objetos que as provocam, do que
daquelas contratias, repulsivas, dolorosas. Do lado da
literatura médico-psicolégica sei apenas de um trabalho
de E. Jentsch, de contetido rico, porém nio exaustivo.'
gadas ao momento atual," no pesqui
grafia para essa pequena contribuigio, em particular a
de lingua estrangeira, motivo pelo qual a apresento a0
leitor sem nenhuma reivindieagdo de prioridade.
Jentsch tem inteira razio ao enfatizar, como uma di-
ficuldade no estudo do inquietante, que a susceti
de para esse sentimento varia enormemente de pessoa
la-
para pessoa, E 0 autor deste novo ensaio nfo pode se-
no lamentar sua particular obtusidade nessa questio,
quando uma extrema delicadeza dos sentidos seria apro-
priada. Ha muito ele no conhece ou experimenta algo
que poderia Ihe produzir a impressio do inquietantes
primeiro tem de transportar-se para esse sentimento,
lade dele. Entretanto, di-
evocar dentro de si a possibil
"Zur Psychologie des Unheimlichen”, Peychiatrisch-newrologis-
che Wochenschrift [Semanirio Psiquiatrico-Neurol6gico], 0.
22/23, 1996,
* Freud se rfere, naturalmente, a0 perfodo da Primeira Guerra Mun-
dial, que aeabou no ano anterior 2quele em que escreveu este enstio.
we
DINQUETANTEL
ficuldades desse género também pesam em vérios ou-
tros dominios da estética; assim, nfo precisamos aban-
donar a esperanga de achar casos em que a caracteristica
«em questio ser reconhecida sem problemas pela maio-
ria das pessoas.
Podemos encetar dois caminhos agora: explorar que
significado a evolugo da lingua depositou na palavra
iunkeimlich, ou reunir tudo aquilo que, nas pessoas ¢ coi-
sas, impressdes dos sentidos, vivéncias e situagbes, des-
perta em nés o sentimento do inquietante, inferindo o
caréter velado do inquietante a partir do que for comum,
2 todos os casos. Jé antecipo que os dois caminhos le~
‘vam 20 mesmo resultado: 0 inquietante € aquela espécie
de coisa assustadora que remonta ao que é ha muito co-
hecido, ao bastante familiar. Como isto é possivel, sob
que condigées o familiar pode tornar-se inquietante, as-
sustador, deverd ser mostrado nas paginas que seguem.
Fago também notar que esta investigagao, na realidade,
principiou pela reunidio de casos individuais, e somente
depois achou confirmagiio no uso da linguagem. Mas na
presente exposigio tomarei o caminho inverso.
‘A palavra alemi unfeimlich & evidentemente 0 opos-
to de heimlich, heimisch, vereraut [doméstico, autéctone,
familiar], sendo natural concluir que algo é assustador
justamente por ndo ser conhecido e familiar. Claro que
no 6 assustador tudo 0 que & novo e nio familiar; a re-
lagio nao é reversivel. Pode-se apenas dizer que algo
novo torna-se facilmente assustador e inquietante; al-
gumas coisas novas so assustadoras, certamente nilo
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