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O único caso de criança em análise relatado por Freud foi o do Pequeno Hans.
Um caso a respeito do qual Freud, apesar de todo o seu entusiasmo desbravador no
campo da psicanálise, foi completamente reticente. E posteriormente, embora relatasse
pequenas cenas ou curtas observações de crianças, ou valorizasse as implementações da
psicanálise na pedagogia, não voltou a se deter longamente sobre questões relativas à
análise dedicada a elas. Tampouco mostrou-se muito entusiasmado com as elaborações
de sua filha, Anna Freud, neste campo; ao contrário, teceu algumas dúvidas e objeções
sobre a possibilidade de analisar uma criança de um modo direto.
Foi neste cenário do movimento psicanalítico que surgiu Jacques Lacan na França
propondo uma nova direção, uma proposta de retorno a Freud. As formulações
introduzidas por Lacan culminaram em outras controvérsias que acabaram acarretando a
intervenção da IPA na Sociedade Psicanalítica de Paris e o conseqüente pedido de
desligamento de analistas didatas como Daniel Lagache e Françoise Dolto que foram
seguidos por Lacan. Estes juntamente com outros analistas fundaram a Sociedade
Francesa de Psicanálise. A ruptura de Lacan com a IPA (fortemente kleiniana naquele
momento) e o grande grupo de analistas que se organizou ao redor da teoria lacaniana,
acabou por ter uma enorme influência nos destinos teórico-clínicos da psicanálise na
França, no mundo, e certamente também na América Latina.
Assim, nesta colocação de Françoise Dolto fica ilustrada a posição seguida pela
escola francesa, pelos seguidores do lacanismo de um modo geral, no que se refere ao uso
dos brinquedos na análise com crianças; para evitar interpretações estereotipadas, como
já advertira Anna Freud, suprimiram os brinquedos da cena terapêutica.
Eis, então, minha pretensão: proponho tentarmos colocar o Pai no seu lugar, isto
é, poder pensar, a partir da estruturação subjetiva da criança, o que representam o brincar
e os brinquedos e, em conseqüência disto, sua presença na clínica com crianças.
Prestando atenção à forma como a arte tem retratado a criança ao longo dos
tempos, podemos reparar num interessante detalhe: na grande maioria dos quadros a
criança porta um objeto. No Museu do Louvre em Paris existem brinquedos de 2800
anos antes de Cristo, como também foram achados nos túmulos dos filhos dos faraós
egípcios, ou nas ruinas de Pompéia (70 d.C.) Brinquedos também aparecem nas pinturas
de Brueghel e de Goya (entre outros pintores) o que demonstra que, por mais que os
brinquedos mudem ao longo do tempo, muito além das mudanças dos brinquedos e das
brincadeiras, as crianças brincam. O que torna plausível pensar que esta repetição
responde à estruturação psíquica do sujeito na infância. Vamos, portanto, precisar um
pouco este assunto, ou seja, por que as crianças brincam?
Essa é a razão pela qual o pequeno ser humano depende do que seu semelhante
vai lhe oferecer como referência para ir, aos poucos, organizando um certo saber.
Obviamente, esse saber oferecido pelo outro refere-se ao saber e aos ideais de cada pai e
de cada mãe. Mas também aos ideais de uma certa estirpe, de uma certa família, e aos
ideais sociais de cada cultura em cada época.
A revista Cláudia (de outubro de 1993 ) publicou uma charge exemplar sobre o que
estamos abordando. Começa com o desenvolvimento de dois embriões, um do sexo
masculino, outro do sexo feminino , até o nascimento. O desenvolvimento no primeiro
trimestre, no segundo trimestre e no terceiro trimestre é exatamente igual para os dois,
inclusive são bebês idênticos (não aparece o sexo). Ao nascer, primeira semana de vida, o
desenho mostra dois bebês de aparência idêntica, de fraldas. Mas, eis que do lado ‘ele’
tem várias pessoas dizendo assim: “meu neto é um gênio!”; “E aí garotão?”; “Que garoto
grande e forte!”; “Vai ser igual ao Airton Senna...”; e tem alguém pensando sem dizer
nada: “Parece um joelho...”. Do lado ‘ela’, dizem: “Que coisa linda!”; “Olha! Está me
paquerando.”; “Aposto que você não agüenta de vontade de vesti-la!”; “Quem é o anjinho
do papai?”; e, de novo, alguém pensando sem verbalizar, “Parece um joelho...”.
Esta é uma bela ilustração de como são “feitas” as crianças. Isto é o que vai re-
organizando o caos e sua deficiência instintiva. Se ela fica tomada somente no corporal,
na satisfação das necessidades, ela não será mais que esse pedaço de corpo, o “joelho”.
Ficará tomada pela pulsão de morte. O mal-estar interno permanece inominável, é a
morte. É por isto que quando estamos angustiados, a tendência é transformar a angústia
num medo, lhe colocar um nome (Calligaris,1986 ).
Então, a criança nasce e já é o “Airton Senna”, mas não sabe “dirigir” nem as
próprias pernas; não sabe que tem pinto, ainda não descobriu a diferença sexual, mas já é
“homem”, tem nome de homem, é vestido como homem e “fala” (na escuta suposta do
outro) como macho. Como se percebe, esses ideais acabam, por um lado, colocando a
criança numa posição antecipada, porque ela está na posição de ser “Airton Senna”
quando ainda não pode dirigir nem seu triciclo. Ou seja, é necessário esperar, lá no futuro
vamos ver o que esta criança vai fazer. Por outro lado, pede-se a ela que dê conta da
diferença sexual, isto é, não sabe dirigir as próprias pernas, mas tem de se comportar
como um homenzinho ou como uma mulherzinha (Jerusalinsky, 1987). Recebe estas
insígnias do masculino e do feminino, mas ainda não conta com o acesso ao ato que lhe
permitiria reconhecer-se como tal.
É esta brecha, este vazio de saber, que permite que uma criança não seja ecolálica,
como se observa em alguns casos de psicose na infância. Por outro lado, a instauração
desta brecha é a condição necessária para se compreender alguém, pois para tanto é
necessário suportar que não é possível entendê-lo literalmente, porque senão o que se
estaria fazendo não seria uma compreensão, mas o perfeito complemento de uma
ecolalia; seria a literalidade e não a compreensão.
A criança se vê, por um lado, confrontada com um saber no Outro sobre ela, no
qual poderia vir a se alienar de um modo absoluto, fazer ecolalia, ser tão somente o que
esse Outro deseja nela; e, por outro lado, se encontra diante de um espaço, um intervalo,
deixado para que ela venha a saber. Esse espaço, quando existe, introduz a questão da
castração para a criança, porque a suspensão do saber, a colocação da ignorância, se
constitui para ela como uma negativa do Outro a lhe oferecer seu saber - dito de outro
modo, aparece ali o recalque. E é nesse intervalo entre a alienação e a castração que ela
vai apresentar o que se chama os sintomas de infância, que não são os sintomas clínicos,
mas derivados desta particular posição da subjetividade na infância. São os sintomas de
estrutura que se percebe numa criança e que se sabe que não são patológicos, que vão
passando com o tempo. Por exemplo, quando a criança muito pequena (8 ou 10 meses),
nessa alienação ao Outro, esse Outro que sabe tudo , agressiviza essa relação e morde a
mãe. É a fase em que os bebês começam a morder a mãe, e apresentam a conhecida
angústia de que fala Spitz (19 ), a angústia do oitavo mês. A criança, em torno do oitavo
mês, quando se separa da mãe ou fica nos braços de um estranho, longe daquela na qual
se reconhece, se angustia porque não consegue se reconhecer longe do olhar materno.
Outro exemplo dos sintomas da infância são as cenas que nos remetem a um
descolamento do ideal do Outro, da demanda do Outro.São os pequenos enganos, essas
pequenas mentiras das crianças, a arte, a travessura, fazer aquilo que não está exatamente
no programa pré-estabelecido pelos pais, ou seja, um deslocamento da demanda do
Outro, uma resposta não direta ao ideal que o Outro coloca em cena. E vocês vejam como
é bonito em português, a polissemia da palavra arte, significando tanto fazer travessuras,
como fazer uma obra, a criação artística. Poderíamos dizer que a produção de algo novo
implica a “travessura” (talvez o inicio de uma travessía) de se descolar de uma posição
esperada, do imperativo do Outro.
A criança vai produzir outra arte que é o desenho, e também vai brincar. Nessa
brecha que aparece entre a sua insuficiência e o ideal, a criança vai brincar de vir-a-ser.
Vai fazer uma brincadeira para construir a ponte entre essa insuficiência e o ideal para
articular algum saber próprio, brincando de vir-a-ser grande.
Se recorrermos a Freud, que nos propõe como antítese do brincar o real, diremos
então que se trata de não deixar a criança de cara com o real, com o “joelho”. Isto não
parece deixar dúvidas sobre a importância do brincar na cena terapêutica, porém, a
temática não se esgota, pois restam outras questões problemáticas como a interpretação
do brincar. Como tomar o brincar na cena terapêutica?
Para pensar esta questão propomos retomar Melanie Klein naquilo que ela
mesma, de inicio, propôs: uma referência a Freud e a sua interpretação dos sonhos.
Freud, em “Escritores Criativos e Devaneios” (1976), vai dizer que a ocupação favorita e
mais intensa das crianças é o brincar ou os jogos. “Acaso não poderíamos dizer que cada
criança ao brincar se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio,
junta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade?”. Acrescenta ele: “o
brincar da criança é determinado por desejos, de fato, por um único desejo que auxilia no
seu desenvolvimento, o desejo de ser grande e adulto. A criança quando pára de brincar
só abdica do elo com os objetos reais, em vez que brincar, ela agora
fantasia.”(Freud,l976,p.151) Os sonhos também têm, como o brincar, essa particularidade
de se utilizar de um imaginário, de estarem suportados em um imaginário. Não podemos
esquecer que tais imagens são suportes do significante dentro de uma cadeia associativa.
É assim que - muito rapidamente, para tomar um exemplo curto - Freud (1976) retoma a
interpretação feita por Artemidoro de Daldis de um sonho de Alexandre da Macedônia,
quando este comandava o cerco de Tiro sem conseguir seu desfecho. Evidentemente
preocupado com isso, teve um sonho em que um sátiro pulava sobre seu escudo. Esse
sonho lhe foi interpretado dividindo a palavra sátiro, que em grego quer dizer “tiro é tua”,
o que fez com que Alexandre decidisse apertar o cerco e acabasse por dominar a cidade.
Obviamente, essa interpretação foi possível levando em conta uma cadeia associativa e a
diferença de significação produzida pela pontuação. É desta maneira que Freud tomava
as imagens nos sonhos enquanto um suporte para o significante, para o trabalho do
significante. Da mesma maneira Freud irá relacionar a interpretação dos sonhos com a
interpretação dos hieróglifos salientando que sua interpretação só é possível dependendo
da relação com outros símbolos e com a expressãolinguística, e não com a imagem em
questão.
Ainda quanto a este ponto vale ressaltar uma última questão, que é a seguinte: o
quanto os objetos - e isto Freud nos lembra - são necessários para as crianças. O quanto
estes objetos são imprecindíveis para elas se demonstra em que quando não dispõem
deles, os pequenos sempre dão um jeito de transformar alguma coisa em objeto para
brincar. Françoise Dolto observou muito bem isto porque ela dizia que as crianças
pequenas “privadas da possibilidade de outras expressões que não a palavra, tendem a
adormecer ou a agir tomando o próprio corpo como objeto, a ponto de masturbar-se.”
“Para que apareça a busca simbólica(...) faz-se necessário um material mediador entre o
corpo da criança e ela” (Santa Roza,1993,p.135 ). À questão colocada pela necessidade
que a criança tem de de um suporte imaginário, Freud responde de uma maneira clara
dizendo que “(...) na criança o consciente não adquiriu ainda todas as suas características,
encontra-se em processo da desenvolvimento e não possui a capacidade de transpor-se
em representações lingüísticas” (Santa Roza,1993,p.72 ). O desenvolvimento da cadeia
significante ainda não é suficiente para que a criança possa apoiar-se somente na palavra.
É este suporte imaginário que permite à criança fazer a passagem de um significante a
outro. Ela precisa de um suporte imaginário no qual possa se reconhecer, para que o
significante que está ali sustentado adquira a consistência necessária para que a criança
possa dar um passo adiante na cadeia significante .
Mas entremos um pouco mais na questão do brincar na clínica com as crianças.
Assim como na clínica com os adultos, no trabalho com crianças a interpretação não é da
transferência, mas interpretação na transferência. Anna Freud (1971) se perguntava se
haveria propriamente transferência com crianças. Retomando o que disse Alfredo
Jerusalinsky em seminário não publicado, a criança está sempre em transferência,
porque os outros, os adultos, estão sempre na posição de suposto saber. Então, a
possibilidade de brincar do terapeuta é que abre caminho para a possibilidade de
interpretar na tranferência. Retomando Jerusalinsky, o lugar do analista é o de ser um
bom passador, isto é, esvaziar o sintoma de sentido e passar o saber adiante. Uma
interpretação na transferência é, portanto, uma interpretação no brincar.
Mas como se recolhem as associações livres da criança? Uma criança que, por
exemplo, brinca de bombeiro não vai parar e dizer ao analista que o pai dela sempre diz
que os homens precisam ser bons controladores, apagadores de fogo, porque na estirpe da
sua família, e já seu avô, colocava como insígnias da masculinidade que os homens
deviam saber apagar seus “fogos” e que então por isso ele brinca de bombeiro. Para
recolher as associações livres de uma criança temos três vias possíveis, (Jerusalinsky,
seminário não publicado) um pouco diferentes das do adulto. Por um lado tomar aquilo
que a criança fala, no caso de que ela tenha a possibilidade de fazer uma certa narrativa,
isto é, comece já a fazer uma certa novela familiar -e isso as crianças de dois anos já
conseguem fazer, embora algumas aos dez anos ainda não consigam- . Se tal narrativa
não pode ser construída, há uma outra via que é a do próprio brincar e a seqüência que
tem este brincar: não esqueçamos o que vimos anteriormente de que o brincar é suporte
do significante. Esta seqüência do brincar da criança pode ser tomada como uma
associação livre ja que ela constitui uma verdadeira cadéia significante. Recorramos a
esse texto maravilhoso de Freud que é “Os escritores criativos e devaneios”, em que ele
assinala que a criança, diferentemente do adulto, a respeito do desejo que coloca em jogo
no brincar, não tem porque reprimi-lo, isto é, não tem que sofrer as distorções do
processo primário, porque o que está atualizado ali é o desejo de ser grande e este desejo
não precisa ser censurado; muito pelo contrário. Isto abre caminho para pensarmos o
brincar como uma associação livre nos apoiando nesta aguda observação de Freud:
enquanto as fantasias dos adultos acabam já sofrendo a repressão e sendo muito mais
encobertas, o desejo de ser grande não tem porque ser encoberto, nem recalcado..
Uma terceira via de acesso, quando as crianças não conseguem fazer uma
narrativa, é a de obter, através dos pais, elementos sobre os quais residem as significações
com que uma criança está às voltas. Anna Freud bem percebeu que, para as crianças, esta
referência a um saber não está, como para os adultos, simplesmente referido àquele que
se chama, em linguagem lacaniana, o Outro simbólico; para elas também está encarnado
nas figuras parentais. O acesso que uma criança muito pequena tem ao simbólico está
mediado por seus pais.
Então, o que está em jogo em uma interpretação? Citamos acima que o analista
precissa ser um bom passador, isto é, intervir com um corte ali onde o que faz sintoma
para a criança é a sua aderência imaginária ao objeto colocado como capaz de responder
ao ideal parental, quando este fica aderido a seu corpo. Ali precipita um sentido e ela faz
sintoma. Dissolver o sentido alí coagulado é ser um bom passador de saber. Colocar ele
adiante, a seguir na cadeia associativa, ou seja, permitir que a criança faça sua cadeia
significante, e para tal, dissolver, interrogar, cortar, pontuar e abrir a dúvida, alí onde
precipitou um sentido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CIFALI, Mireille. org. “Seguindo os passos de Françoise Dolto” São Paulo, Papirus,
1989.
FENDRIK, Silvia. “Ficção das origens”. Porto Alegre, Artes Médicas, 199 .
SANTA ROZA, Eliza. “Quando Brincar é Dizer”. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1993.