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Morte e Democracia

Três dias antes do aniversário de nascimento do Sartre, - em que o


pequeno grande homem, se vivo, completaria cento e cinco anos - morre José
Saramago; a TV não cansa de passar: “Falece o único escritor em língua
portuguesa a ganhar um Nobel”.

A pena que sinto com a ausência desses seres, não é pena por eles, ou
pelos seus familiares apenas, é pena do mundo, que fica menos potente em
beleza. Pois eles, bem, já fizeram o que podiam. Fizeram tão bem feito, que a
única ausência que se faz sentir é a de potências criadoras para um futuro.
Pelo que já foi feito, eles se fazem presentes, presença assustadoramente
concreta – assim como é concreta a escrita (que nos deixa sem fôlego) do
Saramago. Assim como é concreto o pensamento do Sartre, que saiu pras
ruas, pra cidade, se espalhando através de megafones; um pensamento
público, democrático.

Nesse ano de eleição no Brasil, quando o pensamento do “Não


desperdice seu voto, exerça seu papel na democracia” aparece em constância
na TV, é difícil pra mim, deixar de lembrar, de homens como Sartre e
Saramago. Mas, particularmente, me recordo de um ato público, quando
Saramago, na cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002, leu o texto
intitulado “Este Mundo da Injustiça Globalizada”.

Saramago conta uma história que é pequena e não deve ocupar trinta por
cento do curto texto, apesar de perpassá-lo do início ao fim. Não é nada como os
grandes [comparando ao texto em questão] e grandiosos enredos de seus romances,
tais como: Ensaio Sobre a Cegueira, Ensaio Sobre a Lucidez, As Intermitências da
Morte. Romances que o autor tem o absurdo como material de trabalho. Um absurdo
em primeiro plano, forçado por Saramago, num belo esforço de imaginação que
busca uma certa apreensão da totalidade, lembrando o existencialismo ético de
Sartre, que insiste em questões como: “E se todo mundo fizesse assim?”, “E se todos
fossem de tal maneira?”. E assim Saramago constrói seus romances: todos cegos,
todos imortais, todos não-votantes. Sempre buscando uma reflexão ética. Ética não
em um sentido idealista, imutável, mas uma ética histórica, compreendida como um
filtro da moral dominante e que possa até mesmo combater tal moral, se for preciso.
Assim, o autor busca uma reflexão ética que tenta apreender a totalidade
justamente por ser singular, acionada em cada individuo humano. Uma ética que é,
sobretudo, humana. É nesse sentido que, no texto, Saramago fala de justiça: “Uma
justiça para quem o justo seria o mais exato e rigoroso sinônimo do ético, uma justiça
que chegasse e ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à
vida é o alimento do corpo”.

O que difere então, esse texto dos magníficos romances do Saramago? Não
difere nem mesmo no trabalho com a totalização do absurdo. A grande diferença é
que nesse texto ele não cria, não força nada, pois o absurdo já está aí, “saltar-vos-á
ao rosto não tarda”. Desse absurdo faz parte a espera de que o “rato dos direitos
humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização
econômica”. Desse absurdo faz parte também e, sobretudo, o fato trazido as claras
por Saramago, de que ninguém, ou melhor; de que todos deixam de discutir a
questão da Democracia. O que Saramago diz, sem precisar estar escrito no texto é –
lembrando aquela ética existencialista já citada – “e se todo mundo fizesse o
contrário? E se todos discutissem a Democracia?”.

E o que o autor nos mostra é que esse “se” não é mera suposição, mas um
chamado. Pois no fim do texto, quando algum leitor ainda pudesse sentir que
prevaleceria o lamento e apatia diante da desgraça, Saramago nos alerta para o sino
que ainda está a tocar, e faz com que suas palavras atinjam nossos corpos (para não
dizer limitadamente “cérebro” ou “coração”) com força proporcional (ou
desproporcionalmente maior) ao badalar do sino tocado pelo camponês. Nesse caso,
visando acordar não apenas uma aldeia, mas todo o mundo.

Leonardo Araújo

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