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Introdução

Patrícia Lacerda Bellodi

Uma odisséia a partir da Odisséia


Contar histórias é uma das mais importantes e prazerosas atividades
humanas: as histórias dão significado à experiência, nomeiam nossos temores e
alegrias, registram nossas dificuldades e vitórias, vinculam as gerações e,
especialmente, aproximam as pessoas.
Através das histórias compartilhadas, desde o principio dos tempos, os
homens procuram entender a origem da vida e o seu lugar no mundo. Há histórias
de lutas, de descobertas, de amor, de mistérios, do cotidiano ou encantadas – mas
todas buscam traduzir e apresentar, de uma forma ou de outra, a experiência e o
sentido do viver.
Neste livro, desejamos contar uma história a partir de outra história: a
“odisséia” da realização do Programa Tutores da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (FMUSP) tendo como referência o clássico “A Odisséia”
de Homero – por isso: uma “odisséia" a partir da Odisséia.

Esta frase, composta com a mesma palavra em seu sentido próprio e comum,
condensa os dois maiores objetivos deste livro e apresenta conceitos importantes.
Introduz, primeiramente, a origem da natureza da atividade de Tutoria –
Mentoring, em seu conceito original – surgida a partir do personagem Mentor na
obra de Homero.
Depois, permite contextualizar a narrativa da implantação da Tutoria na
FMUSP com tudo aquilo que nela esteve presente: vicissitudes, dificuldades,
conquistas e vitórias ao longo do tempo.
Torna possível, ainda, apresentar uma questão fundamental: o tutor presente
neste livro, o tutor da FMUSP, tem, na verdade, o papel de mentor.

Por isso, conhecer um pouco dessa obra de Homero, é importante para se


compreender o desenvolvimento da atividade de Tutoria (Mentoring) na
Universidade em geral e na FMUSP em particular.
Italo Calvino disse certa vez que “um clássico é um livro que nunca termina
de dizer o que ele tem a dizer”, assim é com a Odisséia.
Mas, tentemos aqui, contar um pouco dessa clássica e originária relação de
mentoring: a de Mentor e Telêmaco.
Mentor e Telêmaco
Mentor, personagem da Odisséia de Homero, era um sábio e fiel amigo de
Ulisses1, Rei de Ítaca. Quando Ulisses partiu para a Guerra de Tróia, ele confiou a
seu amigo Mentor o cuidado de seu filho Telêmaco. Mas, muitos anos após o
termino da guerra, eis que Ulisses ainda não havia conseguido voltar ao seu lar.
Telêmaco assistia então, angustiado e vulnerável em sua juventude, a
dilapidação do patrimônio paterno pelos pretendentes a um novo casamento com
sua mãe, Penélope, a qual deles se esquivava, inteligentemente, tecendo, durante
o dia, um manto prometido ao sogro, mas o desmanchando à noite.
Essa terrível situação não podia mais continuar e Telêmaco decide partir em
busca de notícias do pai. Mas ele não parte sozinho: afinal, era muito jovem ainda.
É então acompanhado por Mentor e dele recebe suporte, orientação, inspiração e
coragem para seguir em direção a seu objetivo. Ir em busca do pai tem,
psicologicamente, um sentido muito importante: trata-se de se aproximar do
mundo dos adultos, daquele lugar tão desejado na infância que, com o
desenvolvimento e amadurecimento, se mostra então possível ao jovem.
As vicissitudes da viagem de Telêmaco em direção ao pai, assim como de
Ulisses de volta para casa, os encontros e desencontros na jornada, o auxílio
recebido dos deuses e dos amigos compõem o coração da obra.

O que fazia Mentor?


Mentor foi largamente responsável pela educação do jovem Telêmaco, pela
formação de seu caráter, valores e pela sabedoria de suas decisões. Sua presença
era particularmente importante quando decisões práticas eram necessárias ou
quando escolhas críticas tinham de ser feitas.
Importante ressaltar que nesta relação de ajuda Mentor não estava sozinho.
Palas Atena, a deusa dos olhos brilhantes (ou dos olhos glaucos, olhos verde-mar)
e da sabedoria, muitas vezes assumia a forma do amigo de Ulisses para iluminar
ainda mais o caminho de Telêmaco. Havia assim, também, um importante
elemento espiritual nesta relação de ajuda, além da contribuição pragmática de
Mentor. A parceria Mentor-Atena personifica, como um todo, a sabedoria necessária
para seguir em frente.
No final da jornada, e isto é importante para a compreensão dos objetivos do
mentoring, Telêmaco tinha amadurecido e já tomava decisões independentemente.
Nesse sentido, Mentor foi uma fundamental figura de transição na vida de Telêmaco
durante sua jornada da infância à maturidade.

1
Ulisses (ou Odisseu, em grego, de onde vem “Odisséia”).
Bem mais tarde, no final do século XVII, um educador francês chamado
François de Salignac de La Mothe-Fénelon escreve “As Aventuras de Telêmaco”
(1699).
Neste outro livro, a relação de Mentor com o filho de Ulisses, com todos os
seus detalhes, é o centro da narrativa. Enquanto a Odisséia concentra-se mais nas
experiências de Ulisses, este focaliza especialmente a educação de Telêmaco.
Fénelon foi tutor do neto de Luis XIV e seu livro, no século XVIII, inspirou muitos
pedagogos. A história é uma “continuação” do poema épico de Homero e, através
de uma série de aventuras, o autor ilustra a tese de que um monarca ideal deveria
ser um homem de paz, sabedoria e de estilo de vida simples. Graças a Fénelon e ao
Iluminismo, a palavra mentor renasceu depois de três milênios e está presente em
nossa linguagem atual.
O termo mentor (como substantivo comum) passa então a ser utilizado
para designar, em geral, a relação entre um adulto mais experiente e um jovem
iniciante. Uma relação na qual o mentor provê orientação, instrução e
encorajamento para o desenvolvimento da competência e caráter do jovem.
Durante o tempo em que permanecem juntos, espera-se que os dois desenvolvam
um vínculo especial - de compromisso mútuo, respeito, confiança e identificação -
que facilite a transição para a vida adulta.

Voltando à história grega, seja na Odisséia, seja no livro de Fénelon, é


importante salientar que mais do que tutelar, isto é, ser totalmente responsável por
Telêmaco na ausência do pai, Mentor o mentoreava (sim, existe o verbo
mentorear!). Orientava, guiava, ensinava, inspirava e, acima de tudo, encorajava
em direção à independência, à autonomia, à construção de sua própria identidade.
Não fazia “pelo jovem” e sim o fortalecia, através do suporte e da experiência, a
“fazer por si”.
Infelizmente, nossa linda língua portuguesa (e como ela é bela) não contém
em seu repertório a expressão “Mentoração” ou “Mentoria” – uma possível tradução
para Mentoring. Por isso, a palavra Tutoria (que, especialmente na Educação
Médica, está mais associada ao tutor para facilitação da aprendizagem, dentro de
uma determinada modalidade de ensino, a chamada Aprendizagem Baseada em
Problemas) será aqui utilizada. Tanto no Programa Tutores, quanto neste livro, uma
grande nota de rodapé poderia ser assim colocada, como aviso: “onde se lê
tutor, compreenda-se papel de mentor; onde se lê Tutoria, entenda-se como
relação de Mentoring”.
O importante é deixar claro aos leitores que, mais do que um papel com um
conjunto de responsabilidades determinadas, nomeado dessa ou daquela forma por
questões culturais ou lingüísticas, o Mentoring deve ser compreendido sempre
como um tipo especial de relação.
Nesse sentido, como bem discutiram Awaya e seus colaboradores (2003), é
fundamental resgatar a essência da atividade através da própria narrativa da
Odisséia.
Resgate este não apenas devido à origem do termo mentor, mas,
principalmente, por conta das características da relação entre Mentor e
Telêmaco. O poema grego, assinalam esses autores, pode parecer remoto no
tempo e desconectado dos problemas atuais de mentores e alunos, mas representa
um ponto natural para a exploração da essência da relação de mentoring.
Sua narrativa ajuda, como a boa literatura sempre faz, a compreender as
particularidades desta relação, iluminando seus traços importantes e dando um
fundamento filosófico para o mentoring moderno.
Nessa perspectiva, os atributos centrais do Mentoring, derivados do poema
grego, seriam:

1. A relação de mentoring como uma jornada


A Odisséia é uma narrativa onde o buscar é o grande desafio: há a busca de
Ulisses por sua terra natal, a busca de Telêmaco por seu pai e, num nível mais
profundo, a viagem interna de descoberta de Telêmaco - na qual ele busca provar
seu valor como sucessor do pai. A estória de Telêmaco e Mentor pode ser lida como
uma metáfora da iniciação no mundo adulto, da construção e estabelecimento da
identidade de um indivíduo na vida. Telêmaco é o “buscador”, Mentor e Atena
simbolizam o conhecimento e a sabedoria necessários a essa busca. Nesta
analogia, um mentor é um viajante mais experiente que acompanha o iniciante em
direção a um novo destino, alguém que está menos interessado em fixar a rota e
mais em ajudar o jovem adulto a se tornar um viajante competente.

2. Uma relação de colaboração


Mentor é um amigo confiável de Ulisses e Telêmaco é filho do rei, portanto a
sua autoridade não é derivada de seu status, mas sim de sua grande experiência e
sabedoria. A relação de mentoring é, por essas características, uma relação
assimétrica, mas não uma relação hierárquica, não devendo ser baseada em
graduação social, acadêmica ou profissional. O Mentoring deve existir sempre no
contexto de uma relação de colaboração, numa parceria complementar onde
nenhuma parte tem uma posição de poder sobre a outra. Por isso, a “cultura do
mentoring” encoraja professores e alunos a ver cada um como colaboradores e
tomadores de decisão, mais do que figuras dentro de uma estrutura hierárquica.
3. O mentor como um guia do conhecimento prático
Embora Mentor seja representado como o real conselheiro de Telêmaco, ele
age, em muitas situações, como porta-voz de Atena, deusa da sabedoria, que
assume sua forma e voz. Embora “divina”, sua orientação através de Mentor é, em
todos os aspectos, eminentemente prática: Atena ajuda Telêmaco com problemas e
desafios que ele encontra no caminho, ajuda-o a ver novas maneiras de resolvê-
los, o protege de perigos. Também os mentores modernos compartilham
conhecimento prático com seus alunos através do diálogo. Apresentam as regras e
a estrutura da instituição, sua cultura e política e estão alertas aos problemas e
dilemas dos alunos. Ajudam a encontrar um caminho não a partir da oferta de
soluções, mas auxiliando a reconfigurar as questões para que eles mesmos as
possam resolver.

4. O mentor como uma força de suporte moral e pessoal


Atena informa Zeus, no início da narrativa, que seu objetivo inicial é “instilar
mais energia e força no filho de Ulisses” para confrontar os pretendentes da mãe e
ir em busca do pai desaparecido. Em momentos críticos da história, Atena encoraja
Telêmaco a encontrar novos desafios. Também Mentor, ele mesmo, motiva seu
protegido à ação. Prover suporte pessoal está no topo da lista dos elementos
críticos ao desenvolvimento de uma forte relação de mentoring, na medida em que
muitos alunos experimentam momentos de dúvida na jornada: ser uma caixa de
ressonância, estar atento às mensagens de estresse, discutir e ensinar como lidar
com situações difíceis é crucial para o papel de mentor.

5. O mentor dá espaço para o jovem provar o seu valor


Embora Mentor freqüentemente ofereça conselho e orientação, ele também
sabe quando ficar atrás, deixando Telêmaco provar seu valor. Este deve
demonstrar qualidades de liderança, através da busca pelo pai, para só então
“ganhar o mérito dos homens”: deve fazer isso sem que Mentor e Atena intercedam
a seu favor. Embora Atena, divina que era, tivesse poder para agir por Telêmaco,
também ela fica nos bastidores. Em um determinado momento da narrativa, por
exemplo, Atena assume a forma de uma ave e observa passiva a luta,
representando, através desta ação, a medida de sua confiança em Telêmaco. Ela
nunca garante a vitória e sempre coloca Ulisses e seu nobre filho em teste. O
mentor moderno deve também orientar, mas jamais controlar as ações de seus
alunos que, por sua vez, devem assumir a responsabilidade por suas ações.
Este livro
Falemos agora da narrativa da nossa “odisséia” - a do Programa Tutores na
FMUSP. Como este livro encontra-se organizado para contar essa moderna história
de mentoring na Medicina?
A primeira parte do livro introduz, ao leitor, o contexto no qual programas
de Mentoring na Universidade têm lugar, apresentando especialmente a jornada do
aluno universitário durante sua formação superior. Depois apresenta a natureza da
relação de mentoring, as definições e conceitos sobre a função e os atributos do
tutor (mentor) e as modalidades possíveis da atividade no contexto do ensino
superior. Embora baseado claramente no personagem da Odisséia, o papel do tutor
(mentor) não é ainda suficientemente claro e abriga várias possibilidades de
compreensão – as quais têm implicações importantes para sua atuação na prática e
devem ser discutidas em profundidade.
Depois, em sua segunda parte, o livro conta a história da realização, na
prática, de um, o nosso, programa de Tutoria (Mentoring) numa faculdade de
Medicina, a FMUSP. O foco, embora haja vários exemplos de mentoring em
outras profissões, será na experiência de graduação em Medicina, não esquecendo
que existem também trabalhos importantes junto a residentes e jovens professores
em início de carreira.
A estrutura e objetivos do Programa Tutores FMUSP, as atividades realizadas
(recrutamento, seleção, treinamento e supervisão de tutores) e as primeiras
avaliações do programa serão apresentados.
Especialmente as interações entre os tutores e seus alunos, seus encontros e
desencontros, terão espaço e ilustrarão o cotidiano do programa para oferecer um
retrato da experiência, na terceira parte do livro. Tutores e alunos contam, em
primeira pessoa, suas experiências na jornada. O respeito à confidencialidade foi
mantido sempre que necessário: informação pessoal foi omitida ou alterada e a
autoria está presente apenas nos relatos sem prejuízo aos alunos e tutores.
As avaliações já realizadas, algumas reflexões sobre o futuro da atividade,
suas possibilidades e limites encerram o livro, em sua quarta parte - mas não a
“viagem” da Tutoria na FMUSP. Esta ainda está começando e, sendo ela também
uma “odisséia”, devemos estar preparados para terras desconhecidas e novas
aventuras.
Um outro aviso importante: este livro não pretende ser um manual para
outros programas do gênero, muito menos é exaustivo em suas referências sobre a
atividade de Tutoria (Mentoring). Apresenta, na verdade, escolhas feitas ao longo
do programa que fizeram sentido dentro da natureza da atividade e, especialmente,
do contexto institucional da FMUSP.
Os textos, livros e artigos escolhidos foram aqueles que, em nosso caminho,
mostraram-se úteis para compreender o que acontecia e ajudar a tomar decisões
para correções de rumo. Não se trata de uma revisão da literatura, mas sim da
escolha de alguns “mapas” para a compreensão do fenômeno do Mentoring. Nesse
sentido, é importante lembrar que:

“O que está num mapa depende claramente dos interesses do cartógrafo e o mapa que
escolhemos depende do que nós desejamos saber... (os cartógrafos) fazem escolhas ao construir seus
mapas, iluminado alguns elementos e ignorando outros. Essas escolhas, inevitavelmente, afetam o
viajante que está usando o mapa. Mas, bons mapas também oferecem escolhas... eles não são meras
fórmulas, não insistem que a jornada deve ser feita de apenas uma maneira ou que ela precisa ser, de
fato, completada. O mapa indica pontos de referência, de perigo, sugere possíveis rotas e destinos, mas
deixa o caminhar para nós” (Daloz, 1986, pág. 46).

Nesse sentido, posso até dizer que seus autores, foram, para mim,
coordenadora do Programa, quase que meus “mentores” à distância, companheiros
de viagem: orientaram-me, inspiraram-me, ensinaram-me.
É preciso agradecer a Laurent A Daloz e suas considerações sobre o poder
transformador do mentoring nas experiências de aprendizagem de adultos, assim
como a Daniel J Levinson por sua obra fundamental para a compreensão do valor
de mentores no ciclo de vida adulta. Foram valiosos para mim, também, os
trabalhos de Rosslynne Freeman, coordenadora de um programa de mentoring
para clínicos gerais na Inglaterra, de Sue Wheeler e Jan Birtle, com o seu
conhecimento sobre os “personal tutors” da Universidade de Birmingham. E,
especialmente, gostaria de destacar Jean Rhodes, da Harvard University, grande
estudiosa de programas de mentoring para jovens americanos, que diz:

“Nenhuma diretriz rígida deve substituir o julgamento, a experiência e a flexibilidade que seres
humanos reais trazem para esta atividade muito humana” (pág 5, 2002)

E como é humana... Com tudo aquilo que nos encanta e nos assombra nas
relações entre pessoas.
Grandes pensadores da Psicologia, da Psicanálise e da Psicoterapia também
me permitiram compreender muito do que acontece na relação tutor (mentor)-
aluno: Freud, Bion, Winnicott, Erikson e Rogers, entre outros.
É preciso ainda, salientar especialmente que, com o que aprendi com os
“meus” tutores e alunos, também cresci no caminho.
Falando em caminhar, lembrei que, certa vez, li a respeito da experiência de
viajar (de um autor francês do qual não consegui recuperar o nome):

“A gente pensa que vai fazer uma viagem, mas na verdade, é a viagem que nos faz e... desfaz”.
Acredito que este é o grande valor dessa experiência chamada Mentoring: o
crescimento, a transformação pessoal, muitas vezes inesperada em seu sentido,
que, através da troca generosa de experiências, atinge a todos que a ela estejam
abertos - por inteiro, mente e coração.
Que este livro possa ser companheiro de viagem de outros que também
desejem “viajar” nessa atividade, lembrando, mais uma vez, que os mapas jamais
podem substituir a jornada em si: as pessoas são sempre maiores que nossas
idéias sobre elas e há, ainda, muitos territórios a serem explorados.

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