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ananindeua (PA), junho de 2010
publicação independente
|avesso|
Era fácil respirar nas ruas escuras e úmidas
da madrugada, caminhando sobre o asfalto
molhado, descalço. Afinal, havia um lado bom na
cidade, que era esse horário.
Difícil era se levantar todo dia para trabalhar
sem motivação. Ou transitar no caos
impermeável e quente da claridade. Mas agora,
sob a lua, a cidade parecia mais agradável.
Caminhava devagar sentindo a textura do
asfalto, da calçada, das pedras, dos
paralelepípedos. Pisava sobre os cacos de vidro
verde ainda com cheiro de bebida. Seus pés
ensanguentados pareciam respirar o cheiro de
urina e lixo fermentado através das feridas
abertas.
Sentia o vento no cabelo, na pele descoberta,
sentia o vento entrando pelas narinas e gelando
os pulmões lá dentro.
Abraçou uma parede de tijolos vermelhos,
encostando a testa e fechando os olhos. Seu
corpo mergulhou no cinza, sua mente se
misturou à noite. Seus dedos eram seringas com
opióides se esvaziando; seus dentes quebradiços
eram arrancados e fritos em cachimbos. Seu
cabelo era a corda da forca dos que desistiam.
Sentiu os passos dos bêbados sobre suas
costas, sentiu os passos sinuosos quase
imperceptíveis dos gatos sob seus ombros. Seus
olhos eram as luzes da cidade, quando sua
espinha se contorcia eletrocutada.
Seu pensamento voou como folhas de um
jornal, sua saliva verteu como se de um cano de
escoamento em algum telhado se espalhando
no chão, e as pequenas palavras que ela
carregava junto se despedaçavam
embaralhando as letras, indo embora pelo
bueiro.
Caiu de joelhos, tremendo, na calçada; e
então desapareceu pra sempre no delírio de um
mendigo que falava sozinho no outro lado da
rua.
|simão|
O chão veio abaixo trazendo junto o
corpinho de Simão. No caminho até o abismo,
ele ainda tentou em vão se agarrar a algum
vergalhão que resistisse ao desmoronamento.
Ao tocar o chão, sentiu restos de concreto
caindo sobre suas pernas e cabeça.
A poeira abaixou. Seu corpo estava
acomodado entre os escombros como um bone-
co de pano. Um pouco de sangue escorria de
sua testa até pescoço e peito. A perna direita
estava esmagada por um grande pedaço do teto.
Era uma casa abandonada. Logo alguém
haveria de perceber seu desaparecimento. No
lugar do teto, havia um céu estrelado.
|incompletudes|
Nada se mexe no meu quintal. O filtro goteja
água insistentemente dentro da jarra, as moscas
se movem num vôo frenético sobre a mesa, a
máquina de lavar lava, para um lado, para
outro, e pára. Mas nada tem vida no meu
quintal. Há alguém sentado à mesa, ao meu
lado. Ele observa papéis, com todo o interesse
que papéis possam despertar. Ele também não é
vivo, como eu. Talvez seja meu pai.
Uma mosca pousou sobre meu braço,
tocando minha pele com seus zumbidos
irritantes. Eu imagino que elas também não
vivam. Como viver quando tudo que se conhece
são os limites de um quintal? Deve existir vida
lá fora, lá onde não existem limites de quintais,
mas nunca saberei realmente... Além disso,
todo lugar é um limite, o que também equivale
a dizer que todo lugar é um quintal. Outros
quintais talvez sejam mais interessantes do que
este.
Existem mulheres que já não têm seios. Eles
(os seios) foram retirados cirurgicamente.
Minha tia teve câncer de mama, dentre outras
doenças. Hoje ela já não tem seios (nem
mamas, o que dá quase no mesmo), mas possui
algumas grandes cicatrizes no tórax, além de
alguns pedaços de carne acumulados em bolsas
de pele costuradas sob as axilas. Não vejo
possibilidades de uma pessoa viver décadas
com seios, e depois tentar existir sem eles. Não
é natural, requer um longo processo psico-
biológico de adaptação e aprendizado.
Em certos momentos eu a vi sem camisa,
ainda com seios. Não era excitante, mas
descomunalmente gorda e ligeiramente louca, o
que despertava em mim certa compaixão. Com
o câncer, tornou-se careca. A minha compaixão
aumentou – na mesma medida em que também
cresceu certa dose de asco, que admito
envergonhado por tamanha infantilidade da
minha parte. Curada do câncer, tornou-se
aquilo: deprimida por todos os lados.
Lembro que conversávamos, com uma mesa
entre nós. Seu cabelo crescia, sua face não
possuía nada de feminilidade, sua lucidez
esgotava-se no fundo do prato. Sem qualquer
tipo de recato ou vergonha, tirou a camisa e
pendurou-a no ombro esquerdo, fato que me fez
associá-la a uma figura masculina, tipo Buda.
Uma mulher, por mais desajustada aos padrões
de beleza, será sempre e inconfundivelmente
uma mulher. Já uma mulher sem seios é
terrivelmente ambígua, habitando o limiar do
gênero e até mesmo da espécie: já não se
reconhece o homem ou a mulher, e chega-se ao
extremo de duvidar até mesmo que haja ali um
ser humano.
Não quis parecer chocado quando
vislumbrei o tórax desprovido de mamas de
minha tia. Encarei as cicatrizes com
naturalidade, procurando por um umbigo que
me fizesse descansar em certa familiaridade
ausente. Nunca me esquecerei daquelas
cicatrizes, na vida de minhas retinas tão
fatigadas.
Existe algo de errado na vida, é perceptível.
Digo, na minha vida (e na vida daqueles que
fingem viver no meu quintal). Algo nos foi
retirado. É deprimente, mas estamos sem seios
e ainda vivemos. Tudo funciona como de
costume, mas sabemos que há uma parte au-
sente. E a ausência que percebemos é a mesma
que ignoramos, porque seria penoso demais se
tivéssemos de conviver com ela.
Lágrimas não adiantam. Nunca teremos de
volta a parte que nos falta.
|manicômios juvenis|
Era uma vez eu mesmo visitando alguém em
um lugar qualquer. Acontece que o tal lugar
requer certa quantidade de tempo disponível
para alcançá-lo, tempo no qual me coloquei
dentro de um destes veículos que se deslocam
por esse musgo preto, soltando no ar um bafo
igualmente escuro. E eu olhava para as casas na
beira do musgo (que vez por outra se
apresentava como estrada) e para as árvores
(quando havia árvores, e havia muitas delas) e
para outros veículos que se locomoviam tal qual
aquele em que me encontrava. E obviamente
não sei dirigir nenhum deles. Portanto me
coube a posição do banco traseiro, como uma
criança acorrentada a sua cadeira, ou como um
detento no camburão do carro de polícia.
E um dia, quem diria,
Jandira variou como a maré varia.
Suou e delirou como no amor faria
Se pudesse amar.
E tudo que eu pensava era ―que saco, aonde
diabos vim amarrar meu bode!‖ mas acontece
que finalmente chegamos, e tudo que desejei foi
que a viagem tivesse demorado ainda um pouco
mais. O tal lugar era um desses centros onde
dependentes químicos são virtualmente
―recuperados‖, através de sessões espirituais e
de meses de abstinência.
E eis que pensei ―puta merda, e pensar que
há alguns anos atrás poderia ser eu no lugar
deles!‖, mas não comentei nada com ninguém,
aliás como de costume. Esses centros de
recuperação de viciados em drogas são retratos
fiéis da nossa loucura, pois mostram
exatamente aquilo que não dizem.
Primeiro nós criamos coisas nas quais nós
mesmos nos viciamos. Não estou falando só de
drogas. Porra, tu deves saber, tudo aquilo que
nos faz escapar. Escapando, escapando... Não é
só o crack ou a pasta, mas os sites de
relacionamento, a masturbação, as novelas, as
igrejas, as lojas de roupa, as universidades, as
pizzarias. Toda essa merda que nos ajuda a
escapar da outra merda na qual chafurdamos.
Portanto primeiro nós criamos uma
sociedade violenta, opressiva, pautada na
exploração de uns sobre os outros. Depois nós
inventamos um punhado de válvulas de escape
para podermos ignorar que nossa vida é uma
merda. Então nós proibimos alguns destes
escapes, pois a dependência deles pode levar
um ser humano à loucura completa. Não que a
punheta ou os shoppings não possam te deixar
louco, mas é que a maioria não mataria a
própria avó para se masturbar. Já não se pode
dizer o mesmo em relação à cocaína. Depois que
proibimos algumas dessas coisas, nós
categorizamos os dependentes delas como
patológicos, e internamos os mesmos em
lugares distantes. Mas continua tudo bem se
você é viciado em pagar mulheres para que elas
caguem dentro da sua boca.
Jandira, caixão de pinho,
Luto, choro, velharia.
Assim não quero lembrar!
Pois é. Nós pegamos um punhado de
dependentes químicos, os isolamos de nós
(afinal nós somos extremamente perigosos para
a sanidade mental dos mesmos) em lugares
distantes, onde eles devem passar por um
período de limpeza orgânica e mental. É
engraçado. Digo, é triste ver o estado em que
nos encontramos, tanto os do lado de dentro
quanto os do lado de fora. Afinal o mundo todo
é um grande centro de recuperação, um grande
manicômio, onde entramos com um simples
vício e saímos com um emaranhado de sequelas
e desvios insanos. Isto é: se é que realmente
SAÍMOS algum dia.
E o jovem que eu visitava me mostrou seus
amigos, as cartas que escreveu, a foto que tirou, as
histórias que acumulou etc. Pensei em dizer a ele
que estou num estágio de total desinteresse pelos
seres humanos, mas é claro que não disse nada,
aliás como de costume. Sou péssimo em confortar
as pessoas, porém sou pior ainda em desapontá-
las. Pensei em dizer que ele precisava ser forte e
coisa e tal. Porra, a quem eu queria enganar? Toda
minha esperança é que ele possa sair de lá algum
dia, sem estar completamente louco, e que possa
conseguir levar uma vida qualquer, com empregos,
esposas, dívidas, esse tipo de coisa.
Já não tenho tanta esperança assim se algum
dia eu mesmo conseguirei levar uma vida qualquer.
Mas isso é outra história. E eis que voltamos. E
meu amigo ficou em seu internato de sanidade
artificial. E eu voltei para meu internato de
sanidade igualmente artificial.
Jandira da gandaia
Tu eras da minha laia.
Estradas, árvores, pessoas, casas,
Musgo, fumaça, chuva,
Que saco!
Meus velhos e cômodos vícios.
E quando a noite acabar
Eu vou gritar entre as grades de qualquer delegacia:
Jandira, já é dia,
Quem diria.
cancro é uma publicação alternativa que
se pretende mensal e gratuita (sempre que o
capitalismo neoliberal assim o permitir).
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