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lares subalternizantes. Há ainda a possibilidade, segun- a democratização do acesso à terra; a garantia universal
do Martim Smolka, que a regularização seja acionada de condições básicas de vida urbana e o fortalecimen-
por governos indispostos para o enfrentamento amplo to dos sujeitos populares, o que pressupõe muito mais
e conseqüente da questão social. Em oposição a estas do que a participação usualmente estimulada (e, até
tendências, a coletânea A cidade da informalidade indi- mesmo, exigida) nas políticas urbanas. Afinal, como
ca que a regularização fundiária e urbanística pode ser também afirma Edésio Fernandes: “é essencial que se
conduzida pela análise crítica das formas sociais domi- reconheça que em casos como o do Brasil, nos quais a
nantes (jurídicas e espaciais) e pela valorização da con- ilegalidade deixou de ser exceção e passou a ser a regra,
quista diária da cidade. Deste último ângulo, trata-se o fenômeno é estrutural e estruturante dos processos
de resistências e vitórias parciais que configuram a de- de produção da cidade” (p.139).
nominada, por Emilio Duhau, urbanização popular, Os artigos reunidos na coletânea resistem a pro-
conceito que reconhece a natureza coletiva da expe- postas de regularização que a apresentam como uma
riência da irregularidade. inovadora panacéia para o drama social vivido nas me-
Nesta experiência, segundo dados citados por trópoles da América Latina, desconhecendo, como diz
Martim Smolka, encontra-se envolvida, por vezes, Cláudia Pilla Damasio, os seus vínculos com a indis-
mais da metade da população urbana, em precárias pensável humanização da experiência urbana. Com es-
condições ambientais, reconhecidas por Alex Kenya tes artigos, fica claro que a regularização é um conceito
Abiko e Fernando Cavallieri. Como denominar esta em disputa, que inclui o confronto entre concepções
real estruturação popular da experiência urbana? Será de política urbana. Por outro lado, verifica-se não ser
suficiente indicar o seu afastamento da forma domi- aceitável a regularização como um fim em si mesma, já
nante, como propõem as noções de informalidade e ir- que os processos indicados por esta noção não geram
regularidade? Estas noções não estimulariam o cômo- resultados plenamente previsíveis e controláveis. Além
do esquecimento das múltiplas vivências populares da disto, a coletânea permite afirmar que a desregulamen-
cidade, que incluem fatos tão distintos quanto favelas tação e/ou a regulamentação simplista e simplificado-
(antigas e novas, com diferentes dimensões), loteamen- ra, ao gosto das diretrizes neoliberais, não constituem
tos clandestinos, ocupações de prédios, assentamentos uma saída. De fato, tanto uma regularização resumida
populares e cortiços, além da experiência extrema da à legalização como o simples ajuste estratégico de nor-
moradia na rua? Como reconhecer os processos econô- mas “ao que existe” redundam, por estranhas sinoní-
micos e político-institucionais que unificam as formas mias, na indesejável valorização da norma instituída
urbanas populares, sem pieguismo e ocultamento da frente a dinâmica da própria sociedade, como se a lei
dominação e da espoliação? Como apreender, como ditasse, por si só, comportamentos coletivos, garantin-
propõe Pedro Abramo, a complexidade dos elos exis- do a legitimidade aos governantes.
tentes entre a dinâmica interna das favelas, a dinâmica Desta ótica, deixa-se de compreender o marco ju-
interfavelas e, ainda, com o entorno imediato de cada rídico como construção política que garante direitos
assentamento? de cidadania, o que estreita a democracia e o espaço
Na coletânea, são identificáveis algumas respostas público. Porém, como desconhecer que a legalização
a estas perguntas na crítica de diretrizes para a política pode colaborar na redução da violência, retendo a ação
urbana que apenas reconhecem benefícios na regulari- de grileiros e os despejos? O núcleo da problemática
zação; na denúncia da omissão dos governos no deli- da regularização é a propriedade, este fundamento da
neamento de políticas habitacionais abrangentes; na (des)ordem urbana e real sustentáculo da versão domi-
crítica, como propõe Cláudia Pilla Damasio, a propos- nante do Estado de Direito. Enfrentar este núcleo é
tas que não incorporem a experiência urbana das clas- também dispor de uma oportunidade para refletir/re-
ses populares. Estas respostas são indicativas da urgên- ver a experiência urbana e, ainda, a organização políti-
cia com que precisam ser desenvolvidas análises co-jurídica das relações Sociedade–Estado. O aprovei-
estruturais da urbanização latino-americana, orienta- tamento desta oportunidade poderá reaproximar o
das por compromissos com: a ruptura do círculo vicio- que décadas de neoliberalismo afastou, isto é, políticas
so que une desigualdade, pobreza e ilegalidade urbana; urbanas socialmente justas e projetos dirigidos à inte-
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gração social, implementados nos diferentes níveis de sua capacidade de propor novos universais e, assim, o
governo. que afinal é legítimo. As práticas solidárias observadas
Não há dúvida de que os países periféricos encon- em favelas constituem elementos morais a serem refle-
tram-se em mais uma encruzilhada. Nesta, os cami- tidos no desenho de políticas urbanas, diante do estí-
nhos estão marcados por estratégias para a economia e mulo ao individualismo. De fato, receitas e receituários
por percepções de democracia. As políticas de regulari- ou, noutros termos, práticas curativas, no mínimo, não
zação estão posicionadas nos termos desta encruzilha- bastam. Os obstáculos existentes à regularização, ana-
da, o que pode ser reconhecido, por exemplo, através lisados por Rosana Denaldi e Solange Gonçalves Dias,
de uma comparação entre o artigo de Julio Calderón confirmam esta insuficiência. Também dizem dos limi-
Cockburn, dedicado à experiência peruana, e os textos tes da regularização, a sua indispensável associação
de Emilio Duhau e Maria Cristina Cravina. A reflexão com um plano muito mais abrangente de mudanças
crítica dos erros cometidos em políticas de regulariza- institucionais e administrativas.
ção colabora para que sejam superados o clientelismo Há necessidade de uma nova sistematização (e
existente em práticas de legalização e as formas especu- apropriação) dos recursos concentrados nas metrópo-
lativas de enfrentamento da pobreza, como a que ago- les latino-americanas que transforme a própria idéia de
ra busca associar, desconhecendo a cultura popular, o regularização e apóie a territorialização de instrumen-
acesso à propriedade individual à ação dos bancos pri- tos jurídicos e urbanísticos. Para tal, é indispensável o
vados e ao crédito. diálogo interdisciplinar, valorizador da percepção de
No âmbito dos direitos urbanos, desconhecer direitos originada na experiência popular e das estraté-
culturas – como exposto por Julio Calderón Cockburn gias intergeracionais de sobrevivência e mobilidade so-
no que concerne aos registros de propriedade e, por cial, tratadas nos artigos de Julio Calderón Cockburn
Edésio Fernandes, com relação aos instrumentos jurí- e Pedro Abramo. Nestes artigos, surge a indicação de
dicos – significa impedir a formação de sujeitos sociais. que a experiência da pobreza – dos homens lentos de
Significa, ainda, conceber falsos projetos, que disper- Milton Santos – resiste aos formuladores das políticas
sam investimentos e anulam a face extremamente ati- públicas, quando orientados por uma racionalidade
va da experiência popular, demonstrada no dinamismo que desconhece o tecido urbano. Este desconhecimen-
do mercado informal de terras e moradias. Tal desco- to, aliás, explica o fracasso de intervenções calcadas nu-
nhecimento, como indica o texto de Julio Calderón ma participação popular, que, simplesmente, não
Cockburn, é impeditivo da territorialização de direitos acontece. Trata-se de afastamentos Sociedade–Estado
e da emergência de novas territorialidades, efetivamen- que marcaram a urbanização periférica, com enormes
te democráticas. O mercado abstrato renega o merca- custos sociais, redundando, como esclarece o artigo de
do concreto, da mesma maneira que normas jurídicas Alex Kenia Abiko, em obstáculos financeiros para a ad-
abstratas rejeitam práticas sociais. Estes espelhos desfo- ministração pública.
cados, presentes em políticas públicas estimuladas por Há, realmente, esperança de que a radicalização
agentes desterritorializados, estimulam uma cegueira da democracia integre a urbanização popular à estru-
ainda mais profunda. turação dominante da cidade? A coletânea demons-
Esta cegueira impede o aprendizado com a expe- tra, claramente, que a dicotomia formal–informal
riência das classes populares urbanas dos países perifé- precisará ser superada, como afirma Fernando Caval-
ricos, que constroem cidades e desvendam recursos em lieri ao indicar a sua simbiose orgânica, da mesma
ambientes marcados por carência e exclusão. Por que forma que deverá ser superado o recurso a técnicas es-
regularizar, apenas, os seus resultados materiais imedia- tatísticas que desconhecem a dinâmica da pobreza.
tos? Por que não reconhecer propostas latentes (e ain- Existe a necessidade de (re)conhecimento profundo
da subordinadas) na urbanização popular, inclusive no dos lugares e de sua intensa vitalidade, indicada no
que concerne à renovação do direito e do urbanismo? texto de Pedro Abramo e no artigo de Jane Souto de
Institucionalizar a carência ou reproduzir a estratégia Oliveira, Denise Britz do Nascimento Silva, José Ma-
de indutos e anistia é realmente muito pouco… Reco- tias de Lima e Dorian Luis Borges de Melo. Deste
nhecer a potência do “outro” é também admiti-lo na (re)conhecimento dependerá a esperada renovação da
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