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Pacientes-problema Neury José Botega No capitulo anterior fez-se um esboco do que se entende por personalidade, mecanis- mos de defesa e coping, a fim de auxiliar no entendimento de algumas reagdes quando do aparecimento de doenga somatica,e da consequente hospitalizacao, Para compreender pacientes de dificil manejo, é necessério abordar como certos tracos de personalidade e mecanismos de defesa mais primitivos condicionam determinados comportamentos. De modo geral, chamamos pacientes- -problema aqueles que, por nao se ajustarem & situagdo de doenca e de hospitalizacao, comportam-se de tal forma que represen- tam uma carga emocional para o médico e para a equipe assistencial, atrapalhando- -lhes em sua tarefa assistencial. A adaptacao ao estresse e as reacdes diante de limitagdes decorrentes do adoecimento e da hospitali- ‘zacéo tornam-se bastante complicadas nos casos de pessoas que tém alguns tragos mar- cantes de personalidade. Quatro tipos de pacientes que provo- cam aversio na equipe assistencial foram descritos por Groves.! Todos manifestam tendéncia a dependéncia psiquica, e seu comportamento provoca varios sentimen- tos, como raiva, evitacao, sentimento de im- poténcia e desconfianga. @ Dependente insaciavel. Parece agar- rar-se aos que dele se aproximam. Nao suporta ser deixado sozinho. & sensivel ao que considera descaso ou rejeicao. A equipe assistencial tende a se esqui- var. ™ Reivindicador arrogante. Ao mesmo tempo em que demanda atengio, faz comentérios hostis e depreciativos, comportamento que esconde senti- mentos subjacentes de desamparo e de temor relacionado ao adoecimento. ‘A equipe assistencial tende a “contra- -atacar”, ™ Rejeitador. Ele pede cuidados, mas é pessimista em relacdo ao tratamento que recebe, “nada deu, da ou dard cer- to”. Acaba minando o tratamento e a re- lacdo com a equipe assistencial. Ele quer estar préximo, mas, ao mesmo tempo, deixa todos a distancia e impotentes. A equipe assistencial fica ansiosa, irritada; também se frustra, chega a duvidar de propria capacidade. ™@ Autodestrutivo. E ao mesmo tempo de- pendente e nao cooperativo, e se envol- ve em comportamentos autodestrutivos, nao aderindo ao tratamento. A equipe desanima ou se enraivece ao ver todos 0s seus esforcos desperdigados diante de uma pessoa que nao consegue conter sua autodestrutividade. PRATICA PSIQUIATRICA NO HOSPITAL GERAL 63 _TEORIA DO APEGO APLICAVEL A SITUAGOES DE DOENGA | A partir do final da década de 1960, John Sowlby, um psiquiatra e psicanalista brité- ‘ico, dirigiu sua atencao a reacdo de crian- ‘@s que eram separadas de seus pais quando espitalizadas. Suas observacées tomaram =orpo na formulaco da teoria do apego.? | O sistema de apego seria inato, per- itindo aos mamiferos maximizar a chance sobrevivéncia de um filhote que nasce maturidade para viver de modo inde- endente. Em uma visio etolégica, 0 ape- pode ser entendido como regulador do uilfbrio entre a seguranca, por um lado, e exploragio e 0 ltidico, por outro, Estudos itudinais demonstraram que o sistema apego se mantém estdvel e ativo ao longo vida. Além da influéncia genética, padrées portamentais sofrem influéncia dos 0s ambientais e da interacao com o cui- principal (figura de apego), em geral mie. Os adultos-chave agem como uma segura” a partir da qual se explora, sambém como um “porto seguro” para 0 voltar quando o filhote é ameacado ou ecisa de protecio. Dessa forma, a figura de apego tem <4o dupla: proteger do perigo impos- pelos predadores e funcionar como um fo A vida independente em momentos seguranca. © comportamento de apego ncadeado em momentos de ameaca, pela percepcao de auséncia da figura dria de apego, quer pelo surgimento de estimulo ameagador. ‘Ao juntar elementos da_psicologia ssitiva e da teoria psicanalitica, Bowlby que, desde bebés, internalizamos ex- ncias com figuras de apego que geram elos internos de funcionamento, os quais. am os relacionamentos com outras ss. Assim, cada modalidade de apego ca uma visio de si (self) e de outrem a partir de experiéncias precoces um cuidador. Modalidades predominantes de apego ja foram nomeadas e categorizadas de va- rias maneiras,? e, com adaptagdes, certas classificacdes visam a dar alguns padroes de resposta comportamental diante do adoeci- mento.‘ Devemos lembrar, no entanto, que a teoria do apego fornece néo mais do que uma lente pela qual podemos ver, interpre- tar e iniciar propostas mais pragméticas de manejo clinico. O significado singular do adoecimento sé pode ser compreendido por meio de entrevista e de reflexao cuida- dosas. Feita essa ressalva, é preciso reconhe- cer que, por sua relativa simplicidade, a teoria do apego vem sendo muito aplicada em medicina psicossomatica.5 Além disso, por ser de compreensao intuitiva, tem am- pliado o entendimento do comportamento humano e permite ao psiquiatra intercon- sultor aplicar e ensinar & equipe assisten- cial estratégias de como lidar com pessoas que tém caracteristicas marcantes de per- sonalidade. © Quadro 4.1 contém uma proposta de categorizagao das modalidades de apego ao longo de um continuum.® Um instrumento de pesquisa condizente com essa proposta foi desenvolvido” e testado em uma grande amostra populacional,’ a qual mostrou que cerca de 55% das pessoas tém uma moda- lidade de apego seguro. A mesma pesquisa estimou que 20% tém apego inseguro ansio- so (um valor que decai ao longo dos anos) e 15%, apego inseguro evitador. Pessoas com apego inseguro ansioso nao desenvolveram a seguranca que Ihes permi- te enfrentar com ponderacdo uma situagio de doenga, recorrendo, assim, ao auxilio dos outros de forma exagerada e compulsiva. A hipétese é de que esse constante “sinal” de desespero (care-seeking behavior), emitido no inicio do desenvolvimento, era a unica forma conhecida de obter atengo de uma figura de apego. JA pessoas com apego inseguro evitador teriam tido a experiéncia, ao longo do de- senvolvimento, de receber atencdo de forma GG _NEURY JOSE BOTEGA (ORG.) Diante de pacientes com modalidade desorganizada de apego, também a equipe assistencial pode se desorganizar e deixar de se interessar por um paciente tao dificil de se relacionar. Como alternativa de compen- sar a falta de alianca terapéutica, e respon- dendo As presses para se empenhar mais, 0 médico pode assumir postura de muito fazer (pedindo varios exames, fazendo reavalia- ao diagnéstica), com receio de ter deixado passar algo. Se nao refletir, deixard de atuar terapeuticamente e, por atos ou omissdes, terminard por “confirmar” as acusages € temores do paciente. Quando uma pessoa tio desorganiza- da e “desorganizante” se encontra na en- fermaria, a equipe precisa se reunir para conversar e, ao final, tomar as principais decisdes. Para nao se perder, devera manter, acima de tudo, o bom padrao de atendimen- to dispensado aos pacientes em geral. Em algum momento, seré titil lembrar que essa pessoa téo perturbadora nao tolera a soli- dao (sentida como desamparo angustiante), e que, ao mesmo tempo em que se encontra desesperada por contato, nao consegue con- fiar nas pessoas. TRANSTORNOS DA PERSONALIDADE Tragos de personalidade estéio associados a padrées caracteristicos de resposta com- portamental, modulando a maneira como ‘uma pessoa pensa, sente ¢ se relaciona com 0s outros. Se esses tracos forem marcantes, fixos e inflexiveis, causarao problemas nos relacionamentos interpessoais e no desem- penho de fungées sociais. Em uma situagao de doenca e de hospitalizagao, entdo, 0 que costuma acontecer? Quando a pessoa parece “se grudar” na gente e nada a sacia, nao tolerando poucos minutos de solidao; quando a arrogancia ea demanda por cuidados sao marcantes, com uma variedade de pequenas e grandes exigéncias que ndo reconhecem os esforgos da equipe assistencial; quando o paciente divide os membros da equipe entre * ¢ “maus” e entre eles semeia a disc quando um paciente passa a ser temic sua constante instabilidade e impulsiv quando chegam solicitagbes de intere ta que revelam, j4 na prépria redagao dido, um tom confuso, angustiante, e rado, culposo ou derrotista... Quand: coisas acontecem, deve-se pensar n sibilidade de 0 paciente em questo um transtorno mental, provavelmer transtorno da personalidade (Quadre Algumas das caracteristicas ent das nesses pacientes costumam dificu impedir a adaptacio, como desconsié pelo préximo, violagao de regras de vio social, repetidas acusacdes e ar dependéncia excessiva, comportame pulsivo, tendéncia a manipular as p egocentrismo, instabilidade na autoir afetos e relagées interpessoais, granc de, necessidade de admiracao, ou cidade de estabelecer um relacion empatico? Nem todos os individuos com t1 no da personalidade sao pacientes-pr Em geral, as dificuldades ocorrem e de transtornos de tipo antissocial, n ou borderline, acompanhados ou na morbidade psiquiatrica, como uso ou dependéncia de dlcool e de outra: psicoativas, depressdo, transtorno d dade.! Individuos com transtorno d nalidade borderline conformam-se : digma de paciente-problema (Quac Sua conduta acaba por provocar est boa relagio terapéutica, algo que e reivindicam.!01! ‘Além disso, as defesas psicol6; lizadas por pessoas que tém trans personalidade séo consideradas r mitivas, caracterfsticas de um ego (Quadro 4.4). Assim, enquanto a eq geral, espera, com ansiedade, a int do psiquiatra, 0 paciente, com fre no o recebe de bom grado (“Os ou eu, é que precisam de psiquiatra...” O psiquiatra interconsultor, capacidade de entendimento ness: problemas, é o profissional mais ¢

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