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“Cinema indígena ou Cinema indigenizado?

O processo de etnização
através da produção de imagens”1
Debora Herszenhut, UFRJ/Brasil

Palavars Chave: Cinema indígena, Cultura, Política

O projeto Vídeo nas Aldeias:


O vídeo nas Aldeias (VNA) é uma Organização não Governamental criada em
1987 pelo indigenista Vincent Carelli. Este projeto de produção videográfica que surge
no seio de uma militância política em favor da população indígena brasileira, traz
objetivos claros relativos ao empoderamento e engajamento destas sociedades nas suas
respectivas causas. Dar visibilidade a histórica luta política dos indígenas brasileiros,
através da universalidade da linguagem audiovisual, é o ponto de onde partiu o trabalho
desenvolvido pelo projeto VNA.
No início, a metodologia de trabalho do projeto consistia em uma equipe
de filmagem composta por não indígenas dirigir-se às aldeias e “colocarem-se a
serviço” da comunidade. Disponibilizavam as ferramentas audiovisuais para que os
indígenas propusessem as temáticas a serem filmadas e, imediatamente após as
filmagens, todos reuniam-se para assisti-las. Em um segundo momento, esta produção
era (e ainda é) compartilhada com outros povos indígenas, nos circuitos de festivais de
cinema e nos eventos relacionados ao tema.
Após dez anos trabalhando com essa metodologia, o Vídeo nas Aldeias entrou
em uma nova fase, a formação de cineastas indígenas, com o objetivo de dar autonomia
às comunidades para as suas respectivas produções audiovisuais. O Vídeo nas Aldeias
tornou-se uma escola de cinema para índios com a proposta de capacitar lideranças na
linguagem audiovisual. Foram mantidos os três tempos do processo metodológico
aplicado desde a criação do projeto (registro, visualização e intercâmbio/
compartilhamento de imagens). No entanto, neste novo momento os indígenas passaram
a participar também do processo técnico da criação.

1 “Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de


agosto de 2016, João Pessoa/PB.

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Atualmente o projeto já formou alguns cineastas indígenas. Takuma Kuikuro é
diretor de cinco filmes, dentre eles o bem sucedido Hiper mulheres, vencedor de
diversos prêmios nos mais importantes festivais de cinema do Brasil, como o festival de
Brasília e de Gramado. Divino Tserewahú é o indígena brasileiro mais premiado
internacionalmente, assina a direção de sete produções. Ariel Ortega, Mbyá Guarani,
diretor formado mais recentemente no VNA, assina atualmente cinco produções. Estes
são apenas alguns exemplos de cineastas indígenas que hoje assumem a missão de
formar a nova geração de cineastas e fazem disso a sua profissão, tanto dentro como
fora de suas comunidades.
Neste trabalho parto do levantamento do acervo filmográfico da ONG Vídeo nas
Aldeias com grupos indígenas de diversas etnias ao redor do Brasil e apresento algumas
questões acerca destes filmes, relacionando-os com teorias antropológicas e
cinematógraficas, especificamente, do cinema documentário. As questões apresentadas
a seguir, referem-se principalmente ao papel desempenhado pela imagem na construção
de relações e de elaboração de identidades étnicas no contexto político-social
contemporâneo, especialmente no que tange à história da constituição dos direitos
legislativos das populações indígenas brasileiras.
No que se refere à metodologia de pesquisa, os meus nativos são esta vasta
filmografia e bibliografia produzida por e sobre o projeto VNA, são com eles (filmes e
textos) e a partir deles que dialogarei e trarei as reflexões antropológicas.

Como desconstruir a idéia do índio genérico: Os anos 90 e a nova política


ambiental

A histórica invisibilidade das sociedades indígenas é um tema recorrente nas


produções do Video nas Aldeias. Não necessariamente como enredo principal do filme,
mas através da narrativa descritiva sobre as formas de ser e de fazer coisas de índio
presentes na ampla maioria da produção do VNA e presente principalmente nas
produções realizadas pelos Cineastas Indígenas. Estas imagens demonstram que, por
trás de qualquer história, que no simples enfoque nos detalhes do cotidiano, encontra-se
a necessidade de afirmação, apresentação e representação de um modo de ser indígena.
A busca pela apropriação e reconhecimento de suas identidades indígenas se dá
através desta afirmação das diferenças evidenciadas em detalhes nos filmes. Sair do

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estereótipo do índio genérico para tornarem-se reconhecidos como indivíduos inseridos
em contextos socioculturais diversos, com seus próprios códigos, línguas e culturas
distintos uns dos outros é um esforço que pode-se notar a partir desta documentação
realizada pelos Cineastas Indígenas do projeto VNA.
Ao mesmo tempo, a partir destas produções fica claro também, por outro lado, a
circulação dos índios por entre o mundo dos brancos, do qual também compartilham de
sua cultura e seus códigos sociais. É neste contexto também que o vídeo apresenta-se
como ferramenta para a apropriação de suas próprias imagens por estes sujeitos não
índio, mas sim Xavante, Nambiquara, Guarani, Kuikuro, etc.
O esforço de inserir o índio na construção da sociedade e da identidade brasileira
já vêm de longa data2. Este empenho encontra-se em não somente dar visibilidade a
ancestralidade indígena brasileira, mas fazê-la notar-se em suas especificidades étnicas
através da história cultural do Brasil. No entanto a novidade do presente, ao qual o
Vídeo nas Aldeias se insere, é a possibilidade de os índios participarem agora desta
construção, contarem a sua história e escolherem a forma como querem ser vistos e
representados.
Gonçalves (2010) a respeito de sua experiência com os Paresi ao longo de 20
anos em que acompanha a trajetória deste grupo no Mato Grosso, apresenta cenários
construídos a partir das relações dos Paresi com os brancos, para refletir sobre a
elaboração do conceito de cultura pela antropologia e sua apropriação enquanto uma
categoria nativa. Relata as transformações de sentido dado a este conceito pelo próprio
grupo, o que afirma não ser apenas uma nova forma de inserção indígena no mundo dos
brancos como também uma outra forma de inserção indígena no seu próprio universo
cultural, assim como uma nova forma de inserção dos brancos no universo indígena.
Ao trazer para sua análise um recorte temporal de vinte anos, observa que em
um primeiro momento de seu contato com os Paresi na década de 1980, no período de
demarcação de suas terras, eram frequentes as invasões de fazendeiros em seus
territórios, ao mesmo tempo em que a BR 364 atravessava a reserva indígena. O contato

2 Capistrano de Abreu já no início do século XX realiza um trabalho etnográfico minucioso sobre


diversos grupos indígenas brasileiros. Com o objetivo de colocar a história indígena na história brasileira.
Com muito rigor e exatidão, busca desfazer os equívocos históricos que apagaram a herança indígena
desta narrativa. (GONÇALVES, 2010).

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deste grupo com os brancos se dava essencialmente a partir de duas situações: muitos
indígenas trabalhavam para madeireiros no desmatamento e a proximidade da estrada
com a aldeia que alavancou a venda de artesanato Paresi aos viajantes que cruzavam a
estrada.
Produziram um artesanato que constava basicamente de um rearranjo
dos materiais que tinham à disposição em seu território. Desse modo
reinventaram o arco, que agora era feito com madeira de palmeira de
paxiúba (bastante fraca para ser usada como arco) e enfeitadas com
penas de arara e tucano... Criaram o espanador, um dos objetos mais
caros para a venda, confeccionado com penas de ema, enfeitado com
penas coloridas, tendo o cabo produzido a partir do pé do veado...
Para os Paresi era claramente uma invenção, nunca venderam os
artefatos como sendo peças tradicionais de sua cultura, nunca
enfatizaram esse aspecto, eram “souvenir” de índio. (...) Os Paresi não
estavam com isso afirmando uma identidade de índio genérico e nem
mesmo estavam ali inventando sua cultura indígena através de
artefatos que produziam e vendiam. Do seu ponto de vista, simulavam
ser índio quando... vendiam coisa de índio, mas tinham a consciência
de estar devolvendo a imagem do índio ou do que significava a cultura
indígena para os brancos. Índio ou cultura indígena era uma invenção
dos brancos (...) Os Paresi faziam seus rituais, suas festas, contavam
os seus mitos, comiam beiju, tocavam suas flautas, caçavam,
pescavam, mas tudo isso não era concebido como “atividade cultural”
ou algo que fosse específico do modo que eles faziam as coisas que
lhes davam uma especificidade, não havia algo que pudesse ser
identificado para eles como sendo a cultura Paresi ou que existisse
uma diferença entre o tradicional e o espúrio no que eles faziam.
Assim o ser índio e “cultura indígena” eram alheios ao universo
Paresi, que remetia ao mundo dos brancos e não ao mundo dos Paresi

No entanto, esse cenário tende a mudar na década de 1990, a partir das novas
perspectivas sócio políticas brasileira. Esta década é marcada por uma série de
iniciativas de programas promovidos por órgãos governamentais e por organizações
internacionais para o reconhecimento de saberes e modos de vida de populações
tradicionais. Um marco neste sentido foi a Eco 923, a segunda conferência mundial
sobre meio ambiente que reuniu no Rio de Janeiro representantes de cento e oito países
do mundo. Foi um encontro que buscava articular as urgências climáticas e ambientais
do planeta às formas de manejo e manutenção do ecossistema, de forma a favorecer e
prolongar a vida humana na terra. “A intenção, nesse encontro, era introduzir a idéia do

3 A Conferência de Estocolmo, realizada em junho de 1972, foi o primeiro grande evento sobre meio
ambiente realizado no mundo. Seu objetivo era basicamente o mesmo da Cúpula da Terra, realizado em
1992. Esta conferência, bem como o relatório Relatório Brundtland, publicado em 1987, pelas Nações
Unidas, lançaram as bases para o ECO-92. Em 1992, vinte anos após a realização da primeira conferência
sobre o meio ambiente, no Rio de Janeiro, representantes de cento e oito países do mundo reuniram-se
para decidir que medidas tomar para conseguir diminuir a degradação ambiental e garantir a existência de
outras gerações. Ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/ECO-92

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desenvolvimento sustentável, um modelo de crescimento econômico menos consumista
e mais adequado ao equilíbrio ecológico.”4 Neste contexto foram aprovados muitos
documentos e acordos, o relatório oficial da Cúpula da Terra, a chamada “agenda 21”,
expõe em detalhes o programa de desenvolvimento sustentável para o século XXI e
apresenta princípios objetivamente direcionados às populações indígenas:
A declaração sobre meio ambiente e desenvolvimento do Rio, lançada
na cúpula, afirma em seu princípio 22 que “os povos indígenas(...)
possuem um papel fundamental no manejo e desenvolvimento do
meio ambiente, devido a seu conhecimento vital e suas práticas
tradicionais”. (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, 319)

Neste mesmo contexto histórico, Leite Lopes (2006) traça um percurso


semelhante a respeito do termo ambientalização colocando este em direção análoga a
idéia construída por Elias (1994) sobre a construção do conceito de civilização na
sociedade moderna. A partir da história dos hábitos e costumes no Estado Moderno,
Elias invoca a história da construção de conceitos como o de etiqueta e educação, para
fazer entender o conceito de civilização como também uma construção e invenção do
homem moderno. Leite Lopes em analogia a esta elaboração proposta por Elias,
constrói o conceito de ambientalização sobre este mesmo paradigma. (Re)constrói
historicamente a interiorização e apropriação das idéias relacionadas ao meio ambiente,
utilizando como referencial este contexto político/histórico descrito anteriormente, onde
torna-se urgente pensar “ecologicamente”.
O autor cunha o termo “ambientalização” para descrever o processo de
apropriação desta consciência ecológica tanto por grupos sociais militantes da questão
ambiental como também analisa a apropriação deste conceito por grandes empresas que
identificam este como um novo negócio e uma boa estratégia de marketing, algo que se
torna ao longo destes anos uma espécie de selo de garantia de bom comportamento. Esta
condição de ecologicamente correto pode ser compreendida como um “selo eco”
concedido a empresas e entidades que trabalham pregando esta prática.
Leite Lopes refere-se neste contexto especificamente à questão desta consciência
ecológica que passou a habitar na cabeça da população latu senso a partir do final da
década de 1960 e a apropriação deste conceito de “ambientalização” por diversos atores
sociais, que ativam estes dispositivos ecologicamente corretos e sustentáveis quando

4 Ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/ECO-92

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estes fazem-se importante para as conquistas de cada um, seja no âmbito empresarial,
seja na militância “verde”, seja pelas próprias populações nativas, em busca de dar
legitimidade a estas disputas.
É neste contexto de legitimação e legalização de culturas tradicionais que
Carneiro da Cunha, proclama seu entendimento de “cultura”, diferentemente de cultura.
Onde compreende que cultura é algo intrínseco e inerente aos seres humanos, que deve
ser regida e organizada por funções mentais, essenciais para a construção e organização
de pessoas em grupos sociais. Em outro sentido, o termo “cultura” (com aspas) faz
referência a apropriação deste conceito por populações nativas que, no contato
principalmente com antropólogos, tomam conhecimento desta categoria a passam a
utiliza-la como instrumento de reivindicação política.
Noções como “raça”, e mais tarde, “cultura”, a par de outras como
“trabalho”, “dinheiro” e “higiene”, são todas elas bens (ou males)
exportados. Os povos da periferia foram levados a adota-las, do
mesmo modo que foram levados a comprar mercadorias
manufaturadas, algumas foram difundidas pelos missionários do
século XIX, como bem mostraram Jean e John Comaroff, mas num
período mais recente foram os antropólogos os principais provedores
da idéia de “cultura”, levando-a na bagagem e garantindo sua viagem
de ida. Desde então, a “cultura” passou a ser adotada e renovada na
periferia. E tornou-se um argumento central - como observou pela
primeira vez Terry Turner5 - não só nas reivindicações de terras como
em todas as demais. A “cultura”, uma vez introduzida no mundo todo,
assumiu um novo papel como argumento político e serviu de “arma
dos fracos”. (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, 312)

Gonçalves (2010) narra uma outra situação etnográfica entre os Paresi que
ilustra bem este processo de apropriação pelos indígenas do conceito de “cultura”, bem
como a importância da elaboração deste conceito para as suas lutas e reivindicações
políticas. Uma índia Paresi, que morava em Cuiabá e cursava a graduação em história
ao deparar-se com a questão indígena no âmbito acadêmico, recorre a sua ancestralidade
e volta-se à sua comunidade de origem. Casa-se com o chefe da aldeia e passa então a
elaborar “projetos” para a sua aldeia. No momento da Eco 92, esta índia o procura no
Rio de Janeiro, pois queria a ajuda para a elaboração de um projeto para captar recursos
para a construção de um Museu Paresi.

A temática era a celebração da cultura Paresi, sua especificidade e sua


riqueza e a necessidade de sua preservação para as futuras gerações. O
museu era o local natural para se recolher os objetos da cultura, as

5 Quanto aos próprios povos indígenas amazônicos agora usam a torto e a direito o termo “cultura”.
Terence Turner chamou a atenção o fato em 1991, mostrando como “cultura” se tornara um importante
recurso político para os Kayapó. Um processo semelhante foi extensamente descrito na Melanésia, onde a
palavra Kastom, termo neomelanésio derivado do inglês “custom”, adquiriu vida própria. Embora os
Kayapó por vezes utilizem um termo mais ou menos equivalente em sua língua, parecem preferir usar a
palavra em português, Cultura. (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, 368)

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gravações das canções e dos mitos, enfim, abarcava a totalidade da
cultura Paresi enquanto uma entidade singular e autêntica, resgatando
tudo o que ainda não havia sido “conspurcado” pelo contato com os
brancos. (GONÇALVES, 2010, 94).

O que Gonçalves (2010) e Carneiro da Cunha (2009) demonstram é que a partir


da década de 1990 o mundo passou por transformações políticas e econômicas que
favoreceram o desenvolvimento deste processo de apropriação/indigenização do
conceito de cultura, e como estas categorias foram utilizadas e reelaboradas com
objetivos específicos pelas populações tradicionais, nativizando - ou, como colocou
Sahlins (1997), “indigenizando” o conceito de cultura. O que importava agora não era
mais construir-se índio por oposição e alteridade a outros povos, tratava-se de construir-
se índio para eles próprios, não como categoria genérica, mas sim em suas
especificidades e singularidades (língua, cosmologia, mitologia, conhecimentos
tradicionais e cultura material). Conforme afirma Carneiro da Cunha (2009, 313), “na
linguagem marxista, é como se eles já tivessem ‘cultura em si’ ainda que talvez não
tivessem ‘cultura para si’. De todo modo, não resta dúvida de que a maioria deles
adquiriu essa última espécie de “cultura”, a “cultura para si”, e pode agora exibi-la
diante do mundo”.

A “cultura”, os filmes e os cineastas indígenas


Os filmes realizados pelo cineasta Xavante Divino Tserewahu neste período,
Wapté-Mnhõnõ: a iniciação do jovem Xavante6 (1999), Wai’á Rini, O poder do sonho7
de 2001 e Daritizé, Aprendiz de curador8 (2003) tratam de registrar e narrar em
pormenores os rituais de seu povo, com propósitos claros no que se referem a guardar
esta memória cultural para as próximas gerações, como também funcionam como
afirmação cultural. A partir destes momentos específicos de celebrações e rituais, os

6Neste documentário é narrado o ritual de passagem dos meninos adolescentes para a vida adulta.

7O documentário que narra A festa do Wai’á. Dentro do longo ciclo de cerimônias de iniciação do povo
Xavante, esta festa é a que introduz o jovem na vida espiritual, no contato com as forças sobrenaturais.
Em diálogo com seu pai, um dos dirigentes deste ritual, Divino revela o que pode ser revelado desta festa
secreta dos homens, onde os iniciandos passam por muitas provações e perigos.

8 Realizado por Divino a pedido do chefe de aldeia de Guadalupe, recém criada na Terra Indígena São
Marcos. “Com a divulgação do seu vídeo Wai´a Rini, O poder do sonho em outras aldeias Xavante, os
moradores da Aldeia Nova da reserva de São Marcos pediram ao Divino que filmasse o mesmo ritual em
sua aldeia. ‘Aprendiz de curador’ descreve o cerimonial do Wai´á, no qual os jovens são iniciados ao
mundo espiritual para desenvolver o seu poder de cura.”

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documentários realizados por Divino buscam evidenciar o que é ser Xavante. Ou como
se faz Xavante, para eles próprios, para os outros povos Xavante, para os diferentes
grupos étnicos que terão acesso a esse material e para os brancos envolvidos nestes
circuitos de festivais de cinema e eventos relacionados ao meio ambiente, a
antropologia, ao cinema etnográfico e à questão indígena por onde circulam estes
filmes.
Takumã Kuikuro participou desde a primeira oficina de formação de cineastas
realizada pelo projeto VNA em 2002, em sua aldeia. Esta oficina aconteceu em parceria
com os antropólogos Bruna Franchetto e Carlos Fausto, que implementavam o projeto
Documenta Kuikuro, visando a documentação de rituais e conhecimentos tradicionais
do povo Kuikuro. “Conforme explica Carlos Fausto (in VÍDEO NAS ALDEIAS 25
ANOS, 2011), um dos coordenadores deste projeto de documentação, o cacique e as
lideranças da aldeia já tinham a demanda de documentação dos rituais, cantos e mitos,
para que pudessem “guardar a sua cultura.” (BELISÁRIO, 2014, 33). Esta oficina foi
coordenada por Vincent Carelli e Carlos Fausto. O primeiro filme realizado por este
coletivo resultado desta primeira oficina é Nguné elü: O dia em que a lua menstruou9
(2004). O segundo filme realizado por este coletivo foi também resultado desta primeira
oficina. Imbé gikegü: Cheiro de pequi foi finalizado somente em 2006, é um
documentário que narra a história deste ritual. Estes filmes tratam de contar a história
deste povo através de seus rituais. A opção e demanda deste grupo em formar um
coletivo de cinema deixa evidente esta necessidade dos indígenas neste momento de
resguardarem esta memória através dos registros videográficos. Sobre este processo de
documentação de rituais sistemáticos, Mari Corrêa comenta a respeito das escolhas dos
temas para os filmes e apresenta uma discussão em torno que teve com os indígenas
participantes da formação do VNA .

Durante um encontro que promovemos com os realizadores em São


Paulo, lembro-me de uma discussão sobre quais seriam os assuntos
que eles gostariam de tratar em seus filmes. O tema recorrente era o de
“filmar a cultura”: filmar a cultura para não perdê-la, para mostrar

9 Em uma das noites durante o período da oficina, em que assistiam no pátio central da aldeia à projeção
do filme A guerra do fogo (1981), ocorreu um eclipse lunar. A projeção foi imediatamente interrompida e
durante toda a noite e no dia seguinte, uma série de ações rituais foram realizadas. Neste filme os Kuikuro
também lançam mão da encenação para reconstituir algumas cenas que não puderam ser registradas no
momento mesmo em que aconteciam.” (BELISÁRIO, 2014, 34).

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para os mais jovens, para o homem branco respeitar mais. Nesta
conversa, e em muitas outras antes e depois desta, cultura é muitas
vezes identificada exclusivamente como ritual, é festa tradicional e
ponto. Começamos a questioná-los sobre esta idéia: então um povo
que não faz mais sua festa tradicional não tem mais cultura? O
conceito de cultura foi se ampliando na medida em que
aprofundávamos a discussão: falar sua língua, o jeito de cuidar dos
filhos, de fazer sua roça, de preparar sua comida, as coisas em que se
acredita, as histórias, os valores… foram aparecendo como elementos
e manifestações de cultura. A certa altura, um dos participantes, um
índio Terena, visivelmente aliviado, disse: Na minha aldeia não se faz
mais festa tradicional e só os velhos falam a nossa língua. Estava
achando que não ia ter o que filmar, que não tinha filme para fazer lá.”
(CORRÊA in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004)

Há portanto uma clara demanda dos indígenas por este registro dos seus rituais,
seja através da documentação sistemática da “cultura” como forma de acesso e acervo
destas histórias pelos próprios povos, seja para a legitimação e afirmação desta cultura
para os brancos. Esta é, portanto, uma “fórmula” de narrativa e de estética encontrada
pelo projeto em conjunto com os indígenas para dar conta desta demanda de produção
de registros videográficos das comunidades envolvidas. Ao mesmo tempo que tentam
produzir “bons” filmes que dialoguem com o mundo dos brancos, buscam também
atingirem seus objetivos políticos, no sentido de dar forma e representatividade para as
suas respectivas lutas.
No tempo das chuvas (2000), é um filme feito por vários realizadores, Isaac,
Valdete e Tsirotsi Ashaninka, Lulhu Manchineri, Maru Kaxinawá, Nelson Kulina,
Fernando Katuquina e André Kanamari. O documentário é uma crônica do cotidiano da
comunidade Ashaninka do Rio Amônia a partir da apresentação de alguns personagens
durante a estação das chuvas. Esta era uma proposta de exercício de filmar o cotidiano
de alguém, sem roteiro pré-estabelecido. Cada um pré-editou a sua parte e para costurar
o tema, fizeram uma entrevista com três velhos contando o que eles faziam e deixavam
de fazer no tempo das chuvas. Este filme resulta de uma metodologia adotada pelo
projeto à partir do método Varan10, um modo de fazer documentário que está muito

10 “A experiência que originou os Ateliers Varan ocorreu em 1978 em Moçambique, quando o governo do
recente país independente solicita à Embaixada da França a vinda de profissionais para realização de
filmes sobre as transformações em curso. Jean Rouch propõe então, a formação de moçambicanos na
realização de filmes documentários para que eles próprios testemunhassem sua realidade. A formação nos
Ateliers Varan funciona a partir de estágios de onze semanas, com grupos de 12 pessoas. As três primeiras
são dedicadas à familiarização com a câmera e o som, com exercícios práticos que favorecem a reflexão
sobre o fazer documentário, assim como sessões de visionamento de filmes com a presença dos seus
realizadores. Na sequência, cada estagiário realiza um filme, ao mesmo tempo em que faz o som do filme
de um colega. E as três últimas semanas são dedicadas ao aprendizado da montagem, cada estagiário
devendo editar seu filme (VILLAR, 2003 apud GONÇALVES, 2012, 95).

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ligado à prática etnográfica, no que se refere à observação e aos detalhes do cotidiano,
no sentido de que estes dados dizem muito sobre determinada cultura, povo ou
comunidade. Como afirma Mari Corrêa recorrentemente em seus relatos sobre a sua
experiência no VNA, esta era a experiência de “filmar o nada” conforme narra:

Durante a oficina na aldeia Ashaninka em 1999. Chovia muito. As


câmeras úmidas demoravam a funcionar e eram poucas as atividades
na aldeia (...) Eu queria muito experimentar com eles a idéia de filmar
o tal do “nada”. Sugeri um novo exercício: retratar o cotidiano de uma
pessoa da aldeia onde cada um escolheria alguém – homem, mulher
ou criança – com quem tivesse alguma afinidade ou que despertasse
neles um interesse particular. Na busca de seus “personagens”,
surgiam pessoas com um incrível senso da imagem, verdadeiros atores
natos. Um deles estava construindo uma canoa com a ajuda de seu tio,
outro organizando a coleta de côco murumuru, e ainda outra tecendo
uma cusma para o marido. Voltavam no fim do dia para assistirmos e
comentarmos juntos a filmagem de cada um. Marú Kaxinawá havia
trazido um extenso material sobre o trabalho na roça de seu
personagem. Registro de observação meticulosa onde podíamos
perceber o cuidado e a precisão que tinha em acompanhar cada gesto
de seu personagem, como se, de tão familiares, fossem também seus.
Quando enfim o trabalho da roça terminou e seu personagem voltou
para a casa, a filmagem foi interrompida. “Por que parou, Marú?”
“Porque ele foi comer e depois descansar. Não ia acontecer mais
nada”. Insistimos para que ele, da próxima vez, filmasse os momentos
onde justamente “nada” acontecia. No dia seguinte, o “nada” estava
lá: ao compartilhar com a família o prato de macaxeira cozida com
peixe, fluía entre Marú e Kowiri, no ritmo manso do balanço da rede,
uma deliciosa conversinha sobre coisas corriqueiras da vida, causos
engraçados sobre caçadas, mulheres, aventuras passadas. A câmera,
tranqüila e próxima, movia-se do prato de comida investido pelas
mãozinhas das crianças para o rosto de Kowiri. No fundo do plano,
mulheres enchendo e depois servindo a cuia de caissuma. (CORRÊA
in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004, 35)

A busca pela individualização de identidades étnicas a partir da criação de uma


estética comum me parece ser um aspecto bastante relevante nesta produção. A opção
em trabalhar apenas com a produção de documentários sobre temas que recorrentemente
recaem sobre a reflexão da “nossa cultura” e o “nosso modo” de fazer as coisas, seja a
partir da documentação e registro de rituais, seja na observação das ações cotidianas da
aldeia, demonstram a tentativa destes indígenas de se apropriarem destas ferramentas
para produzirem a construção de identidades de si e para si.

Metodologia, estética e ética nos filmes dos Cineastas indígenas

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A dinâmica de trabalho das oficinas de formação de cineastas indígenas divide-
se basicamente em duas etapas, a primeira etapa é realizada na aldeia com duração de
aproximadamente um mês, onde participam entre cinco e doze alunos e dois ou três
coordenadores/formadores dependendo do tamanho do grupo. Neste primeiro momento
é apresentada a câmera aos indígenas que recebem as noções básicas relativas ao seu
manuseio. Após este primeiro contato partem para a definição de temas, as atividades de
roteiro e a busca por personagens.

Dentre as orientações sobre narrativas, formas de abordagem, escolha de


personagens, existem algumas “regras” que foram estabelecidas pelo projeto como
metodologia para esta formação. Muitas delas são técnicas reproduzidas e adaptadas da
metodologia do Ateliê Varan. Uma das principais orientações é no sentido de estimular a
estabelecer-se relações de consenso e de proximidade com os seus personagens. As
filmagens durante as oficinas de formação, são orientadas a serem feitas exclusivamente
sem a presença dos instrutores. Ao final de cada dia de filmagem as imagens são
exibidas e discutidas em grupo, quando são definidas também as pautas do dia seguinte.
Neste primeiro momento da oficina, os alunos recebem uma formação inicial
sobre a montagem de um filme, praticando exercícios com o material captado. Neste
primeiro contato com o processo de produção de um filme, são apresentadas as
ferramentas e técnicas necessárias para a realização, como também discutidas as formas
e os conteúdos narrativos a serem produzidos. Após este momento, os alunos definem
um projeto que querem desenvolver e o VNA dá o suporte técnico e financeiro para a
sua realização. Quando estes projetos já têm um volume significativo de material
filmado, os alunos participam de uma oficina de edição na sede do VNA para a edição
final dos seus projetos.
Os filmes dos Cineastas Indígenas realizados em contexto de oficina, em sua
maioria coordenadas por Mari Corrêa e Vincent Carelli e editados em quase sua
totalidade por Mari, trazem uma roupagem nova à estética do projeto Vídeo nas Aldeias.
O empenho do projeto neste momento em não apenas capacitar os índios no manuseio
das ferramentas mas também em realizarem “bons filmes” é visível nas produções deste
período. É possível perceber uma “fórmula” na realização destas produções, decorrentes

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provavelmente do processo e do rigor metodológico com que foram realizadas as
oficinas de formação no período entre 1998 e 2006.
O rigor na escolha dos planos, sempre bastante estáveis e observativos, na
montagem as entrevistas de “antigamente"11 dão lugar a sequências de observação. Os
planos não são longos, nota-se aí um recurso claro de montagem para um diálogo com o
mundo dos brancos e o tempo de aceitação destas imagens no universo ocidental. Com
montagens clássicas, os usuais recursos videográficos comumente encontrados nos
primeiros filmes do projeto e que dialogavam muito com a estética televisiva,
simplesmente desapareceram neste segundo tempo do projeto.
A câmera nestes filmes tende a adotar uma posição muito privilegiada, quando
colocada na mão dos índios, dando ao espectador o acesso a intimidade da aldeia. Esta
fotografia intimista, delicada e respeitosa que vemos presente na maioria dos filmes
dirigidos por cineastas indígenas do projeto VNA, são em sua maioria imagens feitas
pelos alunos das oficinas sem a presença e interferência dos monitores/coordenadores
durante as filmagens. Este dado não fica evidente nos filmes, mas torna-se latente
quando sabido. Desta forma podemos, portanto, compreender porque estas imagens são
tão peculiares e de um acesso extremamente privilegiado a este universo.

2.5 Cinema indígena ou cinema indigenizado?

Coutinho: Porque é isso que está acontecendo e o cara continua


índio… O que eu acho original e bacana nesses filmes em comparação
ao filme que o branco faz sobre o outro é essa coisa da impureza. Você
tem num filme um professor na aldeia, no final um cara dá um
artesanato para ele vender e fala: “cento e cinqüenta reais” em
português. Tem essa coisa extraordinária…
Vincent: “Deposita na minha conta.”
Coutinho: Deposita na minha conta! É sensacional. E daí tem outra
mulher que pede para ele uma havaiana. Isso daí eu acho um aspecto
extraordinário. Porque é exatamente o contrário de todos os filmes que
se faz sobre o outro. E está povoado de coisas desse tipo, “o branco
faz assim, faz assado…” O cara está fazendo um troço, mas tem bacia
de alumínio, o que não é ruim nem é bom, é um fato. Não adianta esse
negócio de ficar na lamentação, tirar a bacia de alumínio. É uma
posição absolutamente retrógrada, essa coisa da pureza. Então isso
está salpicado no filme e eu acho genial. Quer dizer o fato de ter isso
não impede que passe a paca na barriga, e que faça feitiço e etc... É
seu mundo estranho mas que tem objetos que foram feitos no contato

11 Em referência aos primeiros filmes produzidos no VNA, os quais os indígenas não assinavam a
produção.

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com o branco. Uma hora as meninas vêm correndo, acho que é na
hora do futebol, e um cara diz uma frase em português para as garotas:
“Vamos jogar futebol”, alguma coisa assim... De repente tem uma fala
em português. Então minha pergunta é o seguinte: até que ponto vocês
permitem que a impureza invada? (“Conversa a cinco” in VÍDEO
NAS ALDEIAS, 2006, 38)

A respeito das regras e da metodologia adotada pelo projeto para a formação dos
Cineastas Indígenas, existe um valioso material para a reflexão que merece a devida
atenção. Em 2006, Vincent Carelli e Mari Corrêa convidaram os cineastas Eduardo
Coutinho e Eduardo Escorel para uma conversa sobre os filmes dos realizadores
indígenas produzidos pelo VNA. O texto produzido e publicado no catálogo da II
mostra Vídeo nas Aldeias, editado e organizado por Mari Corrêa, coloca uma série de
questões palpitantes para esta reflexão, no sentido não apenas de questionarem esta
“metodologia” replicada do Varan em contextos e circunstâncias muito específicas,
como também, abrem o diálogo destes filmes com a linguagem do cinema documental e
a possibilidade de diálogo destes filmes com um público mais abrangente. Esta conversa
situa e questiona esta produção do VNA no contexto do cinema documentário
contemporâneo brasileiro, tanto no que diz respeito às suas temáticas quanto à estética e
à ética encontrada para a realização dos filmes realizados pelos Cineastas Indígenas.

Os filmes são muito bons, muito bem feitos, muito bem filmados, muito bem
montados, mas afinal, como foram feitos? Isto porque, não são filmes comuns, não é
todo dia que vemos índios fazendo filmes e, portanto, fica uma necessidade dos
espectadores “brancos” de entenderem em que contexto aquilo está acontecendo. Pede-
se mais bastidores, como são feitas estas tais negociações da entrada da câmera na
intimidade. Como, afinal, eles conseguiram aquelas imagens tão íntimas de dentro das
aldeias? Como se dá o processo de direção e montagem dos filmes? Parece que falta
situar o método do Varan nesta prática e encontrar o Cinema Verdade, pregado por
Rouch, nestas produções, no sentido em que os documentários devem deixar
transparecer os seus contextos, devem estar situados e não devem ser escamoteados no
processo de filmagem ou edição.

Coutinho: O mistério que fica para mim é que em vários filmes vem
escrito “oficina de vídeo”, e eu não sei bem o que é oficina de vídeo.
Como é que são feitos os filmes? Quanto tempo dura a oficina? Como

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são escolhidas as pessoas? O que eu quero colocar é o seguinte: o
diferencial que vocês têm – mas que eu acho que não está tanto nos
filmes como deveria estar – é que vocês fazem filmes com índios. E
que eles não são iguais, para começar. Tem tribos do lado do Peru, tem
os Waimiri… Devem ser distâncias incríveis. Mas como se passa uma
oficina? O que vocês dizem ou não para eles? Esses filmes são feitos
para nós, mas há uma versão para eles? Há uma questão aí que eu
acho essencial: as condições de produção de um filme são sempre
importantes em um documentário. Nesses são essenciais. (“Conversa a
cinco” in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004, 1)

Esta questão da falta de informação impressa nos filmes é recorrente e perpassa


toda a conversa entre Coutinho, Escorel, Sérgio Bloch, Carelli e Mari Corrêa. A falta de
informação e clareza sobre os “métodos” desta oficina e qual o papel que ocupam estes
coordenadores na autoria dos filmes são como lacunas deixadas por esta produção dos
cineastas indígenas. Esta conversa levanta questões importantes para a reflexão sobre
estes documentários produzidos nesta fase fílmica do VNA, conforme resume Caixeta
(2008, 110):

Os dois cineastas solicitam que os filmes VNA explicitem mais o


próprio contexto de sua realização, por exemplo, até que ponto os
cineastas brancos (sobretudo Vincent Carelli e Mari Corrêa)
influenciam na filmagem (enquadramento, tomada de som, etc.), na
escolha dos temas e, acima de tudo, na edição final? O próprio filme
deveria trazer essas informações de forma mais declarada, evitando
deixar o espectador “bloqueado” para entrar no sentido e no conteúdo
do que é filmado e mostrado.

Em “Conversa a cinco” (in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2006, 36), muito se fala
sobre os “dogmas” do cinema ocidental e da possibilidade deste método aplicado nas
oficinas inviabilizar uma “autêntica” produção indígena. Nesta prática onde, planos
muito longos ou planos que tremem, por exemplo, “não funcionam” e são nitidamente
descartados nestes filmes. A pergunta que fica é: será que não podem funcionar? Ou
ainda, funciona para quem? Será que um filme pode atingir tantos públicos?

Coutinho: A montagem é universal e não é universal. São códigos que


são criados para nós. Mas eu me pergunto o seguinte: vocês dão a eles
regras, que são regras de uma linguagem mais ou menos universal,
rejeitando um modismo ou outro… Então se você fala: “Falta um
plano para ligar”, isso é a nossa lógica de linguagem documentária.
Porque você não pode ter um corte descontínuo? Porque você não
pode ter um plano extraordinário fora de foco? Por que a câmera não
pode tremer? E o problema não é de fazer que não trema, tem que
fazer sempre melhor. E aí então entra o problema das mil coisas que

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você pode fazer, que não se fazem na linguagem tradicional,
entendeu?

Esta questão colocada por Coutinho e Escorel foi posteriormente resgata por
Caixeta, numa tentativa de adaptá-la para a antropologia, ou talvez para este lugar onde
co-habitam o documentário e a antropologia. A questão colocada resumidamente seria:
Se estes cineastas indígenas recebem os parâmetros da forma de fazer filme dos
brancos, será que conseguirão de fato produzir um cinema indígena? Será que no ato de
ensinar esta forma de fazer cinema, não se estaria inibindo a forma de fazer cinema
Xavante, Ikpeng, Ashaninka, Kaxinawá? A este respeito Caixeta (2008, 110) comenta:

Nessa fase há pelo menos três filmes marcantes, em que o sossego da


câmera, a espera de que o tempo passe, os planos abertos, o filmar o
“nada” nos fazem todos lembrar momentos importantes do cinema
moderno: No tempo das chuvas (2000), Shomõtsi (2001), Um dia na
aldeia (2003). Por outro lado, a força e a marca desse “cinema
verdade” ou “moderno” apresentadas na fase mais recente do VNA,
aquela que corresponde às oficinas para formação de realizadores
indígenas a partir de 1997, são virtudes que se transformam em crítica:
o pensamento e a linguagem cinematográfica ocidental não estariam
inibindo o surgimento de um pensamento e de uma linguagem
propriamente indígenas? Eduardo Escorel (2006:25) constata que, de
fato, os documentários VNA comprovam a eficiência do ensino
transmitido nas oficinas e o bom aproveitamento dos alunos
indígenas:
“Os assuntos tratados são interessantes. Os planos são bem
enquadrados, o diafragma é correto, a imagem está sempre em foco, a
câmera não trepida, o ponto de vista é adequado, há poucos
movimentos de zoom. O som é de boa qualidade. (...) O ritmo de
edição mantém o interesse. A duração dos planos e dos documentários
em si não ultrapassa nossa expectativa usual”.
Mas, apesar disso tudo, pergunta-se com razão Eduardo Escorel, não
haveria uma contradição em oferecer a linguagem audiovisual
ocidental para os índios se comunicarem com outros índios e com os
não-índios a respeito e a partir de seu próprio repertório cultural?
Quando os Xavante desejam usar do vídeo para “preservar sua própria
cultura”, não seria adequado que o fizessem em sua própria
“linguagem”?

Caixeta (2008) constrói seu argumento em analogia ao conceito elaborado por


Lévi-Strauss (2007) acerca do Pensamento Selvagem. Levis-Strauss coloca o
pensamento selvagem em paralelo ao que convenciona chamar de pensamento
científico. Que resumidamente seria, enquanto o primeiro constrói suas estruturas a
partir de fragmentos e resíduos de fatos que seriam a base para a construção do
pensamento mítico, o segundo organiza-se através da criação de seus próprios
parâmetros e ferramentas. Neste sentido, Lévi-Strauss aproxima a idéia do pensamento

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selvagem ao trabalho de um bricoleur, ou seja, assim como o bricoleur trabalha a partir
de ferramentas e objetos pré-existentes para a fabricação de novos objetos e
reconstrução de outros, o pensamento selvagem funcionaria da mesma forma, se
edificaria a partir de mitemas (que podem ser entendidos como moléculas de mitos)
reutilizadas e recombinadas inúmeras vezes nas construções das narrativas míticas, que
segundo o autor, são a base nas quais se fundam este pensamento selvagem. E a ciência,
diferente do pensamento mítico (ou neolítico conforme coloca o autor), atua de maneira
oposta, construindo parâmetros e ferramentas para a edificação deste pensamento. Vale
ainda destacar que Levis-Strauss com isso não pretende afirmar que uma forma seria a
evolução de outra ou que onde existe uma não existe a outra, pelo contrário, o autor
coloca que ambas as formas habitam a mente humana na elaboração e construção de
seus significados.
Caixeta neste sentido coloca esta produção de filmes dos Cineastas indígenas em
paralelo a esta questão apresentada por Lévi-Strauss. Será que ao apropriarem-se das
ferramentas e conceitos apresentados pelos instrutores brancos no processo de formação
de cineastas, estes indígenas reconstroem estes significados e constroem novas formas
de narrativas fílmicas tal qual o bricoleur quando apropria-se dos objetos disponíveis
para a construção de novos objetos? O que Caixeta pretende é encontrar neste cinema
indígena o pensamento selvagem, nas suas formas de produção e criação de narrativas a
partir da apropriação destas novas ferramentas para a construção de suas narrativas
míticas. Desta forma também aproxima a construção do cinema, especialmente do
documentário, à forma de elaboração do pensamento selvagem, propondo, portanto, que
o cinema atuaria para estes povos e cineastas como uma atualização da construção das
suas habituais práticas narrativas:

Sempre acreditei que fazer filme documentário é uma espécie de


bricolage, ir a cada passo, pé ante pé, tateando o caminho, atento ao
que se passa na frente da câmera, colhendo pedaços (que são as
imagens) de um “todo” (uma materialidade, uma corporalidade) e de
um “tudo” (um imaginário) que se passa fora da câmera, tudo isso sem
roteiro prévio (eu diria – ao contrário da ciência e até mesmo de um
certo tipo de cinema documentário ou ficcional – sem uma hipótese ou
uma idéia prévia). A montagem também é feita a partir de um
material heteróclito, já mais ou menos decupado no momento mesmo
da filmagem. E, nesse sentido, o cinema oferece ao indígena um meio
mais eficaz para realizar a sua antropologia nativa ou reversa, do que a
palavra escrita. Dessa maneira o cinema se aproxima da mitologia, do
imaginário, do sonho, do mágico, do corpo, da materialidade, ou seja,

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aproxima-se do pensamento indígena, selvagem e não
domesticado.” (CAIXETA, 2008, 119)

O processo de etnização através da produção de imagens


A exemplo da experiência de “filmar o nada”, Mari quando afirma que estes
indígenas têm outras formas de afirmar suas culturas que não apenas através do registro
de seus rituais, talvez não entendesse isso como representação e as consequências que
estas performances imagéticas podem gerar. Pois tanto na primeira forma fílmica, a
filmagem de rituais, quanto na segunda forma, a filmagem do cotidiano e do ordinário,
estes filmes demonstram a necessidade de representação desta “cultura” e aquilo que
Carneiro da Cunha apontou como a “cultura para si”, pois representam a apropriação do
conceito de cultura por estes povos para fins políticos.
Performar para e com a câmera, é algo que perpassa a trajetória do cinema do
documentário, esta é uma questão que já foi inúmeras vezes repensada, resignificada e
reformulada12. A questão que me leva novamente a refletir sobre este tema reside agora
em outro ponto. Neste contexto de produção fílmica realizado por cineastas indígenas
no âmbito do projeto VNA, busco compreender a partir do conteúdo apresentado nestas
imagens, quais os efeito que estas provocam quando exibidas. Em outras palavras, quais
seriam estes significados específicos sugeridos por Carneiro da Cunha (2009, 373) a
propósito desta formulação de “cultura” impressa nos filmes destes cineastas.
Falar sobre a “invenção da cultura” não é falar sobre cultura, e sim
sobre “cultura”, o meta discurso reflexivo sobre a cultura. O que
acrescentei aqui é que a coexistência de “cultura” (como recurso e
como uma arma para afirmar identidade, dignidade e poder diante de
Estados nacionais ou da comunidade internacional) e cultura (aquela
“rede invisível na qual estamos suspensos”) gera efeitos específicos.

No esforço em realizar “bons” filmes percebemos que estes podem facilmente


cair na armadilha da ambiguidade apontada pela autora (2009, 313) a respeito dos
efeitos produzidos pela apropriação do conceito de “cultura” por seus possuidores.
“Como vários antropólogos já apontaram desde o final dos anos 1960 (e outros
redescobrem com estrépito de tempos em tempos), essa é uma faca de dois gumes, já

12Belisário (2014, 54) analisa as estratégias de mise-en-scène adotadas no filme As Hiper Mulheres
(2011), dirigido por Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo Sette e apresenta o conceito de mise-en-
scene documentária discutido por Comolli (2008) e Amount (2006) como uma ação performática
inevitavelmente presente no gênero do cinema documentário.

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que obriga seus possuidores a demonstrar performaticamente a “sua cultura””. E neste
sentido, cultura e “cultura” produzem efeitos diferenciados. Ou seja, na tentativa de
produzir um filme “autêntico” pode-se também estar inviabilizando a produção de um
filme autenticamente indígena.
Cabe ainda destacar, fazendo referência ao conceito de ambientalização proposto
por Leite Lopes (2006) através da velha tática adotada pela antropologia das análises
por analogias ou metáforas, que estes filmes, estão inseridos em um movimento de
“etnização” para fins políticos e poderiam receber o tal “selo étnico”, não só devido a
sua temática abordada mas também pela sua forma de realização, quando produzidos
dentro de uma perspectiva de compartilhamento e transculturalidade, onde são os
próprios indígenas os realizadores destes documentários.
Parece que existe uma certa expectativa vinda de todos os lados para que estes
filmes sejam de fato os melhores filmes produzidos sobre índio, mas não só. Que
estejam no hall dos melhores documentários produzidos e que suas narrativas
apresentem questões que façam a classe antropológica e de documentaristas repensar
toda uma disciplina desejando que novas lógicas de construção de significados sejam
apresentadas através destas imagens.
O empenho em que o o filme “dê certo” e a necessidade de articulação desta
produção aos objetivos do projeto quando tomada a decisão desta formação, no que diz
respeito principalmente à articulação política e à representatividade destes povos através
da imagem, provavelmente, foi o que levou o projeto VNA a desenvolver e replicar o
método Varan. No entanto, quando Coutinho e Escorel (2006) defendem que estes
filmes deveriam ter muito mais do seu processo impresso, talvez eles estejam querendo
dizer que esta mise-en-scène apresentada pelos indígenas nas suas representações de
“cultura” não os satisfazem enquanto espectadores. Talvez eles estejam querendo dizer
que esta representação cultural, apresentada praticamente como um souvenir indígena
não funciona enquanto cinema. A tal autenticidade buscada nos artesanatos indígenas
conforme demonstrou Gonçalves (2010) na sua experiência com os Paresi, também não
funciona para aqueles que querem a ver a verdadeira “cultura” indígena no cinema, ou
seja, para os querem “autênticos” filmes de índio.

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