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CURRÍCULO

URRÍCULO E MÍDIA
EDUCA TIV
EDUCATIV
TIVAA BRASILEIRA
É vedada a reprodução total ou parcial desta obra.

Associação Brasileira de
Editoras Universitárias
MARLUCY ALVES PARAÍSO

CURRÍCUL
URRÍCULOO E MÍDIA EDUCATIV
EDUCATIV A BRASILEIRA :
TIVA
PODER , SABER E SUBJETIVAÇÃO

Chapecó, 2007
REITOR: Gilberto Luiz Agnolin
VICE-REITORA DE PESQUISA, EXTENSÃO
E PÓS-GRADUAÇÃO: Maria Assunta Busato
VICE-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Gerson Roberto Röwer
VICE-REITOR DE GRADU AÇÃO
AÇÃO:: Odilon Luiz Poli
GRADUAÇÃO

Paraíso, Marlucy Alves


P222c Currículo e mídia educativa brasileira: poder, saber e subjetivação /
Marlucy Alves Paraíso – Chapecó: Argos, 2007.
274 p.

1. Currículo. 2. Comunicação de massa – Aspectos sociais.


I. Título.

CDD 375

ISBN: 978-85-98981-76-5 Catalogação: Yara Menegatti 14/448


Biblioteca Central da Unochapecó

Conselho Editorial: Elison Antonio Paim (Presidente); Priscila Casari (Vice);


Alessandra Machado; Alexandre Mauricio Matiello; Antonio Zanin;
Arlene Renk; Edilane Bertelli; Jacir Dal Magro; José Luiz Zambiasi;
Juçara Nair Wollf; Maria Assunta Busato; Maria dos Anjos Lopes Viella;
Monica Hass; Ricardo Brisolla Ravanello
Coordenadora: Monica Hass
D EDICO A

Lindolfo Vieira Paraíso, meu querido pai,


pelo que as lembranças do que foi e de como viveu
significam para mim; por ter me ensinado a praticar
sentimentos tão importantes como a emoção e o amor;
pelo orgulho que sentia de mim e pela felicidade que
demonstrava com minhas conquistas, o que sempre
me deu forças e coragem para prosseguir. Pai,
receba minha gratidão eterna!
“As pessoas não morrem, ficam encantadas.”
(Guimarães Rosa).

Cláudio Lúcio Mendes, pelo amor compartilhado;


pela parceria, cumplicidade e lutas conjuntas,
pelas inúmeras, produtivas e respeitosas discussões travadas;
e pelas contribuições dadas a este livro.
A GRADECIMENT OS
GRADECIMENTOS

Ao CNPq pelo financiamento deste estudo.


Ao Departamento de Administração Escolar da Faculdade
de Educação da UFMG por viabilizar as condições
necessárias para que este livro fosse escrito.
A Antônio Flávio Moreira e Tomaz Tadeu pelas
produtivas interlocuções durante a realização do estudo
aqui apresentado.
À minha mãe, Francisca Paraíso, pelo enorme amor e carinho;
pela dedicação incansável e pelo esforço ao longo da
vida para educar-me, desafiando as regras e imposições
de uma sociedade hierárquica, injusta e desigual.
A toda a minha “grande família” (Liquinha, Erluce, Sinvaldo,
Luiz, Gê, Dô, Marlene, Leninha e Zé [em memória]) pelo
amor que nos une, pelas parcerias ao longo da vida, pela torcida,
pelo apoio incondicional e pelo carinho compartilhado.
Aos meus sobrinhos e minhas sobrinhas
maravilhosos pela beleza que proporcionam à minha vida,
pelo amor sem medida que sempre aumenta minha
potência de agir, surpreende-me e revigora-me.
Amo vocês!
Aos meus amigos e às minhas amigas que,
de diferentes formas,
torcem, apóiam e tornam minha vida cheia de amor,
alegrias e esperanças. Renata, Dani e Shirlei,
muito obrigada pela grande ajuda nos últimos
minutos antes da finalização do livro.
A todas as pessoas que acreditam e lutam pela
escola e universidade públicas, gratuitas e de boa qualidade
no Brasil. Sem as universidades públicas deste país,
eu jamais teria escrito este livro.
S UMÁRIO

|13| Prefácio

|17| Apresentação

|21| A educação escolar como um problema e objeto de


investimento da mídia educativa brasileira

|37| Intensificação governamental: práticas de produção


e tecnologias de subjetivação na mídia educativa

|67| Regularidades e singularidades do discurso

|93| O currículo da mídia educativa brasileira

|133| Endereçamentos no currículo da mídia educativa

|163| Tecnologias de subjetivação


|187| Diferentes autoridades na mídia educativa

|211| Pensamentos autorizados

|231| Quereres no currículo da mídia educativa

|245| Conclusão: o modo como signifiquei


o discurso da mídia educativa brasileira

|259| Referências

|273| Anexo
Ao escrevermos, como evitar que escreva-
mos sobre aquilo que não sabemos
ou que sabemos mal? É exatamente nesse
ponto que imaginamos ter algo a dizer.
Só escrevemos na extremidade do nosso
próprio saber, nesta ponta extrema que
separa nosso saber e nossa ignorância e que
transforma um no outro. É só deste modo
que somos determinados a escrever. Suprir a
ignorância é transferir a escrita para
depois ou, antes, torná-la impossível.
Deleuze
P REFÁCIO

Sempre que me convidam para escrever o prefácio de um livro,


assaltam-me as mesmas dúvidas, não resolvidas até o presente momento.
Que devo incluir no referido prefácio? Que tom convém escolher? Como
expressar de modo adequado minha opinião sobre o texto, sem pender nem
para o excesso de elogios nem para a desagradável frieza acadêmica? Como
melhor incentivar o leitor a se envolver com o livro em questão?
Deixando de lado as dúvidas (em parte por não resolvê-las), trago
uma certeza: sempre que aceito elaborar um prefácio, o faço porque o livro
me agrada e, ademais, porque estimo, respeito e admiro seu autor. No caso
de Marlucy Paraíso, confirmam-se tais sentimentos. Ex-orientanda, cole-
ga, amiga e companheira do Grupo de Trabalho de Currículo da ANPEd,
Marlucy apresenta as qualidades necessárias a uma atuação séria, compe-
tente e produtiva na universidade. O rigor, o empenho e o cuidado com
que desenvolve uma pesquisa são notáveis. Todos os atributos indispensá-
veis a um bom pesquisador evidenciaram-se na elaboração de sua tese de
doutorado, hoje (finalmente) socializada por meio deste livro.
No caminho que percorremos juntos, durante a orientação, houve
momentos em que, em nossos diálogos, muitas concordâncias e algumas
discordâncias (sempre respeitosas) surgiram. Aproximou-nos em todo o trajeto
14

o acentuado interesse pela escola, pelo currículo e pelo docente. Estudiosa da


obra de Michel Foucault, Marlucy empregou o pensamento do filósofo fran-
cês para estranhar e analisar discursos da mídia educativa brasileira sobre a
escola, o currículo e a professora. Com o consistente apoio do referencial
teórico que tão bem conhece, Marlucy esforçou-se para mostrar como a mídia,
por meio de discursos veiculados na TV Escola e no Canal Futura, durante os
anos de 1999 e 2000, construiu e utilizou conceitos pedagógicos (apresenta-
dos como imprescindíveis), bem como inventou e propagou práticas com o
propósito de intervir nos sujeitos, nos currículos e nas escolas, para que, as-
sim, exercessem o governo de si, o governo dos outros e o governo do Estado.
Não dominando, como Marlucy, a obra de Foucault, instiguei-a, o
tempo todo, a me convencer de que, como ela própria afirma nas conclu-
sões do livro, não seria preciso entender como os discursos eram recebidos e
interpretados pelos sujeitos pedagógicos e quais eram seus efeitos nas esco-
las. Em outras palavras, sem aderir plenamente ao ponto de vista de que o
discurso constrói a realidade de que fala, senti, em muitos momentos em
minhas reações, a força de elementos do discurso pedagógico moderno ain-
da configurando, ao menos parcialmente, meu pensamento e minhas práti-
cas. Tais elementos se confrontaram, por vezes, com os posicionamentos
que Marlucy defendia com vigor, embora sempre atenta aos meus argu-
mentos. Estimulei-me, então, a ler e a reler textos de Foucault. Se minhas
perspectivas não foram totalmente modificadas, certamente Marlucy con-
tribuiu para que eu as questionasse e as renovasse. Aprendi muito durante
todo o processo de orientação.
As análises elaboradas pela autora certamente levarão o leitor a se in-
terrogar sobre os discursos que circulavam/circulam na mídia sobre a escola, o
currículo, a professora, a avaliação. Incentivarão o/a leitor/a a procurar apre-
ender que escola, que currículo, que professor e que avaliação se mostram e se
deseja defender. Permitirão que o leitor identifique mecanismos e estratégias
de subjetivação que a mídia emprega e perceba o que tais práticas podem
15

emergir. Ainda, estimularão o leitor a problematizar os objetivos pretendidos


pelos formuladores dos programas, assim como a estranhar o convite para
que a professora assumisse, quase que por si só, os esforços para um bom
estudo para bem ensinar os estudantes, formar cidadãos úteis e conscientes
e para promover o desenvolvimento do país. Para que a professora atendes-
se a tais expectativas sua conduta precisou ser regulada, o que se procurou
fazer pelos textos estudados por Marlucy.
A política de verdade instituída por discursos da mídia sobre a educa-
ção escolar é questionada neste livro. Nesses discursos, busca-se articular ciên-
cia, afeto, humor, alegria e descontração. Ou seja, tenta-se seduzir o público a
se comprometer com a solução dos problemas da educação brasileira.
Em suas reflexões a pesquisadora concebe o discurso como prática
objetivadora e produtora, disposta por técnicas de poder, modos de saber e
efeitos de verdade. O discurso em questão é mobilizado, como um programa
de governo, para regular a vida dos indivíduos e tornar possível o alcance de
determinadas metas.
Não será relevante e atual um estudo que nos auxilie a entender
melhor como temos sido constituídos por discursos e práticas? Não será
relevante e atual uma investigação que nos permita entender o papel que a
mídia desempenha nesse processo? Não serão relevantes e atuais interpretações
que nos propiciem perceber e analisar como os currículos vividos por do-
centes e estudantes têm transbordado os espaços escolares e circulado por
outros igualmente poderosos espaços educativos?
Além de relevante e atual, o estudo de Marlucy é bem fundamentado,
bem ilustrado, bem estruturado e bem redigido. Apesar de sua densidade, sua
leitura se faz de modo agradável, sem cansar o leitor. Sem me alongar mais,
sugiro, pelos motivos expostos, que iniciem imediatamente e aproveitem bas-
tante a leitura deste livro.

Rio de Janeiro, janeiro de 2007.


Antonio Flavio Barbosa Moreira (UCP/UERJ)
A PRESENT AÇÃO
PRESENTAÇÃO

Gilles Deleuze e Félix Guattari caracterizam quem escreve como uma


espécie de feiticeiro; e, “se o escritor é um feiticeiro é porque escrever é um
devir; escrever é atravessado por estranhos devires” (Deleuze; Guattari, 1997,
p. 21). São muitos os devires que atravessam a nós “feiticeiros/as” no processo
de escrita. Aliás, um livro é feito de escritos diferentemente construídos, em
datas e locais muito diferentes, com muitas ajudas, a partir de encontros múl-
tiplos, de desencontros para então se fazer outros encontros.
Contudo, não quero, nesse momento, falar de qualquer escrita ou de
qualquer livro. Quero falar deste livro. No processo de produção do discurso
que ora é apresentado, pensei, fiquei à espreita de idéias, experimentei, hesi-
tei, fiz arranjos, desfiz, retomei tudo de cima a baixo e mais uma vez refiz de
um outro modo. Bem sei que durante os múltiplos arranjos e desarranjos
feitos para descrever, significar e discutir o discurso da mídia educativa brasi-
leira sobre a educação escolar, produzi um outro discurso que é constituído
por este estudo. Bem sei que estou aqui divulgando (em um espaço comple-
tamente distinto daquele que foi analisado) verdades, saberes que são lança-
dos por aí para serem retomados por outras feiticeiras e, então, serem
problematizados, desarranjados, questionados, complementados, desmonta-
dos, desconstruídos. É isto que este livro espera.
18

Se na minha aventura intelectual recolhi “flechas” atiradas por dife-


rentes pensadores1, atiro agora as minhas flechas para que outros possam
enviá-las em novas direções, efetuando novos arranjos, em um processo que
se multiplica. É como concebo o trabalho intelectual, o pensamento, a pes-
quisa e a escrita. No caso deste livro, se já havia me encontrado, antes de
iniciá-lo, com os escritos de Michel Foucault; se as instigantes flechas por ele
lançadas interpelavam-me e faziam pensar de um outro modo; durante a
escrita deste livro, suas provocativas flechas, que enunciam um modo original
de compreensão das palavras e das coisas, seduziram-me completamente.
Para continuar pensando com a flecha do feitiço (que eu apanhei de
Gilles Deleuze e Félix Guattari) talvez eu possa dizer que os feitiços pro-
duzidos e lançados por Michel Foucault enfeitiçaram-me totalmente. Por
isso ele foi o autor escolhido para conduzir este trabalho analítico. Seus
escritos foram fundamentais para que eu refletisse e escrevesse o que hoje
apresento neste livro. Como o próprio filósofo tão bem expressou: “existem
momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemen-
te do que se pensa e perceber diferentemente do que se vê; é indispensável
para continuar a olhar ou a refletir” (Foucault, 1986, p. 13).
Pois bem, deparei-me por diferentes vezes com esses momentos du-
rante a realização deste estudo. Embora o que ora apresento já constitua os
efeitos produzidos por esses momentos, não quis que todos esses “jogos comi-
go mesma” permanecessem inteiramente nos bastidores. Afinal, eu os vejo
como “experiência modificadora de si no jogo da verdade” (Foucault, 1986,
p. 13). Por entender a experiência como algo que se dá solitariamente, mas
que outros podem cruzá-la, atravessá-la, compor com ela; e como “alguma

1
A noção de flechas foi tomada da reflexão de Nietzsche (1999) sobre a aventura intelectual. Nessa
reflexão ele sugere que os pensadores atiram flechas no vazio, até que outros pensadores as
recolham para enviarem em novas direções: “La Naturaleza dispara al filósofo como um dardo em
médio de los hombres; no apunta, pero espera que el dardo quede clavado em alguma parte.”
(Nietzsche, 1999, p. 134).
19

coisa da qual saímos transformados”, então, julgo importante dizer que o


processo de produção deste livro foi uma experiência plena. Nesse processo
fui completamente modificada, ao mesmo tempo em que problematizava o já
dito, o já visto, o já significado sobre educação e currículo. É claro que isso só
foi possível porque nessa experiência permiti que outros cruzamentos,
atravessamentos, composições e conexões fossem feitos.
Quero deixar claro, já nesta apresentação, que procurei, em todos os
momentos de escrita deste livro, desvencilhar-me de uma perspectiva que
procura comprovações do que já foi significado e sistematizado no campo
do currículo e da educação. Busquei, o tempo todo, fazer surgir sentidos
imprevistos, que agora podem ser retomados por outros pesquisadores com
outras teorias de sentidos. O que apresento a seguir é um discurso produzi-
do com base naquilo que consegui ver e significar com as ferramentas
conceituais que escolhi para operar. É um discurso que adquiriu esse for-
mato com idas e vindas, que fez com que eu modificasse meus modos de
pensar durante a sua construção e que passa agora a fazer parte das verdades
produzidas no campo geral da educação e do currículo.
A EDUCAÇÃO ESCOLAR COMO UM PROBLEMA
E OBJETO DE INVESTIMENT
OBJETO O D A MÍDIA EDUCA
INVESTIMENTO TIV
EDUCATIV A BRASILEIRA
TIVA

Os discursos sobre educação construídos na formulação


de políticas educacionais, nos relatórios de reformas e
nos documentos de outras posições institucionalmente
legitimadas de autoridade não são ‘meramente’
linguagens sobre educação; eles são parte dos processos
produtivos da sociedade pelos quais os problemas são
classificados e as práticas mobilizadas. Não existe qualquer
distinção, como muitos gostariam de acreditar, entre
teoria e prática, ou entre o ‘mundo real da escola’ e
os sistemas de linguagem sobre a escola. O que temos são
sistemas de relações e não sistemas separados.
Thomas S. Popkewitz

Este livro é um estudo de uma porção dos discursos sobre a educa-


ção escolar divulgados pela mídia2 educativa brasileira nos anos 1999 e 2000.
Os discursos aqui investigados são por mim significados como integrando
um conjunto de mecanismos de “governo” da conduta dos indivíduos na

2
A “palavra mídia passou, nos últimos anos, a ser usada em lugar de meios de comunicação ou em lugar
da simples citação do meio considerado” (Fischer, 1996, p. 29). Fischer mostra, em seu trabalho, “o
caráter ‘globalizado’ do funcionamento dos meios, no sentido das mútuas-referências e da redundância
dos textos” (Fischer, 1996). Nessa mesma direção, utilizo o termo mídia em lugar da citação do meio
considerado. O termo mídia educativa, por sua vez, é utilizado para referir os meios (televisão e revista)
destinados explicitamente a educar pessoas à distância, em parceria ou em substituição à escola.
22

sociedade contemporânea. Eles são analisados como práticas que conectam


modos de pensar e agir na educação, que acionam técnicas e expandem
tecnologias de poder para regular o currículo escolar e governar os sujeitos
pedagógicos (especialmente as docentes3) e a população brasileira, tornando-
os sujeitos de um determinado tipo. Os discursos da mídia educativa brasilei-
ra aqui analisados são considerados como “sistemas de linguagem sobre a
escola” (Popkewitz, 1994) que têm relação direta com o “mundo real da esco-
la”, com aquilo que é considerado adequado para ser feito na educação.
São descritas e analisadas ao longo deste livro as práticas de produ-
ção da mídia educativa e as tecnologias de subjetivação utilizadas para mo-
bilizar a população e produzir nos brasileiros a paixão, o sonho e a esperan-
ça de uma sociedade escolarizada e de um país plenamente desenvolvido.
Este estudo pretende destacar como a escola, o currículo e a professora são
produzidos, reforçados e divulgados na mídia educativa brasileira, partici-
pando efetivamente da produção de sujeitos pedagógicos responsáveis e
solidários e da constituição de subjetividades docentes esclarecidas, empre-
endedoras, dóceis e amáveis.
É importante destacar que este não é um estudo de recepção4; não é
um estudo de como o que é produzido e divulgado na mídia educativa é
visto nas escolas brasileiras. Não é preocupação desta pesquisa a aplicação
desses saberes nas escolas; se eles são ou não vistos, apreendidos e

3
Utilizo neste livro o feminino acompanhando o masculino, quando me refiro a homens e mulheres.
Em alguns casos utilizo apenas o feminino, como por exemplo, quando me refiro às professoras, já
que, como mostro ao longo deste livro, trata-se de um discurso endereçado para professoras, mulhe-
res. Tal decisão apóia-se no entendimento de que a linguagem institui o sujeito e de que seu uso
produz relações de poder; neste caso, relações de poder relativas a gênero. Para Scott (1990, p. 11),
uma escrita que não leve a linguagem em consideração “não saberá perceber os poderosos papéis que
os símbolos, as metáforas e os conceitos jogam na definição da personalidade e da história humanas”.
4
Em levantamento que fiz sobre a produção de artigos, dissertações e teses sobre mídia e educação
no Brasil na década de 1990 – Paraíso (1999a) –, encontrei muitos trabalhos sobre a recepção de
programas televisivos. Alguns desses estudos podem ser vistos em: Guerra (1991), Castro (1992),
Ferraz (1993), Mario (1995), Barros (1995), Rocha (1995), Trindade (1996), Nampo (1996),
Cunha (1997), Gomes e Cogo (1997), Venegas (1997), Batista (1998) e Franco (1998).
23

implementados pelas docentes. Também não é um estudo que analisa o


modo diferenciado como os docentes e as escolas brasileiras “lêem” os dife-
rentes produtos midiáticos sobre a educação escolar. Embora reconheça a
validade e a importância desse tipo de análise e investigação, não é esta a
minha preocupação neste livro5.
Este é um estudo centrado na discussão sobre a produção de práticas,
sentidos e estratégias de governo. É um estudo daquilo que é efetivamente
enunciado por uma porção dos discursos da mídia educativa brasileira sobre a
escola, o currículo e a professora; daquilo que esse discurso produz e objetiva;
daquilo que esse discurso nos impele a sonhar, a pensar, a fazer e a ser. É um
estudo que, por centrar-se no próprio discurso – nesse espaço-entre o processo
de planejamento e produção dos materiais midiáticos e o processo de recepção
desse material – se filia ao pensamento de Michel Foucault e ao campo dos
estudos culturais, que têm oferecido ao campo educacional uma multiplicidade
de ferramentas conceituais para a análise de diferentes discursos que educam
as pessoas paralelamente ou em parceria com a escola.
Diferentes autores do campo dos estudos culturais têm argumenta-
do sobre a necessidade de ampliação das noções de currículo e de pedago-
gia para que sejam incorporados nas pesquisas educacionais estudos de ou-
tros ambientes educativos que não o escolar (especialmente o da mídia, que
exerce um importante papel na formação das pessoas atualmente). Bill Green
e Chris Bigum (1995), por exemplo, defendem que existe um deslocamen-
to da escola para a mídia, como “educadora eletrônica” das novas gerações,
o qual precisa ser melhor compreendido. Conforme os autores, “uma ques-
tão ainda pouco clara e compreendida é a de um importante deslocamento

5
Já realizei uma pesquisa de recepção. Em 1999 concluí uma investigação que analisava o
impacto dos programas televisivos do canal TV Escola no currículo de uma escola pública muni-
cipal de Belo Horizonte (MG), divulgada pela Secretaria de Educação a Distância do MEC
(SEED/MEC) como “escola que fazia bom uso de programas televisivos” (Paraíso, 1999b).
24

da escola para a mídia como o ‘aparelho ideológico do estado’ dominante


(no sentido althusseriano)” (Green; Bigum, 1995, p. 214). E continuam:
“na assim chamada virada pós-moderna, o currículo tende a se desvincular
da escola, o que impõe uma reconceptualização tanto do currículo quanto
da escola, uma reconceptualização que seja feita de acordo com as condi-
ções modernas e para as condições pós-modernas” (Green; Bigum, 1995).
Realmente a mídia, em seus diferentes meios e produções (rádio, televi-
são, revistas, jornais, publicidade, cinema e todos os veículos massivos de infor-
mação, incluindo a internet), é uma moda, uma aspiração, uma reivindicação.
Ela invade o nosso cotidiano, nos expõe, nos ensina modos de ser, pensar, estar
e agir; divulga conhecimentos sobre nós mesmos e sobre outras pessoas; de-
monstram valores, normas e procedimentos a serem adotados no nosso cotidia-
no. Ela produz sentidos, práticas e sujeitos de um determinado tipo; faz com
que desejemos coisas, muda as nossas percepções, nos modela e nos seduz.
A educação escolar também é, na contemporaneidade, objeto de
interesse e investimento declarados da mídia. Ela tomou para si a tarefa de
falar sobre a escola, de representá-la e de denunciar seus problemas. A mídia
educativa, por sua vez, divulga uma multiplicidade de programas televisivos
que objetivam auxiliar a resolver os problemas da educação escolar brasilei-
ra, mobilizar a população para investir na escola pública, propor um tipo
de currículo e instruir as professoras para desenvolvê-lo. Desse modo, se é
importante entender a mídia na atualidade como propositora de pedagogias
culturais ou de currículos culturais6 (como sugerem Green; Bigum, 1995;
Giroux, 1995a, 1995b; Kellner, 1995; Dalton, 1996; Silva, 1999a; Costa,
2000a; Paraíso, 2004 e outros autores dos estudos culturais), considero tam-

6
Currículo cultural é usado por Giroux (1995a) para diferenciar de currículo escolar. Ainda que
o currículo escolar seja também cultural (aliás um artefato cultural por excelência), a expressão
currículo cultural enfatiza a importância de pesquisadoras na educação estudar outros currículos
(além do escolar) que contribuem para a formação das pessoas e que disputam espaço na produção
de sentidos e dos sujeitos.
25

bém de grande importância para as pesquisadoras da educação estudar e


entender o que a mídia educativa diz sobre a escola e propõe às professoras
e demais profissionais da educação.
Afinal, se a mídia implementa diferentes projetos na escola pública;
se um canal televisivo (o Canal Futura) é criado e com ele uma multiplicidade
de programas que falam sobre a educação escolar; se esse canal propõe-se
declaradamente a educar em parceria com a escola; se ele multiplica imagens
de diferentes escolas públicas e privadas, de diferentes professoras e especia-
listas, apresentando sugestões para docentes e discutindo os problemas e as
soluções para a melhoria da educação escolar brasileira; é necessário estudar,
entender e analisar suas propostas e seus discursos para e sobre a educação
escolar. Nesse sentido, ao estudar todo esse tipo de investimento na escola,
pergunto: o que é enunciado no discurso da mídia educativa sobre a escola, o
currículo e a professora? Que saberes são produzidos e divulgados? Que sub-
jetividade contribui para fixar e moldar? Em que tipo de sujeito pedagógico
quer nos transformar? É esse o campo geral que este livro percorre: o campo
da mídia educativa e seus investimentos na educação escolar brasileira.
Embora este livro centre a análise mais no discurso endereçado às
professoras, estou chamando de sujeitos pedagógicos todos os sujeitos a
quem a mídia educativa tem dirigido seu discurso educacional, sejam eles
professoras, alunos ou outros membros da comunidade escolar, para consti-
tuí-los de um determinado modo, co-responsabilizando-os pelo papel de
educar, ensinar e conduzir a si e a outros. Considero, no entanto, que “não
existe sujeito pedagógico fora do discurso pedagógico, nem fora dos pro-
cessos pedagógicos que definem suas posições nos significados” (Díaz, 1998,
p. 15). O sujeito pedagógico “está constituído, é formado e regulado, no
discurso pedagógico, pela ordem, pelas posições e diferenças que esse dis-
curso estabelece” (Díaz, 1998). Nesse sentido, “o sujeito pedagógico é uma
função do discurso no interior da escola e, contemporaneamente, no interior das
agências de controle” (Díaz, 1998), como a mídia educativa, por exemplo.
26

Conforme minuciosamente descreveu Michel Foucault, constituímo-


nos em meio a uma variedade de discursos, de práticas, de técnicas e
tecnologias particulares pertencentes a tradições culturais heterogêneas e
descontínuas. Somos criações de poder e de tecnologias humanas – como o
currículo, a escola, as ciências sociais e humanas, a mídia. Somos indivídu-
os disciplinados pelo poder, sujeitos produzidos pelas práticas discursivas e
não-discursivas. Conforme explica Rose (2001a, p. 38), tecnologias huma-
nas são “montagens híbridas de saberes, instrumentos, pessoas, sistemas de
julgamento, edifícios e espaços, orientados, no nível programático, por cer-
tos pressupostos e objetivos sobre os seres humanos”. Essas tecnologias são
peças imprescindíveis nos processos de subjetivação.
O processo de subjetivação na sociedade contemporânea é, sobretu-
do, heterogêneo, múltiplo, plural, divergente (Rose, 2001b), como o é,
também, nossa própria subjetividade, que, já sabemos, é totalmente
construída, montada e fabricada pelas diferentes relações de poder-saber
que estabelecemos em nossas vivências. A mídia é uma das tecnologias de
poder que tem assumido um importante papel nos processos de subjetivação.
Ela está cada vez mais educativa, cada vez mais pedagógica7 (Fischer, 2001a).
E isso complexifica-se quando a mídia chamada privada decide
declaradamente ensinar. Quando cria programas de diferentes tipos, cam-
panhas publicitárias e jornais para auxiliar no processo educacional da po-
pulação brasileira, para conduzir as docentes e torná-las aptas a agirem para
mudar a si, a escola pública e o Brasil.

7
Essa característica educativa da mídia tem feito com que pesquisadoras dirijam seus esforços para
analisar os diferentes modos utilizados pela mídia para ensinar. Nesse sentido, são exemplares os
estudos de Fischer (2001a, 2001b) que analisam o “dispositivo pedagógico da mídia”. A autora
analisa uma variedade de programas televisivos – como desenhos animados, programas de entre-
vistas e de auditórios, novelas etc. – para mostrar os diferentes modos da mídia fazer-se pedagógi-
ca. Se a mídia ensina nesses diferentes programas, uma multiplicidade de técnicas e tecnologias é
colocada em ação quando decide declaradamente ensinar e ajudar a “salvar a escola pública
brasileira”. É isso que analiso e mostro neste livro.
27

Nos anos 1990 – no contexto da chamada reestruturação da educa-


ção brasileira, no qual inúmeras reformas educacionais foram implementadas –,
discursos sobre a educação escolar passaram a circular na mídia no Brasil
com mais constância e disseminação. Um conjunto de estratégias e técnicas
sustenta a produção e a circulação desse discurso. Nele divulga-se um cur-
rículo constituído por um misto de sucesso midiático, ciência, afeto e soli-
dariedade e sujeitos pedagógicos amorosos, solidários e autogovernáveis.
Divulgam-se também formas de ser e de agir consideradas adequadas a
professores e professoras “antenados com o mundo moderno” e modos de
participação da comunidade na escola.
Alguns desses discursos são divulgados pelo Ministério da Educa-
ção por intermédio da Secretaria de Educação a Distância (SEED/MEC).
Cito como exemplos os discursos oriundos dos diferentes materiais do “Pro-
grama TV Escola”, instituído em março de 1996. Entre outros produtos, o
programa produz a revista “TV Escola” e a envia a todas as escolas brasileiras
que fazem parte do que o MEC denomina Rede TV Escola. Propagando a
idéia da necessidade de modernização da escola para o Brasil entrar no mun-
do globalizado, o setor público não somente produz diferentes textos e os faz
circular por diferentes meios e em vários materiais (revista, televisão, cadernos
temáticos, guias e grades de programação), como também equipa as escolas
públicas brasileiras para receberem programas televisivos.
Outros discursos são divulgados pelo setor privado de telecomunica-
ções em parceria com empresas nacionais e multinacionais. O Canal Futura,
criado em setembro de 1997, é o principal expoente desses discursos. O slogan
do canal sintetiza o objetivo desse artefato: “Este é o canal do conhecimento,
criado para falar e fazer educação”. Defendendo a necessidade de investimen-
to de todos os brasileiros para a melhoria da escola pública brasileira e para o
desenvolvimento do país, o setor privado investe muito na produção de um
tipo de educação escolar. Esses discursos representam a escola como necessá-
ria para a construção da cidadania e para o desenvolvimento político, econômico
28

e social do Brasil. A solidariedade, o voluntariado e a participação de todas as


pessoas são imprescindíveis para a melhoria da educação. O canal Futura,
por meio de um discurso que faz referências constantes a sucesso, vitória
(vencedor), liderança e transformação, apresenta-se como o canal do conheci-
mento, que investe na educação da população brasileira para colocar o país no
rumo certo.
Com base nesses mapeamentos é possível dizer que no Brasil, no
que se refere à relação mídia e escolarização, dois processos tornam-se evi-
dentes. Por um lado, a escola e o currículo estão na mídia. É certo que
novas maneiras de pensar a escola são divulgadas na mídia educativa. Ca-
nais televisivos são criados para falar sobre a educação e fazer educação
(tanto pelo setor público como pelo setor privado); revistas especializadas
são produzidas; propagandas sobre a escola povoam diferentes canais
televisivos; a educação torna-se manchete de jornais. Circula na mídia um
conhecimento sobre e para a escola. Ele é produzido por discursos de dife-
rentes campos com a participação decisiva dos meios de comunicação.
Por outro lado, a mídia está na escola. Atualmente a imagem e o
som das ruas, das casas, dos museus, das delegacias, do esporte e do teatro
com a narrativa da mídia, que já invadiu de forma avassaladora nossas ca-
sas, nosso trabalho e nosso lazer, invade também a escola. A escola – ins-
tituição que desde a sua criação baseia-se no falar/ditar do mestre, na escrita
manuscrita do aluno e, no último século, no uso da impressão – agora se vê
tecnologicamente equipada para receber um programa educativo a distância
do MEC para uso das professoras nos seus planejamentos e nas suas aulas8.
Ela conta, também, com uma revista destinada à escola, que propaga e divul-
ga experiências de professoras e Secretarias de Educação que fazem uso de

8
Estou me referindo ao canal “TV Escola” que faz parte do “Programa TV Escola”, criado pela
Secretaria de Educação a Distância do MEC (SEED/MEC) no ano de 1995. No tópico “Do
corpo discursivo” do próximo capítulo explicarei o que é o programa. A revista “TV Escola”,
material de análise desta investigação, também faz parte do “Programa TV Escola”.
29

programas televisivos. Mais recentemente a escola tem à disposição um canal


de TV do setor privado – o Canal Futura, propagado como o canal do conhe-
cimento – para ser utilizado na prática pedagógica. Desse modo, muitas
escolas9 estão equipadas para receber produtos da mídia e políticas oficiais são
criadas para colocar definitivamente a mídia nas escolas.
O que ocorre atualmente na relação mídia e educação é diferente do
que ocorreu anteriormente, porque esses produtos midiáticos são destina-
dos à escola e não mais programas educativos paralelos à escola. Afinal, se a
mídia está nas escolas, e todos têm acesso aos seus diferentes produtos, estu-
dantes e professores/as não precisam mais sair da escola para ver as imagens,
as narrativas, enfim, os produtos da mídia. Eles podem ser vistos nas esco-
las com o aval oficial. Além disso, diferentes programas televisivos educativos
não se propõem mais a substituir a escola, mas sim a ajudar no resgate da
qualidade da educação escolar, trabalhando em parceria com a escola.
Se considerarmos que nos anos 1990 professoras, outros profissio-
nais da educação e a própria escola pública brasileira eram insistentemente
mostrados pela mídia educativa; que eram divulgadas tanto as suas falhas,
fragilidades e problemas, como a sua força para o desenvolvimento do Bra-
sil, a sua necessidade para a modernização e a transformação da sociedade e
sua importância para a produção da solidariedade entre as pessoas; colo-
cam-se, então, alguns problemas para a pesquisa em educação que desen-
volvo aqui: Que discurso sobre a educação escolar brasileira a mídia educativa
produz e faz circular? De que escola, de que currículo e de que professoras
efetivamente se falam nesses textos? Que mecanismos, estratégias, técnicas e
“tecnologias de subjetivação” são acionados nesse discurso? O que essas práticas

9
Segundo dados divulgados pela SEED/MEC, até dezembro de 1997 os programas do canal TV
Escola já haviam chegado a 48.980 escolas públicas do ensino fundamental, das 53.969 existentes
no Brasil com mais de cem alunos. Esses dados foram divulgados pela SEED/MEC em folhetos
e encartes que vieram anexados aos vários números da revista “TV Escola” em 1998.
30

discursivas fazem aparecer no território da educação? O que elas nos fazem?


Dediquei-me a pesquisar essas questões analisando uma porção dos discursos
de dois materiais midiáticos destinados ao campo da educação brasileira: cinco
programas do Canal Futura e oito números da revista “TV Escola”.
Cabe esclarecer que ao descrever os discursos perguntando o que
eles nos fazem, operarei de um modo “genealógico” (Foucault, 1995c, 2000,
2000d). Afinal a genealogia, conforme explicita Foucault (2000a, p. 15),
além de ser “meticulosa e paciente” para trabalhar com o próprio discurso,
não busca a origem, mas sim “a singularidade dos acontecimentos, longe
de toda finalidade monótona”. A genealogia trabalha a partir da diversida-
de e da dispersão, do acaso dos começos e dos acidentes, sem buscar a ver-
dadeira intenção do discurso (Foucault, 2000a). Ao operar inspirada no
modo genealógico de investigar considerei, então, que o discurso da mídia
educativa faz o que ele diz fazer. O discurso midiático mostra o que o
sujeito pedagógico deve ser, fazer e vivenciar e como deve proceder e com-
portar-se. Considerarei por fim que “atrás das coisas há algo inteiramente
diferente: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são
sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça” (Foucault,
2000a, p. 18).
O argumento geral aqui desenvolvido é o de que no discurso da
mídia educativa sobre a educação escolar investigado é divulgado um tipo
de escola, de currículo e de sujeito pedagógico para intervir nesses “objetos”
e para que seja exercido o governo de si, dos outros e de Estado. Nesse
discurso, feito do sucesso midiático e de um sentimentalismo sedutor, são
feitas promessas sobre a escola, o currículo e a professora, e são apresentadas
como metas de seus programas libertar o Brasil e os brasileiros da desescolarização
e do subdesenvolvimento. Nele a população brasileira é convocada para a parti-
cipação e para a co-responsabilização nas questões educacionais. As docentes
são convidadas a tornarem-se sujeitos responsáveis, empreendedores, amorosos
e comprometidos com a mudança da escola e do país.
31

Mostro que o discurso da mídia educativa – analisado como um “pro-


grama de governo” – está implicado no esforço de normatizar a conduta das
docentes e de outros sujeitos pedagógicos, por meio do exercício de formas de
governos e de técnicas de poder, num empreendimento dedicado a transfor-
mar todos e cada um em sujeitos da ação. Nesse discurso em particular são
exercidas práticas que eu caracterizo como tecnologias de subjetivação, que
por meio de diferentes estratégias, táticas e técnicas, tratam os sujeitos pedagó-
gicos (especialmente as professoras) como objetos a serem moldados e regula-
dos, convocando-os a tornarem-se sujeitos de um determinado tipo.
Se a escola esteve muito envolvida na produção do sujeito ocidental
moderno, racional, centrado, masculino, reflexivo, ativo, responsável, empre-
endedor, autônomo, ela certamente conta, na contemporaneidade, com a mídia
educativa para essa tarefa. Além de dar continuidade aos já conhecidos progra-
mas educativos com suas inúmeras teleaulas, telecursos, cursos de educação a
distância (sem falar dos “mais recentes”: Sala de Notícias, Alô Vídeo Escola, Ti-
rando de Letra etc., que podem ser encontrados no Canal Futura, por exemplo)
e outros programas em que tipicamente os saberes são “envelopados” pelas prá-
ticas discursivas da governamentalidade e apresentados aos sujeitos pedagógi-
cos, a mídia educativa incrementa-se ainda mais, produzindo e fazendo circular
sentidos de educação escolar de boa qualidade, de experiências escolares bem-
sucedidas e ensinando às docentes e a outros membros da comunidade modos
de agir e conduzir para o seu próprio bem e pelo bem de todos.
Contudo, além das práticas de produção que objetivam e fazem
aparecer um tipo de currículo e de escola no campo da educação, a mídia
educativa coloca em funcionamento mecanismos envolvidos na produção e
divulgação de determinados tipos de subjetividade. Múltiplas técnicas e
estratégias são usadas para “conduzir condutas”, para ensinar modos de ser
e de comportar-se. Desse modo, o objetivo geral deste estudo é: investigar o
tipo de escola, de currículo e de professora proposto em uma porção dos
discursos da mídia educativa brasileira sobre a educação escolar, além das
32

técnicas que os produzem e as estratégias e mecanismos envolvidos nas


tecnologias de subjetivação das docentes.
Considero que o discurso da mídia educativa sobre a educação esco-
lar, suas práticas, técnicas e estratégias (de interpelação, de imagens, de foto-
grafias, sons e cores) estão implicadas nos múltiplos processos de normaliza-
ção e subjetivação dos indivíduos envolvidos com a educação escolar. Esse
discurso é também instrumento estratégico no reforço e na produção de deter-
minados modos de conceber o currículo e a educação escolar. Nos capítulos a
seguir focalizo o envolvimento do discurso da mídia educativa na produção e
veiculação de certas maneiras de entender como deve ser a escola e o currículo
e nos processos de subjetivação e normalização das docentes e de todos os
sujeitos pedagógicos. Descrevo o tipo de currículo e de escola que esse discur-
so objetiva e produz quando incita docentes, estudantes e a própria comuni-
dade escolar a conduzirem-se de acordo com certos conselhos e prescrições.
Discuto os modos singulares pelos quais esse discurso está centralmente im-
plicado no governo de si e dos outros, na produção/fabricação de determina-
das formas de subjetividade dos sujeitos pedagógicos, incitando-os à busca
do desenvolvimento, da solidariedade, do esclarecimento e da participação.
Enfim, faço uma descrição desse discurso midiático procurando iden-
tificar os enunciados regulares, as estratégias de objetivação e de subjetivação
adotadas, as práticas divulgadas como bem-sucedidas, as condutas desejadas e
as vozes autorizadas a falar sobre a escola, o currículo e a professora nesses textos.
Texto é aqui entendido como o produto da atividade discursiva; como o objeto
empírico da análise do discurso. É usado, tal como vem sendo empregado na
educação pelas análises pós-estruturalistas, como compreendendo uma “gama
ampla e diversificada de artefatos lingüísticos” (Silva, 2000b, p. 107).10

10
Em diferentes trabalhos no campo dos estudos culturais o termo texto é tomado como sinônimo
de discurso. Veja por exemplo Giroux (1995b), Kellner (1995) e Costa (2000). Conforme afirma
Silva (2000b, p. 106-107), o fato de confundir-se freqüentemente os dois conceitos “tem levado a
tentativas de fornecer definições que distingam os dois termos – em última análise, esta distinção
dependerá do contexto específico em que serão utilizados”.
33

No capítulo seguinte – Intensificação governamental: práticas de


produção e tecnologias de subjetivação na mídia educativa – faço algumas
considerações sobre a investigação, que deu base para a escrita deste livro,
relatando como se deu o processo de seleção dos materiais para a análise e
em que consistem. Apresento, em seguida, uma problematização do objeto
de investigação em diálogo com a perspectiva teórica que utilizo para ana-
lisar esse discurso: estudos pós-estruturalistas, especialmente os de Michel
Foucault e dos estudos culturais. Explicito também a metodologia adotada
para “ler” o currículo da mídia educativa brasileira.
No terceiro capítulo – Regularidades e singularidades do discurso –
retomo o discurso selecionado para mostrar alguns enunciados que se mul-
tiplicam nos textos estudados, em diferentes espaços, pronunciados por di-
ferentes enunciadores e dirigidos a um público heterogêneo. Descrevo, as-
sim, os enunciados que organizam o próprio discurso da mídia educativa
sobre a educação escolar. Nesse processo destaco, também, algumas peculi-
aridades e singularidades encontradas nas diferentes modalidades
enunciativas escolhidas para a análise e que compõem, em seu conjunto, o
discurso da mídia educativa brasileira sobre a educação escolar.
No quarto capítulo – O currículo da mídia educativa brasileira –
mostro como o currículo é divulgado nesse discurso, apresentando as práti-
cas que compõem seu modelo curricular. Nomeei essas práticas de:
participativa e comunitária, alternativa e personalizada, descontraída e bem-
humorada e solidária, afetuosa e carinhosa. Descrevo aí o tipo de currículo
e de escola que esse discurso produz quando incita professoras, estudantes e
a própria comunidade escolar a se conduzirem de determinados modos.
Exponho, na análise, as formas de regulação operadas, as técnicas adotadas,
os instrumentos utilizados para apresentar o currículo almejado, o processo
de operacionalização de determinadas técnicas para governar os sujeitos
pedagógicos e a “vontade de verdade” presente nesse discurso.
34

No quinto capítulo – Endereçamentos no currículo da mídia


educativa – analiso os múltiplos e heterogêneos endereçamentos do discur-
so investigado. Sugiro que a mídia educativa supõe quem serão os leitores
de seus textos sobre a educação. Eles são produzidos tendo em vista essa
suposição, e dirigidos a alguém que ela imagina e deseja que seja seu espec-
tador; um alguém localizável nas relações de poder relativas a gênero, ida-
de, classe, profissão etc. Ao explorar o modo de endereçamento, procuro
mostrar como a mídia educativa usa determinadas estratégias que operam
com muitas das suposições sobre a professora, a mulher, o jovem e a família
que estão cristalizadas em nossa sociedade.
O sexto capítulo – Tecnologias de subjetivação – focaliza os modos
pelos quais o discurso investigado está implicado na produção de determi-
nadas formas de subjetividade das professoras. Nele sustento que as subje-
tividades docentes são reguladas e fixadas não por meio do constrangimen-
to, mas por meio de tecnologias do eu a que o discurso da mídia educativa
recorre para governar e subjetivar as docentes por meio da ativação de mo-
tivações, desejos, esperanças e aspirações pessoais e coletivas. Técnicas como
a auto-avaliação, o auto-exame, a fala, o esclarecimento e a autocorreção são
acionadas no discurso analisado para fabricar as subjetividades românticas,
amorosas e dedicadas que o currículo da mídia educativa requer.
No sétimo capítulo – Diferentes autoridades na mídia educativa –
mostro o processo pelo qual, no discurso da mídia educativa, certas autori-
dades são autorizadas a falar sobre a escola, o currículo e a professora. Dis-
cuto os procedimentos e as estratégias adotadas pelas diferentes autoridades
instituídas nesse discurso para moldar e governar a capacidade de auto-
regulação das docentes e de autogerenciamento da sua formação. Exploro,
por fim, as várias formas pelas quais a autoridade é autorizada no discurso
da mídia educativa sobre a educação escolar.
No oitavo capítulo – Pensamentos autorizados – exploro três tipos
de saberes demandados aos docentes pela mídia educativa. Focando na
35

heterogeneidade das estratégias de governo usadas na mídia educativa, mais


do que identificar as pessoas e sua localização institucional, busco, por meio
da descrição dos saberes ensinados às docentes, diferenciar os modos de
pensamento e os tipos de julgamento que procuram, reivindicam e adqui-
rem autoridade ou aos quais se atribui autoridade.
No nono capítulo – Quereres no currículo da mídia educativa –
faço uma breve discussão sobre o que quer o currículo da mídia educativa.
Retomo o discurso que havia esmiuçado para descrição e análise e pergun-
to-lhe “o que você quer?” Ao fazer isso, mostro o tipo de sujeito que deseja,
os saberes que quer fazer circular, a escola que quer divulgar e a sociedade
que a mídia educativa aspira a produzir. Argumento que o discurso inves-
tigado quer governar indivíduos e fazer do currículo uma eficiente tática de
governo de Estado. Afirmo, então, que as práticas divulgadas são integra-
das a diferentes técnicas de governo para moldar os sujeitos pedagógicos e
seduzi-los a fazerem de si sujeitos co-responsáveis pela sua escolarização,
pela escolarização da população, pela melhoria da escola pública e pelo
desenvolvimento do país.
No capítulo final – Conclusão: o modo como signifiquei o discurso
da mídia educativa brasileira – explico o modo como signifiquei o discurso
da mídia educativa brasileira. Por meio de um diálogo imaginário formulo e
comento algumas questões que sintetizam os problemas tratados na investiga-
ção e esclarecem as opções feitas ao longo da escrita do livro. Explicito aí
minhas escolhas, meus recortes e minhas inspirações ao mesmo tempo em
que formulo questionamentos e reflexões que pretendem, acima de tudo,
abrir um leque de opções a futuras pesquisas sobre o tema.
I NTENSIFICAÇÃO GO VERNAMENT
GOVERNAMENT AL :
VERNAMENTAL
PRÁTICAS DE PRODUÇÃO E TECNOLOGIAS
DE SUBJETIV AÇÃO NA MÍDIA EDUCA
SUBJETIVAÇÃO TIV
EDUCATIV
TIVAA

É nossa tarefa e nosso trabalho [...] abrir o campo do social


e do político para a produtividade e a polissemia, para a
ambigüidade e a indeterminação, para a multiplicidade e a
disseminação do processo de significação e de produção de sentido.
[...] Os mestres pensadores da nova metafísica educacional [...]
querem circunscrever o conhecimento e o currículo a míticos
valores do passado ou a modernos imperativos econômicos;
nós queremos, em contrapartida, colocar em questão
aqueles valores e aqueles imperativos.
Tomaz Tadeu da Silva

A educação escolar é “um território sobre o qual é possível agir”


(Cruikshank, 1999, p. 40). Afinal, soluções para o processo de escolarização
só podem ser ensaiadas, formuladas e praticadas após o problema da educação
escolar pública ser transformado em um “conjunto de ações possíveis”
(Cruikshank, 1999). Desse modo, declarar guerra aos problemas da escola,
à sua ineficiência, à sua falta de qualidade e ao despreparo das professoras
para lidar com a educação é dizer que esse campo está aberto à ação; ele é
um lugar propício para se agir, um lugar em que o governo pode intervir.
Talvez por isso muitos programas, políticas e reformas para a educação
sejam planejados e implementados na contemporaneidade. Talvez por isso
38

a escola pública e seus problemas, bem como o currículo escolar, sejam alvo
de atenção em discursos cujos enunciados circulam em diferentes espaços
sociais: na universidade, nos institutos de pesquisa, nas famílias, nas
instituições assistencialistas, políticas e na mídia.
Neste livro, trato das ações e dos investimentos sobre a educação feitos
por uma instituição específica: a mídia. Analiso o discurso sobre a educação
escolar dentro de um espaço: o espaço da mídia educativa. Movo-me, então,
em dois campos discursivos: o da educação e o da mídia. Este capítulo tem
por objetivo relatar o caminho teórico-metodológico que percorri durante este
estudo, apresentando algumas considerações sobre a trajetória da pesquisa
realizada, sobre os textos selecionados para a análise e as ferramentas conceituais
que possibilitaram os argumentos desenvolvidos ao longo do livro.

DO CORPO DISCURSIVO

Os discursos nomeados como discurso da mídia educativa sobre a


educação escolar – e aos quais aqui dou visibilidade – estão entre muitos
outros, produzidos na contemporaneidade, que aspiram a regular o currículo
escolar e a disciplinar as subjetividades de professoras e demais profissionais
da educação, até mesmo das pessoas que fazem parte da comunidade escolar.
Esse discurso utiliza enunciados de diferentes campos discursivos e aciona
diferentes técnicas para fazer circular determinadas maneiras de praticar-se
a educação escolar e o currículo e para subjetivar as docentes brasileiras de
modo a fabricar subjetividades de tipos específicos.
É tarefa importante e difícil para o analista do discurso o recorte
discursivo que deve efetuar para realizar o seu trabalho. Afinal, é preciso
fazer seleções e escolhas. Procurei construir um corpo discursivo11 que aten-

11
O corpo discursivo de uma pesquisa é constituído pelos materiais escolhidos para analisar
determinado discurso. Neste livro trata-se dos materiais (meios e textos) escolhidos para analisar o
discurso da mídia educativa brasileira sobre a educação escolar.
39

desse às necessidades do problema de pesquisa, ao mesmo tempo em que


incluísse a multiplicidade dos discursos sobre o tema escolhido;
multiplicidade essa que foi capaz de redefinir o próprio problema de pesquisa
e as hipóteses formuladas. Selecionei o corpo discursivo desta pesquisa,
então, tendo em vista os objetivos do estudo aqui apresentado: descrever e
analisar as práticas de produção e as tecnologias de subjetivação do discurso
da mídia educativa sobre a escola, o currículo e a professora; mostrar os
modos, as estratégias e as técnicas utilizadas para reforçar, produzir e divulgar
práticas educacionais e curriculares; discutir o tipo de subjetividade docente
que produz, molda e objetiva quando prescreve práticas e exercícios a serem
efetuados pelas docentes e modos de conduzir-se na vida e na profissão.
Para isso precisava trabalhar com modalidades enunciativas12
heterogêneas sem, contudo, pretender ser exaustiva. Cabe explicitar que,
embora não tenha pretendido efetuar uma seleção representativa dos
discursos que a mídia educativa divulga sobre a educação escolar (afastando-
me, portanto, dos critérios de exaustão e totalidade na seleção do meu corpo
discursivo), quis reunir para a análise materiais heterogêneos da mídia
educativa que tratassem da educação escolar. Os critérios de seleção
procuraram, então, abranger a variedade de inserções da escola nos produtos
veiculados pela mídia educativa. Cada uma das modalidades escolhidas
(matérias de uma revista educativa oficial, peças publicitárias e programas
televisivos de diferentes tipos, incluindo um telejornal sobre a educação)
multiplica enunciados que se constituem, em seu conjunto, no discurso da
mídia educativa sobre a educação escolar. Entre os discursos selecionados,
trabalho com textos de dois meios (um canal televisivo e uma revista), um
do setor privado e o outro do setor público. Selecionei-os – meios e textos –

12
Foucault (1995a) usou o termo “modalidades enunciativas” para conceituar as formas pelas
quais enunciados aparecem em espaços e épocas particulares. Trata-se das posições e lugares que
são ocupados nos discursos para que algo se torne dizível e operável.
40

pela sua condição de discursos que fazem a síntese de outros divulgados


por materiais midiáticos, ou seja, por serem discursos de divulgação de
enunciados sobre a escola, que sintetizam discursos sobre a educação,
veiculados em outros produtos da mídia.
O corpo discursivo deste estudo foi constituindo-se aos poucos. O
tema surgiu para mim como objeto de preocupação ainda no ano de 1997,
quando vi a Rede Globo de Televisão – a maior empresa de telecomunicação
do Brasil – investindo fortemente em propagandas sobre um canal de
televisão – o Canal Futura – que seria criado para “falar e fazer educação”.
O Canal Futura foi criado em setembro de 1997 e eu decidi, durante todo o
ano de 1998, acompanhar a sua programação. Naquele ano mapeei toda a
programação do canal por meio da revista “Guia de Programação NET”
(editada mensalmente pela Editora Globo). Tendo em mãos um quadro
com o nome dos programas, sua duração, dias e horários em que iam ao ar,
gravei e assisti a pelo menos um episódio de cada um dos programas
transmitidos por esse canal13.
O Canal Futura conta com investimentos de um conjunto de 15
grupos empresariais, nomeados parceiros14; sem falar das outras parcerias
feitas para implementar alguns projetos educacionais liderados pelo canal15.
Essa parceria funciona em esquema de venda de cotas anuais. O Futura vai
ao ar via cabo pelo sistema NET/Multicanal e via antena parabólica

13
Agradeço as contribuições das então bolsistas Shirlei Rezende Sales do Espírito Santo (Aperfei-
çoamento CAPES) e Angelamara Funayaamo (Iniciação Científica CNPq) nessa etapa da pes-
quisa.
14
Os quinze parceiros do canal são: CNI (Confederação Nacional da Indústria), FIRJAN (Fede-
ração das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro), FIESP (Federação das Indústrias do Estado de
São Paulo), Fundação Bradesco, Banco Itaú, CNN Internacional, Fundação Odebrecht, Grupo
Votorantin, Fundação Vale do Rio Doce, Instituto Ayrton Senna, RBS (Rede Brasil Sul), Sadia,
CNT (Confederação Nacional do Transporte), Rede Globo e SEBRAE/Nacional.
15
O “Amigos da Escola”, por exemplo, é um projeto da Rede Globo financiado pela Telemar, pelo
governo da Bahia, pela Petrobrás e pelo Banco Itaú.
41

convencional para todo o país. Mas é oferecido gratuitamente a todas as


escolas e entidades públicas ou comunitárias que tiverem os equipamentos
necessários para sua recepção e que fizerem a solicitação. Para se ter idéia da
força do canal, é importante registrar que o governo, na gestão do então
Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, concedeu ao Futura
o título de geradora educativa, o que lhe permite expandir suas transmissões
em sinal aberto para onde quiser, sem depender de concessões.
Os programas do Futura – geralmente apresentados por artistas já
conhecidos pelos telespectadores brasileiros – são diversificados, exploram
temas variados e possuem uma duração média de 15 minutos. Nos intervalos
da programação são apresentados curtos comerciais que contam quem são
os parceiros do Futura16 e como esses parceiros acreditam na educação e no
Brasil. Ao mesmo tempo, esses comerciais propagam a importância e a
seriedade das empresas parceiras do Futura e da educação, e mostram que as
empresas parceiras assumem a sua responsabilidade social investindo na
educação, setor tão importante para o Brasil.
O Canal Futura é dirigido às escolas de todos os níveis de ensino.
Além disso, pretende-se atingir associações de bairros, ONGs, hospitais,
presídios, bibliotecas públicas etc. Aborda programas dos mais diferentes
tipos: teleaulas sobre temas variados, histórias, programas sobre a escola
pública, gestão escolar, novelas de época, filmes comentados etc.
Impressionou-me a diversidade de temas abordados pelos programas, os
diferentes programas que se dedicavam explicitamente a falar sobre a escola,
os inúmeros comerciais que propagavam a importância do Futura para a

16
Com pequenas chamadas do tipo: “Banco Itaú, parceiro do Futura na aventura do conhecimento”,
“a Rede Globo acredita no Futura”, “Grupo Votorantin, mais uma parceira da rede do conhecimento”,
“O Bradesco também acredita nesta parceria para o conhecimento”, “Quem quer um Brasil melhor
investe na educação e no Futura” (RBS TV e Sadia), o Futura nomeia os parceiros do investimento
na educação. As propagandas que divulgam a importância desse canal estão veiculadas em diferentes
espaços da mídia, como revistas, jornais, rádios e outros canais de TV.
42

melhoria da qualidade da educação brasileira e aqueles que divulgavam os


investimentos de diferentes empresas no canal e na educação. Chamou minha
atenção, especialmente, a nota divulgada repetidas vezes nos intervalos dos
programas informando que o Futura já podia ser operado “por mais de 60
mil escolas brasileiras”.
Ainda naquele ano, descobri que a recepção nas escolas da
programação desse canal só era possível graças a um programa da Secretaria
de Educação a Distância do MEC (SEED). O Programa TV Escola –
criado em 1995 logo após a posse do presidente Fernando Henrique Cardoso –
equipava as escolas públicas com mais de 100 alunos com um kit tecnológico
composto por antena parabólica, receptor de satélite, televisor em cores,
videocassete, estabilizador de voltagem e fitas17. O TV Escola é “um pro-
grama da Secretaria de Educação a Distância do MEC para a capacitação,
aperfeiçoamento e valorização do professor, e melhoria do ensino na escola
pública” (TV Escola, n. 17, 1999, p. 12). Esse programa compõe-se de um
canal educativo com três horas de transmissão diária, repetidas quatro vezes
ao dia (o Canal TV Escola), complementadas por uma revista (a revista
“TV Escola”) e cadernos (cadernos “TV Escola”), distribuídos às escolas
como material de apoio. Em remessas bimestrais, as escolas recebem: a revista
“TV Escola”, a grade de programação do canal TV Escola e os cadernos

17
Os equipamentos que compõem o kit tecnológico são adquiridos “pela escola por intermédio da
Secretaria de Educação do Estado ou pelo Município, com recursos do BIRD e do salário-
educação administrados pelo FNDE/MEC” (TV Escola, n. 17, 1999, p. 2). A distribuição do kit
foi planejada pela SEED do seguinte modo: “as escolas das redes estaduais devem procurar as
Secretarias de Educação e as escolas das redes municipais devem dirigir-se à prefeitura, para
solicitar sua inclusão no projeto de aquisição do kit a ser encaminhado ao FNDE. Tem direito ao
kit toda escola pública servida por energia elétrica, com mais de cem alunos no ensino fundamental”
(TV Escola, n. 17, 1999). Com grande parte das escolas equipadas, o MEC deixou as escolas
“prontas” para receber programas educativos. Agora vem investindo em propagandas que
recomendam sua utilização e/ou narram as conquistas alcançadas por aquelas escolas que fazem
uso desses programas.
43

“TV Escola”. O programa TV Escola opera em todas as suas frentes desde


março de 1996. Em sua primeira fase foram atendidas as escolas de ensino
fundamental com mais de cem alunos que se cadastraram para receber o kit
tecnológico. A proposta é ampliar para todas as escolas públicas brasileiras.
Passei a acompanhar também a programação do canal TV Escola e a
ler a revista “TV Escola” enviada bimestralmente às escolas que fazem parte
da chamada Rede TV Escola. Tendo em vista que queria analisar materiais
diversificados da mídia educativa, além de cinco programas do canal Futura,
dedicados exclusivamente a falar sobre a escola, decidi tomar também a revista
“TV Escola” como material de estudo. Essa revista foi especialmente criada
para divulgar experiências curriculares e práticas docentes consideradas bem-
sucedidas que trabalham com programas televisivos em suas aulas. Assim,
poderia trabalhar com materiais de dois meios e teria a oportunidade de discutir
o que aproximava ou distinguia esses discursos.
Durante os anos 1999 e 2000, recolhi todos os números da revista
“TV Escola”, gravei vários episódios dos programas do Futura dedicados a
falar sobre a educação e diferentes campanhas publicitárias sobre os programas
do canal e sobre o projeto Amigos da Escola. Após acompanhar durante
um ano a programação desse canal, ter gravado pelo menos um episódio de
todos os seus programas destinados à educação, selecionei cinco programas
para proceder a análise. Os programas Nota 10, Acelera Brasil, Ação, Amigos
da escola: focos de atuação e Jornal Futura foram escolhidos porque são
dedicados à escola, a expor os atuais problemas vividos pela educação
brasileira e a propagar experiências consideradas modelos a serem seguidos.
Eles são também muito distintos uns dos outros, tanto em relação ao público
a que se destinam quanto ao formato e ao conteúdo veiculados.
Não queria analisar os programas propriamente chamados
educativos, como teleaulas e telecursos, por dois motivos: o primeiro é que
encontrei, em uma revisão que fiz da produção sobre mídia e educação no
Brasil na década de 1990 (Paraíso, 1999a), uma grande quantidade de
44

trabalhos que analisam programas desse tipo18. O segundo (e principal mo-


tivo) é que esses programas propõem-se a substituir a escola – quer dizer,
são programas que existem paralelamente à escola. Aí a mídia se pedagogiza
completamente para ensinar aqueles que por qualquer motivo não puderam
ou não podem freqüentar a escola. Meu interesse era analisar aqueles
programas que, de um modo diferente, declaravam querer auxiliar a
professora, ajudar a escola ou resgatar sua qualidade. Os cinco programas
escolhidos possuem essas características.
Meu corpo discursivo ficou assim definido: cinco programas do Fu-
tura e os oito números da revista “TV Escola” editados em 1999 e 2000. Dos
programas veiculados diariamente pelo Futura – Jornal Futura e Nota 10 –
trabalhei com 40 episódios de cada um deles. Embora também veiculado
diariamente, trabalhei com 30 episódios do programa Amigos da Escola: focos
de atuação, já que esse programa fez muitas reprises no período em que gravei
o material. Além disso, esse programa foi substituído por um outro (Boa
Notícia) no final do ano 2000. Do Ação e do Acelera Brasil, veiculados sema-
nalmente, analiso 10 episódios cada. Incorporei também na análise diferentes
comerciais sobre a escola divulgados no Futura e o texto do projeto Amigos
da Escola (www.amigosdaescola.com.br), porque eles reforçam e exemplificam
os enunciados que se multiplicam nos programas escolhidos para a análise.
Faço a seguir uma breve apresentação de cada um dos programas selecionados
e da revista “TV Escola”, para mostrar do que trata cada um deles. No restan-
te do livro, não me preocuparei em fazer referências aos programas. Salvo
quando for importante demarcar singularidades e diferenças, tratarei o dis-
curso em seu conjunto.

18
Trabalhos sobre programas tipicamente educativos ou que discutem a educação a distância no
Brasil podem ser vistos em: Teixeira (1991), Nadal (1993), Wink Filho (1994), Araújo (1995),
Scala (1995), Blois (1996), Foresti (1996), Nampo (1996), Soares (1996), Trindade (1996),
Guimarães (1997) e Coutinho (1997).
45

O Nota 10, criado com o Canal Futura, dedica-se a falar da educa-


ção escolar e das teorias que devem subsidiar a prática pedagógica. Embora a
maioria dos programas do Futura permaneça pouco tempo no ar, alguns
mudem o nome e outros encerrem (talvez uma característica da mídia que ao
mesmo tempo em que se repete constantemente busca novidades a todo
momento), esse programa mantém-se praticamente do mesmo modo desde a
sua criação. Mudam apenas os conteúdos temáticos. No período em que foram
gravados os episódios, ele era transmitido de segunda à sexta-feira às 17h,
com reprises em outros horários e aos sábados. Todos os episódios têm duração
de quinze minutos e são apresentados por Letícia Sabatela. A apresentadora
sempre introduz o tema do programa falando o que considera central, para
em seguida mostrar alguma escola apresentada como exemplo prático da sua
fala. Assim, o tema pode ser “A contribuição de Jean Piaget para a educação”,
“Formas criativas de dar aulas”, “O papel do dever de casa”, “O construtivismo
na escola” etc. Em qualquer tema discutido, há sempre uma escola divulgada
como modelo – do tema ou da teoria apresentada. Estudantes, professoras,
coordenadores pedagógicos, diretores e especialistas aparecem para dar
opinião sobre o tema, explicá-lo, dar exemplos ou tirar dúvidas.
O Jornal Futura é apresentado pela jornalista Helena Lara Resende
e vai ao ar de segunda a sábado no canal Futura, às 17h30min, com reprise
três vezes ao dia. O Jornal Futura, em alguns momentos, mostra a “dura
realidade” das escolas públicas brasileiras. Nesse espaço são mostradas as
péssimas condições da estrutura física das escolas, a falta de transporte escolar
para estudantes de regiões de difícil acesso, o desvio de dinheiro público
que deveria ser gasto com a educação em alguns municípios, os salários
aviltantes de vários professores, “a realidade da professora que dá aulas num
curral” etc. Contudo, o Jornal quase sempre opta pelo meio-termo, que é
uma característica da mídia em geral, conforme afirma Beatriz Sarlo (1997).
Nesse sentido, essas notícias e reportagens são logo mediadas com reportagens
que mostram como determinadas professoras driblam os baixos salários e
46

investem tudo que ganham na formação continuada para melhorar a qualida-


de da sua prática docente; como alguns empresários vêm investindo na melhoria
da qualidade da escola pública; ou ainda, o esforço do MEC para melhorar
a formação dos professores por meio da educação a distância etc.
O Acelera Brasil mostra a realidade de escolas de diferentes
municípios brasileiros que se engajaram no Projeto Acelera, implementado
pela Fundação Ayrton Senna. Ele foi ao ar no ano 2000 todas as quartas-
feiras às 16h com reprises aos sábados. É totalmente dedicado a falar da
escola pública, sobre sua importância para melhorar o país e sobre a
necessidade do Brasil correr atrás dos prejuízos e acelerar a aprendizagem
dos estudantes. Comerciais sobre esse programa já eram divulgados no canal
com freqüência no ano 1999, antes de sua criação. Viviane Senna, empresária
e coordenadora do projeto, é a especialista do programa e fala de educação
com a tranqüilidade de quem sabe quais são os problemas e as soluções da
escola pública brasileira. A empresária é irmã do piloto Ayrton Senna,
conhecido ídolo de muitos brasileiros, morto em 1994. A imagem de Viviane
é associada a ele em vários momentos durante o programa e nos comerciais
que o divulgam. Com sua imagem aparece sempre, ao fundo, o rosto do
piloto. Nesse programa, ouve-se a voz de estudantes, professoras, diretoras,
da empresária, de prefeitos e secretários municipais de educação de vários
municípios que relatam as melhorias que o projeto trouxe para a educação
do seu município.
Os outros dois programas do Futura que compõem o corpo discursivo
(Ação e Amigos da escola: focos de atuação) fazem parte do Amigos da Escola.
Esse projeto é apresentado na internet como “uma iniciativa da Rede Globo
destinada a fortalecer a participação comunitária no esforço da melhoria da
escola pública”. Tem por objetivo “estimular as escolas públicas para a sua
abertura à comunidade, convocar a sociedade brasileira para participar de
ações de voluntariado e ampliar parcerias aproximando a família e a
47

comunidade da vida escolar”.19 O projeto possui várias frentes para sua


implementação: um site na internet, dois programas no Futura, campanhas
publicitárias divulgadas na TV Globo e no Futura e a Coleção Amigos da
Escola, constituída de sete fascículos que sugerem caminhos de
implementação do projeto.20
Cada um desses materiais cumpre um papel. Na internet, além da
escrita do projeto, constam informações sobre: como aderir ao projeto, onde e
como cadastrar a escola, como mobilizar a comunidade, as ações de voluntários
em diferentes escolas do Brasil e os núcleos formados em diferentes estados.
Informa-se no site que qualquer escola que tenha Associação de Pais e Mestres
pode cadastrar-se para receber os voluntários: pela internet, pela Central de
Atendimento que disponibiliza um telefone para receber ligações gratuitas
ou nas agências do Banco Itaú e dos Correios. Além disso, “as 107 emissoras
que compõem a Rede Globo em todo o país estão diretamente envolvidas na
mobilização de toda a população e na formação dos núcleos para atuarem nas
escolas públicas” (www.amigosdaescola.com.br).
O programa Amigos da Escola: foco de atuação é apresentado por Tony
Ramos – ator bastante conhecido pelos telespectadores brasileiros. Seu
conteúdo mostra as mudanças ocorridas no currículo, na organização e na
infra-estrutura física das escolas que receberam os voluntários. O programa
é bem-feito, com imagens bonitas, um fundo musical alegre, e a voz do
locutor é persuasiva. Ele vai ao ar de segunda a sexta-feira às 16h. Nele, é
possível ver a repetição constante de enunciados que, por intermédio de

19
O “Amigos da Escola tem o apoio do MEC e o suporte técnico do Centro de Estudos e Pesquisas
em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC)”.
20
A Coleção Amigos da Escola, elaborada pelo CENPEC e enviada pela Globo a todas as escolas
que se cadastraram no projeto, “visa orientar tanto a escola como os possíveis voluntários e instituições
parceiras sobre como desenvolver um trabalho conjunto”. Com uma escrita simples, a coleção
propõe o que os voluntários podem fazer nas escolas, como a escola deve recebê-los e orientá-los e
a importância desse trabalho para a melhoria da escola pública.
48

diferentes pessoas (estudantes, professoras, artistas, diferentes profissionais


etc.), dizem o que é ser um voluntário, como: “ser voluntário é fazer as
coisas com amor”; “um bom cidadão é aquele que doa parte do seu tempo
para ajudar o outro”; “saia da poltrona e faça algo para tornar esse mundo
melhor!”; “não se esqueça: a educação deve ser promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade”.
O programa Ação, apresentado por Serginho Groisman, também
conhecido pelos telespectadores brasileiros, foi ao ar no Futura durante o
ano 2000 todas as segundas e sextas-feiras às 8h40min com reprise aos sába-
dos às 20h21. É um programa de auditório com uma platéia de pessoas
jovens, com matérias gravadas em outros lugares e que são vistas em um
telão pelo apresentador, pelos entrevistados e pela platéia. O programa dá
ênfase “às pessoas importantes que têm investido na escola pública” e “às
lembranças que pessoas importantes têm da escola pública, quando essa era
uma escola de boa qualidade”.22 Muitas vezes ela é lembrada como melhor
porque era rígida, disputada; as professoras valorizavam mais o saber
científico; a escola era o segundo lar. O programa apela às pessoas jovens
com um convite insistente para que se engajem em atividades escolares e
auxiliem as escolas públicas brasileiras. Além disso, são divulgadas
diariamente no Futura diferentes peças publicitárias com imagens atraentes,
textos firmes e convidativos, com fundos musicais de ritmos alegres, que
apelam para a emoção, a participação, a solidariedade e o afeto.
A revista “TV Escola” (que completa o corpo discursivo desta
investigação) constitui um dos materiais que compõem o programa TV
Escola. É apresentada na sua ficha técnica como uma publicação bimestral
da Secretaria de Educação a Distância do MEC (SEED/MEC). Possui

21
A Rede Globo também reprisava o programa naquele período todos os sábados às 8h15min.
22
Palavras usadas pelo apresentador do programa ao sintetizar do que se trata o Ação.
49

coordenador, conselho editorial e uma tiragem de 300 mil exemplares23.


Tem sua “publicação financiada com recursos do BIRD e do Salário-Edu-
cação, administrados pelo FNDE”. A SEED/MEC “distribui a revista a
todas as escolas da Rede TV Escola”. “Cada escola recebe de 2 a 12 exem-
plares, proporcionalmente ao número de alunos” (TV Escola, n. 15, mai./
jun. 1999, p. 4). O currículo é objeto de destaque em toda a revista. Tem
como objetivo “divulgar experiências de professores com o canal TV Esco-
la, dar sugestões de atividades para o trabalho com os programas e tratar de
outros assuntos de interesse do professor” (TV Escola, n. 15, mai./jun.
1999, p. 4). Feita em papel de boa qualidade, a revista possui 44 páginas,
incluídas as capas24. Nas contracapas, com o título “Como usar a TV Esco-
la”, traz informações sobre como os leitores podem participar da Rede TV
Escola e fazer bom uso dos equipamentos e programas. O restante da revis-
ta é dividido em nove seções: Cartas, Destaques, Experiências, Programas
do MEC, Proinfo ou TV Escola, Entrevista, Lá fora, E Tem Mais e
Última Página. A revista preocupa-se também em comentar, expor ou pro-
pagar os programas do MEC para a educação.

FERRAMENTAS CONCEITUAIS USADAS PARA ESTUDAR A MÍDIA EDUCATIVA

Nosso olhar, inclusive naquilo que é evidente,


é muito menos livre do que pensamos. E isso porque não
vemos tudo o que o constrange no próprio movimento que o torna
possível. Nosso olhar está constituído por todos esses
aparatos que nos fazem ver e ver de uma determinada maneira.
Que se propõe um autor que pretende romper as evidências,

23
Até abril de 1999 a tiragem era de 200 mil exemplares. A revista “TV Escola” (n. 15, mai./jun.
1999), informa que “a tiragem foi ampliada para 300 mil exemplares, para que possa chegar a um
maior número de professores”.
24
A revista possuía 36 páginas. O aumento de páginas e algumas mudanças efetuadas foram
anunciados com entusiasmo na página da carta ao editor da revista (n. 15, mai./jun. 1999, p. 4).
50

mostrando a trama de sua fabricação [...], aquilo que está


oculto pela potência mesma de sua luminosidade?
Talvez nos ensinar que nosso olhar é também mais livre do que
pensamos. [...] Talvez o poder das evidências não seja tão absoluto,
talvez seja possível ver de outro modo.
Jorge Larrosa

A problematização e a investigação dos materiais, objeto de análise


deste livro, ocorreram com o apoio de autores e autoras que se inscrevem na
perspectiva de análise pós-estruturalista, especialmente de Michel Foucault
e dos estudos culturais, de cujas obras retirei algumas ferramentas de análise.
Isso porque acredito na viabilidade de realizar análises de produtos da mídia,
articulando ferramentas de análise e insights teóricos e metodológicos
foucaultianos e dos estudos culturais. Mas como toda articulação esta também
não se faz sem problemas. Ao articular ferramentas analíticas de dois campos
distintos encontrei dificuldades; ainda que tenha encontrado muitos trabalhos
que fazem tal articulação. Isso me obrigou a descartar algumas ferramentas
e escolher outras mais adequadas25. Embora exista uma grande quantidade
de sofisticada literatura discutindo o trabalho de Michel Foucault, meu
objetivo aqui é trazer à tona alguns dos conceitos por ele explorados que
foram tomados por mim como ferramentas para operar sobre o meu objeto,
por possibilitarem a análise de uma porção dos discursos sobre a educação
escolar divulgados na mídia educativa brasileira, nos anos 1999 e 2000,
como práticas de produção e tecnologias de subjetivação. Também não farei
síntese das questões discutidas pelos estudos culturais porque temos, até
mesmo em língua portuguesa, boas sínteses sobre o tema.26 Tratarei apenas
dos conceitos que, de fato, são importantes para a análise que aqui efetuo.

25
Veiga-Neto (2000) apresenta algumas dificuldades e potencialidades dessa articulação.
26
Algumas introduções, sínteses ou problematizações podem ser vistas em: Nelson, Treichler , Grossberg
(1995), McRobbie (1995), Simon (1995), Giroux (1995b), Kellner (1995), Silva (1995a, 1999a),
Escosteguy (1999), Johnson (1999), Costa (2000a), Veiga-Neto (2000) e Paraíso (2004).
51

Os estudos culturais – que têm sua origem na fundação, em 1964,


do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, na Universidade de
Birmingham (Inglaterra) e que na sua forma atual, conforme relata
Escosteguy (1999), “transformaram-se num fenômeno internacional” sem
precedentes –, em suas publicações mais recentes, bem diferentes dos
trabalhos que os inauguraram, têm adotado claramente abordagens pós-
estruturalistas. A partir dos anos 1980, o predomínio das referências
claramente marxistas cede lugar a abordagens pós-estruturalistas com uso
de estudos de Derrida e Foucault (Silva, 1999a; Costa, 2000; Paraíso, 2004).
O seu objeto é qualquer artefato que possa ser considerado cultural. Os
estudos inseridos nesse campo não fazem qualquer distinção entre “alta” e
“baixa” cultura, embora problematizem as relações de poder e os processos
de significação que permitem essa polarização e hierarquização (Paraíso,
2004). A preocupação em grande parte dos trabalhos desse campo, na
atualidade, tem sido buscar estudar: as culturas chamadas locais, os processos
de significação das culturas em diferentes espaços e pelos mais variados
artefatos, a complexidade da identidade e da diferença e as relações de poder
travadas na definição dos mais diversos grupos culturais.
Mesmo trabalhando com o campo dos estudos culturais, que centra a
atenção nos estudos de significados, compreendo cultura como gerência,
administração, governo, ou seja, como “um conjunto de práticas
(governamentais e alheias) destinadas a gerar certos tipos de pessoas” (Kendall;
Wickham, 1999, p. 122). Estou entendendo, então, que o discurso da mídia
educativa sobre a educação escolar “gera pessoas”, no sentido de que as constitui.
Como prática discursiva o discurso da mídia sobre a escola tem efeitos práticos
sobre os objetos de que falam e sobre os sujeitos endereçados por esse discurso.
Endereçado aqui é entendido com base no trabalho da norte-americana
Elizabeth Ellsworth (2001) sobre modo de endereçamento. Entendo, assim,
que a mídia educativa tem uma suposição de quem são os espectadores que
vão “ver e ler” os seus textos sobre educação. Embora nunca tal suposição
52

seja de fato totalmente correspondida; a mídia educativa tem uma expecta-


tiva de quem lerá esses textos. O discurso é produzido e divulgado levando
em conta essa suposição, deixando marcas no próprio discurso que possibi-
litam a análise de como ele imagina e deseja que seja o seu público.
A descrição e a análise do discurso, que faço neste livro, então, têm
por objetivo dar relevo às práticas produzidas, a partir das quais técnicas e
tecnologias são acionadas para governar as condutas, produzir sujeitos de
certos tipos, normalizando-os e subjetivando-os. Subjetivação é usada para
designar os processos “heterogêneos por meio dos quais os seres humanos
vêm a se relacionar consigo mesmos e com os outros como sujeitos de um
certo tipo” (Rose, 2001a, p. 36). A subjetivação, como argumenta Rose, é
“técnica e prática”, e as técnicas que subjetivam e moldam determinadas
subjetividades podem ser descritas sem lançar mão de qualquer interioridade.
Subjetividade é entendida como uma “interiorização do lado de fora”
(Deleuze, 1995). Assim, se estou preocupada com as tecnologias de
subjetivação que têm sido acionadas no discurso da mídia educativa para
fabricar sujeitos de um determinado tipo – para governar condutas –, então
“a interioridade que tantos se sentem compelidos a diagnosticar não é aque-
la de um sistema psicológico, mas a de uma superfície descontínua, de uma
espécie de dobramento, para dentro, da exterioridade”27 (Rose, 2001a, p. 49).
As subjetividades demandadas no discurso investigado podem ser analisa-
das na perspectiva do governo28, na qual esse é entendido, de forma geral,
como “abrangendo todos aqueles programas e estratégias mais ou menos
racionalizados para a conduta da conduta” (Rose, 2001a, p. 41).

27
Conforme explicita Rose (2001a, p. 50), a noção de dobra é usada com base em Deleuze e “sugere
uma forma pela qual podemos pensar na emergência da internalidade no ser humano sem postular
qualquer interioridade prévia”. Indica “uma relação sem um interior essencial, uma relação na qual
aquilo que está ‘dentro’ é simplesmente um dobramento do exterior” (Rose, 2001a).
28
Esse conceito será melhor definido adiante. A respeito ver Foucault (2000b), Burchell, Gordon e
Miller (1991), Gordon (1991), Miller e Rose (1993) e Rose (1997a, 1997b, 1998, 2001a, 2001b).
53

Atualmente há um aumento e um aperfeiçoamento das técnicas de


poder e dos procedimentos de saber voltados para o governo das pessoas,
para a normalização dos indivíduos, para o controle da vida. Não é apenas
no interior de presídios, hospícios, hospitais, escolas e fábricas que se exercem
técnicas de poder e procedimentos de saber para o governo do indivíduo,
para a vigilância mútua e para a autovigilância da conduta cotidiana. O
governo é exercido nas mais variadas instituições de lazer, nos sofisticados
parques de diversão, nos shoppings, nas salas de jogos eletrônicos29, nas
diferentes empresas de comunicação e em toda essa “arquitetura sedutora de
nossa própria época”, como nomeia Rose (2001b, p. 192).
Ao mesmo tempo, na contemporaneidade, multiplica-se um tipo
de saber que funciona não como mera informação, mas como sugestão de
modos de ser e de portar-se em diferentes setores da vida diária. A educação
escolar não fica imune a tudo isso. Em nome da “salvação da escola pública
brasileira” reitera-se um grande número de informações na mídia
(especialmente na televisão) retiradas das experiências de diferentes escolas
consideradas bem-sucedidas, de pesquisas científicas (especialmente do
chamado Primeiro Mundo) e dos saberes de alguns experts da educação.
Esses revelam os graves problemas da escola brasileira, sua importância
para o desenvolvimento do país e a necessidade dos docentes estarem
antenados com o mundo globalizado, ministrando aulas modernas e
dinâmicas. Estou “olhando” para esses materiais para entender de que
maneira poder e saber se conectam, nesses discursos, para reforçar um tipo
de educação escolar, regular o currículo e governar as condutas.
Se, lembrando Foucault (1988a, 1995a, 1996), considero que a
linguagem e os discursos são instâncias que nos permitem nomear e dar
sentido ao mundo e às coisas do mundo; se o discurso, no jogo delimitado

29
Para uma discussão sobre jogos eletrônicos e o governo de si e dos outros ver Mendes (2006).
54

de seus enunciados, modela a realidade – já que ele mostra, torna visível,


hierarquiza, cria objetos –, então, é possível considerar a importância que
tem o discurso da mídia educativa sobre a educação escolar na produção de
determinadas práticas educacionais e curriculares. É possível considerar
também a sua importância na definição de quem pode e quem não pode
falar sobre esses temas; na fabricação de determinadas subjetividades, no
governo de cada um e de todos ao mesmo tempo, quando somos confrontados
e/ou interpelados por esses discursos.
Em Foucault (1995a) o discurso é uma prática: é o espaço que torna
possível a produção de verdades e de sujeitos. Por isso, ele explora a
positividade do discurso e sua potencialidade para criar, produzir, fabricar.
Porém o discurso é, também, uma prática social que regula a produção,
circulação e apropriação de enunciados (Foucault, 1995a, 1996). Na
concepção de Foucault, o sujeito não constrói sentidos de maneira livre,
mas sim por meio de diversos sistemas de restrições e incitações. Poderia
dizer então que o poder facilita, do mesmo modo que dificulta, limita,
torna mais ou menos difícil uma ação ou um discurso.
Entendendo o poder como uma relação, Foucault (1988a, 1999,
2000) fez deslocamentos importantes em relação às teorias de poder existentes
até então.30 Foucault entendeu o poder em sua positividade, como produtor
de verdades, de subjetividades, de saber. Realizou análises das redes

30
Primeiramente, para Foucault (1988a) não existe um centro a partir do qual emana todo o poder.
O poder não se localiza no Estado ou na fronteira das classes. Ou seja, Foucault pulveriza e
descentraliza o poder; o poder não vem de um centro ou das instituições, mas de “todos os lugares”
(Foucault, 1988a, p. 89). Em segundo lugar, o poder não é descendente, mas ascendente. Toma
os indivíduos ao mesmo tempo como objeto e como instrumento de seu exercício e vai pouco a
pouco invadir essas formas maiores. Em vez de agir de cima para baixo, submetendo, ele se irradia
de baixo para cima e vai se alastrando, já que o poder é um conjunto de relações (Foucault, 1999,
p. 143). Em terceiro lugar, se o poder é uma relação ou uma estratégia, ele se exerce antes de se
possuir e não é de mão única (Foucault, 1999, p. 26). Por fim, o poder não é essencialmente
repressivo, já que incita, suscita, produz (Foucault, 2000h, p. 148).
55

institucionalizadas de poder e o compreendeu como uma prática social,


uma relação que só existe como ato. O poder é aquilo que produz, que
divide, inclui e exclui, que é propriedade das relações e não das pessoas ou
de grupos, que é instável e despolarizado. Além disso, é importante ter em
conta que o poder em Foucault (1988a, 1999, 2000) é exercido, só existe
como ato, e seus efeitos são atribuíveis a táticas, técnicas, manobras e
funcionamentos. O poder é positivo porque produz coisas, pessoas, práticas,
objetos e instituições. Ao produzir diferentes versões sobre a realidade, o
poder também produz essa própria realidade. Em síntese, as relações de
poder em Foucault não possuem um centro, não são fixas e são exercidas
entre os mais variados grupos e das mais diversas formas. O poder é uma
estratégia. Entendo estratégia aqui como uma arte de explorar condições
favoráveis para alcançar objetivos específicos. Foucault assim explicou o
que chama de estratégia de poder:

Podemos chamar ‘estratégia de poder’ ao conjunto dos meios operados


para fazer funcionar ou para manter um dispositivo de poder. Podemos
também falar em estratégia própria às relações de poder na medida em
que estas constituem modos de ação sobre a ação possível, eventual,
suposta dos outros. Podemos então decifrar em termos de estratégias os
mecanismos utilizados nas relações de poder. (Foucault, 1995b, p. 248).

Houve sempre, nas produções de Foucault, uma preocupação com


o binômio poder-saber. O “poder, longe de impedir o saber, o produz”
(Foucault, 1999, p. 27). Mas também o poder implica o saber. Se o poder-
saber é inicialmente elaborado por Foucault em termos de disciplina, em
seguida ele é estudado como biopoder e por fim em termos de governo.
Em seus últimos trabalhos Foucault concebe o poder como “ação sobre as
ações dos outros” (1995b, p. 244). O discurso da mídia educativa brasileira
sobre a educação escolar está inserido nesse jogo de poder-saber, já que
reforça, produz e faz circular verdades sobre a educação escolar, a prática
docente e o currículo. A verdade é aqui entendida como produzida em
56

conexão com o poder, como uma construção discursiva, como um efeito da


articulação poder-saber31. É nessa articulação que se produzem os regimes
de verdade; isto é, os discursos que funcionam na sociedade como
verdadeiros (Foucault, 2000a).
Ora, se o poder e a verdade estão circularmente ligados, se o poder
opera em conexão com a verdade e esta só existe em relações de poder, então
todos os discursos podem ser vistos como parte de uma luta para construir
as próprias versões de verdade. Além disso, toda sociedade tem discursos
aceitos como verdadeiros. É assim que analiso o discurso da mídia educativa
sobre a educação escolar como parte de uma luta para divulgar e multiplicar
saberes verdadeiros sobre a escola, o currículo e a professora. Contudo,
além de uma prática produtiva que objetiva – já que produz e veicula um
tipo de currículo e de educação escolar e modos considerados adequados de
nela agir –, no discurso investigado são propostas formas de relação que os
sujeitos têm de estabelecer consigo, com os outros e com o mundo. Nesse
discurso, docentes e outros sujeitos (como jovens, prefeitos, empresários e
demais brasileiros) são posicionados como sujeitos propensos a aprender e
lhes são sugeridos certos modos de ser e existir. Por meio dos exercícios, das
técnicas e práticas propostas, esses sujeitos são administrados, governados e
subjetivados. Nesse sentido, esse discurso constitui também uma tecnologia
de subjetivação que governa e produz determinados tipos de subjetividades.
Na perspectiva foucaultiana, “a questão do governo está já, desde o
princípio, fortemente relacionada com a questão do autogoverno” (Larrosa,
1994, p. 53). O autogoverno, por sua vez, “está fortemente relacionado com

31
A preocupação de Foucault com a verdade deu-se sempre de modo diferente das preocupações
tradicionais que, como ele mesmo expressou, pareciam buscar uma verdade preexistente. Ele
preocupou-se com a política do verdadeiro: processo pelo qual determinados discursos vêm a ser
considerados verdadeiros. Não existe uma verdade a ser descoberta; existem discursos que a
sociedade aceita, legitima e faz circular como verdadeiros (Foucault, 2000g, p. 231).
57

o tema da ‘subjetividade’” (Larrosa, 1994). O discurso da mídia educativa


tem efeitos sobre a nossa conduta, sobre os modos como devemos falar e
agir em relação às questões educacionais, sobre as formas como devemos
fazer a prática curricular e solucionar os problemas escolares. Pensar desse
modo o discurso sobre a educação da mídia educativa é considerar a sua
participação na produção de um tipo de educação que é importante para o
governo da conduta de indivíduos; governo aqui é entendido como “conduta
da conduta” (Foucault, 2000b). É pensar que nesse discurso são acionadas
técnicas e tecnologias de subjetivação. As técnicas são os procedimentos e os
exercícios que usamos sobre nós mesmos e que outros usam sobre nós nos
processos de subjetivação. Tecnologia, por sua vez, são “os meios inventados
para governar o ser humano, para moldar ou orientar a conduta nas direções
desejadas” (Rose, 2001a, p. 37). Refere-se, então, a “qualquer conjunto
estruturado por uma racionalidade prática32 e governado por um objetivo
mais ou menos consciente” (Rose, 2001a, p. 38).
Miller e Rose (1993) explicam que “as racionalidades políticas
traduzem a realidade para o campo do pensamento” e as tecnologias de
governo, por sua vez, “buscam traduzir o pensamento para o campo da
realidade e estabelecer no mundo das pessoas e coisas espaços e expedientes
de ação sobre aquelas entidades com as quais as tecnologias de governo
sonham e as quais elas esquematizam” (Miller; Rose, 1993, p. 82). Os
estudos sobre governo preocupam-se em analisar as técnicas e os cálculos
que permitem exercer essa forma complexa de poder. Nessa perspectiva, o
analista “desloca o foco de análise do poder: do Estado para as inúmeras e
polimorfas estratégias de controle da conduta espalhadas nos interstícios do
social” (Silva, 1998, p. 8).

32
Racionalidade prática é entendida como um pensamento prático, que utiliza “determinados
expedientes técnicos de escrita”: “listagem, numeração e computação” (Miller; Rose, 1993, p. 79).
58

Ao propor a análise política chamada “microfísica do poder”,


Foucault (1999) expôs a aplicação de técnicas disciplinares ou técnicas de
dominação sobre o indivíduo. Ele explorou as técnicas de poder ou de
poder-saber que eram exercidas sobre o indivíduo situado em diferentes
instituições (como a prisão, o hospital, a fábrica e a escola) para observar,
examinar, avaliar e moldar seu comportamento. As técnicas de dominação,
portanto, para Foucault (1993, p. 207) são aquelas técnicas que nos permitem
“transformar e manipular coisas; [...] que nos permitem subordiná-las a
certos fins e objetivos”. Tal atenção às especificidades das relações de poder
e às “técnicas de dominação dos indivíduos uns sobre os outros” (Foucault,
1993, p. 207) despertou, é certo, interesse e também críticas. Gordon (1991)
sintetiza algumas dessas críticas:

Uma objeção freqüentemente levantada pela esquerda marxista era


de que essa nova atenção às especificidades das relações de poder e a
textura detalhada das práticas e técnicas específicas fracassava em
esclarecer as questões globais da política, a saber, as relações entre
estado e sociedade. Outra objeção era a de que a representação da
sociedade por Foucault como uma rede de relações onipresentes de
poder subjugante parecia impedir a possibilidade de liberdade individual
significativa. Uma terceira era a de que a explicação marcadamente
árida de Foucault dos efeitos do reformismo penal humanitário
correspondia a uma filosofia política global do niilismo e desesperança.
(Gordon, 1991, p. 4).

As respostas dadas por Foucault a algumas dessas críticas, conforme


argumenta Gordon (1991, p. 6), “podem ser consideradas como a origem
de algumas das principais direções tomadas em sua obra posterior”. Suas
palestras sobre governamentalidade são dadas nesse contexto de resposta às
objeções feitas, especialmente pelos marxistas, ao estilo de análise que
efetuara. Assim, Foucault argumentou que o mesmo tipo de análise usado
para estudar as técnicas e práticas direcionadas a indivíduos particulares
dentro de determinadas instituições também poderia ser utilizado para
entender as práticas e técnicas direcionadas para “governar populações de
59

sujeitos no nível de uma soberania política em toda a sociedade” (Gordon,


1991, p. 4). O termo governamentalidade, como explica Foucault (2000b,
p. 292), significa:

O conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e


reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante
específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por
forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos
essenciais os dispositivos de segurança.

O governo da população, na perspectiva da governamentalidade,


passa a ser “o cálculo das habilidades dos indivíduos, a docilidade do corpo
pela norma e pela disciplina, a maximização da utilidade dos indivíduos
visando à prosperidade do Estado” (Garcia, 2000, p. 49). O governo,
entendido originalmente como a adequada administração das coisas da casa,
da família e de seus bens, passa a ser problematizado em termos de como
exercer, no âmbito do Estado, uma ação tão vigilante e interessada sobre
seus recursos, como a que é exercida por um pai de família (Foucault,
2000b). A noção de governamentalidade refere-se, então, às “racionalidades
políticas” ou “mentalidades de governo”, nas quais “o governo se torna
uma questão de gerenciamento calculado das questões de cada um e de
todos a fim de se alcançar certos objetivos desejáveis” (Rose, 2001a, p. 41);
refere-se às formas pelas quais governamos e somos governados; à relação
entre o governo de Estado, dos outros e de si.
Se em “Vigiar e punir” Foucault havia explorado as técnicas de
dominação – aquelas usadas pelos indivíduos uns sobre os outros, portanto
para a conduta da conduta –, ele passa a partir daí a explorar as técnicas do
eu, isto é, “aquelas que permitem aos indivíduos efetuarem um certo número
de operações sobre seus corpos, sobre suas almas, sobre seu próprio
pensamento, sobre sua própria conduta” (Foucault, 1993, p. 207). Foucault
reconhece, então, que as tecnologias de dominação constituem apenas um
lado dos sistemas pelos quais os indivíduos são governados. Na análise do
60

governo, é preciso também levar em conta as técnicas do eu. É preciso levar


em conta “a interação entre esses dois tipos de técnicas” (Foucault, 1993, p.
209). O governo, conforme sugere Foucault, é o ponto de contato no qual
interagem as técnicas de dominação e as técnicas do eu, ou seja, “os pontos em
que as tecnologias de dominação dos indivíduos uns sobre os outros recorrem
a processos pelos quais o indivíduo age sobre si mesmo e, em contrapartida,
os pontos em que as técnicas do eu são integradas em estruturas de coerção”
(Foucault, 1993). O autor assim sintetiza seu novo campo de trabalho:

Tendo estudado o campo do governo tomando como ponto de partida


técnicas de dominação, gostaria, em termos futuros, de estudar o
governo, especialmente no campo da sexualidade, partindo das técnicas
do eu. Entre tais técnicas, aquelas que estão orientadas para a descoberta
e a formulação da verdade a respeito de si próprio são extremamente
importantes. Isto acontece porque para o governo das pessoas nas
nossas sociedades, todos tinham não só que obedecer mas também
que produzir a verdade acerca de si próprios. O auto-exame, o exame
de consciência e a confissão encontram-se entre os mais importantes
desses procedimentos. (Foucault, 1993, p. 208).

Essa perspectiva chama a atenção para as formas pelas quais as


estratégias para a “conduta da conduta” operam freqüentemente sobre a
própria pessoa; ou para “as formas pelas quais os indivíduos vivenciam,
compreendem, julgam e conduzem a si mesmos” (Rose, 1996a, p. 29).
Todavia Foucault entendia o governo tanto em seu sentido amplo quanto
em seu sentido restrito, já que o governo como uma atividade poderia dizer
respeito: “à relação da pessoa consigo e com as outras pessoas” (envolvendo
alguma forma de controle e direcionamento), “às relações dentro das
instituições sociais e comunidades” e também “às relações referentes à
soberania política” (Gordon, 1991, p. 3).
O discurso da mídia educativa sobre a educação escolar, olhado com
base nessa perspectiva, constitui-se em uma tecnologia de governo da
população. Esse discurso faz aparecer no território da educação determinados
61

tipos de sujeitos, e nele estão dispostas técnicas para moldar as subjetividades


docentes e estratégias para mobilizar a população para realizar alianças e
parcerias pela educação, induzindo-a à ação. Como conseqüência, a educação
não fica mais centralizada no Estado. Inúmeras estratégias são adotadas e
implementadas de modo a aumentar as responsabilidades da sociedade civil.
Nesse jogo, a mídia educativa aciona técnicas e tecnologias de governo eficientes
para produzir os sujeitos pedagógicos adequados ao Estado. Esses sujeitos,
estando em processo de educação permanente, podem adquirir as habilidades
correspondentes ao sujeito que a sociedade do século XXI requer, ao mesmo
tempo em que auxiliam no governo dos outros de um modo descentralizado.

A METODOLOGIA PARA LER O CURRÍCULO DA MÍDIA

A formação dos discursos e a genealogia do saber devem


ser analisadas a partir não dos tipos de consciência, das
modalidades de percepção ou das formas de ideologia,
mas das táticas e estratégias de poder.
Michel Foucault

Do ponto de vista metodológico, este livro incorpora elementos de


uma análise discursiva conforme a feita por Michel Foucault e utilizada
por diferentes autores que trabalham com a perspectiva pós-estruturalista e
com o campo dos estudos culturais. A análise do discurso, nessa perspectiva,
ofereceu-me as regras para a descrição e o tratamento dado ao material.
Ajudou-me também na escolha das diferentes modalidades enunciativas
com as quais trabalhei. Inspirada nesses estudos, procurei nessas diferentes
modalidades enunciativas a regularidade do discurso. Procurei descrever a
quem os enunciados são endereçados e o que eles objetivam. Considerei
que esse discurso possui uma materialidade que nos conta algo. Tomei o
discurso como instância produtora e objetivadora que tem efeitos de verdade
e que governam.
62

Por meio dos textos selecionados, então, analisei o discurso em sua


materialidade, isto é, em seus ditos. Descrevi as “coisas ditas” identificando
os enunciados que estão nos discursos, mostrando a sua regularidade, e as
múltiplas enunciações que se multiplicam no material estudado. A tarefa a
que me propus foi descrever os enunciados estabelecendo relações entre as
coisas ditas no discurso investigado com outras coisas ditas em outros
momentos e espaços. Analisei as práticas que nesse discurso são fixadas; os
sujeitos que são produzidos e as técnicas de poder usadas nesse processo. Ao
trabalhar com a dimensão prática e técnica do discurso, incorporo elementos
da genealogia da subjetivação, do modo como é trabalhada e sugerida por
Nikolas Rose. O domínio da genealogia da subjetivação “é o das práticas e
técnicas, do pensamento enquanto ele busca tornar-se técnico” (Rose, 2001a,
p. 34). A preocupação é com “as práticas pelas quais as pessoas são
compreendidas e pelas quais se age sobre elas” (Rose, 2001a).
Com base nessa noção prática do discurso – do discurso como uma
prática –, são focalizadas as práticas nas quais as pessoas relacionam-se consigo
e com as outras pessoas. Essas práticas são tratadas aqui na perspectiva do
governo (Burchell, 1996; Gordon, 1991; Miller; Rose, 1993; Rose, 1996b,
1997a, 2001a). Os autores trabalham no campo da governamentalidade e
analisam o discurso em seu aspecto material, isto é, em seus ditos, e sugerem
que esses sejam estudados como integrados a tecnologias heterogêneas de
governo e a diversas técnicas de autogoverno. Isso permite que possamos
“ler” diferentes textos como “textos que governam”, como “textos conduta
da conduta”.
Convencida da especificidade do discurso investigado, já que o
discurso da mídia apresenta estratégias de linguagens que tornam seus textos
diferentes de outros textos, incorporei em meus procedimentos de registro e
análise dos materiais a descrição de estratégias usadas pelos dois meios aqui
trabalhados. Assim, no registro dos programas televisivos e das peças
publicitárias, inspirada nas reflexões que Sarlo (1997) faz sobre a televisão,
63

incorporei a descrição das estratégias de linguagem da TV. Nesse sentido,


além dos diálogos e locuções, procurei ficar atenta aos efeitos das imagens,
dos sons, do close, do zoom, de quem fala etc. Na análise das matérias da
revista “TV Escola”, procurei captar e registrar os sentidos do uso de cores,
gráficos, tabelas, fotografias, desenhos e mapas. A perspectiva adotada foi a
de que as estratégias de linguagem da mídia (neste caso da televisão e da
revista) constituem os enunciados que produzem, reforçam e divulgam.
Elas “não se divorciam do que ‘é dito’” (Fischer, 2001a) ou do que está
escrito na revista. Tais estratégias são utilizadas para reforçar o que é dito,
para produzir os efeitos de verdade do discurso.
Em termos de procedimentos, na transcrição dos textos selecionados,
procurei descrever os enunciados que se repetem nos diferentes materiais.
Registrei os efeitos das imagens, das fotografias, dos sons, das cores e do
uso de determinadas pessoas na constituição dos enunciados. Descrevi os
procedimentos utilizados para dizer como o currículo deve ser e em que as
professoras devem transformar-se. Identifiquei o modo de endereçamento
do discurso perguntando aos textos “quem esse discurso pensa que você é?”
(Ellsworth, 2001), para acionar determinadas técnicas, para utilizar
determinadas estratégias na luta pela interpelação dos sujeitos pedagógicos.
Procurei mapear o que os textos falam sobre o currículo e, com base nesse
mapa, montei o “modelo curricular da mídia”. Em seguida, perguntei o
que esse currículo quer? (Corazza, 2001a). Examinei as condições que dão
ao discurso o caráter de verdade: quais são as suas regularidades e variações;
quais são os padrões, as imagens, as estratégias e as técnicas recorrentes.
Para descrever e discutir as autoridades (Rose, 2001a) acionadas nesse
discurso para que aquilo que é enunciado tenha efeitos de verdade sobre os
modos dos sujeitos pedagógicos se conduzirem, perguntei aos textos: “quem
fala?” ou “quem pode falar?”. A perspectiva é a de que o discurso investigado
seja estruturado em diferentes relações que “concedem poderes a alguns e
delimitam os poderes de outros, capacitam alguns a julgar e outros a serem
64

julgados, [...] alguns a falar a verdade e outros a reconhecer sua autoridade


e a abraçá-la, aspirá-la ou submeter-se a ela” (Rose, 2001b, p. 151). Outras
perguntas foram necessárias para discutir as autoridades do discurso
investigado. Assim, a pergunta “quem pode falar?” – quem tem e quem
não tem voz, que localizações e posições outorgam a quem falam – foi
desdobrada em outras, como: qual o status do enunciador? qual a sua
competência? de qual lugar fala? qual seu lugar institucional? como se
relaciona hierarquicamente com outros poderes além do seu?
Poderia dizer, então, que o “método” utilizado no estudo consistiu
em conceber os programas televisivos, os comerciais e a revista como textos
que nos dizem como devem ser a escola, o currículo e a professora. Procurei,
na multiplicidade discursiva que tinha em mãos, voltar o meu olhar para
descrever as práticas produtivas desse discurso. Perguntei-lhe e em seguida
descrevi o que esse discurso “faz” (Rose, 2001b). Considerei que a prática
desse discurso é o que ele “faz”, ou seja, é o que ele objetiva no que diz
respeito a como o currículo e a prática educacional devem ser. Como a
professora deve conduzir-se e proceder? Qual deve ser o comportamento
dos brasileiros em relação à escola pública? Examinei as estratégias e as
técnicas de poder-saber acionadas nesse discurso para seduzir os sujeitos
pedagógicos a viverem tipos particulares de experiências, fazendo com que
se tornem determinados tipos de sujeitos.
Em síntese, operei sobre o meu corpo discursivo tentando identificar
de que modo as coisas ditas existem, quais suas relações com outras coisas
que são ditas e o que significa o fato de elas terem se manifestado. Considerei
que esses ditos estão integrados a tecnologias de governo dos sujeitos
pedagógicos que possibilitam que eles sejam, pensem e façam coisas
particulares. Considerei também que esses ditos estão integrados a diferentes
técnicas de autogoverno que possibilitam que os sujeitos pedagógicos sejam,
pensem e façam de si sujeitos de um determinado tipo. Concebi os
programas, os comerciais e a revista como materiais heterogêneos que
65

governam. Governam porque possuem suas práticas consoantes com a


prática de conduta e autoconduta que materializa uma determinada gover-
namentalidade dos indivíduos (Corazza, 2001b). Descrevi e analisei as
formas de agir que nesse discurso são conectadas, os sonhos com os quais
nos fazem sonhar e as ações que nos convocam a fazer (Rose, 1997a). É o
resultado desse “olhar” dirigido aos materiais midiáticos e dessas perguntas
feitas aos textos estudados que passo a apresentar nos próximos capítulos
deste livro.
Título Currículo e mídia educativa brasileira: poder, saber e
subjetivação

Autor Marlucy Alves Paraíso

Assistente editorial Hilario Junior dos Santos

Assistente administrativo Neli Ferrari

Secretaria Alexandra Fatima Lopes de Souza

Divulgação Josué Carvalho

Projeto gráfico e diagramação Franciéli Roos

Capa Ronise Biezus

Preparação dos originais Jakeline Mendes Ruviaro

Revisão Jakeline Mendes Ruviaro


Juliane Fernanda Kuhn

Formato 16 X 23 cm

Tipologia CaslonOldFaceBT e Futura BK BT


entre 7 e 15 pontos

Papel Capa: Cartão Supremo 350 g/m2


Miolo: Pólen Soft 80 g/m2

Número de páginas 274

Tiragem 800

Publicação Setembro de 2007

CTP, impressão e acabamento Gráfica e Editora Pallotti - Santa Maria (RS)

Argos - Editora Universitária - UNOCHAPECÓ


Av. Attilio Fontana, 591-E - Bairro Efapi - Chapecó (SC) - 89809-000 - Caixa Postal 747
Fone: (49) 3321 8218 - argos@unochapeco.edu.br - www.unochapeco.edu.br/argos
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